SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.18 issue3Preparing children and adolescents for adoption: case studyFrom abandonment to creation: the interdisciplinary care of a teenager in CAPSij author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Vínculo

Print version ISSN 1806-2490

Vínculo vol.18 no.3 São Paulo Sept./Dec. 2021

http://dx.doi.org/10.32467/issn.19982-1492v18nesp.p454-467 

ARTIGO

 

Do vínculo ao reconhecimento

 

From link to recognition

 

Del vínculo al reconocimiento

 

 

Rosa Junqueira Corrêa

Psicóloga, Psicanalista, Especialização em Psicossomática Psicanalítica, Membro Fundador do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. Membro da Diretoria - Biênio 2019-2021 do NESME, Membro do GPBSandor Ferenczi e da ABRABALINT. Email: rosajunqueira7@outlook.com

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é propor uma reflexão a respeito do manejo clínico, no qual a analista, mesmo percebendo a negação da paciente a se vincular, se coloca mais presente, face a face, deixando-se perceber como presença viva. Isto possibilitou, lentamente, a construção de um vínculo entre a dupla, mesmo diante de desorganizações da economia psicossomática da paciente, que surgem após a vivência de situações de vida extremamente difíceis. Será apresentado seu caso clínico no qual vários sintomas estão presentes: diverticulite no sigmoide e reto, cistite recorrente e dois episódios de Acidente Isquêmico Transitório (AIT). O contato mais aprofundado com a sua história, nos remeteu a núcleos regredidos, associados a uma angústia relacionada à questão do reconhecimento. Foi usado o referencial teórico da Psicanálise Vincular e da Psicossomática Psicanalítica, a fim de explicitar que através do vínculo estabelecido, da relação transferencial, do acolhimento e do manejo específico dessa clínica, pôde-se criar um espaço onde foi possível à paciente explicitar em palavras os pensamentos e sentimentos insuportáveis que, até então, expressava em seu corpo e ter, assim, a condição psíquica de, aos poucos, retomar a sua própria vida.

Palavras chaves: Vínculo do Reconhecimento; Transferência; Manejo


ABSTRACT

The objective of this article is to propose a reflection about the clinical management, in which the analyst, even realizing the patient's denial to be bound, is more present, face to face, letting herself be perceived as a living presence. This allowed, slowly, the construction of a bond between the duo, even in the face of disorganizations of the psychosomatic economy of the patient, which emerge after the experience of extremely difficult life situations. It will be presented its clinicai case in which several symptoms are present: Diverticulitis in the sigmoid and rectum, recurrent cystitis and two episodes of Transient Ischemic Accident (TIA). The deeper contact with his history, referred us to regressed nuclei, associated with an anguish related to the issue of recognition The theoretical framework of Binding Psychoanalysis and Psychoanalytic Psychosomatics was used, in order to explain that through the established bond, the transference relationship, the welcoming and the specific management of this clinic, it was possible to create a space where the patient could be Explain in words the unbearable thoughts and feelings that, until then, expressed in his body and thus have the psychic condition of gradually resuming his own life.

Key words: Link of Recognition; Transfer; Handling.


RESUMEN

El objetivo de este artículo es proponer una reflexión sobre el manejo clínico, en el que el analista, incluso al darse cuenta de la negación del paciente para estar vinculado, está más presente, cara a cara, dejándose percibir como una presencia viva. Esto permitió, lentamente, la construcción de un vínculo entre el dúo, incluso ante las desorganizaciones de la economia psicosomática del paciente, que surgen después de la experiencia de situaciones de vida extremadamente dificiles. Se presentará su caso clínico en el que se presentan varios sintomas: Diverticulitis en el sigmoide y el recto, cistitis recurrente y dos episodios de Accidente Isquémico Transitorio (AIT). El contacto más profundo con su historia nos remitió a núcleos regresivos, asociados con una angustia relacionada con la cuestión del reconocimiento. Se utilizó el marco teórico de Psicoanálisis Vincular y Psicosomática Psicoanalítica., con el fin de explicar que, a través del vínculo establecido, la relación transferente, la acogida y la gestión específica de esta clínica, fue posible crear un espacio donde el paciente pudiera ser Explique con palabras los pensamientos y sentimientos insoportables que, hasta entonces, expresaron en su cuerpo y así tienen la condición psíquica de reanudar gradualmente su propia vida.

