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Vínculo

Print version ISSN 1806-2490

Vínculo vol.18 no.3 São Paulo Sept./Dec. 2021

http://dx.doi.org/10.32467/issn.19982-1492v18nesp.p298-308 

ARTIGO

 

Trabalhando o vínculo, trabalhando no vínculo: considerações sobre o papel da transferência no atendimento de crianças e jovens que sofreram rupturas familiares

 

Working the bond, working in the bond: considerations about the role of transfer in the care of children and young people who have suffered family breaks

 

Trabajar el vínculo, trabajar en el vínculo: consideraciones sobre el papel de la transferencia en el cuidado de los niños y jóvenes que han sufrido descansos familiares

 

 

Mariana Ros StefaniI; Fernanda Parra dos AnjosII; Isabel Cristina GomesIII

IGraduanda em Psicologia (10º semestre) pelo Instituto de Psicologia da USP-SP (IPUSP). E-mail: mariana.stefani@usp.br
IIInstituto de Psicologia da USP-SP (IPUSP)
IIIDepartamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - IPUSP

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é refletir acerca de situações de rupturas familiares, que geram consequências importantes para a formação do self, e sobre a possibilidade de elaboração frente a esperança produzida pela construção de novos vínculos. Quais as reverberações dessas rupturas familiares no processo de constituição da identidade e no desenrolar da própria transferência num atendimento de orientação psicanalítica? Numa tentativa de responder a essa pergunta, será destacado aqui o vínculo transferencial como promotor de uma potencialidade terapêutica.

Palavras chave: transferência; vínculos; rupturas.


ABSTRACT

The main objective of the present paper is, based on the psychoanalytic theory (specially Winnicott's considerations), to reflect about situations regarding the rupture of family links, which cause relevant consequences to the construction of the self of a child, and about the possibility of elaboration with the development of new links. Considering those ruptures, what are the reverberations in the process of identity constitution and, considering the analysis environment, in the outcome of the transference itself? To answer this question, it will be highlighted in the present paper the bond between analyst and patient as a promoter of a therapeutic potentiality.

Keywords: transference; links; ruptures.


RESUMEN

El objetivo desto trabajo es refletir acerca de situaciones de rupturas familiares y las consecuencias que estas tienen en la formación del self, y acerca de la posibilidad de elaboración frente a la esperanza producida por la construcción de novos vinculos. ¿Quales son las reverberaciones de esas rupturas familiares en los procesos de constitución de la identidad y en el desenvolvimiento de la propia transferencia en un atendimiento de orientación psicoanalítica? En una tentativa de responder a essa pregunta, será destacado aqui el vínculo transferencial como promotor de una potencialidad terapeutica.

Palavras llave: transferencia; vínculo; rupturas.


 

 

INTRODUÇÃO: TRABALHAR (N)O VÍNCULO

Este texto surgiu como resultado de uma reflexão a partir do que foi experienciado no decorrer de um ano quanto ao atendimento clínico, de orientação psicanalítica, de duas pacientes, uma menina de sete anos e uma jovem de dezoito anos. Ambas sofreram processos de ruptura muito fortes com relação a seus vínculos familiares biológicos, marcados pela destituição do poder familiar e consequente abrigamento. O que buscou-se trabalhar, nesses atendimentos, foi a possibilidade de se (re)criar novos vínculos, especificamente com uma nova família adotiva.

Ainda que, tradicionalmente, esse setting clínico fundamente-se nos sentimentos transferenciais e contratransferenciais, aqui daremos ênfase ao próprio vivenciar da experiência terapêutica tanto para quem atendia quanto por quem era atendido, pensando a relação entre os conteúdos trabalhados em sessão e a forma com que esses mesmos conteúdos se apresentavam e eram recebidos em termos das duplas (terapeuta/estagiário e paciente/criança ou jovem). Numa espécie de poesia quase metalinguística, o que se observou foi que o vínculo construído nestas relações começou a se tornar, ele próprio, terreno fértil onde as questões do vincular-se e desvincular-se puderam ser apresentadas, pensadas e, mais que isso, vividas.

Relatemos brevemente, então, alguns aspectos desses atendimentos. Camila é uma menina de sete anos que, desde março de 2018, está em atendimento. A demanda partiu da equipe técnica da instituição de acolhimento na qual ela vive, após a interrupção de um processo de adoção no final de 2017. O foco da intervenção, portanto, desde o início foi o de trabalhar sua inserção em uma nova família adotiva.

