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Vínculo

versión impresa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.19 no.1 São Paulo ene./jun. 2022

http://dx.doi.org/issn.19982-1492v19n1a13 

ARTIGOS

https://doi.org/10.32467/issn.19982-1492v19n1a13

 


O trabalho do luto por suicídio: uma leitura kleiniana

 

The grieving process after a suicide: a Kleinian reading

 

El trabajo de duelo por suicidio: una lectura kleiniana

 

 

Carolina de Souza1,I; Érika Arantes de Oliveira-Cardoso2,I; Wanderlei Abadio de Oliveira3,II; Rodrigo Sanches Peres4,III; André Villela de Souza Lima Santos5,I; Manoel Antônio dos Santos6,I

IUniversidade de São Paulo - FFCLRP-USP, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil
IIPontifícia Universidade Católica de Campinas - PUC-Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil
IIIUniversidade Federal de Uberlândia - UFU, Uberlândia, Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A perda da pessoa amada é uma experiência que mobiliza intensa dor emocional, potencializada por fantasias inconscientes de quem a vivencia. O enlutado acredita que seus objetos bons foram perdidos e que os objetos maus se tornaram dominantes. Isso coloca o mundo interno em perigo iminente de se desintegrar. A resolução se dá quando o sujeito é capaz de restaurar seu vínculo amoroso com o objeto por meio da reparação. O objetivo deste estudo é analisar os componentes psíquicos em jogo no processo de luto por suicídio, sob a ótica da teoria psicanalítica de Melanie Klein. Para tanto investiga-se o enlutamento na perspectiva de um personagem de ficção, protagonista de um filme de animação japonesa que tematiza os diversos estágios do trabalho de luto. Com apoio da família e dos amigos, a aceitação da perda da pessoa querida pôde se estabelecer gradualmente no mundo interno, possibilitando que o personagem adquirisse maior confiança em suas tendências construtivas. O filme mostra como a experiência do luto por suicídio, por mais desafiadora que seja, pode ser elaborada de uma forma saudável, resultando em fortalecimento do ego e crescimento emocional dos sobreviventes.

Palavras-chave: luto (estado emocional); suicídio; psicanálise; Klein, Melanie.


ABSTRACT

The loss of a loved one is an experience that mobilizes intense emotional pain, potentiated by unconscious fantasies of those who experience it. The bereaved person believes that their good objects have been lost and that the bad objects have become dominant. This puts the internal world in imminent danger of disintegrating. Resolution occurs when the subject is able to restore his or her love bond with the object through reparation. This study aims to analyze the psychic components at stake in the grieving process experienced after the suicide of a loved one from Melanie Klein’s psychoanalytic theory point of view. To this end, we investigate the bereavement of a fictional character, the protagonist of a Japanese animated film that deals with the various stages of mourning. With the support of family and friends, the acceptance of the loss of the loved one was gradually established in the internal world, allowing the character to acquire more confidence in his constructive tendencies. The film shows how the experience of mourning by suicide, as challenging as it may be, can be healthily elaborated, resulting in ego strengthening and emotional growth for the survivors.

Keywords: grief; suicide; psychoanalysis; Klein, Melanie.


RESUMEN

La pérdida del ser querido es una experiencia que moviliza un intenso dolor emocional, potenciado por las fantasías inconscientes de quien lo vive. La persona afligida cree que sus objetos buenos se han perdido y que los objetos malos se han vuelto dominantes. Esto hace que el mundo interno esté en peligro inminente de desintegración. La resolución se produce cuando el sujeto es capaz de restaurar su vínculo amoroso con el objeto a través de la reparación. El objetivo de este estudio es analizar los componentes psíquicos en juego en el proceso de duelo por suicidio desde la perspectiva de la teoría psicoanalítica de Melanie Klein. Para ello, se investiga el duelo de un personaje de ficción, protagonista de una película de animación japonesa que tematiza las distintas etapas del duelo. Con el apoyo de la familia y los amigos, la aceptación de la pérdida del ser querido se estableció gradualmente en el mundo interno, lo que permitió al personaje adquirir una mayor confianza en sus tendencias constructivas. La película muestra cómo la experiencia del duelo por suicidio, por muy desafiante que sea, puede elaborarse de forma saludable, dando como resultado el fortalecimiento del ego y el crecimiento emocional de los supervivientes.

Palabras clave: duelo; suicidio; psicoanálisis; Klein, Melanie.


 

 

A cada ano mais de 800 mil pessoas ao redor do globo morrem por suicídio, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (World Health Organization - WHO, 2021), e um quantitativo ainda mais assustador de pessoas tenta suicídio. Só no Brasil são cerca de 12 mil casos por ano, só sendo ultrapassado pelos Estados Unidos. Globalmente, o suicídio é a segunda causa de mortes no mundo entre mulheres na faixa dos 15 a 19 anos e a terceira entre os adolescentes do sexo masculino. A ação que resulta em um desfecho tão fatídico lança os sobreviventes (familiares e outras pessoas próximas) à experiência dolorosa de ter um vínculo emocional interrompido abruptamente.

Para se recuperar do impacto da perda e da quebra do vínculo emocional, o indivíduo necessita reorganizar-se internamente. O esforço de reorganização mobiliza um trabalho psíquico que só pode se completar depois da superação da crise que instaura o luto, um processo que demanda tempo e recursos para elaboração e reconstrução do mundo interno (Ferracioli et al., 2019). Por vezes o indivíduo não é capaz de seguir em frente após a perda e, sozinho, implementar as mudanças necessárias ao processo de recuperação.

