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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.19 no.1 São Paulo jan./jun. 2022

http://dx.doi.org/issn.19982-1492v19n1a3 

ARTIGOS

https://doi.org/10.32467/issn.19982-1492v19n1a3

 

Cenas incestuosas contemporâneas: fragmentos enunciativos sobre a culpabilização da mulher-mãe

 

Contemporary incestuous scenes: enunciative fragments about the guilt of the woman-mother

 

Escenas incestuosas contemporáneas: fragmentos enunciativos sobre la culpabilidad de la mujer-madre

 

 

Lívia de Matos Lima 1; Anamaria Silva Neves 2

Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou a elaboração de reflexões sobre a culpabilização da figura materna diante da violência sexual incestuosa praticada por um terceiro sobre sua filha. Inquietações sobre quem é essa mulher-mãe e o olhar sustentado sobre ela no cenário social guiaram os caminhos percorridos. Metodologicamente, o estudo foi construído a partir da análise documental de comentários produzidos no portal de notícias G1. A teoria psicanalítica auxiliou na análise e interpretação das representações atribuídas a essas mães, uma vez que as designações generalizantes, no campo imaginário, não acessam elementos enunciativos presentes no discurso social. As considerações apontaram que o estranhamento, frente ao feminino e ao próprio desamparo dos sujeitos, mantém os discursos maniqueístas que reduzem estas mães como negligentes, omissas e falhas. Excluem-se os elementos constituintes de suas histórias familiares, que poderiam sucumbir na desorganização face à violência incestuosa estabelecida na trama familiar.

Palavras-chave: psicanálise; violência; incesto; figura materna; contemporaneidade.


ABSTRACT

This study aimed to elaborate reflections on the guilt of the mother figure in the face of incestuous sexual violence committed by a third party on her daughter. Questions about who this woman-mother is, and the view held about her in the social scenario guided the paths followed. Methodologically, the study was built from the documental analysis of comments produced in a news portal. Psychoanalysis helped in the analysis and interpretation of the representations attributed to these mothers, since the generalizing designations, in the imaginary field, do not access enunciative elements present in the social discourse. The strangeness, facing the feminine and the helplessness of the subjects, maintains the Manichean discourses that reduce these mothers as negligent, omissive, and failures. The constituent elements of their family histories, which could succumb to disorganization in the face of incestuous violence established in the family plot, are excluded.

Keywords: psychoanalysis; violence; incest; mother figure; contemporaneity.


RESUMEN

Este estudio pretendía elaborar reflexiones sobre la culpabilidad de la figura materna ante la violencia sexual incestuosa cometida por un tercero sobre su hija. Las preguntas sobre quién es esta mujer-madre y la visión que se tiene de ella en el escenario social guiaron los caminos tomados. Metodológicamente, el estudio se construyó a partir del análisis documental de los comentarios producidos en un portal de noticias. El psicoanálisis ayudó en el análisis e interpretación de las representaciones atribuidas a estas madres, ya que las designaciones generalizadoras, en el campo imaginario, no acceden a elementos enunciativos presentes en el discurso social. La extrañeza, frente a lo femenino y el desamparo de los propios sujetos, mantiene los discursos maniqueos que reducen a estas madres como negligentes, omisas y fracasadas. Se excluyen los elementos constitutivos de sus historias familiares, que podrían sucumbir a la desorganización frente a la violencia incestuosa establecida en la trama familiar.

Palabras clave: psicoanálisis; violencia; incesto; figura materna; contemporaneidad.


 

 

Introdução

Investigar e refletir sobre as representações da maternidade se justifica diante da influência que os discursos apresentam sobre os laços sociais em determinada época da civilização (Arteiro 2017). Para tanto, compreendemos como representações da maternidade:

crenças e configurações sociais que compõem as formas como a maternidade tem sido vivenciada e exercida. As maneiras com que a sociedade qualifica a maternidade e as mães formam afetos e comportamentos tanto nas mães quanto em seu entorno social, de modo a compor e fazer parte do ambiente materno. A cultura é concebida aqui como parte integrante do ambiente e assim, influi também em seus aspectos comunitários, podendo ser pensada na relação atual da comunidade - ou em sua ausência - com a maternidade (Carvalho, 2020, p.109).

Na perspectiva bíblica, a figura feminina esteve representada a partir da noção de pecadora, como percursora do pecado, ou sobre os desígnios da maternidade, elemento associado à representação de santidade. Sobre essa dualidade presente nas representações bíblicas da figura feminina, Emidio (2011) apontou: "só a apresenta em imagens positivas (como a Virgem) quando pode, apesar desse atributo, pelo fato de ser mulher, tornar-se santa pela maternidade" (p.59). Essas atribuições, para a autora, foram constitutivas de modalidades sociais e ainda atravessam o exercício da maternidade na contemporaneidade.

Apesar das atribuições bíblicas conferirem santidade e valorização do exercício materno, na Idade Média e Antiguidade, segundo Badinter (1985), alguns elementos relacionados à maternagem, tais como o acalentar e amamentar eram exercidos por amas de leite e não pelas mães biológicas. As atribuições de gênero, aquilo que se esperava culturalmente e socialmente da figura masculina e feminina, alocaram o homem como soberano, superior à mulher e à criança, a partir de referências sobre a natureza humana. As famílias eram construídas por interesses econômicos e não havia consideração sobre patamares afetivos nas relações conjugais e parentais.

