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Vínculo

Print version ISSN 1806-2490

Vínculo vol.18 no.3 São Paulo Sept./Dec. 2021

http://dx.doi.org/10.32467/issn.19982-1492v18nesp.p347-353 

ARTIGO

 

Atendimento de famílias com crianças pequenas

 

Care of families with young children

 

Cuidado de familias con niños pequeños

 

 

Marly Terra Verdi

Membro efetivo, analista didata e docente do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Presidente do Grupo de Estudos de Psicanálise de São José do Rio Preto e Região. Membro do INSPIRA e membro do NESME

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta o atendimento de uma família com gêmeos com três anos e meio de idade. Discute brevemente a importância do atendimento familiar nos casos de suspeita de autismo e no caso de gêmeos, para apresentar a complexidade dos vínculos, da configuração edípica e da própria configuração do ego de cada gêmeo. Traz o relato de uma sessão de família com o referencial da psicanálise dos vínculos que nos dá uma ideia clara das situações importantes que emergem em uma sessão e das intervenções psicanalíticas possíveis neste setting.

Palavras chave: Psicanálise - Família - Gemelaridade - Autismo - Infância


ABSTRACT

This article presents the care of a family with three-and-a-half-year-old twins. Briefly discuss the importance of family care in cases of suspected autism and in the case of twins, to present the complexity of the bonds, the oedipal configuration, and the ego configuration of each twin. It brings the report of a family session with the psychoanalysis of bonds framework that gives us a clear idea of the important situations that emerge in a session and the possible psychoanalytic interventions in thissetting.

Key words: Psychoanalysis - Family - Twinning Autism - Childhood


RESUMEN

Este artículo presenta el cuidado de una familia con gemelos de tres anos y medio de edad. Discute brevemente la importancia del cuidado familiar en casos de sospecha de autismo y en el caso de gemelos, para presentar la complejidad de los lazos, la configuración edípica y la configuración del ego de cada gemelo. Trae el informe de una sesión familiar con el marco de vínculos de psicoanálisis que nos da una idea clara de las situaciones importantes que surgen en una sesión y las posibles intervenciones psicoanalíticas en este entorno.

Palabras llave: Psicoanálisis - Familia - Gemelos - Autismo - Infancia


 

 

O atendimento de famílias com crianças ocorreu porque vinham procurar ajuda para o diagnóstico ou oferecer tratamento às crianças com quadros de Transtorno do Espectro Autista, por minha experiência nesta área.

A proposta de ver estas famílias surgiu para que a criança fosse observada em seu conjunto familiar, o que me pareceu trazer dados mais fidedignos sobre sua interação social, dados estes fundamentais no diagnóstico e mesmo prognóstico de questões de autismo.

A partir destas observações fomos percebendo que os problemas familiares se apresentavam nestas sessões, que os pais envolvidos no processo pareciam ávidos de compreender como lidar com seus filhos.

Percebemos que se espelhavam nas interações que ali ocorriam. Podíamos também nomear coisas importantes: projeções sobre a criança tanto intergeracionais como transgeracionais. Segredos familiares nunca conversados emergiam nestes contextos. Formas de compreensão do que era a interação significativa entre pais e filhos. Aquilo antes era inconscientemente transmitido entre os familiares agora podia ser nomeado. Percebemos também que estes atendimentos tinham um profundo efeito em todos e auxiliavam muito rapidamente a evolução das crianças e diminuição dos sintomas.

Tenho atendido famílias que buscam este atendimento por questões diversas: diagnóstico precoce, adoções, problemas de comportamento disruptivo das crianças, etc.

Hoje o atendimento familiar, nestes Transtornos, é bastante indicado e vários profissionais o fazem (Mendes de Almeida, Marconato, Silva, 2004; Miranda, 2010; Sonzogno & Mélega, 2008; Stern, 1997). Percebendo a eficácia deste atendimento, com o passar do tempo, o ampliei para famílias de crianças de uma forma geral, sempre que noto a dinâmica familiar implicada na produção de sintomas ou dificuldades de lidar com a criança em seu dia a dia. Mantenho este atendimento até que sinto a criança liberada de ser o portador da doença mental da família e só aí indico o atendimento individual dela.

Vou relatar no presente trabalho um atendimento que ilustra este tipo de situação:

Atendi uma família que tinha gêmeos que não eram idênticos e um sofrera uma provável paralisa cerebral. Tinha tido anóxia e ficado na UTI logo após seu nascimento.

Creio que nestas circunstâncias e por causa de seus atrasos no desenvolvimento, que eram leves, mas que estavam impedindo a linguagem, havia suspeita de autismo. Percebi logo que não se tratava deste quadro, pois ele buscava bastante bem entrar em contato comigo, com os pais e irmão. Não compreendia ou não reagia muito à linguagem e passou a fazer isto durante o trabalho, quando começou a reagir respondendo corporalmente às intervenções. Observei também que o irmão era o centro das atenções familiares e que tudo fazia para ser o único ali. Fui primeiro apontando que os dois haviam sentido bastante compartilhar o pai e a mãe e o quanto o que era mais desenvolto se sentia chateado, tendo que dividir o espaço. Como ele que já estava falando bem tinha dos pais toda a atenção e quanto o irmão também precisava ter espaço próprio. Os pais diziam que o único espaço exclusivo dele era para os atendimentos clínicos que ele necessitava: fonoterapia, fisioterapia, eco terapia, médicos, etc.