Melanie Klein é reconhecida como a teórica das perdas, da melancolia e do luto, não apenas como eventos acidentais ou secundários, mas como aspectos fundamentais e essenciais do percurso existencial de cada indivíduo (Cintra & Figueiredo, 2010). Sob a perspectiva psicanalítica, assumir esse "destino", ao invés de tentar evadir-se dele, é considerado um requisito para o amadurecimento e a saúde mental. Porém, como os conceitos de tristeza, luto e melancolia aparecem com frequência nas teorias psicanalíticas com funções e significados diferentes, é relevante fazer uma distinção entre esses construtos. Eles designam experiências emocionais que podem ser desencadeadas pela perda de um objeto amado, independentemente do motivo: por morte, separação, abandono ou distanciamento. A tristeza corresponde a um estado de humor afetivo que pode acompanhar os estados depressivos em diferentes intensidades. Luto consiste no período de tempo de que o indivíduo necessita para elaborar a perda de um objeto investido libidinalmente e que foi perdido; este objeto amado tem a particularidade de ter sido introjetado no ego sem suscitar maiores conflitos. Já a melancolia designa uma condição psíquica na qual a introjeção do objeto perdido foi feita de maneira ambivalente e conflitiva (Zimerman, 2007).

Na concepção teórica sobre o luto proposta por Melanie Klein (1996a/1935), tanto a perda concreta de um objeto real quanto uma situação semelhante que pode adquirir esse sentido para o sujeito que a vivencia podem levar à instalação do objeto perdido dentro do ego. A autora argumenta que, quando o ego se percebe ameaçado por se ver possuidor de objetos bons internalizados, também experimenta elevada ansiedade diante da possibilidade de que esses objetos deixem de existir. Klein observou em seus pacientes infantis, bem como nos adultos, que sofriam de depressão um medo de guardar dentro de si objetos mortos ou agonizantes e de se identificar com os objetos nessa condição de penúria psíquica.

Para compreender a psicodinâmica do enlutamento, é preciso considerar que há uma ligação importante entre as peculiaridades do teste de realidade que ocorrem no luto e os processos arcaicos da mente. O bebê sente que os sentimentos prazerosos que ele experimenta em relação à mãe são como provas de que o objeto de amor, tanto interno quanto externo, não está danificado por seus impulsos sádicos, nem se tornou vingativo e retaliador. Graças à capacidade de continência materna, os aspectos amorosos do vínculo podem sobrepujar o ódio, e a confiança no objeto pode ser restabelecida e se tornar dominante, o que faz com que a destrutividade possa ser acolhida, contida e, posteriormente, transformada.

Os temores de perda e retaliação arrefecem com a vivência constante e contínua da relação de cuidados e os momentos felizes auxiliam o bebê a se tranquilizar e superar suas ansiedades persecutórias, equipando-o a lidar com as perdas em um processo normal de luto. Dessa forma, o bebê se capacita a testar a realidade interna com base na crescente percepção da realidade externa. Se ele se sente suficientemente amado e confortado quando está com os outros, a confiança na bondade do objeto e também na sua própria benevolência pode ser fortalecida. A ambivalência e o medo da destruição interna são atenuados e aumenta a esperança de que seus objetos "bons" e seu ego possam ser preservados (Klein, 1996b/1940).

No bebê os processos contínuos de projeção e introjeção assumem características agressivas e de ansiedade, o que alimenta o temor da perseguição pelos objetos "maus" (ansiedades persecutórias), na medida em que eles se reforçam mutuamente, resultando no medo catastrófico de perder os objetos bons que são amados. Esse temor de perda é especialmente acentuado quando o ego se aproxima da posição depressiva. Nesse cenário, o uso de defesas maníacas, tais como onipotência, negação e idealização, auxiliam o ego primitivo a se defender de seus perseguidores internos, ao mesmo tempo em que o protegem da submissão aos objetos amados, possibilitando avanços no desenvolvimento psíquico (Klein, 1996a/1935, 1996b/1940).

Graças à negação da realidade psíquica, de forma temporária e como defesa contra o medo dos perseguidores, o ego consegue lidar com a destrutividade diante da qual se sente ameaçado no momento em que a posição depressiva está em seu ápice (Klein, 1996a/1935). Outro elemento importante que se acentua na proximidade dessa posição é o triunfo maníaco, ou seja, a fantasia onipotente de poder dominar o objeto, controlá-lo, subjugá-lo, até prevalecer sobre ele. Esse elemento pode prejudicar a efetividade da reparação, fazendo com que o "ciclo benéfico" que ela inicia se fragilize e os objetos que deveriam ser restaurados voltem a ter características de perseguidores. Afinal, o triunfo sobre os objetos persecutórios significará que eles também tentarão triunfar sobre o ego, reativando angústias arcaicas e fantasias retaliatórias. Além disso, os objetos amados são os mesmos sobre os quais o ego triunfa, suscitando sentimento de culpa persecutória em vez de reparadora (Klein, 1996b/1940).

No ego da criança pequena, o triunfo sobre seus objetos internos participa da porção destrutiva que se experimenta ao se aproximar da posição depressiva, o que pode desestabilizar os esforços de reparação e recriação do mundo interno, em prejuízo da busca da paz e harmonia interiores. Assim, o trabalho do luto no estado de mente arcaico é prejudicado pelo excesso de triunfo e arrogância. Por outro lado, conforme o desenvolvimento e as habilidades da criança avançam, ela adquire uma crença crescente nas suas tendências construtivas que atuam dentro de sua realidade psíquica, assim como encontra maior segurança em sua capacidade de controlar os objetos "maus" internalizados. Pode, portanto, vivenciar o sofrimento permitindo-se experimentar sentimentos penosos de culpa, raiva, abandono, rejeição e desamparo, com maior tolerância à ambivalência afetiva. O ego fortalecido experimenta uma confiança genuína nas pessoas e no ambiente, o que permite reduzir o estado de fragmentação interna. O ego pode seguir adiante rumo à unificação de suas imagos até alcançar um processo mais amplo de integração psíquica (Klein, 1996b/1940).

