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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.1  Rio de Janeiro mar. 2004

 

Divulgação Científica

 

Homem e natureza: cognição e vida como elos indissociáveis

 

Man and nature: cognition and life as associated links

 

 

Marli B. M. de Albuquerque Navarro

Núcleo de Biossegurança, FIOCRUZ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

 

 


Resumo

A formulação do conhecimento parcelado, compartimentado, monodisciplinar, geralmente conduz a percepções enclausuradas no objetivo da objetividade específica para compreensão dos fenômenos que estão no âmbito da complexidade, como são os da natureza e os da sociedade. A noção de sistema se apresenta como elemento crítico à concepção que dominou a história da ciência, segundo a qual, o conhecimento das partes ou dos elementos de base de cada fenômeno, era suficiente para a compreensão dos contextos geradores dos processos vitais. © Ciências & Cognição 2004; Vol. 01: 29-33.

Palavras-chave: cognição e contextos vitais; construção do conhecimento; teoria sistêmica; filosofia.


Abstract

The formation of segmented knowledge, held within compartments and limited to a single discipline, usually leads to closed perceptions on specific objectivity aimimg at the understanding of phenomena placed within the scope of complexity, as are those of nature and society. The meaning of system presents itself as a critical element to the concept that has majored throughout history of science, according to which knowledge of parts or basic elements from each phenomenon should be enough to understand the building context of vital processes. © Ciências & Cognição 2004; Vol. 01: 29-33.

Keywords: cognition and vital contexts; knowledge building; systemic theory, philosophy.


 

 

A teoria crítica do conhecimento da Biologia processou uma nova contribuição a partir dos anos oitenta, quando dois biólogos chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela, introduzem nos estudos das Ciências Biológicas a noção de autopoiesis. Estes cientistas estavam voltados para revelar proximidades e elos mais nítidos entre os princípios da ciência moderna e a filosofia, retomando uma questão histórica e basilar da ciência e da filosofia, centrada na definição da função e dinâmica da natureza, retomando a questão fundamental do homem, ou seja: o que é vida?

Utilizando-se dos conhecimentos adquiridos através de pesquisas neurofisiológicas, os biólogos formularam que um sistema vivo apresenta no seu circuito interno uma interação fechada de seus elementos constituintes, possibilitando sua auto-organização e a auto-produção dos mesmos elementos que constituem este sistema. Estas dinâmicas produzem a autonomia do sistema, sem que haja inter-relações diretas com os demais sistemas. Esta particularidade do sistema representa uma diferenciação, alcançando a idéia de identidade/não identidade que estabelece os limites entre sistema e seu ambiente, ou seja, a especificidade daquilo que está fora e a peculiaridade daquilo que está dentro do sistema.

"Organismo e meio desencadeiam mutuamente mudanças estruturais sob as quais permanecem reciprocamente congruentes, de modo que cada um flui no encontro do outro seguindo as dimensões em que conservam sua organização e adaptação, caso contrário, o organismo morre. Finalmente, isso ocorre espontaneamente, sem nenhum esforço dos participantes, como resultado do determinismo estrutural na dinâmica sistêmica que se constitui no encontro organismo-meio. Em conseqüência disto, enquanto estou vivo e até que eu morra, vivo em interações recorrentes com o meio, sob condições nas quais o meio e eu mudamos de maneira congruente. (...) Organismo e meio vão mudando juntos de maneira congruente ao longo da vida do organismo". (Maturana, 2001:62)

O sistema interage com o ambiente, criando, estabelecendo e mantendo um processo de acoplamento, operando "decodificação" das informações vindas do ambiente, efetuadas mediante a utilização de suas próprias interações internas, circularmente organizadas em resposta as mensagens externas, sendo, no entanto, operacionalmente fechado.

É certo que os sistemas naturais podem evoluir com sucesso a níveis sempre mais elevados da complexidade, através da combinação e recombinação dos recursos que existem dentro do sistema que são por sua vez integrantes essenciais dos processos vitais e condição fundamental da renovação da vida.

Historicamente, cientistas envolvidos nas pesquisas que investigam as propriedades fundamentais e essenciais para produção da vida, inspirados na auto-organização expressaram esta propriedade como sendo a "força da vida", ou a "pressão da vida", afirmando que a "complicação, tanto quanto a organização, abaixo de certo nível mínimo, é degenerativa e acima deste nível pode tornar-se auto-suficiente". Segundo o biólogo J. D. Bernal, a "própria circulação biótica, o acoplamento dos processos metabólicos e de decomposição estão na origem da vida ou, como diz Kamshilov em sua fórmula paradoxal: A vida vem a ser antes da existência dos organismos vivos"1.