Camila estava abrigada desde abril de 2017 e desenvolveu um vínculo muito forte com a equipe e com as crianças da instituição. O primeiro contato com os pretendentes, no final do ano, foi muito bem sucedido. Camila gostou de sair com os novos "tios" e a aproximação caminhava muito bem. A situação mudou no momento em que essa relação começou a entrar num novo registro: os pretendentes não eram apenas "tios", eles queriam ser mãe e pai de Camila. Conforme esses nomes começaram a surgir na medida em que ela entrava em contato com o quarto e as mobílias da casa que seriam dela, Camila passou a se recusar a ver o casal. Após algum tempo, a aproximação foi interrompida.

Isabella, por sua vez, nasceu na região periférica de SP e permaneceu a maior parte do tempo com seu pai e irmãos (sua mãe saiu de casa antes que completasse 5 anos de idade). Ainda muito criança, passa por situações de abuso praticadas por seu pai e irmão mais velho, episódios após os quais busca ajuda de algumas das profissionais presentes na ONG que frequentava. A partir da realização da denúncia, a família de Isabella é destituída e, então, ela inicia seu caminho errante, descontínuo e instável até o momento presente: vai para um abrigo; passa a morar com um casal conhecido (tratava-se da patroa de sua mãe que, à época, trabalhava como faxineira), mas sua estadia dura por pouco tempo; volta a morar com a mãe (que reclamara sua guarda), viaja com ela para o nordeste (onde haviam lhe prometido uma grande casa, uma boa escola mas, em realidade, se viu apenas como babá de irmãos mais novos); seu padrasto tenta assediá-la, sua mãe não acredita... não muito tempo depois volta para o abrigo e logo realiza uma nova viagem para morar com sua tia materna em outro estado. Esta tia, evangélica fervorosa, exigia que Isabella se adaptasse à sua realidade. Neste período Isabella usa um diário para descrever todas as vezes em que, em vez de ir à Igreja, encontrava-se com meninos de sua escola - no entanto, não se inseria na própria história, mas usava um "codinome": não era Isabella, era Marina. Esta estadia, assim como todas as outras, também não dura muito tempo e ela logo volta ao abrigo. Por fim, por volta dos 15 anos, passa a morar com a "tia" Amanda, com quem está até hoje, completando seus 18 anos. Esta "tia" (é assim que Isabella a chama até hoje) trabalhava na ONG que Isabella frequentava quando criança e havia se encantado pela criança que elaborava belas histórias na oficina que ministrava. Isabella inicia o processo de análise já sob a responsabilidade de Amanda.

Também no atendimento de Isabella será destacada a construção vincular analista-analisanda como primordial para a elaboração de rupturas vinculares precoces e que deixam marcas traumáticas no processo de subjetivação. Por fim, serão retomados os conceitos de transferência e contratransferência para reafirmar seu caráter quase que metalinguístico: aquilo sobre o que era falado em sessão aparecia, viva e presentemente, no modo como cada atendimento acontecia.

Rupturas familiares e formação do self

O processo de construção do self é, indubitavelmente, um dos aspectos mais importantes de todo o desenvolvimento humano. O self, para Winnicott, diz respeito à possibilidade de não apenas existir, mas de também sentir-se real. Esse sentir-se real é algo que vai além de apenas existir fisicamente no mundo (Winnicott, 1975b, p. 161), pois exige que o indivíduo consiga se reunir e existir como unidade, como expressão de um "eu sou", e não apenas como defesa contra ansiedades (Winnicott, 1975a, p. 83).

Para que esse desenvolvimento, a que Winnicott chama busca do eu (self) (Winnicott, 1975a, p. 80), aconteça, é necessário que o indivíduo esteja inserido num ambiente em que ele possa ser criativo. É um movimento com certo caráter cíclico, em que é somente exercendo essa criatividade que alguém pode buscar o eu, e ao mesmo tempo, é nesse posicionamento de "eu sou" em que tudo é criativo. Desta forma, o autor coloca o brincar, principalmente na situação terapêutica, como condição necessária para que essa busca (que é ao mesmo tempo realização) criativa aconteça. A especificidade do contexto de análise será abordada mais adiante. Por ora, nos interessa pensar em quando esse ambiente facilitador não se concretiza, ou, em outras palavras, quando nele não há espaços para o livre brincar e fluir criativo (e isso já nos primeiros anos da infância), e quais são os efeitos disso para a constituição do self de um indivíduo.