Os processos descritos até aqui estão articulados em um horizonte teórico no que se supõe ser um funcionamento mental saudável. Passemos a considerar o que ocorre em situações de extrema adversidade, que potencializam distorções no processo de organização da personalidade. A perda da pessoa amada é uma experiência que mobiliza intensa dor emocional, potencializada por fantasias inconscientes de quem a vivencia. O enlutado acredita que seus objetos bons foram perdidos e que os objetos maus se tornaram dominantes. Isso coloca o mundo interno em risco iminente de se desintegrar. Na travessia da experiência de perda o sujeito reincorpora o objeto que perdeu e pode então reinstalar os objetos bons que foram internalizados. Porém, ele pode acreditar que estes objetos bons também foram destruídos com o falecimento da pessoa amada, o que reforça os sentimentos de perseguição (Klein, 1996b/1940), em prejuízo da função reparatória.

Durante o processo do luto, a função egóica do teste de realidade é afrouxada e a dor associada ao pesar é acentuada pela necessidade de recriar os elos rompidos com o mundo externo e também a necessidade de reconstruir o mundo interno, que aparenta estar desmoronando para o sujeito. Um risco substancial que o sujeito corre durante o luto é que desvie seu ódio para a pessoa que faleceu, sentimento que é expresso, nesse momento, pela sensação de triunfo sobre o objeto que desapareceu, o que por seu turno também gera mais culpa (Klein, 1996b/1940). Tal culpa pode ser vivenciada como perseguição, se for sentida por um ego que ainda não é capaz de tolerá-la, o que faz com que o objeto que induz a culpa se transforme em mais um perseguidor. Porém, conforme o sujeito vai se aproximando cada vez mais da posição depressiva, o ego, que está mais fortalecido e integrado, consegue suportar melhor a dor da culpa e desenvolver defesas mais adequadas, como a tendência a efetuar a reparação dos objetos danificados (Klein, 1991/1957).

Nesse cenário conflagrado, a idealização do objeto amado torna-se um alívio para o sujeito enlutado, pois ele se sente confortado ao relembrar da bondade e das qualidades positivas da pessoa que não se encontra mais presente em seu convívio. Ainda que o objeto idealizado seja menos integrado no ego do que o objeto bom, pelo fato de que sua origem está mais relacionada à defesa frente à ansiedade persecutória do que à capacidade de amar, ao retomar sua confiança nos objetos externos o indivíduo de luto fortalece sua confiança na pessoa amada que se foi, podendo admitir que ela não era perfeita, sem ter medo de sua eventual vingança e sem perder o amor que sente pelo objeto perdido. Nesse momento, o trabalho de luto já logrou um grande avanço em termos da superação da perda (Klein, 1991/1957, 1996b/1940).

Klein (1996b/1940) também fez considerações interessantes sobre o choro. Além de permitir que a pessoa expresse seus sentimentos e alivie a tensão, o pranto purga os sentimentos e objetos "maus" que povoam a realidade interna, o que potencializa a sensação de alívio que o ato de chorar normalmente traz. O mundo interior fica mais arejado e livre, assim como os sentimentos que imantam os objetos que ali habitam. Em relação à temporalidade, Eizirik, Mello e Knijnik (2015) sugerem que o trabalho de luto ocorre à custa do tempo e graças ao investimento de energia libidinal nas lembranças relacionadas à pessoa que faleceu. A duração desse período varia conforme as nuances do vínculo que o sujeito mantinha com a pessoa que perdeu.

Quando o sujeito enlutado é capaz de viver o máximo de sofrimento pela perda que se abateu sobre seu ego e o desespero alcança seu apogeu, ele pode se dar conta de que tem novamente amor pelo objeto. Isso porque, anteriormente, o sentimento de ódio era predominante devido às vivências de desamparo e abandono, porém com o decorrer do tempo o indivíduo consegue se perceber amando novamente por reinvestir libidinalmente o objeto, restaurando o vínculo danificado. Nesse caso, a vivência abissal do sofrimento pode ser produtiva e transformadora, contribuindo para o amadurecimento emocional.

A resolução do luto se dá quando o sujeito é capaz de restaurar seu vínculo amoroso com o objeto por meio da reparação. O sujeito é capaz de sentir de forma intensa que a vida continuará vibrando dentro e fora de seu mundo interno e que o objeto amado que fora perdido pode ser preservado e se manter na órbita do mundo interior. Os estágios do trabalho de luto caminham no sentido de um relaxamento das defesas maníacas, à medida que os relacionamentos internos se tornam mais profundos, dando lugar a uma renovação da vida interior, que se mostra gradualmente mais rica e diferenciada. Esses estágios assemelham-se às etapas do desenvolvimento psíquico arcaico, que impulsionam o sujeito na direção de uma progressiva diferenciação e relativa independência dos objetos externos e internos (Klein, 1996b).

Klein (1996b/1940, p. 404) apontou a importância da proximidade que as outras pessoas queridas têm para o indivíduo enlutado: "se o indivíduo de luto está próximo a pessoas que ama e que compartilham de seu sofrimento, se ele é capaz de aceitar sua compaixão, há um estímulo para a restauração da harmonia em seu mundo interior, e seus medos e sua dor se reduzem com mais rapidez". Por outro lado, algumas especificidades podem funcionar como fatores complicadores do enlutamento, como por exemplo as circunstâncias nas quais se deu o óbito e as características da pessoa falecida. Uma das condições agravantes pode ser a perda por suicídio. O luto em resposta ao suicídio de uma pessoa querida pode ser particularmente complicado por ativar sentimentos de culpa, vergonha, raiva, remorso, abandono e desamparo, além de lançar os sobreviventes na perplexidade. Assim, no processo de luto deflagrado por suicídio de uma pessoa significativa há singularidades que precisam ser consideradas no planejamento do processo de cuidado (Fukumitsu & Kovács, 2016).

