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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.2  Rio de Janeiro jul. 2004

 

Artigo Científico

 

 

A reconfiguração do gesto de leitura e leitor nos textos narrativos mediados pela tecnologia dos jogos eletrônicos

 

The reading and the readers reconfiguration on the narratives texts mediate by the videogames technologies.

 

 

Gláucio Aranha

Núcleo de Estudos Humanísticos Transdisciplinares, ICC, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil

 

 


Resumo

Os Jogos Eletrônicos (videogames) contribuem para o surgimento de um novo modelo narrativo através da reconfiguração dos hábitos de leitura, bem como das funções e práticas do próprio leitor. Pela mediação da tecnologia computacional, o leitor passa a atuar diretamente sobre o texto, alterando sua percepção dos fatos narrados e sua própria função como leitor. Neste trabalho é feita uma análise de tal fenômeno comunicacional, estudando-se o jogo de RPG eletrônico Diablo II. © Ciências & Cognição 2004; Vol. 02: 11-35.

Palavras-chaves: comunicação; novas tecnologias; leitor; jogos eletrônicos; literatura; narrativa.


Abstract

The videogames contribute to the growth of new narrative models through the reconfiguration of the reading habits, as well as the functions and practices of the readers. The readers can act directly on the text by the computers technologies, changing their own perception about facts and function as Readers. In this work this communicational phenomenon is analyzing by the study of the Diablo II electronic RPG game. © Ciências & Cognição 2004; Vol. 02: 11-35.

Keywords: communication; new technologies; reader; videogames; literature; narrative.


 

 

Introdução

Desde 1945, os Jogos Eletrônicos vêm se estabelecendo em passo acelerado como prática social, firmando-se dentro da Indústria Cultural como um dos segmentos com maior desempenho e disseminação (Dizard Jr., 2000). Tal fato, não podendo passar alheio ao campo acadêmico, tem dispertado um crescente interesse por tais objetos (Aarseth, 1997; Albuquerque & Sá, 2000; Antunes, 2000; Aranha, 2002; Myers, 1991; Murray, 1997, Naisbitt, J. e cols., 1999). Interessa, neste momento, analisar a questão do papel do leitor nestas narrativas. Assumindo o pensamento McLuhaniano (McLuhan,1995) no sentido de que toda tecnologia importa em uma afetação sobre o usuário desta, levanto, como questão central do presente artigo, a necessidade de se perceber o tipo de afetação sob a qual estaria sujeito o usuário dos jogos eletrônicos, adotando como recorte o papel deste como leitor de uma obra narrativa.

 

Materiais e Métodos

Para o desenvolvimento da pretensão acima exposta, deparei-me com duas questões essenciais para a validade da hipótese trabalhada, a saber: 1) a consideração de que o usuário dos jogos eletrônicos trava conhecimento com um objeto narrativo e 2) que, nesta relação, o usuário daria conta de um desempenho de recepção equivalente ao de um leitor, oriundo da reconfiguração deste por meio do advento da tecnologia dos jogos.

Tendo em vista que a hipótese proposta se fixa em dois pontos primordiais, quais sejam: (i) a existência de uma estrutura narrativa nos Jogos Eletrônicos, (ii) cuja mediação tecnológica rompe com os modelos antecessores, estabelecendo uma nova forma de acesso do usuário à mensagem, cumpre desenvolver a presente análise, em caráter preliminar, nestes dois sentidos para que seja possível, com maior rigor científico, delimitar a existência ou não da reconfiguração suscitada. Assim, enfocarei em um primeiro momento os elementos que permitem assumir os Jogos Eletrônicos como narrativa. Obviamente, estou me referindo aos objetos cujo desenvolvimento importam em uma ação passada dentro de um cenário ficcional - como ocorre mais correntemente nas modalidades RPG, aventura, ação, etc. -, excluindo jogos cuja ação do usuário é de somenos importância, tais como paciência, tiro ao alvo, dentre outros.

Para tanto, lanço mão da análise estrutural de narrativas. Conforme salienta Valency (1997:183), esta é uma técnica que permite decompor uma obra até suas partes constitutivas, identificando assim a existência ou não dos requisitos essenciais para que dado objeto possa ser entendido como uma narrativa. Para a constituição da base estrutural da narrativa, recorro ainda ao pensamento de Garcia (1986:247), que propõe como elementos estruturais os seguintes requisitos: (1) Personagens, (2) Enredo (que compreende a exposição de um ou mais conflitos e a complicação [desenvolvimento] destes, atingindo um clímax que desencadeará um dado desfecho), (3) Espaço (cenário, ambiente, situação), (4) Tema (conflito principal), (5) Tempo e, por fim, (6) o Foco Narrativo.

A este conjunto teórico, somo o conceito aristotélico de Trama (Aristóteles, 2000), entendendo-o cabível à estrutura do que é contado através dos Jogos Eletrônicos. Este posicionamento avança contra o pensamento de Landow (1995:131) que professa a inaplicabilidade daquele autor às composições hipertextuais. Cumpre lembrar que para Landow o termo hipertexto é concebido como uma ampla categoria que englobaria todas as textualidades realizadas no computador, o que, por conseqüência, abrangeria também os Jogos Eletrônicos. A premissa a partir da qual Landow sustenta sua posição diz respeito a uma compreensão de que os textos eletrônicos não possuiriam um "início", nem tampouco um "fim". Como será visto a seguir, esta representação, no tocante aos Jogos Eletrônicos, cai por terra à luz da análise estrutural dos mesmos que autoriza, por sua vez, a retomada da trama aristotélica.

Após vencer esta etapa, passarei a tratar dos aspectos que levam os Jogos Eletrônicos a se diferenciarem de outros modelos narrativos, tomando por base os argumentos desenvolvidos Murray (1997) e Aarseth (1997).