Palabras clave: Vinculo de Reconocimiento; Transferencia; Manejo


 

 

"... Aquilo com que ela se parece se acha relacionado com o que ela vê ali..."
Winnicott, 1975.

 

INTRODUÇÃO

A partir da minha experiência clínica tenho observado, e até discutido com muitos colegas, como o corpo cada vez mais tornou-se o motivo de inúmeras queixas durante as sessões ou, o oposto, parecendo nem existir a percepção dele. O corpo é trazido para a sessão, simplesmente como o desejo de corresponder ao ideal que o social impõe ou como expressão de doenças, as quais, muitas vezes, nem são percebidas: são ditas através de seus sintomas

Busco apresentar nesse artigo uma reflexão do vínculo e do manejo clínico, no qual percebo a importância de me colocar mais presente, face a face, deixando-me perceber como presença viva por minha paciente. Fui movida a escutar as manifestações do seu corpo, que dizia por ela aquilo que lhe era impossível nomear.

Mantendo-me nessa postura, foi possível construir um vínculo, mesmo diante de desorganizações da economia psicossomática da paciente. Esta chegou ao meu consultório com vários sintomas, embora isto não fosse percebido por ela, pois os contava sem emoção ou expressão de dor. Narrava o que sentia como se fosse um fato corriqueiro.

Segundo Freud (1986), "a frustração tem efeito patogênico por represar a libido e submeter assim o indivíduo a um teste de quanto tempo ele pode tolerar esse aumento de tensão psíquica e que métodos adotará para lidar com ela". (Freud, 1986, p.142).

Dessa forma, esse Ego passa a enfrentar uma luta para sobreviver. Esses conflitos do Ego se desenvolvem entre uma força pulsional e uma força repressiva, colocando em cena o prazer, o desejo, que pode ou não ser alcançado. A saída desses conflitos pode ser através do recalque - estruturando-se uma neurose, pela recusa - estruturando-se uma psicose - ou ainda por um fenômeno psicossomático. Neste caso, ocorre uma disfunção do corpo biológico, em consequência de uma falha na inscrição pulsional, colocando-se no limite do impensável, no limite do mental com o somático.

Marty (1998) menciona o termo "mentalização", referindo-se à quantidade e à qualidade das representações psíquicas dos indivíduos, sendo essas a base da vida mental de cada um de nós. Considera que os indivíduos "bem mentalizados" são ricos em representações e pensamentos. Já os "mal mentalizados" têm suas representações e pensamentos pobres, deixando o corpo biológico desprotegido, o que em geral leva a um processo de somatização.

Diz ainda Marty (1998), que "as insuficiências básicas das representações encontram sua origem no início do desenvolvimento do sujeito. ...na organização das representações instituem-se as faltas ou insuficiências de aquisição de representações de palavras ligadas a valores afetivos e simbólicos". (Marty1988, p.19-20)

A mente segundo Maty (1993), pode não assimilar o traumatismo ocorrendo, assim, uma sobrecarga sobre o soma que gerará a somatização. O doente psicossomático não encontrando meios de expressão pela linguagem, isto é, através das representações psíquicas imaginárias ou simbólicas, revelará as deficiências ou falhas do aparelho psíquico no corpo real, que o levará a doença somática.

A Teoria Psicossomática Psicanalítica, apesar de suas várias teorias, considera, segundo Marty (1998), como as pessoas lidam com os estímulos em sua vida. Todos nós passamos por momentos que nos causam excitações, vindas do mundo interno ou externo, sendo necessário que elas possam ser descarregadas por três vias: mental, comportamental ou somática. Situações que geram grandes excitações ou traumas, muitas vezes, levam uma desorganização mental pelo excesso vivenciado. Os poucos recursos levam a uma descarga da excitação pelas vias motoras e somáticas, podendo levar a somatizações. O adoecer faz parte do estar vivo. Ocorre, muitas vezes, a incapacidade de nomear ou entender o que se passa no corpo, sendo essa a única forma de expressão, na busca de uma homeostase ou de ajuda.