Considerando esses pressupostos, o objetivo deste estudo é analisar os componentes psíquicos em jogo no processo de luto por suicídio sob a ótica da teoria kleiniana.

 

Método

Trata-se de um estudo teórico, baseado em análise documental. A pesquisa documental se vale de métodos e técnicas que buscam apreender, analisar e compreender documentos de diversos tipos, incluindo textos e produções audiovisuais (Sá-Silva, Almeida, & Guindani, 2009). Nessa estratégia metodológica, muito utilizada nas ciências humanas, a compreensão do termo documento é ampliada e se relaciona a toda fonte de informações que existe ou já existiu. O modelo mais comum são os documentos impressos, todavia, no sentido amplo, entende-se por documentos quaisquer traços e rastros deixados pelos seres humanos ao longo de sua existência.

Os documentos sonoros e visuais também são fontes de informações úteis para a compreensão de determinados fenômenos. Dentre os documentos que habitualmente são privilegiados pelos pesquisadores destacam-se fotografias, discos, fitas magnéticas, pinturas, gravuras, desenhos, vídeos, filmes, livros, ou seja, tudo aquilo que, mediante suporte audiovisual apropriado, permite expressar e difundir informações sobre indivíduos, grupos e contextos de vida (Laville & Dionne, 1999).

Marco teórico-conceitual

Praticamente desde suas origens, a teoria psicanalítica vem sendo aplicada para além do contexto clínico, como no diálogo com as obras de arte, que incluem textos literários, filmes, esculturas, desenhos, pinturas, entre outras produções. A psicanálise é empregada como um arcabouço compreensivo para se entender três áreas de importância para a estética: (1) a natureza do trabalho criativo e a experiência subjetiva do artista, (2) a interpretação da produção artística e (3) a natureza singular do encontro estético com a obra de arte (Spitz, 1985). De acordo com Williams (2020), o importante é encontrar uma organização estética: a maneira como os componentes se articulam e se interligam em uma obra de arte reflete o modo como os elementos psíquicos são relacionados na mente de quem aprecia a produção estética.

A obra de arte pode ser apreciada com derivações do mesmo modelo que se mostrou útil para a compreensão psicanalítica dos sonhos. Desse modo, o escopo da aplicação da psicanálise pode ser consideravelmente ampliado. O benefício é mútuo, já que essa área do conhecimento amplia seus limites tradicionais, ao mesmo tempo em que mantém seus procedimentos específicos. A psicanálise não só pode ser aplicada a questões extraclínicas, como ela pode fazê-lo seguindo exatamente os mesmos métodos e cuidados empregados no cenário clínico (Abella, 2016).

Critérios de seleção da obra

Para a organização do corpus deste estudo foi selecionado um filme de animação japonesa, intitulado Orange: Futuro, como materialidade mediadora a ser tomada em consideração e analisada com base na teoria desenvolvida por Melanie Klein. No filme em questão são abordados diversos temas, dentre os quais figuram o valor da amizade, as relações familiares, os relacionamentos amorosos, as experiências escolares e a vivência da perda de pessoas significativas. De fato, a perda de uma pessoa querida é um elemento central no desenvolvimento da trama e que serve de leitmotiv que aproxima os personagens. Outra razão para a seleção deste filme foi a questão da resolução do luto. Enfim, nossa escolha recaiu sobre esta obra pelo fato de que ela encena, de forma inspiradora, os diversos estágios do luto. Além disso, consideramos a pertinência dessa temática na conformação da matriz epistêmica da teoria kleiniana.

 

Resultados e discussão

Obra escolhida

O filme selecionado intitula-se Orange: Futuro ("Orange: Mirai", no original) e foi lançado no Japão em 2016 pelas produtoras TMS Entertainment e Telecom Animation Film Company. A animação é baseada no mangá e anime Orange, de autoria de Ichigo Takano, cujo lançamento se deu no período de 2012-2017 na versão original japonesa, e de 2015-2018 na versão brasileira. A autora esclarece que o filme é focado em um dos personagens da série, Hiroto Suwa, que foi também o personagem escolhido para ser o foco deste estudo. Para essa contextualização, as informações foram extraídas das obras principais e dos seguintes sites: IMDb (https://www.imdb.com/title/tt6096128/?ref_=rvi_tt) e MyAnimeList (https://myanimelist.net/anime/34136/Orange__Mirai?q=orange).

Orange – o mangá

Em Matsumoto, cidade do Japão, Naho Takamiya, aluna do segundo ano do ensino médio, recebe cartas enviadas por ela mesma 10 anos à frente no tempo, portanto, desde o futuro. Seu "futuro eu" a aconselha a evitar determinadas escolhas que a levarão a seus "maiores arrependimentos", o que se relacionava a um novo estudante recém-transferido da capital, Tóquio, chamado Kakeru Naruse. A princípio cética, Naho começa a acreditar nas cartas ao perceber que elas de fato relatavam, com notável verossilhança, os eventos daquela época. A despeito da mensagem recomendar que ela não convidasse Kakeru para sair logo no primeiro encontro, Naho e seus amigos (Hiroto Suwa, Takako Chino, Saku Hagita e Azusa Murasaka) decidem ignorar o conselho e convidá-lo para sair. Depois desse dia, Kakeru acaba não comparecendo à escola pelas próximas duas semanas.

Para evitar outro "erro", Naho resolve seguir exatamente o que as cartas a aconselham a fazer, como se voluntariar em uma partida de softbol (variação do beisebol) e encorajar Kakeru a se juntar ao time de futebol. As cartas também advertem sobre o relacionamento de Kakeru com uma veterana da escola e insistem para que os dois assistam aos fogos de artifício sozinhos durante um evento festivo da escola. Naho fica sabendo, por intermédio das cartas, que no futuro Kakeru está morto, vindo a cometer suicídio alguns meses depois de entrar na escola. A Naho "do futuro" pede para a Naho "do presente" que impeça a morte de Kakeru, alterando esse destino trágico.