Já na modernidade, a responsabilidade sobre o cuidado com os filhos se voltou para as mulheres-mães biológicas, a partir de publicações da época que enfatizavam a concepção de amor materno como princípio natural e social:

Após 1760, abundam as publicações que recomendam às mães cuidar pessoalmente dos filhos e lhes "ordenam" amamentá-los. Elas impõem, à mulher, a obrigação de ser mãe antes de tudo, e engendram o mito que continuará bem vivo duzentos anos mais tarde: o do instinto materno, ou do amor espontâneo de toda mãe pelo filho (Badinter, 1985, p. 145).

Durante esse período, o papel materno foi descrito por Badinter (1985) como crença do amor materno, representado como natural e intrínseco às mulheres. Tal crença era fundamentada a partir de ideias e concepções iluministas, as quais indicavam que os principais papéis das mulheres eram o exercício materno e conjugal, por isso deveriam ser "educadas" para serem mães e esposas. Diante disso, Emidio (2011) considerou que o conceito de amor materno guiava as relações familiares da sociedade moderna ocidental e apontava marcas do cristianismo, pois as representações e expectativas sobre a maternidade aproximavam a mulher-mãe à figura de Virgem Maria, santificada, assujeitada e subjugada ao seu filho.

Kehl (2003) localizou a desestruturação do modelo da mulher-mãe presente no período moderno a partir da segunda metade do século XX. Ao contrário dos papeis atribuídos às mulheres-mães, encerradas ao lar, aos filhos e ao marido, a partir de movimentos que reivindicavam direitos igualitários, elas puderam ampliar suas possibilidades existenciais. Com mudanças ao nível científico, ofertaram-se métodos contraceptivos e maior autonomia e decisão sobre seus corpos em relação à maternidade.

Ao nível familiar, novas dinâmicas foram estabelecidas e houve ramificações na árvore genealógica. As novas configurações, são nomeadas por Kehl (2003) como família tentacular, caracterizadas por vínculos e enlaces dos sujeitos com outras pessoas que não compõem o núcleo original de suas vidas. Desse modo, existem estruturas familiares compostas por netos criados por avós, padrastos e madrastas que cuidam dos filhos do outro cônjuge, filhos adotivos, irmãos com pais diferentes e diversas outras combinações vinculativas desarticuladas de tradições genealógicas e sanguíneas.

No entanto, Kehl (2003) ressalva que apesar da abertura sobre novas modalidades de vinculações familiares, ainda há uma dívida simbólica deixada pelo modelo ideal da família oitocentista presente no século XIX. Segundo a autora, essa dívida é permeada por idealizações, sentimentos de nostalgia do passado, do lar estável e monogâmico, bem como de desejos dos pais de verem os filhos no mesmo caminho. Essas idealizações de um tempo passado, para a autora, produzem ressonâncias nas novas modalidades vinculativas, ocasionando repressão, infelicidade, angústia e renúncias, pois não integram as diferentes possibilidades vinculativas de cada família em sua particularidade.

Além disso, Kehl (2003) amplia suas considerações e transpõe essa problemática para o nível social, pois em alguns espaços, como instituições públicas que atendem famílias, crianças e adolescentes, há certa tendência em apontar como principal causador de conflitos o lar "desestruturado" qualificado como "disfuncional". Essas diferentes modalidades vinculativas são responsabilizadas pela degradação social, mas a autora acredita que a degradação da sociedade é relacionada, na verdade, com a degeneração moral dos espaços públicos. Desse modo, ao pensar a família e, nomeadamente, a mulher-mãe, questionamentos acerca do atravessamento dessa dívida simbólica na culpabilização da figura materna diante da violência sexual incestuosa na contemporaneidade, apoiaram os caminhos percorridos neste estudo.

Ao voltar nosso olhar para a mulher-mãe na cena incestuosa, tem-se como fundamental o resgate dos elementos que circundam essa problemática. Diante disso, a interdição do incesto auxilia a constituição e estruturação psíquica do sujeito, uma vez que propicia simbolização e diferenciação dos diferentes papeis e funções na família. A transgressão da lei familiar ocorre quando não há interdição do incesto e este é representado por diferentes atos com finalidade sexual entre indivíduos que tenham parentesco cultural (Cohen, 1993) – para além da consanguinidade e vínculo biológico, incluindo a função social de parentalidade, afinidade, responsabilidade ou autoridade exercidas dentro de um grupo. A violência sexual incestuosa ocorre quando os atos incestuosos são ocasionados por um membro familiar que se apropria, sem relação consensual consciente, de outro corpo familiar para sua satisfação sexual. Tal violência também pode se direcionar às crianças e adolescentes.

Figaro-Garcia (2004), a partir de atendimentos com famílias marcadas pelo incesto, percebeu que crianças e adolescentes apresentavam sentimento de insegurança diante de suas histórias sobre a violência sexual, pois os adultos que elegiam para contar agiam com descrença acerca de suas narrativas. Essa situação pode corroborar para o evento traumático, uma vez que o trauma não se restringe e se limita somente ao ato violento, mas também sobre os desdobramentos posteriores.