Percebemos, assim, que a Psicossomática Psicanalítica destaca a importância do psiquismo como regulador do equilíbrio psicossomático, que o homem é um ser psique-soma, considerando como importantes as relações do ser humano desde o seu nascimento, o ambiente em que vive e o herdado. Considera que o seu funcionamento na vida é integrado e complexo, podendo ser perturbado no seu desenvolvimento conforme o recurso e suas manifestações psíquicas ou somáticas.

As desorganizações psicossomáticas, conforme Marty (1998), podem se expressar por duas formas: regressões ou desorganizações progressivas. As regressões se referem mais ao desenvolvimento libidinal, ocasionando alterações no nível psíquico. São mais facilmente curáveis, com duração variável. Já as desorganizações progressivas, mencionado por Marty (1998), fazem um processo contrário ao desenvolvimento da organização evolutiva e de forma progressiva, não encontram amparo nos pontos de fixação do desenvolvimento libidinal. Prosseguem com a desorganização das funções arcaicas e fundamentais do plano vital. Elas ocorrem de forma variável, no entanto há possibilidades de serem revertidas se surgem investimentos afetivos por qualquer tipo de relação, podendo ser, muitas vezes, através de um vínculo psicoterapêutico.

Muitos pacientes que são encaminhados aos nossos consultórios, em sua maioria, não entendem o que estão fazendo ali. Alguns, especificamente, são pacientes que apresentam doenças psicossomáticas e não reconhecem a necessidade de serem cuidados.

 

CASO CLÍNICO

Mira, uma paciente que fora encaminhada para mim, tinha 56 anos e estava ali porque a sua psiquiatra a mandou. Apesar de bonita e muito conservada para a idade, ela chamava a atenção com o seu descuido e com sua aparência. Mencionou, no nosso primeiro encontro, que tinha vários problemas de saúde. Ela sofria de: diverticulite no sigmoide e reto, cistite recorrente e dois episódios de Acidente Isquêmico Transitório (AIT). Mas naquele momento sofria muito com a diverticulite, mesmo após tirar o sigmoide e o reto, muitos anos atrás.

O que se destacou, para mim, foi, que apesar de dizer que estava doente de forma recorrente, isso não a preocupava, pois já se acostumara a viver com essas crises, mas sabia que depois melhorava. O que realmente a perturbava era um processo trabalhista, que estava movendo contra uma empresa da qual fora sócia. Para ela isso era o mais importante. Isto precisava ser cuidado e não o que ela sentia em seu corpo. Contou ainda que ela não queria sair de casa, pois tinha receio de encontrar algum conhecido, sentia vergonha do ocorrido. Ela queria ficar só deitada, de preferência dormindo, não queria entrar em contato com o dia. Mais uma vez ela não percebia o que falava, muito menos que se encontrava em depressão.

As primeiras sessões, com pacientes psicossomáticos, quase sempre são muito difíceis. Normalmente por não compreenderem o porquê da necessidade desses encontros, ficam agressivos e relutam em estar nas sessões.

Mira estava muito agressiva comigo e me desqualificava o tempo todo: dizia que eu não sabia nada de advocacia e que só queria saber sobre sua vida, mas o que ela precisava era de ajuda de um bom advogado. Ela ficava caminhando pela sala, mostrava um incômodo muito grande em estar ali e, muitas vezes, se dirigia para a porta, como se fosse embora. Eu a deixava livre para fazer o que quisesse, mas nunca saiu da sala antes do fim de seu horário.