Durante um festival, Kakeru expõe a Naho o motivo de sua ausência no início do ano letivo: sua mãe havia morrido, suicidou-se em seu primeiro dia de aula. Kakeru acredita que a mãe decidira tirar a própria vida devido a um colapso mental, que teria sido deflagrado por ele ao deixá-la sozinha nesse dia fatídico e por não a ter levado ao hospital no dia da matrícula, como havia lhe prometido. Isso faz com que Naho também se sinta culpada, pois acha que, de algum modo, compartilha a responsabilidade pela morte da mãe de Kakeru.

Mais tarde, Suwa revela a Naho que ele também recebeu cartas de seu "futuro eu", que lhe pediu para ser um bom amigo para Kakeru e salvá-lo de sua morte. Suwa omite o fato de que ele e Naho são casados e têm um filho no futuro, quando percebe que Naho e Kakeru estão apaixonados. Embora ele tenha sentimentos por Naho, tanto seu "eu do presente" quanto seu "eu do futuro" percebem que, caso salve Kakeru, ele terá de desistir de ter um futuro com Naho. Tendo conhecimento dos sentimentos dos amigos, Suwa segue o que as cartas recomendam e apoia Naho e Kakeru o máximo possível. Posteriormente, Azusa, Hagita e Chino admitem que receberam cartas semelhantes. Todos concordam que, embora possam não ser capazes de mudar o destino de seus "futuros eus", podem criar um universo paralelo onde Kakeru ainda estaria vivo.

Assim, para animar Kakeru, os cinco amigos organizam uma comemoração pelo seu aniversário de 17 anos, na qual ele confessa seus sentimentos a Naho, que se surpreende com a revelação. Os cinco amigos também se juntam à equipe de corrida de revezamento do colégio para apoiar Kakeru que, com o incentivo de todos, acaba vencendo a competição. Como "recompensa" por vencer a corrida, Kakeru ganha um beijo de Naho. No entanto, na véspera de Ano Novo, Naho e Kakeru acabam se desentendendo, ao discutirem sobre a saúde da avó dele, com quem Kakeru mora, discordando sobre seus cuidados. Nas semanas seguintes os dois se distanciam, até o dia em que Kakeru aparece morto. Porém, antes dessa fatalidade, Naho confessara seus sentimentos para Kakeru.

Na noite da suposta morte de Kakeru, o plano dos amigos de se encontrarem é interrompido quando ele não chega a tempo. Os cinco procuram por Matsumoto, no local onde as cartas disseram que ele havia falecido, e conseguem impedi-lo de ser atropelado por um caminhão. Kakeru pede desculpas, dizendo-lhes que estava pensando em suicídio, mas no último segundo decidiu abandonar esse intento ao perceber que este ato significaria nunca mais poder estar com seus amigos novamente.

Passados alguns dias, os seis amigos escreveram cartas para seus "eus futuros" relatando quais seriam seus desejos "daqui há 10 anos". Kakeru comenta com os colegas que se sente feliz por estar vivo e a história termina com a Naho "do futuro", juntamente com Suwa e o filho, tendo a sensação de que Kakeru está bem.

Orange: Futuro – o filme

Baseado no mangá, o filme reconstroi a trama principal do ponto de vista de Hiroto Suwa, enquanto ele continua a apoiar o relacionamento de Kakeru e Naho. O filme também apresenta uma história original que ocorre após os eventos retratados na série de mangá e anime.

Hiroto Suwa, de 26 anos, sua esposa, Naho, e seus antigos colegas do ensino médio – Takako Chino, Azusa Murasaka e Saku Hagita – visitam o Monte Koubou para apreciarem o espetáculo das flores de cerejeira. Enquanto assistem ao sol poente, eles se recordam de Kakeru Naruse, o amigo que morreu havia 10 anos. Ainda de luto por ele, eles decidem visitar a antiga casa de Kakeru, onde sua avó lhes conta detalhes da morte do neto.

Ao tomarem conhecimento de que Kakeru na verdade havia cometido suicídio, Suwa e seus amigos são tomados por arrependimento e decidem escrever cartas para os seus "eus de 16 anos". O intuito é, por meio das cartas, deixar seus corações em paz e tentar salvar o Kakeru "do passado". Suwa, em sua carta, comunica que se sente culpado pela morte de Kakeru e por ter "se aproveitado" dessa tragédia para se aproximar de Naho, acreditando que se Kakeru estivesse vivo, Suwa e Naho não teriam se casado. Assim, com o conhecimento obtido na carta de seu "futuro eu", o Suwa de 16 anos percebe que lhe resta uma possibilidade de reescrever o futuro. Ele segue o que as cartas aconselham, sempre apoiando Naho e Kakeru, conseguindo estimular o relacionamento dos dois e, assim, salvar o amigo.

No final, o Suwa "do futuro" acorda de um sonho no qual todos os amigos, incluindo Kakeru, haviam ido assistir ao pôr do sol no Monte Koubou. Naho e Kakeru estão casados e Suwa está segurando o filho dos dois, parecendo alegre. Ele percebe que Naho teve o mesmo sonho e Suwa se emociona ao visualizar um futuro no qual Kakeru esteja vivo e feliz.