Acreditamos que quando fatos intrauterinos, ou no pós-parto, provocam na mãe distintos sentimentos em relação aos gêmeos (risco de vida na U.T.I. neonatal, por exemplo, ou mesmo pouco espaço psíquico para abarcar dois ou três bebês) é como se o investimento materno se voltasse mais para um bebê e o outro se sentisse não um ego individual, mas um ego-secundário. Um se torna o principal agente de ações e o outro restringe suas ações, passando a ser quase a sombra do outro gêmeo. Este seria um risco para o desenvolvimento de sintomas autísticos, de meu ponto de vista.

Cito aqui Joyce McDougal que propõe um corpo para dois, neste caso proponho dois corpos para um.

"Um corpo para dois: esta fantasia primordial, presente em todo ser humano, visa fazer um, com a mãe-universo da pequena infância. (...) A partir dessa matriz somatopsíquica, uma diferenciação progressiva entre o corpo próprio e a primeira representação do mundo externo, que é o seio materno, vai se desenvolver na psique infantil. Paralelamente, o que é psíquico vai se distinguindo, aos poucos, do que é somático". (McDougall, 1987, p. 8)

Vou relatar aqui uma sessão deste atendimento.

Sessão: Quando cheguei na sala de espera, estavam a mãe e os gêmeos, Augusto e João e uma menina, desconhecida para mim (babá?). O pai estava chegando, e falando ao celular. Nas duas últimas sessões que eles vieram (faltaram duas vezes após isso, porque o Augusto tinha machucado o pé), a mãe viera com Augusto e o pai chegara com João, que estava no colo e completamente adormecido. Ele permaneceu dormindo toda a sessão, nas duas últimas ocasiões. Desta vez, como todas as outras sete sessões que tivemos anteriores a esta, a configuração inicial foi como hoje, a mãe com os dois na sala de espera, e o pai chegando depois, sempre ao celular.

Logo que me encontram, as crianças começam a caminhar para a sala. O pai chega e desta vez, diferente das anteriores, rapidamente desliga o celular, e entramos todos.

A mãe comenta que não puderam vir no final do ano, e me conta que foram passear, os dois com outras crianças num jipe com um amigo deles, e que Augusto enfiou o pé sob o acelerador, o cortou e teve que receber pontos. A mãe diz a ele: - "Mostra o dodói para a Marly". E ele levanta a bermuda, onde há mesmo um outro machucado mais recente. A mãe pede que ele me mostre o pé, mas ele não o faz, e ela interfere e mostra o pé dele com uma cicatriz.

Comento que Augusto me havia mostrado um novo machucado, porque aquele já havia sarado, e que ele estava entendendo e respondendo muito bem ao que a mãe lhe dizia, diferente do começo de nosso trabalho, quando parecia não ouvir ou não compreender aquilo que se dizia a ele.

A mãe concorda e diz: "Está entendendo tudo, e fazendo o que falo para ele fazer, só não faz quando não quer mesmo".

Ele vai até a pequena mesa, pega a cola (sempre se interessa pela cola, e já brincamos muito com ela), se senta e diz: "Ab". Eu entendo "abre", e digo: "Ele pediu para abrir".

A mãe diz: "Eu ouvi também". O pai olha com cara de descrença e diz: "Ele não fala".

Mas eu digo: "Mas se nós duas ouvimos, acho que ele falou sim".

Augusto traz e me entrega a cola, e eu abro para ele dizendo: "Acho que o papai não acreditou que você abriu a boca e falou 'abre'". O pai se volta para ele e diz: "Fala papai".

Eu digo: "O papai está pedindo para chamar papai e dizendo que ele gostaria que você falasse, Augusto". Ele começa a emitir muitos sons.

Eu falo: "Ouça como ele entendeu e quer falar".

Enquanto isso, o João, logo que entramos, perguntou pela babá, e a mãe respondeu: "Ela ficou na sala de espera. "

"Aqui só entrou sua família comigo, João: papai, mamãe, você e o Augusto", digo. Ele pega dois lagartos de borracha que eu tenho na mesa e joga um na mãe, que brinca com ele de se assustar. Ele joga também para o pai e vai pegando mais animais na mesa. Mostro a ele que está ali na mesa, como ele havia feito, um papel com animais colados. E João diz:

"Eu lembro". Digo: "Eu também lembro". Comento que ele dormiu as últimas duas vezes que eles vieram, que quis deixar o Augusto brincar aqui sozinho. Ele não comenta nada sobre isso. Fica mexendo com os animais, enquanto interagimos com a situação se Augusto havia falado ou não.

Augusto me traz uma folha, pega a tesoura e corta muito rapidamente a folha que eu seguro para ele. Se diverte quando os pedaços se separam. Depois traz a cola e vai colocando bastante cola e sobrepondo os pedaços cortados do papel, enquanto nomeio: "Separando, agora são dois, colando e ficando grudadinhos".