Eu buscava sempre acolher suas palavras duras, seus ataques à minha pessoa e profissão. Quando isso ocorria, ainda lhe dizia que eu estava ali disponível para ela e que poderiamos conversar sobre o que quisesse. Assim, conseguíamos conversar escassamente, pois ela permanecia a maior parte do tempo em silêncio. Essa postura nas sessões ocorreu durante meses. Eu sentia um peso, um cansaço, ficava chateada com tantos ataques, muitas vezes me sentia incapaz de cuidar dela, mas eu não desistia, tinha uma esperança de que poderia ainda a ajudar, com a dor que revelava, mas que ela não percebia. Assim eu permanecia ali. Ao aproximarmo-nos das férias, coloquei-me disponível, deixando com ela o número do meu celular. Ela disse que não ligaria. E não ligou.

Quando retomamos nossas sessões, outra Mira surgiu à minha frente! Ela chegou sorrindo, se aproximou, me deu um abraço, disse que havia sentido minha falta e do nosso horário e espaço. Assim, ocorreu uma virada em nossas sessões!

Mira, aos poucos, trouxe sua história. Relatou uma infância difícil e sofrida. Seu pai era um bon vivant e brigava muito com sua mãe. Ela era a filha mais velha de cinco filhos, com um ano de diferença de idade entre eles. Quando tinha apenas três anos, foi levada pelos avós paternos, para ser criada por eles - com um pai ausente, sua mãe não conseguia cuidar de tantos filhos.

Ela não se lembrava do que viveu dos três aos dez anos de idade. Movida pelo que sentia, aos dez anos, falou para a avó que era melhor ela voltar para a casa dela ou sua mãe poderia não a querer mais como filha. E assim o fez.

Contou que não suportava mais ver os pais brigando. Certa vez indignada com a situação, disse que estava na hora de se separarem. Mandou o pai embora. Comentou que agiu no lugar da mãe: colocou um fim no casamento dos dois. A mãe nunca a perdoou.

Contou ainda vários momentos em sua vida onde fora desrespeitada, desvalorizada. Citou um exemplo de quando fora secretária numa empresa. Ficara muito revoltada com a falta de respeito do seu chefe não reconhecer que ela era uma profissional e querer abusar dela. Disse que se demitiu imediatamente.

Falou sobre um certo amigo que veio conversar com ela, estava muito chateado. Ele contou que a mulher o traíra e que estava preocupado em como cuidaria de seus filhos pequenos. Ela se ofereceu para ajudá-lo, aos poucos se aproximaram e iniciou-se um namoro. Em um certo momento, mencionou para ele que se quisesse ela encararia a vida juntos e assumiria os filhos dele, como se fossem dela. Ele ficou feliz e decidiram se casar. Uma expressão de tristeza surgiu em seu rosto e falou que sua mãe não a deixou chamar o pai para entrar com ela.

Engravidou 4 anos depois. Seu pai feliz, reaproximou-se dela. Ela mencionou tristemente que com quatro meses de gravidez teve um aborto espontâneo. Passados uns meses, contou ela, que engravidou novamente. Quando estava aos 7 meses de gestação, soube pela irmã que o pai havia morrido de infarto e que, naquele momento, ele estava sendo velado. Ela levou um grande susto, mas não quis ir ao velório. De repente, começou a passar mal e a sentir contrações. Foi levada ao hospital: dessa vez, nascia o primeiro filho do seu casamento.

Mira ficou casada por quinze anos. A cada ano que se passava, ela constatava o quanto o marido era controlador, agressivo e ciumento. Brigavam muito, pois ele não gostava do fato de ela estar trabalhando, mesmo sendo em casa, e ele estava desempregado. Certo dia ela disse para ele que iria se separar. Ele não acreditou. Mas ela o fez. Saiu de casa sem levar nada, além de suas roupas pessoais e as do filho deles, desse casamento.

Certo tempo depois ele a procurou e insistiu para voltarem a namorar. Decidiram viajar, mas ele se mostrou da mesma forma insuportável. Ela não aguentou mais e terminou com ele. Após algum tempo, ela percebeu que não estava muito bem. Constatou que estava grávida. Contou para o ex-marido, que se recusou a assumir o filho. Mira decidiu, então, abortar. E o fez. Contou que teve outros namorados, mas sempre se sentia abusada e usada por eles.