Percebemos que a violência sexual incestuosa envolve problemáticas complexas que não se reduzem somente ao ato, mas também sobre a revelação, reverberando em outros personagens que compõem o grupo familiar. Para Figaro-Garcia (2004), a figura materna pode ser uma dessas figuras à quem a criança e/ou adolescente recorre. No entanto, a autora ainda identificou que algumas mães podem não acreditar em seus/suas filhos(as), implicando consequências traumáticas à situação vivida pela criança e/ou adolescente.

A partir disso, Figaro-Garcia (2004) produziu reflexões sobre o que estaria em causa no desencontro entre mãe e filha na violência sexual incestuosa. Em suas considerações, a autora percebeu que um número considerável de mães também havia vivido situações de violência sexual durante a infância e, por isso, o acesso à situação denunciada pela criança e/ou adolescente faria suscitar seus próprios conflitos diante da experiência traumática. Desse modo, a dificuldade em acessar a violência sobre a filha seria um modo de se defender contra a realidade ameaçadora do trauma.

Morgado (2010) refere-se às mães, na contemporaneidade – de crianças e/ou adolescentes que vivenciaram situação de violência sexual incestuosa – localizadas em processo de isolamento emocional. Em sua maioria, essas mães se sentem culpadas, envergonhadas, traídas e sem saber como agir diante da cena incestuosa. A mesma autora denuncia os discursos simplistas, guiados pela culpabilização e impostos às mulheres-mães por meio da literatura, senso comum e pareceres profissionais. Movimentadas por inquietações perante os discursos culpabilizadores e simplistas apontados pela a autora, e em busca da ampliação do alcance destas preposições – ao pensar que a reflexão sobre determinado fenômeno deve acompanhar seu tempo histórico – interrogações sobre como essa mulher-mãe é representada e qual o olhar que a sustenta na cena social da contemporaneidade, também constituíram o percurso da pesquisa.

Desse modo, buscamos refletir sobre como a culpabilização das mulheres, mães de crianças que sofreram violência sexual intrafamiliar, é apontada no discurso social e quais as possíveis articulações dessa problemática com a psicanálise. Para tanto, procuramos, por intermédio da pesquisa documental e análise articulada com a teoria psicanalítica, abarcar as entrelinhas de fragmentos enunciados e produzidos em comentários de notícias que abordam a figura materna na cena do incesto.

 

Percurso metodológico

Trata-se de uma pesquisa qualitativa de caráter documental cujo método de análise é a pesquisa em psicanálise. A busca das notícias disponibilizadas digitalmente ocorreu em função de sua popularidade e facilidade de acesso. O olhar direcionado em especial para os comentários, justifica-se por se tratar do espaço aberto para o público leitor manifestar suas ideias e opiniões. À vista disso, acreditamos que os comentários podem refletir com maior nitidez o discurso que permeia o cenário social.

Para oferecer respaldo às inquietações, efetuou-se a busca com o tema da violência sexual incestuosa no portal de notícias G1. O portal de notícias foi designado como fonte e instrumento de pesquisa, dado que a leitura de suas notícias faz parte da rotina de um número expressivo de pessoas e possui maior abrangência ao se configurar como mecanismo de descrição dos fenômenos inscritos na contemporaneidade. Os descritores empregados foram: violência sexual; incesto; estupro; mãe; criança e adolescente. Utilizou-se como critério de inclusão notícias datadas entre março/2017 a novembro/ 2018, a fim de propor análise atualizada sobre a temática.

Na gama de notícias encontradas, realizou-se leitura dos títulos e subtítulos para selecionar aquelas que abarcavam o recorte do incesto e a figura materna. Excluiu-se notícias de caráter amplo, que buscavam noticiar os números crescentes de violência sexual e notícias que não abarcavam, em seus comentários, a culpabilização da figura materna no cenário da violência sexual intrafamiliar.

Por razões desconhecidas das pesquisadoras, a maioria das notícias não oferecia espaço para a submissão de comentários por parte dos leitores. Em decorrência disso, privilegiou-se aquelas que ofertavam este espaço. Assim, por meio da leitura das notícias e comentários, elegemos quatro notícias para nos debruçarmos sobre a culpabilização da figura materna no contexto da violência sexual intrafamiliar. O critério de eleição das quatro notícias que compõe nosso estudo ocorreu em razão de optarmos por aquelas que possuíam maior reverberação dos leitores nos comentários e por indicarem a culpabilização da mulher-mãe sobre a violência sexual incestuosa perpetrada por um terceiro sobre sua filha.

As notícias constituintes deste estudo são intituladas da seguinte forma: Vizinha fez denúncia após ver estupro de criança várias vezes, diz delegado (2017a); Criança filma avô para provar à família que era estuprada pelo idoso: 'Tá aí, mãe, a prova' (2017b); Mãe descobre que filha de 5 anos foi estuprada ao levar menina em pediatra de RO (2018a) e Menina filma estupro para provar à mãe que era abusada pelo padrasto em Porto Velho (2018b). As notícias estão localizadas no website G1, elegido em decorrência de sua acessibilidade – não é necessário o leitor assinar e pagar para ter acesso às informações – alcance e popularidade. A plataforma do portal de notícias G1 busca divulgar notícias de todo o país e se compõe como uma das mais influentes da opinião pública do Brasil.