O que é determinado pela Justiça como justificativa para que haja perda do poder familiar, como consta no Artigo 1.638 do Código Civil: "castigar imoderadamente o filho, deixar o filho em abandono, praticar atos contrários à moral e aos bons costumes ou incidir reiteradamente nas faltas previstas no Artigo 1.637" (Brasil, 2002, p. 352). Apesar da possibilidade de interpretações mais subjetivas quanto ao que configuraria, especificamente e na prática, tais situações (algo que não cabe ao escopo deste texto debater), pode-se afirmar que se uma família é destituída, o ambiente de convivência familiar da criança ou do adolescente muito provavelmente não está sendo facilitador para esses processos do brincar e do fluir criativo.

É importante nos atentarmos para não cair em fatalismos inferindo que, na ausência de um ambiente facilitador, não há criatividade que se desenvolva. Uma afirmação dessas exigiria localizar o brincar em um espaço muito mais restrito do que o que ele realmente habita. Enquanto a realidade psíquica interna possui uma espécie de localização dentro dos limites da personalidade de cada um e a realidade externa possui uma localização fora desses limites, o brincar está localizado no espaço potencial que Winnicott determina estar entre a mãe e o bebê (Winnicott, 1975a, p. 79), mas que podemos ampliar para o espaço que há entre o bebê, a criança e até mesmo o adolescente e sua família (em todas as diferentes possibilidades de configuração familiar). Trata-se, portanto, de uma rede tecida entre vários pontos, envolvendo a realidade interna, a realidade externa e algo que não pertence à nenhuma das duas em específico, ainda que dialogue constantemente com ambas. Ainda assim, se um dos pilares desse espaço, que é a relação criança-família, está enfraquecido, é compreensível que haja subsequentes efeitos no que tange à criatividade do indivíduo.

Podemos também dizer que o próprio ato da ruptura com a família biológica pode também ter efeitos nessa constituição do self. Muitas vezes a criança, em um movimento de fantasia onipotente, toma para si a crença de que, se algo aconteceu à sua família, ela é a culpada. Esse tipo de pensamento, mesmo que inconsciente, somado a tantos outros que surgem em uma situação tão marcante quanto a perda do convívio com a família biológica, garantidamente mobilizará várias ansiedades. E, retomando Winnicott, é nesse momento que surge um outro tipo de self, não aquele que diz respeito ao sentir-se real, mas o que diz respeito a lidar com essas ansiedades. Podemos aqui falar em falso self.

O falso self surge justamente nesses espaços onde o ambiente é demasiadamente faltante, como uma tentativa de proteger o verdadeiro self - uma tentativa de auto-suficiência na ausência do cuidado (Galván & Moraes, 2009). Com relação às experiências clínicas relatadas no início deste texto, podemos destacar algumas das atitudes demonstradas por Isabella após tantas caminhadas errantes: diagnósticos psiquiátricos que buscou sozinha na Internet, calcando sua identidade em transtornos, codinomes em diários em que contava eventos de sua própria vida (não era Isabella, era Marina), situações de certo risco em que se colocava ao, por exemplo, ter encontros com homens mais velhos que pouco conhecia, como se assumisse uma outra personagem, uma mulher adulta, diferente de uma adolescente em constante embate com suas inseguranças e questões existenciais.

Com relação à Camila, essas questões de falso self também foram muito presentes, num registro diferente das personagens de Isabella, mas muito relacionado à essa questão da auto-suficiência que surge onde falta um cuidado vindo do outro. Camila frequentemente buscava demonstrar que não tinha medo (de filmes de terror, de monstros), bem como teve de passar por todo um processo para começar a pedir ajuda, em sessão, para realizar atividades como abrir recipientes, cortar materiais ou limpar algo. O que ela costumava dizer era "não! Deixa que eu faço". Em jogos e conversas sobre a função dos adultos quanto às crianças (de cuidar, de ajudar), Camila costumava dizer: "mas eu tenho sete anos!". Podemos pensar aqui em toda essa versão de si como auto-suficiente, totalmente independente dos adultos e que, portanto, não precisa de cuidados que Camila acabou, por tantas razões, tendo que criar para si.