Contou que alguns meses depois um dos irmãos lhe apresentou um amigo que tinha muito dinheiro e queria abrir uma empresa. Ela tinha formação em Publicidade. Decidiram abrir uma Agência de Publicidade. A empresa deu muito certo por anos, até que os filhos dele entraram na sociedade. Começou a ter um relacionamento desgastante com a família do sócio. Chegou a um tal ponto de dificuldades relacionamento, que a mandaram embora sem nenhum direito. Desde então, ela adoece e se fecha.

 

DISCUSSÃO TEÓRICA

Conforme ocorriam as sessões, Mira revelava seu desamparo. Desorganizada em sua economia somática, parecia precisar de um espaço para falar, ser escutada, entendida nessa sua grande dor.

Assim, sempre na posição face a face, eu a escutava, a acolhia e, muitas vezes lhe reassegurava. Isso nos remete ao que Fernandes (2008) salienta: "...é por meio da delicadeza da escuta, de uma leitura em filigrana das palavras, na sutileza da busca dos detalhes, dos gestos, do olhar, do silêncio, que o analista vai reencontrar as marcas das imagens internas do paciente." (Fernandes, 2008, p.99).

Ela não percebia suas angústias, não conseguia colocá-las em palavras. Assim, suas doenças falavam por ela. Muitas vezes eu mesma era mobilizada por sentimentos e sensações fortes e angustiantes de desamparo. Nesses momentos, eu vivia na contratransferência o que a Mira parecia sentir.

Dessa forma, eu pude chegar mais perto dela e levá-la a perceber o que sentia, buscava nomear o que se passava na relação comigo, transformando as sensações vividas no seu corpo em um "corpo-falado, aberto à abordagem psicanalítica". (Fernandes, 2008, p.107).

Ao olharmos para os elementos de sua história podemos supor o provável desamparo que viveu ao não ser vista, olhada e reconhecida primeiro como filha, a seguir como mulher e parceira.

Zimerman (2010), nos apresentou a existência de quatro vínculos que ocorrem na relação humana:

Além dos três vínculos - do Amor, do Ódio e o do Conhecimento [...] importante acrescentar mais uma modalidade de vínculo que caracterize mais especificamente as vicissitudes que estão radicadas desde a primordial relação mãe-bebê, e que influenciam fortemente a qualidade de todos os vínculos nas sucessivas fases do desenvolvimento de todo e qualquer ser humano. A este quarto elo de ligação considero intimamente ligado às primitivas etapas narcísicas da organização e evolução da personalidade, proponho denominar Vínculo do Reconhecimento. (Zimerman, 2010, p.191).

Ele ainda nos traz presente que:

Freud já aludia à importância de se reconhecer e de ser reconhecido por intermédio dos outros. [...] o outro sujeito aparece como aquele que permite ao ego incipiente da criança estabelecer um confronto e, por seus próprios movimentos, ele busca seus pontos de vinculação, suas semelhanças e diferenças com os outros. [...] Pode ocorrer uma falha materna no reconhecimento do intento de separação da criança, como acontece com mães que apressam a separação ou com aquelas que retardam a separação-individuação. (Zimerman, 2010, p.194).

Tudo isso pode nos remeter ainda a Winnicott (1971/1975) quando ele menciona:

O que vê o bebê quando olha para o rosto da mãe? Sugiro que normalmente o que o bebê vê é ele mesmo. [...] aquilo com que ela se parece se acha relacionado com o que ela vê ali. [...] Peço que isso, naturalmente bem realizado por mães que estão cuidando de seus bebês, não seja considerado tão evidente assim. [...] Posso demonstrar minha proposição referindo o caso de um bebê cuja mãe reflete o próprio humor dela ou, pior ainda, a rigidez de suas próprias defesas. [...] Muitos bebês, contudo, tem uma longa experiência de não receber de volta o que estão dando. Eles olham e não veem a si mesmos." (Winnicott, 1971, p.154).