Todo sistema natural bem sucedido possui, preserva e maximiza todas as propriedades e potencialidades de si mesmo, como elementos essenciais requeridos para autopoiesis. Assim, todo e qualquer sistema possui como propriedade fundamental à complexidade, pois, as etapas do processo evolucionário, exigiram do sistema sua capacidade de controlar e expandir sua continuidade a partir das complexidades que lhe são internas.

Para construir nossa reflexão sobre o tema, elegemos a proposta teórica baseada no pensamento complexo, desenvolvida por Edgar Morin, e é ele que nos coloca que a noção de sistema, ou ainda de organização permite conectar e religar partes de um todo, contribuindo para valorização da solidariedade entre os saberes, diminuindo a importância do conhecimento fragmentado (Morin, 1990).

Em termos da escolha dos caminhos para se compreender a dinâmica e o processamento da vida, algumas análises críticas dirigidas ao paradigma da fragmentação acentuam que a natureza não é somente um conjunto de corpos, não é tampouco somente um conjunto de fenômenos provocados pelas relações previsíveis de causa e efeito. Não é tampouco o espaço natural dotado de potencial econômico que expressa características de um determinado território.

A formulação do conhecimento parcelado, compartimentado, monodisciplinar, geralmente conduz a percepções enclausuradas no objetivo da objetividade específica para compreensão dos fenômenos que estão no âmbito da complexidade, como são os da natureza e os da sociedade. Quando elegemos a prevalência de uma disciplina, enquadrando-a como uma delimitadora de fronteiras do conhecimento que desejamos formular, estamos mais perto da objetividade imediata, mas estamos também nos distanciando da compreensão de contextos, das dimensões sistêmicas, perdendo oportunidades de interpretar informações e renovar saberes que poderão ampliar os campos de ações e da aplicabilidade solidária das ciências e de outros saberes.

A noção de sistema se apresenta como elemento crítico à concepção que dominou a história da ciência, segundo a qual, o conhecimento das partes ou dos elementos de base de cada fenômeno, era suficiente para a compreensão dos contextos que o induzia, incorporando aos métodos, estratégias operacionais que usavam como artifício o recurso da colagem, como que juntando peças de um mosaico, realçando como centro do mosaico a contribuição das disciplinas consideradas mais envolvidas na elucidação dos objetos investigados e colocando outras como coadjuvantes, visando estabelecer valores distintos e hierárquicos para cada disciplina, julgando que somente, no caso das investigações construídas pelas ciências da vida, somente a aplicação da objetividade imediata sobre o objeto, seria capaz de elucidar os fenômenos naturais, retirando a importância das reciprocidades existentes nos contextos vitais onde se inclui ativamente a participação da ação humana no processamento da dinâmica do mundo natural. Lembremos que na propsição da construção da ciência moderna o homem está fora da natureza e a natureza está fora do homem, estando ambos, homem e natureza fragmentados nos processos cognitivos de interpretação e representação dos fenômenos do mundo.

A título de organização dos estudos, podemos admitir que partimos de uma noção mais geral, mais global do objeto, entendendo este primeiro investimento como provisório, para então buscar refinamentos necessários do conhecimento que estamos absorvendo ou construindo, através do acesso as informações ou dados mais precisos, sem perder a perspectiva que favorece o surgimento dos elos transdisciplinares, pois as investigações sobre a dinâmica da vida entendida como processos de sínteses e ressintetizações, requer igualmente a sintetização e ressintetização dos saberes que pretendem agir como instrumentos de produção de novos conhecimentos.

Ainda usando a referência de Edgar Morin, pensemos na sociedade. Ela é produto de interações entre indivíduos, mais em termos globais, observamos que dela emergem novas qualidades, novas características que, retroagem sobre os indivíduos, ou seja, os indivíduos produzem sociedade que por sua vez, produz indivíduos. Somos, enquanto seres sociais e naturais produtos e produtores, o que favorece a construção da noção de auto-produção e de auto-organização, noção chave para compreender os fenômenos ligados a produção da vida, ancorada não só no fundamento da autonomia, mas também nos processos ininterruptos de reorganização, de regeneração, de cooperação e de interação.

A perspectiva da complexidade nos traz também um certo alento frente a nossa visão ocidental da morte como fim. Se elergermos a complexidade como percepção de nossa própria existência, constatamos que vivemos de morte e morremos de vida. Para Morin (2002:299):

"Aqui, chegamos ao cerne do paradoxo (...). O êxito da vida depende de sua própria mortalidade. Desordem, ruído, erro são mortais em diferentes aspectos, graus e termos para o ser vivo: mas também são parte integrante de sua auto-organização não degenerativa e são elementos fundantes de seus desenvolvimentos generativos.