Priorizou-se a análise dos comentários elaborados pelos leitores relativos às notícias por se aproximarem do imaginário que sustenta a leitura da figura materna na cena incestuosa da contemporaneidade. Cabe ressaltar, de antemão, que estes comentários foram tecidos por pessoas que se identificaram de maneira variada – alguns apontaram nome e sobrenome, outros apenas apelidos – com foto opcional.

A pesquisa em psicanálise é, por vezes, associada a pesquisas com método clínico e estudos de casos, mas também pode se voltar para investigações de variados fenômenos sociais e subjetivos (Tavares & Hashimoto, 2013). Para Rosa (2016), a psicanálise não possui pretensão de substituir produções realizadas por outras áreas do conhecimento, e sim, incidir naquilo que escapa a essas produções. Conduzir a psicanálise na pesquisa, fora de seu enquadre tradicional do consultório particular, tem sido um direcionamento possível ao mal-estar em nossa cultura. Nesse sentido, a psicanálise e seus conceitos podem ofertar subsídios para compreensões das vicissitudes de fenômenos e processos da cultura (Figueiredo & Minerbo, 2006).

Dessa forma, o processo de análise do material encontrado se moldou a partir da leitura das notícias e comentários selecionados, por meio da associação de ideias e ressonâncias mobilizadoras. Os conteúdos que se destacaram no que compete a culpabilização da mulher-mãe, por produzir estranhamento, foram colocados em destaque e a análise do material ganhou delineamentos.

A princípio, no primeiro tópico, descrevemos os conteúdos das notícias e informações relevantes. Em seguida, a análise foi dividida em três tópicos sequentes, a partir dos elementos presentes nos comentários que foram fios condutores da ancoragem teórica. Na pesquisa em psicanálise, o método não é dado a priori, a teoria não antecede a análise do material, é preciso se debruçar sobre àquilo que se pretende investigar para que as ressonâncias dos elementos conduzam a construção da análise. Com isso, as vinhetas destacadas apontaram possíveis articulações teóricas desdobradas ao longo da análise.

 

O incesto na mídia: sobre o conteúdo das notícias e os comentários dos leitores

Iniciamos com uma notícia cujo título foi apresentado da seguinte forma: Vizinha fez denúncia após ver estupro de criança várias vezes, diz delegado (2017a). A notícia, disponibilizada digitalmente, descreveu o protagonismo de uma vizinha ao denunciar a violência sexual, direcionada a uma criança de 3 anos e assistida por ela, através de uma fresta no muro que dividia as casas. A violência foi cometida pelo padrasto da criança, e a notícia informou que o mesmo foi preso horas após a denúncia. A criança foi institucionalizada em abrigo e a mãe investigada em decorrência de possível negligência. Os comentários elaborados pelos leitores fizeram emergir a mãe da criança submetida à situação de violência sexual intrafamiliar:

A mãe gosta mais do estuprador do que da filha (2017a).

A segunda notícia elencada para compor a análise é intitulada: Criança filma avô para provar à família que era estuprada pelo idoso: 'Tá aí, mãe, a prova’ (2017b). Nessa notícia, narrou-se a denúncia realizada pela própria criança, por meio de áudios e vídeos gravados por ela e encaminhados à mãe. Foi apresentado que a mãe da criança também já fora submetida à violência sexual intrafamiliar perpetrada pelo pai, quando possuía 10 anos de idade – este obrigava os filhos a assistirem conteúdos pornográficos e a tocarem seus órgãos genitais.

A criança expôs que as gravações eram a única forma de fazer com que os adultos acreditassem na violência cometida por seu avô materno. A notícia foi palco de diferentes manifestações por parte dos leitores:

Que mãe maldita! sabendo do que o velho fez com ela, como deixava a filha ficar sozinha com ele?! Prendam a mãe dessa menina por negligência! (2017b).

A mãe sofria abusos quando criança, mas mesmo assim deixava a menina sozinha com o canalha. Queria o quê? (2017b).

A mãe era convivente e sabia de tudo (2017b).

Na terceira notícia, nomeada Menina filma estupro para provar à mãe que era abusada pelo padrasto em Porto Velho (2018b), narrou-se sobre uma criança de 11 anos que, ao relatar à mãe a situação de violência sexual sofrida por ela e perpetrada pelo padrasto, em duas ocasiões, a mesma solicitou que a filha filmasse o ato para provar a acusação. A notícia comunicou aos leitores que após a orientação da mãe, a criança realizou filmagem da violência sexual. Depois de visualizar o vídeo, a mãe da criança discutiu com o marido, o qual pegou o celular onde o registro estava armazenado e fugiu da casa em que residiam. Esta notícia também causou reverberações nos comentários submetidos à plataforma jornalística:

A história sempre se repete, mulher com filhos pequenos coloca macho em casa sempre ocorre isso. A vontade de esfolar a perseguida é maior que o amor e cuidado pelos filhos? (2018b).

Na mesma notícia, os comentários elaborados pelos leitores revelaram que a imposição da culpa à mãe é explicita:

Neste caso a mãe é a mais culpada, pois abriu a porta de sua casa entregando a filha de bandeja ao pedófilo. Essas "mães" fogosas, afoitas que não sossegam o facho, mesmo com criança pequena, e não fica sem macho... (2018b).