Dessa forma, o bebê não se sente reconhecido no olhar da mãe, assim como supomos que Mira não se sentia reconhecida como filha, podendo ser essa a explicação ao recorrente fato dela não se sentir reconhecida ao longo dos anos. E essa busca de qual era o seu lugar permanece em toda sua história: ao separar os pais, ela fica no lugar da mãe; saiu do emprego por sentir-se usada pelo chefe e não ser reconhecida na sua função; encontra o homem de sua vida, novamente toma atitude e o pede em casamento; depois rompe violentamente o seu casamento, por se decepcionar; resolve fazer o aborto por não ter um pai para seu filho e outras situações mais. Parecia que por se ver de frente com o desamparo, ela se mostrava ativa o tempo todo, parecendo não poder habitar a posição passiva.

Com a entrada dos filhos do sócio, aos poucos foi deslocada do seu lugar até ser mandada embora. Aqui se sentiu não reconhecida e totalmente impotente, sem poder agir. Regrediu e adoeceu deixando seu corpo falar por ela, pois não sabia mais o que dizer.

Após algum tempo, Mira comentou sobre o ambiente de acolhimento que desfrutava no espaço analítico. Referiu-se ao vínculo vivido com a analista, no qual se sentia reconhecida, valorizada e percebida em suas capacidades. Isso nos remete a Winnicott (1989/1994), quando enfatiza que é importante:

[...] esperar pela evolução natural da transferência que surge da confiança crescente do paciente na técnica e no setting psicanalíticos e evitar romper este processo natural efetuando interpretações [...]Este interpretar pelo analista[...] deve achar-se relacionado à capacidade que o paciente tem de situar o analista fora da área dos fenômenos subjetivos. O que se acha então envolvido é a capacidade de o paciente usar o analista. [...] Quando falo do uso do objeto, contudo, estou tomando o relacionar-se com objetos como certo, e adiciono novos aspectos que envolvem a natureza e o comportamento do objeto. [...] o objeto, se é que vai ser usado, tem de necessariamente ser real no sentido de fazer parte da realidade partilhada e não ser feixe de projeções. [...] O desenvolvimento de uma capacidade de usar o objeto é outro exemplo do processo maturacional como algo que depende de um meio facilitador." (Winnicott, 1989, pp. 171-173).

Winnicott ainda menciona que "Na prática psicanalítica, as mudanças positivas que ocorrem nesta área podem ser profundas. Elas não dependem do trabalho interpretativo, mas sim da sobrevivência do analista aos ataques..." (Winnicott, 1989, p. 175). Podemos, então, pensar relacionado ao que disse Winnicott, que foi a partir desse uso que Mira fez da minha presença real no setting, principalmente no início da nossa relação, sobrevivendo aos seus ataques quando me desqualificava, que resgatou-se e, aos poucos, deixou de expressar no corpo o seu desamparo.

Podemos ainda pensar no que nos diz Mcdougall (1996) "... Os sintomas psicológicos dessa natureza constituem técnicas de sobrevivência psíquica". (McDougall, 1996, p.9). Apesar de tudo que Mira sofria e sentia, era nisso que eu me apoiava: que ela ainda tinha uma possibilidade de se recuperar de todas as experiências danosas.

E como menciona Volich (2000) "A experiência clínica demonstra que o contato com a experiência individual de cada protagonista da relação terapêutica é o principal catalisador dos processos de cura". (Volich 2000, p.160).

 

CONCLUSÃO

Ao recontar sua história, Mira passou por momentos regressivos. Busquei acolhê-la, como uma mãe acolhe um bebê e suas sensações, exercendo uma função materna de para-excitação, devido a fragilidade dos seus recursos internos. Muitas vezes ela se sentava ao meu lado e eu percebia como ela queria estar mais próxima a mim. Parecia sentir necessidade de constatar minha presença viva. Assim, Mira começou a fazer uso da linguagem. Foi percebendo o seu modo de funcionamento e as repetições em sua história. Aos poucos, foi reconquistando suas capacidades e buscou novas oportunidades de trabalho, que a levaram a um caminho de sucesso, enquanto sua antiga sociedade começou a declinar com sua saída.