A seguir, detalharei o software utilizado como objeto de análise, a justificativa para a escolha do mesmo e o detalhamento da metodologia empregue, a qual embasa as conclusões ao fim expostas.

 

Dos materiais

O material utilizado para a presente análise consistiu em uma cópia original do software Diablo II(Blizzard Entertainment, 2000), produzido por Bill Roper, distribuído no Brasil pela empresa PC@Home do Brasil (CNPJ 03.057.264/0001-70), produto registrado sob o Código PCHBR402, UPC 789-819565-0031, do ano de 2000, licenciado pela empresa Blizzard Entertainment. O jogo se realiza ao longo de, no mínimo, cinqüenta horas de duração.

Para sua execução foi utilizado um PC com processador GenuineIntel x86 Family 6 Model 8 Stepping 3, 256 RAM, sistema operacional Windows 98, DVD-ROM LG DRD8120B 56x, PCI Áudio Device C-Media, Modem HSP56 Micromodem, Monitor Samsung SyncMaster 550v e aceleração de vídeo 3D SIS 630.

A escolha foi orientada pela larga penetração deste jogo que, já no mês de seu lançamento (agosto de 2000), vendeu - só nos Estados Unidos - mais de três milhões de cópias, ultrapassando o valor de 50 milhões de dólares, o que o coloca como um marco entre os seus pares (Berenson, 2000) e um fenômeno de cultura de massa. Foi desenvolvido para ser executado em plataforma PC com CD-ROM. Sua produção durou mais de dois anos e deu continuidade ao episódio relatado no jogo Diablo, de 1997. Portanto, a escolha deste objeto se deu considerando elementos quantitativos e qualitativos.

No sistema de classificação de Jogos Eletrônicos, Diablo II está categorizado sob a rubrica RPG (Role-playing game), sendo aconselhado para usuários acima de 17 anos, pela Entertainment Software Rating Board. O conjunto do suporte é formado por três mídias em CD-ROM (Install Disc, Play Disc, Cinematics Disk), contendo ainda um manual. Além destes, complementam-no, facultativamente, patches de atualização, textos complementares (e-books, manuais digitalizados, livros, homepages, dentre outros) que descrevem o "mundo de Diablo", expansões e o servidor de rede Battle.net (pertencente à própria desenvolvedora).

Os patches são conjuntos de programas que atualizam o software, acrescentando ao mesmo desde arquivos que corrigem bugs (defeitos) verificados depois do lançamento até o acréscimo de novos elementos à história, tais como: novos equipamentos (que são usados pelos personagens) e diferentes concepções para a criação randômica de labirintos.

Os textos complementares congregam páginas descritivas dos aspectos particulares da narrativa, como relatos de personagens, mapas do mundo de Santuarium, textos que representariam mensagens entre os personagens secundários, dentre outros. Os textos complementares podem ser produzidos diretamente pela softhouse ou por freelancers (geralmente jogadores). Embora haja pela Internet numeroso conteúdo paralelo a grande maioria não é oficial. Alguns poucos foram adotados pela empresa como elementos oficiais do jogo, dentre os quais se destacam: os e-books Demonsbane1, escrito por Robert B. Marks, e Diablo: The Black Road2, de Mel Odom.

As expansões são conjuntos de arquivos que uma vez instalados sobre o software original acrescentam a este novas configurações que permitem ao jogador imergir em novas histórias, valendo-se do mesmo personagem (avatar)3. Assim como os patches, as expansões ampliam os recursos do jogo, entretanto isto se faz não somente pela inclusão de elementos estruturais (atualizações de base), como solução de problemas e novas possibilidades de recursos, mas pelo desenvolvimento de um novo conceito de história, a qual vem propor uma nova aventura imersiva e exploratória ao usuário. As expansões não chegam a ser consideradas como um novo jogo, uma vez que fazem uso do mesmo software e dos mesmos conjuntos históricos, registro de fatos e eventos, somando elementos à aventura da versão original e não substituindo esta. Elas estariam bem mais próximas da idéia de continuação de um livro em mais volumes.

Por fim, chegamos ao servidor Battle.net como último complemento do jogo Diablo II. Além deste representar um modo de execução do jogo (sistema multi-player), o servidor acrescenta às possibilidades de realização, as seguintes práticas: conversação entre jogadores através de canais de Chat (semelhantes aos IRCs), bem como através de caixas textos durante a execução do jogo, redimensionando a função comunicativa deste. Assim, os jogadores, por meio de seus avatares, estabelecem diálogos entre si; podendo trocar informações sobre o jogo ou formar alianças uns com os outros, somando esforços para atuarem juntos em um cenário ou em sessões com níveis de dificuldades maiores; lançar desafios de duelos; negociar equipamentos pertencentes aos avatares, dentre outros. Ultrapassadas estas considerações prévias atinentes ao objeto, passo à consideração dos métodos utilizados no tratamento deste material.

Dos métodos

Para a investigação de Diablo II, lancei mão do método de observação participante que se justifica na medida em que se fazia necessário perceber a evolução do jogo e, no caso do sistema multi-player, perceber como se dava a prática deste jogo em ambientes de uso coletivo. Assim, foram experimentados os gestos de leitura praticados pelo usuário, vivenciando os procedimentos realizados no dispositivo. Para tanto, realizei dois modos distintos de desempenho do jogo, a saber:

Sistema single-player

Este sistema representa uma modalidade de jogo na qual apenas um usuário atua sobre a máquina. O sistema de comunicação se estabelece entre o usuário e o software, sendo mediado pelo PC que atualiza a mensagem do jogo sobre a tela do monitor, valendo-se da interface gráfica como forma de expressão desta mensagem. Neste modo de uso, foram realizadas cinco execuções completas do jogo, utilizando em cada uma delas um dos arquétipos disponíveis para uso do jogador, bem como um login diferente para cada uma destas execuções (conforme tabela a seguir):

 

Arquétipo

Nome / login

Amazona

Rainha_Hipólita

Bárbaro

Gothbear

Necromântico

Lord_Hades

Paladino

Lord_Aracne

Feiticeira

Lady_Ulrick

 

O objetivo desta repetição foi identificar e registrar os padrões que se repetiam em todas as cinco sessões de jogos, eliminando aqueles elementos que variavam pela natureza de atualização randômica. Em face dos padrões verificados, foi possível isolar as características reincidentes mapeando assim as bases estruturais da narrativa expressa no jogo Diablo II.