O trabalho de desconstruir esses falsos selves se faz necessário principalmente quando retomamos aquilo que foi colocado por Winnicott de que é o verdadeiro self aquele que tem potencial criativo. Interessante retomar aqui, também, o sentido que a palavra criatividade toma neste caso, que não diz respeito apenas à criatividade artística. Podemos, por exemplo, falar de todo o potencial artístico que as histórias de Isabella têm - histórias que, ainda assim, afastam-na do potencial criativo de seu verdadeiro self. Esse potencial, portanto, diz respeito à criatividade presente em outras possibilidades de existência e de exploração do mundo.

O desenrolar da transferência

Seguindo essa linha de raciocínio, percebemos também a importância de se acessar esse self verdadeiro para que a transferência de fato se constitua em um terreno fértil para o andamento de um atendimento terapêutico. De fato, é frequente no trabalho clínico o contato com pessoas que solicitam ajuda nessa busca pelo eu (self) (Winnicott, 1975a, p. 80). Podemos colocar aqui, portanto, uma pergunta: como essas experiências de ruptura tão fortes podem reverberar no que ocorre dentro do setting de um atendimento em psicanálise?

Há, a princípio, dois caminhos diferentes para responder a essa pergunta. O primeiro é que, se é o self verdadeiro, e não o falso, aquele que tem potencial criativo, faz-se necessário entrar em contato com ele e criar as condições necessárias para que essa busca se concretize. Winnicott elenca algumas delas: condições de confiança baseadas na experiência (que permitem relaxamento) e atividade criativa (tanto física quanto mental) manifestada na brincadeira (Winnicott, 1975a, p. 83).

Os movimentos do analista nessa busca pelo self não podem ser o de fornecer explicações, como se a expectativa devesse ser que o paciente verbalmente chegasse a conclusão de que ele é muito mais ele mesmo quando sente-se criativo (Winnicott, 1975a, p. 81). O que a pessoa precisa é de uma nova experiência, num ambiente com as condições necessárias para essa exploração. Isso é algo válido para o atendimento tanto de adultos quanto de crianças, mas neste segundo caso é absolutamente essencial. O analista deve conseguir brincar junto a seu paciente não apenas analisando e interpretando o enredo do jogo, mas também se lançando e se entregando completamente à experiência de viver aquele jogo - que, afinal, é onde o verdadeiro self há de emergir. Esse contato, portanto, vai necessariamente escapar àquilo que é puramente verbal e racionalizável: ele se dá, principalmente, na transferência, no vínculo transferencial, que assim se constitui como espaço criativo do brincar.

O segundo caminho possível também está relacionado à transferência, mas de uma outra forma. Aqui, ela diz respeito menos ao processo de tecer um pano de fundo onde há de ser feito o brincar e mais à atualização transferencial de conflitos centrais vividos (os quais, como já foi apontado,centram-se na própria questão do vincular-se e desvincular-se). Com Camila, isso se concretizou em cenas de ela não querendo sair do abrigo para ir ao atendimento, ou relutando em entrar na sessão quando estava na sala de espera, mas depois não querendo encerrar a mesma. Isabella, por sua vez, teve períodos de muitas faltas seguidos por uma quase desistência do processo terapêutico, momento após o qual passou a entrar em contato com a analista semanalmente para confirmar o horário da sessão, como que para reafirmar a presença do outro.

São cenas que, cada uma à sua maneira, presentificam na relação das pacientes com as estagiárias/terapeutas angústias relacionadas ao aproximar-se de alguém. Esses movimentos de querer e não querer, de testar o vínculo, de temer o momento de encerramento merecem especial atenção quando observados em conformidade ao processo de constituição subjetiva dessas pessoas, pois foram raros os momentos em que elas experienciaram uma relação estável e duradoura com um outro disponível para o cuidado.

O manejo clínico frente a esse tipo de situação também é essencial para que, desse terreno transferencial, emerja algo produtivo (ou, em outras palavras, criativo) para o processo terapêutico. Algo essencial é assegurar a manutenção do vínculo, seja reafirmando que o encontro será retomado na semana seguinte (mesmo que esse vínculo seja supostamente posto à prova através de faltas ou de relutância em iniciar a sessão), seja garantindo que mesmo na ausência física da pessoa, mantemos em nós sempre algo do outro presente. E essa segurança, novamente, não se dá só no campo do verbal e do racional, mas também no campo da experiência vivida: no retomar o encontro na semana seguinte, na manutenção do afeto e da lembrança mesmo com a distância física.