O vértice psicanalítico: análise do personagem Suwa Hiroto

Antes de iniciar a análise, é importante destacar que, devido ao formato ficcional da obra, algumas cenas se passam no futuro do personagem Suwa Hiroto, quando o amigo, Kakeru, já havia falecido. Uma das primeiras cenas do filme mostra Suwa e os amigos, mais velhos, indo visitar a casa da avó de Kakeru. Chegando lá, o grupo se surpreende pelo fato de a senhora ainda se lembrar de quem eram eles. A idosa conta que Kakeru falava muito de todos. Eles veem fotos de Kakeru quando criança e Suwa pergunta para a avó se a morte de Kakeru tinha sido realmente um acidente. Ela mostra uma carta que o neto havia deixado no dia de sua morte e Suwa lê o conteúdo para todos. Na carta, Kakeru revela que havia decidido se suicidar para poder encontrar sua mãe e se desculpar com ela, mas que ele gostaria que a avó dissesse a todos que tinha sido uma morte acidental. Segundo a literatura, o ato de tirar a própria vida está associado a fantasias de controle onipotente sobre o objeto persecutório, além de autopunição, libertação do sofrimento ou oportunidade de reencontro. No caso de Kakeru, dentre as possíveis motivações, a fantasia do reencontro com a mãe falecida parece ter sido a razão decisiva que levou o jovem a tirar a própria vida.

Na cena seguinte, Suwa diz que gostaria de se desculpar com Kakeru por ter roubado seu futuro ao ter se casado com Naho, a menina de que o amigo também gostava, e por terem tido um filho. Suwa explicita que, na época do colégio, ele era o único que sabia que Naho e Kakeru sentiam algo um pelo outro, mas fingiu que não havia notado. Ele se considera uma pessoa ruim por isso e acredita que, se Kakeru estivesse vivo, provavelmente o amigo teria se casado com Naho. Os amigos refutam essa afirmação, atestando que isto não é verdade. Naho confessa que, mesmo que Kakeru estivesse vivo, ela teria escolhido se casar com Suwa e relembra como ela ficou feliz quando soube dos sentimentos que Suwa nutria por ela. Logo em seguida, os cinco amigos saem da casa para contemplar o pôr-do-sol e choram ao lembrarem de Kakeru. Suwa se pergunta o que o amigo teria achado daquele momento caso pudesse compartilhá-lo.

Algumas cenas mostram trechos de cartas que os amigos enviaram para os seus "eus do passado" e Suwa escreve que, no colegial, Kakeru nunca se juntou ao clube de futebol, mas que ele acreditava que o amigo gostaria de ter participado do time; que ele achava que Kakeru e Naho teriam tido um futuro feliz juntos; que Suwa agiu errado ao se confessar para Naho quando ela e Kakeru haviam brigado, relatando que ele sempre a amará, mais do que o amigo; que é uma pessoa horrível e gostaria de se desculpar com Kakeru; que após a morte do amigo ele só conseguiu se aproximar de Naho porque ela estava frágil e vulnerável; que ele "usou" o Kakeru; que Suwa e Naho são felizes juntos; que se Kakeru estivesse vivo, Suwa tem certeza de que ele teria a melhor vida que alguém poderia desejar; que algo que Suwa gostaria de ter visto é um futuro no qual Naho e Kakeru estão sorrindo juntos, parecendo muito felizes.

Quando estão no processo de escrever as cartas, Naho pergunta para Suwa se ela deveria incluir na carta dela que os dois estão casados e ele enfaticamente diz que não. Em seguida, Naho escreve em sua carta que Suwa, além de muito gentil, é uma pessoa preciosa que salvou seu coração. Depois, os amigos conversam sobre como as cartas chegarão aos seus "eus do passado", contando com o sortilégio de que elas consigam viajar no tempo de alguma forma e deixando instruções sobre como deveria ser o envio delas. Hagita diz que, independentemente do fato de as cartas chegarem ou não ao passado, o arrependimento de todos os amigos continuará, que isto é só a maneira de eles tentarem "consertar" o que aconteceu com Kakeru. Porém, Hagita acredita que, se conseguirem enviar essas cartas, isso reduzirá o arrependimento deles, então vale a pena tentar, mesmo que elas não cheguem em seus "eus passados". Suwa concorda com o que Hagita disse e deseja sinceramente que as cartas consigam chegar a tempo de salvar Kakeru.

No final do filme, Suwa tem um sonho no qual todos os amigos, juntamente com Kakeru, estavam assistindo ao pôr-do-sol mais uma vez juntos. No sonho, Kakeru e Naho tinham um filho, bastante apegado a Suwa. Ainda no sonho, Kakeru agradece pelas cartas que recebeu. Quando Suwa acorda, ele percebe que Naho também teve um sonho idêntico ao seu e os dois choram. Ele se pergunta o que aconteceu com as cartas e pensa que, se existe um mundo no qual elas não foram entregues, também deve existir um mundo no qual elas chegaram ao destinatário. Isso o encoraja a imaginar que, se ele tivesse a oportunidade de repetir o passado, salvaria Kakeru sem hesitar.

Com base nesses desdobramentos surpreendentes da trama e tendo como eixo articulador a teoria kleiniana do luto, pode-se pensar que Suwa nutria um afeto profundo pelo amigo que falecera, na medida em que ele se mostra sensível ao questionar o modo como Kakeru havia morrido, confessa que gostaria de poder se desculpar com ele e se preocupa com o conteúdo que ele e Naho inseriram em suas cartas. Por outro lado, apesar dos sentimentos positivos, também é possível pensar que Suwa tinha ciúmes do amigo, pois, como a cena evidencia, ele sabia que Kakeru e Naho estavam apaixonados e que, provavelmente, teriam um romance no futuro, o que poderia fazer Suwa sentir que ele estaria sendo privado da pessoa amada. Além disso, o fato de terem descoberto que a morte de Kakeru foi, na verdade, provocada pelo próprio, provavelmente fez Suwa pensar que, se ele tivesse prestado mais atenção no amigo e considerado mais seus sentimentos, talvez isso não tivesse acontecido. Essa gama de sentimentos ambivalentes parece ter desencadeado um incremento da culpa e Suwa é impactado pela fantasia de ter roubado o futuro do amigo. Em virtude disso pode ter sentido que essa situação seria a materialização de seus impulsos arcaicos de morte, inconscientemente dirigidos ao amigo (Klein, 1991/1957, 1996b/1940).