Sistema multi-player

No tocante à investigação no modo multi-player, foi utilizado o servidor Battle.net, através da rede de computadores Internet. Neste modo de execução, entrei ao longo do período compreendido entre 2001 e 2002, por numerosas vezes, neste servidor, participando dos Chats e sessões de jogos coletivos, bem como criando canais próprios de realização de jogos.

 

Discussão

A partir deste ponto começo a tratar dos resultados obtidos com a observação do objeto acima descrito. De início, ponho foco na primeira parte da questão, qual seja, a verificação de que Jogos Eletrônicos, como Diablo II configuram objetos narrativos. Deste modo, parto, com base na metodologia proposta por Garcia (1986), para a análise estrutural da narrativa deste jogo.

Análise estrutural da narrativa no jogo Diablo II

Dos personagens

 

Figura 1

Figura 1 - Tela inicial para criação do personagem do jogador.

 

O primeiro aspecto a ser considerado quanto à análise dos personagens diz respeito à sua função dentro do conflito principal, a saber, funções de: protagonistas, antagonistas e personagens secundários. Todas estas funções estão presentes em Diablo II, todavia a função de "protagonista" passa por uma reconfiguração, a partir do momento em que se verifica a existência de dois níveis de personagens: Personagens Jogáveis (PJs) e Personagens Não-Jogadores (PNJs). Dentre estes, o protagonista será um PJ, fato que o redefinirá enquanto "personagem", visto que irá se mesclar ao leitor durante a realização da obra.

 

Protagonista

Instalado o software e definido o sistema em que será executado (single-player ou multi-player) é aberta uma tela no desktop (Figura 1). Este é o momento em que o usuário/leitor deverá escolher uma "máscara" através da qual será imerso no jogo.

São fornecidos ao usuário cinco arquétipos4, dentre os quais este deverá selecionar um, o qual desempenhará, simultaneamente, a função de representar virtualmente o usuário, bem como o protagonista da Trama. Estes arquétipos são: a Amazona, o Bárbaro, o Necromântico, o Paladino e a Feiticeira. Cada um destes implica em um conjunto diferente de características e habilidades que afetará as táticas e estratégias a serem usadas. Ao arquétipo escolhido, deve ser atribuído um nome5 - que funcionará também como login -, a partir do qual será elaborada pelo software, por procedimento randômico, a organização do cenário, onde o protagonista será inserido. Embora os cenários principais (cidades e o acampamento) sejam fixos, as regiões que os circundam são determinados de modo diferente para cada login. Esta concepção geral é associada ao login escolhido, o qual será armazenado no PC ou no servidor Battle.net, no caso de multi-player game, através de um arquivo ".sav". Este arquivo garantirá que a sessão do jogo possa ser interrompida e retomada, a qualquer momento, sem que se perca os eventos já acontecidos.

Conceber o protagonista como sendo o "personagem principal" importará, a princípio, admiti-lo antes de qualquer coisa como um "Personagem", o que conceitualmente o colocaria na ordem de um ente fictício responsável pelo desempenho do enredo e pertencente à história narrada (Aristóteles, 2000). Como parte integrante da história, ele só poderia ser considerado um "Personagem" à medida que estivesse inserido e ocupando uma função no espaço desta narrativa, indo além de um papel decorativo, de uma mera referência. Por exemplo, em Diablo II, quando Cain, na cidade de Lut Gholein, narra ao protagonista como o demônio Baal foi preso no túmulo do mago Tal Rasha; Cain é nitidamente um Personagem, estando inserido no espaço da história (diante do protagonista na cidade de Lut Gholein) e desempenhando uma função (contando a história), por outro lado Tal Rasha é apenas uma Referência, não se configurando como personagem.

O termo personagem evoca um sentido de personificação de um ser fictício, ou seja, o personagem possui um conjunto de traços que o determinam e um trajeto, ainda que psicológico, ao qual ele atende. Ao lermos uma obra (latu sensu), nós nos deparamos com uma série de personagens atuando, simulando determinadas práticas. Segundo Aristóteles (2000), estas ações realizadas pelos personagens são elementos constituintes do processo de fabulação, de narração. Estes personagens, por sua vez, seriam portadores de dois aspectos que os configurariam enquanto personagens, bem como as ações por eles praticadas: seu caráter e suas idéias. Entendendo como caráter "aquilo que nos leva a dizer que as personagens possuem tais ou quais qualidades" e por idéias "tudo o que os personagens dizem para manifestar seu pensamento" (Aristóteles, 2000:43). Através de suas ações, é possível atribuir um dado caráter aos personagens que pode flutuar, por exemplo, da insignificância até sua confusão com a própria narrativa, como ocorre no caso de Água Viva, de Clarice Lispector. Nesta obra, a onipresença da protagonista engloba a própria narrativa, visto ser a protagonista e sua essência o que se faz contar, através de um conflito entre ela e ela mesma. Obviamente, a percepção das idiossincrasias que configuram um dado personagem passará pela subjetividade do leitor que poderá atribuir livremente valores próprios. Cumpre ressaltar que não me ocupo aqui dos processos de interpretação, mas sim de uma instância técnica, estrutural na relação do usuário com o objeto lido. Sob este foco, não é possível ao leitor modificar o cerne de um personagem (suas idéias e caráter), em virtude de ser este um "ente fixo", um ser pertencente à história narrada e por ela regido. Ele somente existe enquanto vinculado àquela história. Se retirado, passa a ser outra coisa que não o personagem anteriormente constituído, pois se torna vazio dos aspectos autorais que o perpassavam, gerando o processo que Lima (1998) vai chamar de "movimento dessemiotizador", ao analisar este fenômeno na transposição dos personagens de Machado de Assis para a obra Memorial do Fim: a morte de Machado de Assis, de Haroldo Maranhão, onde registra que:

 

"O processo de dessemiotização pelo qual passaram essas personagens resulta numa nova condição, a condição de 'signo puro' (...)" (1998:143)

 

"Todo signo é um signo de: o Conselheiro Ayres é um signo da obra machadiana, mas em o 'Memorial do Fim' o signo Conselheiro enquanto integrante da realidade ficcional pós-moderna, anula o seu referente, assumindo dessa maneira a condição de signo do signo." (1998:144)

 

No caso do "personagem" controlado pelo jogador, contudo, temos uma representação que a priori não ocupa qualquer papel. Ocorre que ele - por si - é uma representação oca, cuja participação somente se realizará à medida que o usuário se "vestir" com ele.

Em uma narrativa produzida pela tecnologia da escrita impressa, por exemplo, temos no protagonista um ente em pleno estado de pertencimento à história e ao seu autor. Em Diablo II, entretanto, este estado não existe em relação àquele. Os PNJs pertencem plenamente à história, havendo um desempenho e uma função que lhes circunscrevem e definem, por exemplo, Greed, o mercador glutão e trapaceiro, e Akara, a líder espiritual reservada e precavida com estranhos. Ambos surgem no Ato I e participam das cenas que se desenrolam no acampamento Rogue, cada qual com um largo espectro de falas a serem articuladas, mas compreendidas em um conjunto finito pré-determinado pelo autor, assim como o desempenho dos seus respectivos papéis. Contudo, tal pertencimento ao autor não atinge o protagonista - controlado pelo usuário. Foi possível observar que o protagonista é reconfigurado nos Jogos Eletrônicos de narrativa, tratando-se, na verdade, de um conceito que não exatamente o de personagem. Foi verificado, sim, tratar-se de um efeito-função, entendendo como tal um efeito que se ocupa do desempenho da função de protagonista.

Deste modo, seria ele uma extensão do usuário, uma expressão deste que se traveste de "personagem", isto é, que se veste com os trajes de outrem ocultando sua natureza. É, assim, um efeito que se faz passar por "personagem", ocupando a função de protagonista, mas que de fato não se encontra em estado de pertencimento à narrativa, nem sob controle total do autor desta, como se dá com o conceito tradicional do que venha a ser um personagem. A verificação deste não-pertencimento fica ainda mais evidente a partir da possibilidade de ser criada uma expansão pirata, na qual pode o jogador se valer do mesmo "personagem" em um outro contexto, em uma outra história completamente desvinculada daquela em que ele surgiu, não se tratando de uma simulação, mas da transferência do mesmo "personagem" (em sua inteireza) a partir do remanejamento dos seus registros contidos no arquivo ".sav" guardado no PC.

Por esta razão, proponho o uso do termo Avatar para este efeito-função que se realiza nestes modelos de Jogos Eletrônicos, dando-lhe o mesmo tratamento de personagem, reconhecendo seu desempenho enquanto protagonista, mas estando sensível à reconfiguração por ele sofrida. O que se tem nos Jogos Eletrônicos, ocupando a função de protagonista, é um signo que representa o leitor daquilo que na tela se narra. Signo que uma vez transportado por seu detentor para uma expansão do jogo (oficial ou pirata) não irá ser dissemiotizado, pois continuará imbuído de sua significação, visto que esta apenas ao próprio leitor referencia.

Neste gênero, o elemento atualizado na tela e controlado pelo leitor não fala, não age, não existe, salvo pela ação deste. Fica portanto ainda mais patente o fato de que não se trata mais de um personagem, mas sim de uma extensão (projeção) do leitor dentro do ambiente simulado pelo software e atualizado pelo PC, pois apesar de propostos cinco arquétipos diferentes, no fundo é irrelevante - enquanto "personagem" - qual será o arquétipo escolhido, pois este por si não dará conta de configurar um ente ficcional, ele será sempre oco sem a intervenção (ou preenchimento) da vontade do jogador.

Cabe aqui, visando esclarecer ainda mais o proposto conceito de avatar, apropriarmo-nos do conceito de persona, desenvolvido por Jung (1976). Este autor, tematizando as formas de expressão do sujeito nas relações com o outro e as estratégias de mascaramento de sua natureza, afastou o conceito de personagem pelas implicações deste termo (acima expostas), privilegiando, em seu lugar, o conceito de persona que se referiria a uma construção expressiva equivalente ao sujeito que é ocultado, "um complexo funcional que passa a existir por razões de adaptação ou conveniência" (Jung, 1976:387). Não se trataria, portanto, de um ente fixo e apartado do sujeito, em relação ao qual este sujeito deve se adaptar como um ator se adapta a um personagem teatral, mas sim uma representação que, preenchida pelo sujeito, adapta este a determinada situação.

Embora eu esteja tratando de uma relação com o outro, na qual este "outro" é - em primeira instância - uma máquina e - em última, no caso do sistema multi-player - uma outra máscara, uma outra persona, um outro avatar que produz igualmente a ocultação de um outro sujeito, entendo perfeitamente aplicável a analogia proposta. Contudo, por uma medida de prudência metodológica, evitando potenciais confusões quanto à dimensão das relações psico-sociais em que são empregados o conceito de persona e as relações tecno-sociais estabelecidas através dos Jogos Eletrônicos, valho-me da nomenclatura avatar como equivalente do conceito de persona (utilizado pela psicologia analítica) ao tratar de relações de caráter tecno-sociais (jogos eletrônicos, chats, dentre outras).