A última notícia selecionada foi iniciada com a seguinte vinheta: Mãe descobre que filha de 5 anos foi estuprada ao levar menina em pediatra de RO (2018a). Trata-se de uma criança que sofreu violência sexual e o primo adolescente foi indicado como o principal suspeito, por meio da narrativa da própria criança que verbalizou detalhes de como a violência ocorria. A mãe desconhecia a violência até o momento em que levou a filha ao atendimento pediátrico para fazer exames de rotina. Nos comentários da notícia foi dito:

A mãe, então, muito distraída já que um ato desses não se passa em segundos (2018a).

Essas mães que não cuidam das crias depois querem incriminar o sobrinho (2018a).

Afinal, que mãe é essa?

Precisou um médico pra ver isso? Como uma mãe não vê que a filha estava sendo abusada? Criança de cinco anos não consegue cuidar de sua higiene pessoal sozinha, a mãe tem que ajudar no banho, principalmente pra lavar um cabelo, então mesmo que não seja todos os dias, mas um dia ou outro a mãe tem que dar banho. Que mãe é essa? (2018a).

Ao mesmo tempo em que os enunciados resgatam as mães na trama incestuosa, pouco ainda se sabe sobre elas. O saber, até este momento, é refém do lugar que lhes atribuem: lugar enrijecido e reduzido pelo caráter absoluto das palavras:

Isto não é mãe (2018b).

Conforme novas descobertas se fazem presente na contemporaneidade, em que a maternidade, para um número considerável de mulheres, deixa de ser sustentada pela lógica da condição natural feminina e de ideal a ser alcançado, essas descobertas ainda são geradoras de conflitos na sociedade. Os registros apontaram – no que se refere a imagem da mãe, ante a ação sexual incestuosa direcionada às suas filhas, e como ela é tomada pelo discurso social – que parece impossível cogitar que estas mulheres-mães não protejam.

Essa inflexão propicia a ideia de um ideal de super-heroína que recaí sobre elas como imperativo de onipotência em relação ao cuidado de suas filhas. Em consonância com Morgado (2010), o juízo de negligência atribuído pelos leitores, situado como crime sem perdão para a mãe, leva os diferentes discursos a reproduzirem, por meio de uma reatualização maniqueísta, a imagem de "mãe má".

Enquanto apresentou prevalência da culpa à figura materna, no que se refere ao cuidado de suas filhas, a figura paterna encontrou-se extinta e apagada ao longo dos discursos daqueles que comentaram a violência sexual sofrida por uma criança. A eliminação do pai, nesta perspectiva do cuidado, traz à tona a vivacidade da predominância – outrora atribuída ao ideário burguês de família nucelar – da figura materna no cuidado dos filhos (as). Há estranhamento dos sujeitos, ancorado em idealizações de amor, proteção e cuidado incondicional sobre a relação da mãe com as filhas.

Desamparo e feminilidade: um estranho familiar

A ausência da figura paterna, ao mesmo tempo, a derrocada da ilusão de proteção onipresente das mães, inaugurada pela descrença ou desatenção materna frente à violência sexual intrafamiliar, reafirma o desamparo. Os comentários, por não conterem um filtro de efeito midiático, se aproximam da condição humana e se traduzem em fragmentos importantes para nossa análise. Ao pensá-los como esboço do que se impera no cenário social, Birman (2005) afirma que o desamparo é o próprio "Mal-estar na Civilização". Para Freud (1921/1996b), o desamparo não diz respeito apenas a dependência do bebê às necessidades fisiológicas, mas também à condição subjetiva do recém-nascido que está à mercê de um outro. Neste momento, o bebê necessita do outro que possa cuidar e retirá-lo deste estado de desamparo. No entanto, Freud (1930/1996c) conclui que o desamparo permanecerá por toda a vida e as criações humanas nada podem fazer para protegê-lo de seu fim último que é a morte.

Nessa perspectiva, o outro pode se tornar alvo das pulsões destrutivas e agressivas, principalmente se há ameaça de revelar o desamparo psíquico que o sujeito também está à mercê: "Na realidade, não é nada de novo nem de estrangeiro, é algo que muito tempo atrás foi familiar à vida psíquica e se tornou estrangeiro a ela pela repressão" (Freud, 1919/1980, p. 258). Não há nada mais estranho e familiar do que o desamparo – condutor fundante do sujeito. Com isso, os sujeitos em suas fragilidades faltosas, necessitam criar ficções para preencher as marcas da suposta autossuficiência e da onipotência (Birman, 2009).

Essa análise se transpõe para os enunciados dos comentários, imbricados ao estranhamento dos sujeitos frente à "falha" materna. Se, por um lado, há abertura para novas invenções da maternidade na contemporaneidade, a partir da maior autonomia das mulheres sobre seus próprios corpos e na desmistificação do amor materno como componente natural e intrínseco às mulheres, por outro, nota-se uma sociedade que não admite fragilidades.