Esse manejo está muito relacionado às condições elencadas por Winnicott para que o atendimento seja um espaço de busca pelo verdadeiro self. Sendo assim, a partir da transferência foi possível aos poucos criar um vínculo entre aquela que atende e o verdadeiro self da atendida: não a menina que não precisa de ajuda para nada, não a adolescente coberta por diagnósticos que gosta de se arriscar para experienciar o mundo. E, em mais um movimento de caráter quase cíclico, conforme esse verdadeiro self emerge o vínculo pode mais e mais se fortalecer. E, em se tratando desses casos em específico, pode-se também dizer que esse fortalecer (d)o vínculo tem, por si só, um potencial terapêutico muito importante. Novamente é uma questão não só relacionada aos conteúdos trabalhados em terapia, mas também à forma com que esse trabalho é feito.

Esperança de construção de novos vínculos

Por fim, é interessante inserir uma dimensão temporal nas questões aqui abordadas. Propomos, então, uma reflexão através de um pequeno jogo de palavras: exploremos as diferenças entre o que é transitório e o que é intermediário. A transitoriedade é uma marca da vida em abrigos (Santos & Boucinha, 2011). Há grande rotatividade de cuidadores, de crianças, de equipe técnica e eventualmente até mesmo mudanças de espaço físico. Não é sempre, por diversos fatores, que se pode cuidar dessas mudanças, elaborá-las e compreendê-las como parte da realidade de uma instituição de acolhimento. Muitas vezes, elas acabam sendo sentidas como abandono ou, em outro registro, assimiladas como parte da rotina. O intermediário, por sua vez, também está relacionado ao vincular-se e desvincular-se, mas com uma faceta essencial que é a mediação, de um passo num caminho em direção a algo que está por vir. E, mais que isso, ele guarda em si a possibilidade de algo se manter vivo em nós, mesmo quando não fisicamente presente. Cuidar da desvinculação de uma criança com o abrigo onde vive, portanto, pode significar cuidar de encontrar onde, nesse transitório, há o intermediário.

O vínculo com as estagiárias é também, ele mesmo, intermediário. O vínculo permanente, que buscamos cultivar e cuidar, é o vínculo dessas meninas com suas novas famílias, diferente do que se deu com as famílias biológicas. É, enfim, nesse sentido que podemos pensar o vínculo transferencial como terreno fértil: a expectativa é que a partir dele algo cresça, e não que seja, ele próprio, seu fim.

Conclusão

A título de conclusão deste texto, é interessante retomar um termo que foi aqui muito utilizado: a busca do eu (self). O que essa palavra "busca" nos diz?

Em toda essa discussão da potencialidade terapêutica da transferência, há algo que não pode ser deixado de lado: a abertura, de parte daquela ou daquele que atende, para verdadeiramente brincar, experienciar o que está sendo trabalhado em cada atendimento. Essa busca não pode ser entendida como um desvelar, feito por quem atende, dos mistérios mais profundos da existência de uma outra pessoa, como se nesse lugar de terapeuta estivesse guardado um conhecimento prévio sobre uma narrativa a qual, agora, só precisa ser interpretada e devolvida. A busca deve ser conjunta, feita com igual dedicação por quem atende e por quem é atendido. Deve ser feita não apenas num plano racional, mas também num plano afetivo, relacional e transferencial. E, por fim, deve ser tratada com a seriedade que merece uma boa brincadeira.

 

NOTAS

1. Todos os nomes utilizados são fictícios

 

REFERÊNCIAS

Brasil. (2002). Código Civil brasileiro e legislação correlata. 2.ed. Brasília: Senado Federal, Subsecretária de Edições Técnicas. Recuperado em 20 de agosto de 2019: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70327/C%C3%B3digo%20Civil%202%20ed.pdf>         [ Links ]

Galván, G. B., & Moraes, M. L. T. (2009). Os conceitos de verdadeiro e falso self e suas implicações na prática clínica. Aletheia, (30),50-58. Recuperado em 18 de agosto de 2019, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci arttext&pid=S1413-03942009000200005&lng=pt&tlng=pt.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1975a). O Brincar: a atividade criativa e a busca do Eu (Self). In D. W. Winnicott, O Brincar & a Realidade. (pp. 79-93), Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA. (Originalmente publicada em 1971).         [ Links ]

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