A escolha da expressão Avatar (importada do campo religioso) para designar o protagonista das narrativas eletrônicas, como Diablo II, se justifica à medida que neste campo tal termo é entendido como a manifestação de uma Vontade Divina oriunda de um outro plano, como a atualização do Divino em uma dimensão que não a Sua. No caso dos jogos eletrônicos, aproprio-me dela no sentido de uma manifestação da vontade do jogador/leitor no plano do mundo virtual que lhe é proposto, visto ser este quem fala, quem age, quem está naquele espaço ocupado pelo protagonista. A partir do exposto, é possível concluir que uma diferença entre o personagem e o efeito-função do avatar está no fato de que, enquanto o personagem antecede o consumidor cultural (leitor, espectador, jogador, ouvinte, etc.), o avatar somente existirá em razão deste.

Passo agora para a breve descrição dos cinco arquétipos disponíveis para a criação do avatar e a concepção geral que deverá ser ocupada pelo jogador. Cumpre ressaltar, ainda, que estas descrições dão conta tão somente dos traços gerais do background do avatar, não sendo determinante do caráter ou das idéias que caracterizarão as ações desempenhadas por ele no desdobramento do enredo.

Todos os arquétipos dizem respeitos a heróis, ou seja, tratam de indivíduos com características superiores à de seu grupo, estando na condição de salvar este. Em nenhuma hipótese, há a figura do anti-herói, isto é, daquele que apesar de sua inferioridade ou de estar no mesmo patamar que qualquer outro acaba assumindo a condição de herói, ainda que sem competência para tal. Em Diablo, todos os heróis estão acima do "cidadão comum", sendo a seguir relacionados.

  • A amazona
  • Este arquétipo descreve um tipo de heroína treinada no uso de arco e flecha, bem como de armas de arremesso (dardo, lança, etc.). As habilidades deste arquétipo incluem, ainda, o uso de magias que: encantam suas armas; diminuem a capacidade ofensiva dos inimigos; e facilitam suas estratégias de evasão. Uma Amazona seria especialista em ataques à distância, sendo secundária sua habilidade em combate corpo a corpo. Seu atributo físico mais acentuado é a agilidade.

  • O bárbaro
  • O segundo arquétipo descreve um herói caracterizado por sua proficiência no combate corpo a corpo. Seria dotado de enorme força física, sendo superior, neste atributo, a todos os demais arquétipos. Desenvolve habilidades mágicas como urros que aterrorizariam os inimigos, pele mais resistente, fúria animal que aumentaria seu dano, dentre outros feitos. Suas habilidades, em geral, seriam voltadas para o combate, em especial os combates em curta distância.

  • O necromântico
  • Este arquétipo descreve um tipo de mago especializado em Necromancia (magia ligada à Morte e aos mortos). Através desta seria capaz de: reanimar cadáveres (criando mortos-vivos a seu serviço); evocar criaturas da dimensão dos mortos (espectros, etc.); lançar maldições; produzir venenos e poções; manipular energias espirituais para uso ofensivo em combate.

  • O paladino
  • Este arquétipo remete à primeira versão de Diablo. Naquela história o Rei Leoric teria entrado nos labirintos do Monastério de Tristram com seus cavaleiros, sendo que todos estes que o seguiram encontraram a morte. Os Paladinos, de Diablo II, seriam formados pelos poucos cavaleiros de Leoric que por uma razão qualquer não o acompanharam ao Monastério. Seria um cavaleiro devotado à sua fé, possuindo dons de cura e auras de proteção.

  • A feiticeira
  • É o último arquétipo e diz respeito a uma heroína cujas habilidades se concentram no uso de magia Pouco hábil no combate corpo a corpo, este arquétipo compensaria sua limitação através o uso de mágicas tanto ofensivamente, quanto defensivamente. Estas magias baseiam-se no uso dos elementos fogo, eletricidade e gelo. Sua estratégia de ação estaria sempre baseada em ataques a distância em razão de sua vulnerabilidade física.

    Por todo o exposto, tem-se quanto ao protagonista que se trata de um efeito-função do próprio leitor, não estando à mercê de ser esquadrinhado pelas categorias tradicionais de tratamento dos personagens. Fato que, já aqui, corrobora a hipótese levantada no sentido de que os Jogos Eletrônicos romperiam com os modelos narrativos tradicionais, reconfigurando o papel do leitor que passa a se confundir com o próprio protagonista ao se manifestar no corpo da narrativa. Por sua vez, o protagonista vai sendo transformado em um conceito mais fluídico, menos definido, que resulta da hibridação dos aspectos planos possuídos pelo avatar somados aos "contornos" do próprio leitor, para somente então se atualizar enquanto protagonista.

    Antagonistas

    Dando continuidade à análise estrutural dos personagens, passo a tratar dos antagonistas. Embora seja óbvia a oposição ocupada por Diablo em relação ao protagonista, destacam-se ainda dois outros antagonistas principais e numerosos secundários, a saber:

  • Antagonistas principais
  • Representam três criaturas ancestrais, cada qual sendo a personificação de um Mal Primordial. Aspectos estes representados nos títulos que acabaram recebendo: Diablo, o Lorde do Terror; Mephisto, o Lorde da Ira; e Baal, o Lorde da Destruição.

  • Antagonistas secundários
  • Estes não ocupam papel maior do que o de meros obstáculos ao protagonista e surgem randomicamente durante os quatro Atos da narrativa.

    Os antagonistas são, portanto, configurados como personagens planos, isto é, personagens caracterizados a partir de um número mínimo de atributos, que os identifica perante o leitor, mas que não se ocupam de aprofundá-los ou mesmo de definir seus contornos. Temos assim: a tríade correspondendo a aspectos negativos encarnados em três demônios e nada mais, enquanto os antagonistas secundários surgem tão somente como agentes do Mal.