Birman (1999) discorre que a feminilidade corresponde à ausência da totalidade fálica. Cabe ressaltar, no entanto, que a feminilidade não é restrita aos aparatos biológicos que constitui o ser. Em "Análise terminável e interminável", Freud (1937/1975) versa que homens e mulheres repudiam a feminilidade, ao passo em que repudiam a castração. Deparar-se com a mãe que, além de constituir-se mãe, se integra ao campo da feminilidade – isto é, no investimento para além da maternidade – é esbarrar-se com a castração:

Isso porque o território da feminilidade corresponde a um registro psíquico que se opõe ao do falo na tradição psicanalítica, sendo o seu contraponto nos menores detalhes. Enquanto, pelo falo, o sujeito busca a totalização, a universalidade e o domínio das coisas e dos outros, pela feminilidade o que está em pauta é uma postura voltada para o particular, o relativo e o não-controle sobre as coisas.... Colocar pois o falo em estado de suspensão implicaria, para a subjetividade, uma experiência de perda de contornos e de certezas. Se o mundo se constitui para o eu, nas individualidades, pelo horizonte desenhado pelo falo e pelo narcisismo, a dissolução da ordem fálica coloca em questão nossas crenças mais fundamentais. Por tudo isso mesmo, afinal de contas, a feminilidade seria a fonte sempre recomeçada da experiência de horror (Birman, 1999, pp. 10-11).

Em algumas narrativas, a suposição do desejo sexual materno é identificado como principal culpado pela violência sexual incestuosa sobre suas filhas. Nesse aspecto, percebemos que no momento em que há furo na maternidade idealizada, como recurso fálico ante à castração, há a emergência da feminilidade – campo enigmático e inapreensível. Desse modo, os vestígios do desamparo apresentam-se nos pequenos rastros. O sujeito carrega em suas marcas o que é ignorado por ele, mas ainda capaz de produzir seus efeitos no campo do discurso. O que foge às tantas definições impostas às mães, emerge o recalque do que lhe é inerente: a própria castração, cada qual marcada por sua singularidade na constituição psíquica, emergidas pelos restos ressoantes no próprio dizer.

Para aprofundarmos nessa discussão, retomamos o seminário Mais, ainda (1972-1973/1985), no qual Lacan postula que "A mulher não existe" e sim as mulheres, em sua pluralidade: "há que toma-las uma a uma" (Lacan, 1972-73, p. 19). Não há um significante que nomeie o feminino – o qual inaugura-se como semblante e responde por meio de uma modalidade gozo diferente do gozo fálico. O falo inscreve, simbolicamente, o sexo do homem no inconsciente, por meio de identificação e representação. Enquanto o homem é associado a uma lógica toda-fálica através do gozo fálico, com recursos do simbólico e do imaginário, a mulher é atravessada por uma lógica não-toda fálica, por meio de um gozo suplementar, próprio do real: "Seu famoso 'que quer a mulher?’ confessa isso [...] e poderia traduzir-se assim: o Édipo produz o homem, não produz a mulher" (Soler, 2005, p. 16).

Destoante de Freud (1931/1996d), que apontou a maternidade como destino da feminilidade, Lacan afirma que a mulher não é a mãe (Soler, 2005). Entre a mãe e a mulher existe uma lacuna. O filho pode parcialmente acessar a falta fálica e indicar o semblante da mulher, "mas não é a causa do desejo feminino que está em jogo no corpo-a-corpo sexual" (Soler, 2005, p. 35). A ausência de representações simbólicas para a mulher também faz ressonância na mãe, nomeada de diversos modos, principalmente como acusada:

O que se diz dela? Imperiosa, obscena e possessiva, ou, ao contrário, indiferente fria ou mortal, demasiadamente isto ou aquilo, atenta ou distraída demais, quer sature, quer prive, quer se preocupe, quer negligencie, tanto por suas recusas quanto por suas dádivas, ela aparece como a imagem das primeiras angústias, o lugar, ao mesmo tempo, de uma ameaça obscura e de um enigma insondável (Soler, 2005, p. 98).

A idealização do exercício da maternidade não se sustenta quando consideramos a mulher-mãe atrelada ao campo da feminilidade. Apesar de a maternidade ser ainda tomada como experiência fálica, não há correspondência entre a maternidade – construída por meio das idealizações sociais, culturais e religiosas – e a feminilidade enquanto modo de subjetivação. Além disso, a maternidade tomada a partir da referência fálica é território propicio para as ambivalências, pois as relações humanas com os objetos que sinalizam o falo podem propiciar a plenitude desejada e, ao mesmo tempo, prestar conta da falta, fragilidade e imperfeição (Kehl, 2016).

Com isso, compreendemos que os elementos subjetivos das mulheres-mães, ao considerá-las inscritas no campo da feminilidade, estão para além da alienação absoluta ao significante fálico da maternidade. As ambivalências maternas diante da violência sexual incestuosa sobre suas filhas fazem emergir a feminilidade e podem apontar o indizível de sua condição não-toda. Com efeito, o valor moral atribuído à maternidade pelo viés dos comentários pode denotar a tentativa social de inscrever o gozo feminino na lógica fálica. No entanto, os afetos maternos indicam elementos pulsionais da mulher, os quais não se esgotam com a maternidade e escapam ao socialmente estabelecido.

Nos enunciados dos comentários presentes na plataforma jornalística, destacados e apresentados neste trabalho, é possível perceber movimento por parte de alguns autores para encerrar as mulheres-mães na lógica imaginária da culpabilização. No entanto, as representações não acessam o que está além da representação fálica: os patamares subjetivos e ambivalentes que compõem os registros psíquicos de cada uma, e os quais podem obstaculizar e dificultar o acesso à violência sexual incestuosa perpetrada contra suas filhas.