O nó da complexidade biológica é o nó górdio entre destruição interna permanente e autopoese, entre o vital e o mortal. Enquanto a "solução" simples da máquina é retardar o curso fatal da entropia pela alta confiabilidade de seus constituintes, a "solução" complexa do ser vivo é acentuar e ampliar a desordem, para dela extrair a renovação de sua ordem. A geratividade funciona com a desordem, tolerando-a, servindo-se dela e combatendo-a, em relação antagônica, concorrente e complementar.

A reorganização permanente e a autopoese constituem categorias aplicáveis a toda ordem biológica e, a fortiori, à ordem sociológica humana".

Em termos da escolha dos caminhos para se compreender a dinâmica e o processamento da vida, algumas análises críticas dirigidas ao paradigma da fragmentação acentuam que a natureza não é somente um conjunto de corpos, não é tampouco somente um conjunto de fenômenos provocados pelas relações previsíveis de causa e efeito. Não é tampouco o espaço natural dotado de potencial econômico que expressa características de um determinado território. A natureza não está segmentada em fronteiras rígidas onde campos de conhecimentos distintos atuam para construir compreensões apenas de suas funções. A dinâmica da natureza se processa em transformações, oferecendo constantemente novas sínteses, produzindo ressintetizações e recambiações, cuja compreensão, exige à concorrência de estudos interligados de vários campos de conhecimento, não excluindo os saberes produzidos pelas ciências humanas, uma vez que, todas as dimensões das atividades humanas, integram e interferem de maneira importante nos processos transformadores da vida.

Não podemos separar, por exemplo, os sistemas que processam a vida das ações devastadoras sobre a natureza realizada com a concorrência dos interesses humanos. A ação humana jamais produzirá a extinção dos processos naturais, pois considerando a complexidade dos sistemas, a natureza sempre processará sua auto-produção, mantendo os elos necessários com o ambiente, que no caso do fenômeno das doenças emergentes, ressurgentes, negligenciadas e permenecentes, nos induz a reflexão sobre a capacidade da complexidade dos sistemas, que para manter sua vitalidade, processa seu fortalecimento, sua defesa, ou aquilo que consideramos resistência, realizando transformações, superando limites internos através da auto-produção, como também trocando com o que lhe é externo, ou seja, o ambiente, processando novas influências recíprocas entre interior e exterior aos sistemas, realizando intercâmbiando de informações, estabelecendo novas inter-relações, novas interações, novas latências, novas manifestações, novas potencialidades, novas propriedades.

A partir desse referencial reflexivo podemos enfocar o fenômeno das doenças emergentes e reemergentes, enfatizando grandes temas ligados à questão ambiental, abordando eixos importantes, tais como: contexto delineador da construção do paradigma ecológico, a degradação ambiental brasileira a partir da história da apropriação territorial como marcador da estruturação dos projetos de soberania do Estado e o negligenciamento das necessidades humanas essenciais, como parte constitutiva do ambiente, natural e social, o que implica diretamente sobre as bases do direito dos homens e seu status de cidadão. A análise desses fatores poderá nos possibilitar também a compreensão das doenças emergentes e reemergentes, incluídas nos contextos que podem apontar direcionamentos capazes de ampliar percepções sobre estas doenças e favorecer a afirmação de outros conceitos, como por exemplo, de doenças negligenciadas ou doenças permanecentes.

 

Referências Bibliográficas

Maturana, H. (2001). Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Belo Horizonte, Editora UFMG.         [ Links ]

Maturana, H. e Varela, F. (1980). Autopoiesis and cognition; the organization of the living. Boston: Reidel.         [ Links ]

Moraes, A. C. R. (2000). Meio Ambiente e Ciências Humanas. Editora HUCITEC, São Paulo.         [ Links ]

Moreira, R. (1993). O círculo e a Espiral. A crise paradigmática do mundo moderno.         [ Links ]

Morin, E. (1990) Introduction à la pensée complexe. Paris: EST Éditeurs.         [ Links ]

Morin, E. (2000). A cabeça bem-feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil        [ Links ]

Morin, E. (2002). Ciência com Consciência. 6a edição Rio de Janeiro, Bertrand.         [ Links ]

Sfez, L. (1996). A Saúde Perfeita - Crítica de Uma Nova Utopia. São Paulo: Loyola e Unimarco.         [ Links ]

 

 

Notas

M. B. de A. Navarro
Endereço para contato: Fundação Oswaldo Cruz, Núcleo de Biosegurança. Av. Brasil, 4036, Salas 715/16, Manguinhos, Rio de Janeiro, RJ 21.040-361, Brasil.
Telefone/Fax: +55 (21) 2590-5988.
E-mail para correspondência: mnavarro@fiocruz.br.

(1) Citado por Sfez, L. (1996). A Saúde Perfeita - Crítica de Uma Nova Utopia. São Paulo: Loyola e Unimarco, p. 207.