Certo dia, Mira revelou que antes não acreditava em tudo que pôde vivenciar comigo. Foi perceptível o seu resgate pessoal e profissional. Através de um espaço onde foi reconhecida como pessoa, conseguiu se reorganizar psiquicamente e os sintomas somáticos começaram a desparecer. Na relação transferencial, pôde viver angústias desorganizadoras e fazer uso do ataque à analista, quando necessitou, constatando que eu permanecia ali ao seu lado, sempre disponível e a sua espera. Assim, aos poucos, retomou sua própria vida.

Isso confirmou o que já é conhecido por nós, sobre a importância de sermos reconhecidos, para que possamos desenvolver a nossa identidade, sendo que isso deve ocorrer desde os nossos primeiros momentos de relação com aqueles que cuidam de nós, até no continuar da nossa vida

De minha parte pude reconhecer e constatar, com o atendimento desse caso, que as alterações corporais estão intimamente ligadas com os estados psíquicos. Mira, com o ápice do sofrimento pela saída da empresa, da qual era sócia, me fez pensar que, nesse momento de dor insuportável e grande decepção, experimentou um sentimento de grande impotência, que não lhe foi possível mais relacionar o psique ao soma, isso ocorreu como uma última possibilidade para ainda sobreviver a tudo que vivia.

Supomos que foi o conviver com a analista, estando sempre junto a ela, independente do que ocorria, acreditando que ela teria possibilidades de sair daquele quadro tão sofrido, que a fez se sentir reconhecida. Assim, através dessa relação analítica, sentindo-se cuidada, lhe foi aberta a possibilidade para um caminho de cura e, aos poucos, o resgaste de sua própria vida.

 

REFERÊNCIAS

Fernandes, M. H. (2008). Implicações Clínicas e Metodológicas. In M. H. Fernandes. Corpo. (3ª ed.). pp. 93-107). São Paulo: Casa do Psicólogo. (Originalmente publicado em 2003).         [ Links ]

Freud, S. (1986). Tipos de Desencadeamento da Neurose. In S. Freud. Obras Completas (Vol.12, pp. 140-146). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1912).         [ Links ]

Laplanche, J. & Pontalis, J.B. (1977). Vocabulário de Psicanálise. Lisboa: Moraes Editores. (Originalmente publicado em 1967).         [ Links ]

Marty, P. (1998). Mentalização e Psicossomática. São Paulo: Casa do Psicólogo. (Originalmente publicado em 1996).         [ Links ]

Marty, P. (1993). A Psicossomática do Adulto. Porto Alegre: Artes Médicas. (Originalmente publicado em 1990).         [ Links ]

Mcdougall, J. (1996). O Psicossoma e a Viagem Psicanalítica. In J. Macdougall. Teatros do Corpo -O Psicossoma em Psicanálise. (2ª. ed.). (pp. 1-12). São Paulo: Martins Fontes. (Originalmente publicado em 1989).         [ Links ]

Volich, R.M. (2000). A Função Terapêutica. In R. M. Volich. Psicossomática: de Hipócrates à psicanálise. (pp. 153-169). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Winnicott, D.W. (1975). O Papel de Espelho da Mãe e da Família no Desenvolvimento Infantil. In D. W. Winnicott. O Brincar e a Realidade. (pp. 153-162). Rio de Janeiro: Imago Editora. (Originalmente publicado em 1971).         [ Links ]

Winnicott, D.W. (1994). Sobre o Uso de um Objeto. In D. W. Winnicott. Explorações Psicanalíticas. (pp.170-177). Porto Alegre: Artes Médicas. (Originalmente publicado em 1989).         [ Links ]

Zimerman, D. E. (2010). O vínculo do Reconhecimento. In D. E. Zimerman. Os Quatro Vínculos: Amor, Ódio, Conhecimento e Reconhecimento. (pp. 191-236). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Creative Commons License