    Personagens secundários

    Via de regra, tais personagens têm a função de auxiliar, em maior ou menor grau, o protagonista na realização de seu trajeto. Suas funções variam de fornecedores e captadores para a compra e venda de equipamentos até a enunciação dos conflitos secundários. Eles articulam falas e, em grande parte, são os principais elementos que movem a narrativa. Cada um deles possui comentários a tecer sobre a trama, quer colaborando com dicas sobre a geografia de Santuarium, quem narrando ao herói antigas lendas e fatos que enriquecem o background da história.

    Tais personagens se comunicam por um quadro que exibe o texto falado por eles, bem como por arquivos de som, os quais acrescentam aos diálogos entonações que permitem perceber o humor destes personagens. Deste modo, um comentário pode soar desdenhoso ou cômico, preocupado ou em pânico, pretensioso ou amigável. Contribuem para a compreensão destes personagens comentários de uns sobre os outros, por exemplo, um dos boatos (gossip) de Greed a respeito de Charsi informa que ela vem de uma família simples de camponeses, posteriormente ele dirá que o único problema dela é uma certa lerdeza de pensamento ("is a somewhat slow-witted"). Deste modo, as características de cada personagem vão se formando a partir da atividade ergódica desempenhada pelo leitor (Aarseth, 1997)6. Vê-se aqui, do ponto de vista comunicativo, que os personagens secundários não-antagonistas são a alma da narrativa, pois são suas representações que atuarão com o avatar preenchendo as lacunas do enredo e, assim, expondo os fatos. Estes atuarão ainda como narradores dos conflitos secundários multiplicando mais as vozes do foco narrativo.

    Os personagens secundários são assim configurados como personagens redondos, exibindo maior complexidade do que os personagens planos, apresentando uma variedade de características físicas, psicológicas, sociais, morais que lhes dão contorno, razão pela qual recebem a denominação: redondos.

    Do enredo

    Vencida a questão dos personagens, que ocupa também a primeira fase do procedimento de realização do jogo com a composição do protagonista, tem início a evolução do enredo. Retomando o conceito aristotélico, será possível perceber no desenvolvimento do enredo desta narrativa a propositura da questão central com uma Exposição. Nesta é expressa a situação inicial, o fato gerador do início do drama. A partir deste ponto terá início a fase de Desenvolvimento da ação, que crescerá rumo ao Clímax (chamado por Aristóteles de Peripécia). Por fim, a narrativa chega à fase de Desfecho (Solução, desenlace). Obviamente, esta não é a única matriz de análise de narrativas passível de ser utilizada, entretanto parece ser aquela que se mantém como arcabouço estrutural mestre, apesar das tentativas de inová-la.

    Labov e Waletzky (citado por Vieira e Sperb, 1998) entendem que, além destes aspectos estruturais da narrativa e a ordenação de seus elementos, seria necessário configurar a dimensão figuracional, iniciando-se a análise de uma narrativa a partir de uma Orientação que desse conta de definir o espaço, o tempo e os personagens, para então passar à Complicação através da qual se dará uma ação que promoverá alterações neste estado inicial. A narrativa, portanto, residiria no gesto de alteração de uma situação em outra por meio da Complicação, culminando em um Resultado que estabelece um novo estado. Esta representação, entretanto, não parece ultrapassar em nada o princípio aristotélico de que o enredo parte da exposição de um conflito que se complica sendo transformado por uma peripécia (clímax), chegando a uma resolução.

    Tzvetan Todorov (1970) propõe uma análise que não se satisfaça simplesmente com a descrição da obra, nem com sua interpretação quer em termos psicológicos, quer em termos sociológicos ou filosóficos. Privilegia o discurso literário em detrimento da obra, ou seja, uma análise sobre o modo com funciona o argumento discursado, em desfavor dos sentidos que desta emanam. Estruturalmente, reivindica um modelo segundo o qual a narrativa se inicia com um equilíbrio que é rompido ("perturbado") desencadeando um desequilíbrio que necessitará de uma ação em sentido contrário para que se restabeleça a ordem perdida, mas de onde o segundo equilíbrio nunca será idêntico ao primeiro (Todorov, 1971). Sua proposta é nitidamente influenciada pela poética aristotélica, o que por fim apenas acentua a atualidade deste último pensamento e a viabilidade de seu uso como modelo norteador da presente análise.

    Em relação à análise do enredo cumpre observar duas questões fundamentais: a natureza ficcional e a estrutura. A natureza ficcional repousa na lógica interna do enredo, na essência de um texto de ficção, cuja coerência irá amparar o contrato narrativo, ou seja, a apresentação da narrativa como uma delegação do papel de narrador a um ou mais personagens que dissimula ao mesmo tempo a passagem do autor, dado, então, como inexistente, em uma instância puramente textual (Maingueneau, 1996:39). Esta coerência interna, implica na percepção de que os fatos não são gratuitos, estando encadeados por mero acaso. Ela pressupõe uma motivação (causa) que desencadeia determinados fatos (conseqüências). No caso de Diablo II, temos uma narrativa que dá seqüência ao episódio anterior, Diablo, ocupando, portanto, uma posição de motivação, de relação causal com o que se vai ser narrado no segundo episódio. Em virtude deste aspecto seqüencial, resgatarei, brevemente, o episódio de Diablo, lançando luz sobre a motivação que funda o conflito continuado em Diablo II.