Sabemos que as identificações possuem papel notório na vida dos sujeitos, são elas que ofertam novos destinos pulsionais e superação das fixações edipianas que substancializam o eterno retorno do recalcado (Kehl, 2016). A vulnerabilidade intrínseca aos sujeitos, cada vez mais demarcada pela fragilidade dos laços e identificações na contemporaneidade, pode ocasionar posicionamentos rígidos, com soberania imaginária, diante daquilo que é capaz de acender suas fraquezas – do que escapa às representações e elaborações inconscientes, protegidas por defesas repressoras: a proibição do incesto, enquanto elemento organizador da civilização; e o feminino, enquanto campo de incertezas.

Mais além do enunciado

Como vimos com Kehl (2003), na contemporaneidade existe uma marca simbólica instaurada pelo ideário da família nuclear burguesa. A mulher-mãe é também constituída contingencialmente por estes ideários. Contudo, ao encerrar suas histórias de vida como decorrentes exclusivamente das representações sócio-históricas, se por um lado as desloca da condição de culpadas, pode, por outro, circunscrevê-las na posição de "vítimas das circunstâncias" (Morgado, 2010). Há algo que resiste a essas considerações, que se faz singular em suas histórias de vida, perpassa a inscrição no campo inconsciente, e molda diferentes formas de se colocar na dinâmica incestuosa.

Ao pensar o inconsciente à margem das representações e da lógica maniqueísta, em consonância com a dimensão traumática, Ferenczi (1933/1992) apresenta que é a confusão da linguagem entre o adulto e a criança que ocasiona a violência sexual. Os desdobramentos dessa confusão também foram considerados pelo autor para descrever as nuances do trauma na violência sexual direcionada às crianças. A confusão das línguas ocorre quando o adulto ignora e desconsidera os elementos da organização civilizatória – como o tabu do incesto – e recai com violência sobre a criança. A criança, inscrita na linguagem da ternura, articula suas fantasias em seduzir o adulto por meio de brincadeiras dirigidas ao mesmo. Caracterizada por Ferenczi (1933/1992) como "amor objetal passivo" (p. 103), a linguagem da ternura possibilita que os elementos internos da criança sejam expressos de forma lúdica. Espera-se do adulto, inserido nas injunções civilizatórias, a interpretação destes gestos como brincadeiras. Porém, o mecanismo estruturante para a criança pode se tornar situação problemática quando o adulto está tomado pela linguagem da paixão e confunde "as brincadeiras das crianças com os desejos de uma pessoa que já assumiu a maturidade sexual, e se deixa levar a atos sexuais sem pensar nas consequências" (Ferenczi, 1933/1992, pp. 101-102).

Na confusão de línguas, o adulto ignora o infantil, a precocidade do psiquismo em desenvolvimento, e incorre-se a agressão sexual. Há vários efeitos dessa circunstância sobre os adultos, como a culpa e remorso pelo ato cometido. Essa culpa fará o adulto se afastar da criança, se isentar de sua responsabilidade e se calar sobre o ocorrido. Ao negar a violência, a criança é impossibilitada de simbolizar o ato e passa a se culpar pelo evento (Ferenczi, 1932/1990).

Por ainda não possuir recursos psíquicos suficientes, a criança é tomada por um estado de incompreensão e vivencia afetos angustiantes. Nesse momento, ela pode buscar uma terceira figura, na maioria dos casos outro adulto, para tentar compreender os enigmas deixados pela violência sexual. Quando a criança versa sobre a violência que lhe aconteceu, o adulto elegido pode reagir negando, desmentindo e tratando com descrédito a sua narrativa. Os elementos sem simbolização decorrentes da violência sexual se desdobram no traumático decorrente do desmentido – apresentado como elemento desestruturante (Pinheiro, 1995). Ferenczi (1992/1933) percebeu o papel fundamental dos adultos, como os outros membros da família, os quais podem ser mediadores diante das angústias infantis para a elaboração do evento traumático.

Freud (1913/1996a) observou que a falta de simbolização seria decorrente do excesso de excitação que a experiência traumática provou no psiquismo. Diante disso, a dúvida, desatenção, e/ou a descrença das mães, colocadas em evidência pelos autores dos comentários, frente à violência sexual intrafamiliar sobre suas filhas, evidenciam a possibilidade de restos inassimiláveis carregados por elas. O não reconhecimento do sofrimento de suas filhas, remete ao desconhecimento de sua própria condição de sofrimento. O insuportável do traumático, como decorrente da falta de simbolização, está atrelado a desilusão e desproteção que esta mãe também fora lançada.

A dúvida não se trata daquilo que a faz ser compreendida no imaginário – como um campo apenas de incertezas entre o acreditar ou não acreditar – mas origina o descompasso ante ao acesso do tabu. O insuportável do traumático é colocado à tona pela via do estranhamento. Vinculados ao desamparo das próprias mães, produzem-se modos de se colocar na cena familiar, a partir da repressão e recalque dos conteúdos, dada sua dimensão catastrófica.