Quando Kakeru faleceu, além do pesar pelo triste desfecho da vida do amigo, também é provável que Suwa tenha sentido um triunfo inconsciente sobre ele. Suwa comenta, em uma cena, que ama mais Naho do que Kakeru amou, além do fato de que, ao perder o amigo, o caminho estava livre para ele poder constituir ao lado de Naho a família que tanto desejava. Como o triunfo ocorre em relação a um objeto amado, e não apenas odiado, Suwa também sente culpa por seus sentimentos destrutivos e teme que esse triunfo se volte contra ele. Seus sentimentos paradoxais, triunfo, ciúmes, ódio, pesar, luto, alimentavam o sofrimento do qual Suwa padeceu em todo esse processo. Por outro lado, pode-se perceber o arrefecimento do sentimento de triunfo, conforme o desejo de Suwa de salvar Kakeru vai se tornando mais consistente. Suwa escreve suas cartas e pensa em como seria bom ter um futuro com Naho no qual Kakeru estivesse junto deles. É claro que isto não atenua completamente o sentimento de culpa, pois, em última instância, Suwa sentia satisfação por estar vivo e um tanto quanto responsável pelo amigo ter falecido (Klein, 1991/1957, 1996b/1940).

No dia da morte de Kakeru, é possível que Suwa e os demais tenham negado a possibilidade de que o alegado acidente podia ter sido, na verdade, um suicídio. Como se observa em inúmeros casos da vida real, é muito difícil para as pessoas do círculo pessoal do indivíduo que morreu cogitar a possibilidade de que ele poderia ter atentado contra a própria vida, porque isso implicaria pensar que as pessoas próximas poderiam ter feito algo para impedir esse desfecho. Assim, ao menos em um primeiro momento, a negação pode ter uma função protetiva, na medida que auxilia o ego a lidar com o evento devastador até que ele possa adquirir defesas mais amadurecidas, que lhe permitam reorganizar-se internamente frente às situações que o ameaçam. Assim, é possível ter uma visão compreensiva do que significa não ter condições de suportar a realidade – isto é, a revelação de que aquilo que precipitou o óbito da pessoa amada nada teve de acidental, mas foi resultado de uma ação deliberada de autoaniquilamento.

Seguindo a lógica narrativa, foram necessários 10 anos para que os amigos pudessem se reunir novamente e terem disponibilidade de conversar sobre aquele fatídico dia com a avó do adolescente, que lhe confirmou que Kakeru havia de fato se suicidado. Como Suwa indaga diretamente se havia sido um acidente ou não, pode-se pensar que, de forma pré-consciente, ele já tinha alguma noção da resposta, necessitando apenas de sua confirmação, com os cuidados necessários para não expor o amigo do morto e manchar sua memória. Seguindo essa linha de raciocínio, é possível conjecturar que só naquele momento Suwa se sentiu preparado para lidar com essa questão delicada (Klein, 1996b/1940). Suwa e Kakeru tinham uma relação muito próxima e compartilharam um período importante para o desenvolvimento de ambos (a adolescência e o período escolar), o que provavelmente "justifica" o longo hiato de uma década, que se mostrou necessário para que Suwa pudesse entrar em contato com seus sentimentos penosos decorrentes do luto pela perda do amigo (Eizirik et al., 2015).

Articulando esses eventos com a teoria das relações objetais, pode-se pensar que, no início do processo de enlutamento, Suwa sentia que todos os seus objetos bons foram perdidos e que os objetos maus expandiram-se e se tornaram dominantes. Ele pode ter assumido a convicção de que haviam restado apenas sentimentos de pesar em seu mundo interno; de fato, Suwa se considerava uma pessoa horrível, sentia que tinha roubado o futuro do amigo, a quem ele teria "usado" para conquistar Naho, e que teria tirado proveito dos momentos difíceis que ela passou, entre outras fantasias auto-recriminatórias. Essa configuração psíquica coloca o mundo interno de Suwa em perigo e na iminência de um colapso, especialmente na ausência de uma rede de apoio consistente e sem contar com ajuda especializada.

Nesse momento do processo de luto, Suwa acredita que, mesmo tento reincorporado em alguma medida a pessoa que perdera e seus objetos bons, todos eles são destruídos com a morte de Kakeru, o que reforça seus sentimentos de persecutoriedade. Por outro lado, com o início do movimento de reparação, desencadeado pelo ato de escrever as cartas para seu "eu do passado", acreditando que elas pudessem chegar ao destinatário correto, ele pôde acreditar novamente na sua própria bondade e na benevolência dos outros, o que lhe permite confiar que seus objetos haviam sido restaurados. Com essa transformação, esses objetivos já não são mais ameaçadores, o que é possível graças ao fortalecimento do teste de realidade, que possibilita alcançar um controle adequado sobre os perseguidores internos. Na cena final, quando Suwa chora, ao sonhar com Kakeru vivo e feliz, parece que de fato ele conseguiu transformar seus sentimentos e objetos maus, o que resulta em alívio e aumento da auto-satisfação. Nesse momento, ele não só passa a desfrutar de maior liberdade de sentimentos em seu mundo interior, como também estão mais vívidos e livres seus objetos internos (Klein, 1996a/1935, 1996b/1940).