    No que tange à segunda questão, caberá evidenciar as partes que a compõem, não bastando constatar a existência de um início, meio e fim. O elemento estruturador de um enredo é o conflito que serve de liame entre os fatos registrados. Será este conflito o elemento responsável pela expectativa do que se tem para narrar. Lançando mão do pensamento de Garcia temos que:

    "O enredo (intriga, trama, história ou estória, urdidura, fábula) é aquela categoria da narrativa constituída pelo conjunto dos fatos que se encadeiam, dos incidentes ou episódios em que as personagens se envolvem, num determinado tempo e num determinado ambiente, motivadas por conflitos de interesse ou de paixões". (1986:242)

    Assim sendo, sob a rubrica enredo, estou tratando do princípio que organiza aquilo que estará sendo narrado, ou seja, a idéia que unifica a história em seu nível mais básico, dando-lhe um sentido de conjunto. Trata-se, portanto, de uma formulação da questão que será respondida durante o curso da narrativa. Este elemento impregna todos os aspectos do que vai sendo enunciado (cenários, atmosfera, enredo), sugerindo um estado da questão que precisa ser esclarecido. No caso dos Jogos Eletrônicos, o esclarecimento advirá dos gestos de leitura praticados pelo jogador/leitor.

    Em Diablo II, o conflito repousa no ressurgimento de Diablo, supostamente banido de Santuarium pelo herói do primeiro jogo, devendo ser novamente combatido sob pena da tomada de controle do mundo de Santuarium por aquele.

    Breve retrospectiva de Diablo (1997)

    Diablo tem início na cidade de Tristram, no mundo fantástico de Santuarium. Neste ambiente, uma ordem chamada Horadrim congregou os maiores magos com o fim de estabelecer a ordem, eliminando as forças demoníacas deste mundo. Da aliança, resultou o banimento dos antagonistas para uma outra dimensão, bem como o aprisionamento do demônio mais temido e conhecido como o Lorde do Terror, Diablo, encarcerado em uma pedra, batizada de Soulstone. Para maior segurança de todos, esta pedra foi enterrada embaixo do Monastério da pequena vila de Tristram, sendo construído um labirinto entre o Monastério e as profundezas onde fora depositada a Soulstone, visando dificultar o acesso ao item.

    A Ordem de Horadric se desfez e pouco a pouco foram morrendo seus integrantes, restando apenas Deckard Cain como o último membro vivo. Este, contudo, guardou segredo sobre a Soulstone e seu destino, deixando que o passado caísse no esquecimento, pensando estar garantindo a segurança de todos.

    Enviado como embaixador pela Igreja de Zakarum, o Arcebispo Lazarus chegou à vila de Tristram e, arregimentando um grupo de cidadãos e soldados, desbravou o labirinto, resgatando a Soulstone. Depois de a haver recuperado, Lazarus liberta a alma de Diablo, tornando-se seu sacerdote. Apesar de ter sua alma liberta, ainda não podia entrar na dimensão de Santuarium. Aproveitando-se da magia existente no labirinto, Diablo conseguiu transformar o seu nível mais profundo em um portal para o Inferno, levando seus servos para Santuarium. Aqueles imediatamente tomaram os labirintos, guardando a passagem, ainda insuficiente para que Diablo se manifestasse fisicamente.

    Em face do ocorrido, o Rei Leoric reúne os fiéis Cavaleiros da Ordem de Westmarsh, organizando uma expedição com o intuito de retomar os labirintos, pondo fim ao inimigo. Todavia, sua tentativa é frustrada e Leoric não somente perde seus homens, como também passa a ter sua vontade controlada por Diablo, retornando só à superfície e passando a atuar como um sanguinário. Segundo os sobreviventes da cidade vão relatando ao longo do jogo, o drama que vivem desde então. Informam que um grande número de heróis começou a surgir na vila para investigar os rumores sobre o que ali se passava, mas nenhum foi bem sucedido.

    Durante o transcurso do jogo, é relatado ao herói/avatar que o filho de Leoric foi levado por Lazarus para os subterrâneos do monastério. Cain finalmente percebe que aquele será sacrificado para tornar possível a encarnação de Diablo. Diante disto, informa o fato ao herói/avatar, pedindo a este que efetue o resgate. Por fim, o herói entra e avança pelos labirintos, combatendo pessoalmente Diablo, derrotando este. É então executada o filme em animação que encerra a primeira história. Quando Diablo cai no chão, o herói retira a Soulstone de sua testa. O corpo demoníaco vai sofrendo transformações e reassume a aparência do Príncipe, verifica-se que o ritual já havia sido realizado. Apesar de haver chegado ao final e derrotado o Diablo, o herói fracassa em tentar evitar o sacrifício. Diante desta constatação, o herói volta seus olhos para a Soulstone e a alma de Diablo, que voltara para a pedra, assume o controle sobre o herói, fazendo com que este crave a pedra em sua própria testa. O herói fracassa mais uma vez, tornando-se o hospedeiro da alma de Diablo, contudo ele, ainda, consegue lutar contra Diablo, mantendo este aprisionado dentro de si.

    Coberto por um manto escuro de viagem, para ocultar a pedra, o herói passa a vagar solitariamente, evitando o contato com outras pessoas, passando a ser conhecido como The Wanderer. Assim, conclui-se o conflito e, por conseguinte, o enredo do primeiro jogo.

    Diablo II

    A partir do desfecho de Diablo (1997) irá se estabelecer o conflito de Diablo II, que se desenvolverá ao longo das quatro partes do enredo: exposição, complicação, clímax e desfecho. Na exposição, será feita a apresentação do conflito, situando o jogador diante da história que lhe será narrada. Com a complicação, temos o desenvolvimento do conflito e a revelação dos conflitos secundários. Ao atingir o clímax, estabelece-se o momento de maior tensão da narrativa, chegando o conflito ao seu ponto máximo, seu desafio maior. Por fim, tem-se o desfecho no qual é apresentada a solução, bem sucedida ou não, do conflito.