Ele para essa atividade e vai para um nicho perto da porta, onde se esconde e depois aparece, e eu brinco com ele de esconde-esconde. Neste momento, João pega um caminhãozinho basculante e pergunta porque aquela parte se levanta.

Digo-lhe que serve para colocar as coisas dentro e tirar. Pega um lagarto e o introduz no espaço da carroceria do caminhão, e ao abrir o lagarto sai. Eu digo: "Nasceu o lagarto".

Ele tenta colocar os dois lagartos. Eu digo: "Nossa, ficou apertado aí."

Enquanto isso estou também brincando de esconde-esconde com o Augusto, e os pais estão observando. A mãe interage com um ou com outro, auxiliando, ou com gestos, por exemplo, brincando de achar Augusto, ou auxiliando João com o caminhão e os lagartos. O pai, deitado em um puff do outro lado da sala, observa.

Vou interagindo com Augusto, brincando de achá-lo, e quando também me acha, ele ri contente. Resolvo me esconder atrás do puff que está ao meu lado (não sei bem porque tive essa ideia, talvez para ver se ele ou eles me procurariam). Todo o início dessa sessão, os senti evitando um pouco o contato comigo, o que não ocorria mais nas últimas vezes que nos vimos. Entro atrás do puff e sento, abaixada aí. Os dois vem juntos me procurar, e riem quando me acham. Vou colocando mais e mais o puff sobre mim, e na tentativa de me encontrar, sobem no puff que é grande.

Surge então um movimento de João, que diz: "É meu!" e empurra o irmão. Digo: "O João quer o lugar só para ele". Ele ri e diz: "É só meu!". O Augusto insiste e reclama, fazendo sons altos. O João diz: "É meu!" e solta como um grito de guerra. O Augusto insiste.

Eu digo: "O João e o Augusto queriam um lugar só seu, e dentro da mamãe era apertado para terem dois".

O João empurra o Augusto e este "cai" para fora do puff. Eu digo: "Só quando nasceram ficaram cada um com seu lugar, e com seu nome, Augusto e João".

Augusto não para de insistir e a cena se repete várias vezes. Digo: "Não dá para voltar para dentro da mamãe e ter lugar para um só. Mas agora cada um tem seu lugar".

O João grita: "É meu! " Digo: "Às vezes o João acha que tem que ter só o lugar dele, mas agora o Augusto quer ter o lugar dele também, quer falar também".

O João grita "Eu que falo, ele não! "

A mãe diz: "Agora em casa é uma luta. O Augusto quer também suas coisas e eu não sei o que fazer".

Eu digo: "Para a mamãe, ter dois também não é fácil. Ela precisa que o papai ajude".

O pai pega o Augusto e o abraça, em um gesto que ele sempre fez com o João, e diz: "Agora o Augusto tem o seu lugar".

Digo: "O papai está dando espaço para o Augusto também, e quer que ele fale".

Augusto emite muitos sons, e vem para o puff em que João ficou deitado, e diz: "Papá".

E João diz: "Ele falou papai".

O pai diz: "É mesmo?"

Eu digo: "Nós ouvimos, o papai precisa ouvir também".

A mãe diz que ele muitas vezes tem chamado "papá" quando o pai chega. João pede bala e eu digo que estamos na hora.

Os meninos saem na frente, e os pais me perguntam o que eu achei, se vi que Augusto evoluiu. Eu digo: "Eu sim, e vocês? "

A mãe diz: "Como o vemos todos os dias, não percebemos como vocês, que o atendem".

Penso que é uma ideia de que os terapeutas sabem ver melhor do que ela. Digo: "É verdade, se estamos todos os dias, podemos não conseguir ver as transformações. Eu vejo que aquilo que muitas vezes conversamos (da questão de se tornarem dois, e o João querer o espaço todo) hoje apareceu como brincadeira entre eles. Vocês viram, não é? "

Fazem sinal afirmativo e eu acrescento: 'Para nós isso é um grande avanço, poderem brincar e conversar sobre isso".

Parecem satisfeitos, se despedem e também vão.

Quando saio, ainda estão na sala de espera. Eu espero eles irem, para chamar minha próxima paciente.

 

REFERÊNCIAS

Mcdougall, J. (1987). "Um corpo para dois". Boletim Científico da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, Vol. 1, n. 2, 8-33.         [ Links ]

Mendes A. M., Marconato, M. S. M. C.P. (2004) Redes de Sentido: evidência viva na intervenção precoce com pais e crianças. Rev. Brás. Psicanál., 38(3):637-648.         [ Links ]

Miranda, M. R.(2010) A complexidade da relação mãe-filha nas patologias dos contrários. In Bruno, C. (Org.) Distúrbios Alimentares - Uma contribuição da Psicanálise. São Paulo: Imago, 2010.         [ Links ]

Sonzogno, M.C. & MÉLEGA, M.P.(2008) (Orgs.)O olhar e a escuta para compreender a primeira infância. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Stern, D. (1997) A constelação da maternidade: opanorama da psicoterapia pais-bebê. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

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