Além disso, é provável que o fato de ter preservado o contato com seus amigos ajudou Suwa a robustecer seu teste de realidade e a recriar os elos com o mundo externo, como efeito dos movimentos reparatórios. Ao ouvi-los afirmarem a convicção de que o que Suwa pensava de si mesmo não era condizente com o que eles pensavam a seu respeito – Naho inclusive ratificando que de qualquer modo teria se casado com ele, mesmo que Kakeru estivesse vivo – Suwa pôde adquirir mais confiança nos objetos e pessoas reais e na eficácia do apoio recebido. Estabelecer ou restaurar esses múltiplos vínculos de confiança é uma operação que auxilia no relaxamento do controle maníaco exercido sobre os objetos internalizados. Assim, tanto a introjeção como a projeção podem agir com mais liberdade e espontaneidade, sendo possível estar mais receptivo para receber o amor e a bondade do mundo externo e a senti-los com mais intensidade no mundo interno (Klein, 1996b/1940).

Ao escrever as cartas, Suwa pôde sentir um certo alívio por se perceber fazendo algo para mudar o destino de Kakeru, o que renovou sua esperança de que isso poderia de fato acontecer. Dessa forma, uma centelha de vida pôde renascer tanto dentro dele como no mundo exterior. Além disso, quando Suwa sonha com Kakeru em um futuro no qual ele se sente feliz, seu sentimento de conforto e aceitação da perda de uma pessoa querida provavelmente ficaram melhor estabelecidos em seu mundo interno e lhe renderam maior segurança. Suwa adquire uma crença maior nas suas tendências construtivas dentro de sua realidade psíquica (existe uma possibilidade de salvar o amigo e Suwa se esforça o máximo que pode para isto; no sonho Kakeru agradece pelas cartas, como se de fato elas tivessem chegado aonde deveriam). Há um fortalecimento na capacidade de controlar os objetos maus internalizados e Suwa pode se permitir recriar o vínculo e sonhar com o amigo Kakeru, que no cenário onírico mostra estar feliz. Seu ego se fortalece com a reanimação da criatividade antes inibida ou represada, o que redunda no desenvolvimento de recursos que revigoram a confiança nas pessoas, nos objetos internos e nas relações entre eles. Naho sonha o mesmo sonho que Suwa, o que mostra a ressonância e reciprocidade no movimento em direção a maior integração psíquica. Naho sente-se feliz por ter constituído um patrimônio psíquico que é sua família com Suwa. Os objetos internos que se encontravam avariados são recuperados e regenerados. O mundo interno é revitalizado. Tudo aparentemente caminha para a unificação das imagos até que se possa consolidar um processo geral de integração (Klein, 1996b/1940).

 

Considerações finais

É relevante ressaltar que a análise desenvolvida neste estudo está relacionada com a visão que os autores têm da obra e do referencial teórico-conceitual utilizado. Não se busca identificar exatamente aquilo que a escritora ou os produtores do filme buscaram transmitir. Não se pode perder de vista que o personagem foi retirado de um filme de animação produzido no Japão. Ainda que pertença a uma dimensão ficcional, esse contexto material e simbólico configura a subjetividade do protagonista, constituída dentro de um contexto específico e com peculiaridades que a distinguem do pensamento ocidental.

Em relação ao processo de luto, Suwa precisou de um tempo que, à primeira vista, pode parecer longo demais até ter condições de retomar uma história interrompida no passado. Na verdade, foi o tempo necessário para se preparar para poder elaborar o luto pela perda de um amigo próximo. Com o apoio da esposa e dos amigos, a aceitação da perda pôde se estabelecer no mundo interno de Suwa. Cada indivíduo tem um tempo próprio para lidar com as feridas psíquicas produzidas por suas perdas significativas. "Ter demorado" para entrar em contato com os sentimentos dolorosos, como se viu, não é indicativo de alguma disfunção ou organização psicopatológica. Apesar de o foco do estudo convergir para a compreensão do mundo interno de Suwa, o filme mostra os demais personagens lidando com suas perdas de diferentes perspectivas e possibilidades, o que evidencia como cada sujeito lida de maneira única e particular com seu processo de luto.

Este estudo contribui para articular a problemática da sobrevivência do suicídio com o pensamento teórico de Melanie Klein, mais particularmente, o papel do luto na constituição psíquica. Poder relacionar essa concepção com o drama encenado em uma obra de ficção permitiu visualizar os elementos em jogo no processo do luto. O filme mostra como um luto, por mais desafiador que seja e que envolve uma questão particular, o suicídio, pode ser elaborado e alcançar um desfecho favorável sob determinadas condições facilitadoras. O estudo contribui para uma apreensão de aspectos da teoria psicanalítica para além das fronteiras da clínica, o que permite pensar nas potencialidades da expansão do olhar psicanalítico para outros contextos de atuação. Considerando que todos enfrentam perdas significativas no decorrer de suas vidas, novos estudos sobre o tema investigado podem auxiliar os profissionais a atuarem de forma mais sensível diante de questões existenciais suscitadas pelo contato com a finitude, implementando intervenções de posvenção para atenuar os impactos da perda por suicídio.

 

Agradecimentos

Os autores agradecem o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) (Código de Financiamento: 88887.600242/2021-00), por meio de Bolsa de Doutorado concedido à primeira autora, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, por meio de bolsas de produtividade em pesquisa concedidas ao terceiro, quarto e último autores.

 

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Submissão em: 04/09/2021
Aceite em: 01/04/2022

 

 

1 Psicóloga, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - FFCLRP-USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil.
2 Psicóloga, Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - FFCLRP-USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil.
3 Psicólogo, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUC-Campinas, Campinas, SP, Brasil.
4 Psicólogo, Professor Associado, Instituto de Psicologia e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia - UFU, Uberlândia, MG, Brasil.
5 Psicólogo, mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - FFCLRP-USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil.
6 Psicólogo, Professor Titular, Departamento de Psicologia e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - FFCLRP-USP, Ribeirão Preto, SP, Brasil.

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