Na segunda notícia (Criança filma avô para provar à família que era estuprada pelo idoso: 'Tá aí, mãe, a prova’, 2017b), onde narrou-se a história de uma criança violentada por seu avô materno, apontou-se a violência que a própria mãe sofria por parte de seu pai na infância. A trama denuncia o cenário de violência projetado sobre a mãe em sua história constituinte, em decorrência da desproteção frente à agressão sexual intrafamiliar. Ao ser marcada pela violência sexual incestuosa ainda na infância, há conflitiva quando a mãe é atravessada pela violência de sua própria filha. A violência sexual, no campo do excesso, corrobora para a condição traumática, impedindo a simbolização de tal violência. O não acesso à violência sobre sua filha, enfatizada pelos dizeres dos comentários, pode anunciar as dificuldades concebidas por conteúdos emocionais presentes na organização subjetiva dessa mãe.

A partir disso, a segunda notícia anunciada (2017b), foi a única que abarcou meandros dos elementos que compõe a infância da mulher-mãe: a violência sexual intrafamiliar de seu pai com os filhos, incluindo-a na trama incestuosa. O excesso ocasionado por conflitos remanescentes da sua trajetória, como a violência direcionada a ela na infância, pode ter produzido marcas psíquicas que impediram o acesso à violência sofrida por sua filha.

O insuportável frente ao traumático, a partir de cenas constituintes do vínculo familiar, pode apresentar-se como elemento nos conflitos inconscientes maternos diante da violência sexual incestuosa direcionada às suas filhas. Ramos (2010) identificou, em entrevistas com essas mães, elementos que podem estar presente em suas relações com as filhas, como a transgeracionalidade e a repetição traumática, a partir de "histórias do passado que insistiam em retornar" (p. 105). Assim, em encontro com algumas autoras (Figaro-Garcia, 2004; França & Matos, 2014; Ramos, 2010), sinalizamos que investigar a subjetividade materna na violência sexual intrafamiliar é também mergulhar no universo infantil da própria mãe, em sua história antecedente, e sobre os significantes que perpassaram suas relações com seus objetos primordiais. Além disso, a partir das dificuldades apresentadas por algumas mulheres-mães diante da violência sexual sobre suas filhas, torna-se pertinente pensar a construção espaços que transcendam à escuta direcionada apenas às crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, para que as famílias também possam ser incluídas no cuidado, já que estas também podem apresentar conflitos diante da situação traumática (França, Tannure & Rabelo, 2018).

 

Considerações finais

Os ideais de maternidade e o estranhamento frente ao próprio desamparo dos sujeitos na contemporaneidade, mantém discursos maniqueístas guiados pelo imaginário, os quais reduzem as mães como negligentes, omissas e falhas. As idealizações podem se configurar problemáticas no que compete o acolhimento dessas mulheres, uma vez que na tentativa de sustentá-las, elas são apartadas de suas próprias experiências subjetivas. Acessar a violência implica deparar-se com conteúdos traumáticos e condições de não onipotência no cuidado das filhas.

A psicanálise se apresenta como importante instrumento na produção de lacunas nas determinações e na construção de novas possibilidades de inscrições menos degradadas e enrijecidas, a fim de romper com modelos sociais internalizados e no estabelecimento de mecanismos de escuta das próprias mães sobre si. Para isso, parece ser preciso considerar a organização inconsciente de cada uma e também as contingências sociais das quais não se pode escapar. Olhar para a cena incestuosa, especificamente para a figura materna, é se debruçar sobre a dimensão inconsciente, as tessituras de seus sintomas aos sintomas familiares, as dinâmicas, arranjos e vinculações que encontram-se inseridas (Gomes & Neves, 2013).

O trabalho acerca da culpabilização sobre a figura materna na violência sexual incestuosa apontou como essas mulheres-mães são percebidas nos discursos presentes em comentários da plataforma jornalística G1. Trata-se de um trabalho exploratório e qualitativo, que apresenta limites por se voltado para um campo restrito. Os desdobramentos aqui apontados podem ofertar indícios sobre o que substancializa a culpabilização dessas mulheres, mães de crianças vítimas de violência sexual incestuosa, mas a temática não se esgota com este trabalho.

Diante disso, outras inquietações emergiram: como essas mulheres-mães são percebidas nos diferentes dispositivos de atenção à violência sexual incestuosa? Quais os elementos fazem parte da constituição subjetiva dessas mulheres-mães? Essas indagações, sobre como a culpabilização das mulheres-mães incide sobre elas e sobre diferentes dispositivos, como instituições jurídicas, protetivas e de cuidado, indicam a necessidade de novas pesquisas e construções teóricas. Com efeito, para maior entendimento dessa problemática na contemporaneidade, se faz necessário pensá-la de diferentes modos. A análise das organizações inconscientes dessas mulheres-mães, das marcas, vínculos e registros afetivos, a partir de suas próprias narrativas, constitui a premissa de nossos próximos estudos.

 

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Endereço para correspondência
Lívia de Matos Lima
Endereço: São Roque de Minas, MG, Rua Mário Alvin, número 145, Bairro São Francisco, 37928-000.
E-mail: livia.matos.psico@hotmail.com

Anamaria Silva Neves
Endereço: Uberlândia, MG, Av. Pará, número 1720, Bairro Umuarama, CEP 38405-320, Bloco 2C
E-mail: Anamaria Silva Neves

Submissão em: 07/04/2021
Aceite em: 18/03/2022

 

 

1 Psicóloga, Mestre em Psicanálise e Cultura na Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
2 Pós-Doutorada pelo CWASU - Child and Woman Abuse Studies Unit. e docente do curso de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

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