    Exposição

    A apresentação do conflito se dá antes mesmo da inserção do avatar na trama. Uma vez criado o avatar e carregado o cenário (a partir do login), é exibido o primeiro dos filmes em animação do jogo, no qual será exposto o fato inicial do enredo. Uma silhueta vestindo um longo manto cinza e coberta por um capuz avança por um corredor gradeado, chegando até a porta de uma cela. No centro desta, há um homem velho e de aparência angustiada deitado encolhido no chão. Ele se assusta com o estranho e se arrasta até sua cama, babando e em pânico afirmando não ter sido sua culpa. Tem início o diálogo, entre o visitante e o louco Marius. Este reconhece no visitante a figura do Arcanjo Tyriel e passa a lhe a narrar os fatos que presenciara e que o levaram a ser dado por louco. Esta parte é apresentada através da exibição de uma animação digital de alta definição e características bem próximas à experiência cinematográfica.

    Assim, tem início a primeira fase da narrativa com a colocação do principal conflito. Neste momento, inexiste qualquer participação do leitor que o difira do espectador de cinema ou do tele-espectador. Ele simplesmente assiste à cena de animação ena em animaç assiste a do espectador de cinema ou do tele-espectador. um corredor cheio de grades, chegando atcomputadorizada diante do PC.

    O conflito é descrito a partir de uma noite em uma taberna de Santuarium, quando entra no local, um homem portando uma espada. É The Wanderer. Ele crava sua espada sobre uma mesa e se senta, sendo pouco notado. Apenas Marius - que é o narrador destas cenas de animação, sendo a primeira voz a ser produzida sobre a história - percebe os estranhos tremores que acometem na mão daquele homem e a vibração de sua ornamentada espada. Será ele, ainda que sem ter consciência do fato, testemunhará o momento em que Diablo definitivamente toma o controle sobre The Wanderer. Marius percebe apenas que o forasteiro sofreu uma breve transformação, enquanto a chacina e o incêndio do local aconteciam ao seu redor. A taberna é tomada por numerosos demônios que eliminam todas as pessoas ali presentes, salvo Marius e The Wanderer. Após a destruição, este último sai do local, que está em chamas. O narrador expressa sua incompreensão com os fatos que testemunhara e, apesar do extremo frio e da neve, sente-se compelido a seguir o demônio, sem desconfiar de nada.

    Eis, portanto, a enunciação do conflito: Diablo sobrepujou a vontade do primeiro herói, assumindo o controle de seu corpo, e não só libertou sua alma como também está manifestado e a destruição do mundo de Santuarium é iniciado. O conflito é assim apresentado ao leitor e ao redor do avatar deste se organizará a narrativa.

    Complicação

    Encerrada a animação que introduz o Ato I, tem início a complicação do conflito. O marco inicial do desenvolvimento se dá quando surge, de pé no meio de um acampamento, o avatar do jogador, o qual passa a ocupar a função de protagonista, de herói da narrativa. Abre-se, prontamente, uma tela de Ajuda apresentando várias funções da interface, familiarizando o jogador com os comandos e com as funções de execução das ações mais importantes. Esta tela poderá ser ativada deslocando-se até ela o ponteiro do mouse que, durante a execução do jogo, assume a forma de uma manopla.

    O herói está em um acampamento. Alguns PNJs andam por ele, galinhas ciscam e se assustam quando o herói delas se aproxima (parte da programação de I.A.). Logo, um dos PNJs - vestido com uma camisa azul - aproxima-se. Ele traz acima de sua representação gráfica um balão amarelo contendo no centro um ponto de informação (Figura 2). Este é o modo como o software comunica ao leitor que aquele personagem possui algo importante a ser dito. Passando o ponteiro do mouse sobre a representação do PNJ, é possível identificar seu nome. Este que se aproxima se chama Warriv.

    Clicando sobre o PNJ, o herói se aproxima e, no centro superior da tela, surge um quadro por onde rola o texto escrito correspondente à mensagem emitida pela voz Warriv (Figura 3).

     

    Figura 2

    Figura 2 - Warriv se dirige ao herói.

     

    Warriv saúda o herói de maneira um pouco diferente conforme o arquétipo escolhido, mantendo igual a maior parte da mensagem (Tabela 1) (Blizzard Entertainement, 2000). Registro este mesmo momento, em caráter exemplificativo, em relação a dois dos cinco arquétipos, no caso, foram usados o Paladino e o Necromântico, os quais foram, respectivamente, nomeados de Sir Devas e Lord Hades. A seguir, registro a mensagem introdutória de Warriv que dá impulso ao desenvolvimento da narrativa em relação ao protagonista, apresentando as complicações que perpassam o enredo, ou seja, os fatos correlatos de cuja unidade emerge a história.

     

    Figura 3

    Figura 3 - Quadro de Diálogo.

     

    Realizando o mesmo procedimento de interação (utilizado com Warriv) em relação a Akara (clicando sobre a imagem), ela se manifestará (Blizzard Entertainement, 2000):

     

    "I am Akara, High Priestess of the Sisterhood of the Sightless Eye, I welcome you, traveler, to our camp, but I'm afraid i can offer you but poor chelter within these rickety walls.

    You see, our ancient Sisterhood has fallen under a strange curse. The mighty Citadel from which we have guarded the gates to the East for generations, has been corrupted by the evil Demoness, Andariel.

    I still can't believe it... but she burned many of our sister Rogues against us and drove us from our ancestral home. Now the last defenders of the Sisterhood are either dead or scattered throughout the wilderness.

    I implore you, strange. Please help us. Find a way to lift this terrible curse and we will pledge our loyalty to you for all time.

    There is a place of great evil in the wilderness. Kashya's Rogue scouts have informed me that a cava nearby is filled with shadowy creatures and horrors from beyond the grave.

    I fear that these creatures are massing for an attack against our encampment. If you are sincere about helping us, find the dark labyrinth and destroy foul beasts.

    I should add that many Rogue scouts have did in that horrible place. We cannot afford to lose any more. If you choose to enter that Den of Evil, you must do so alone."

     

    Uma vez encerrada a fala de Akara, um ícone resumindo a missão proposta aparece no canto inferior esquerdo da tela e voltará a aparecer sempre que outro personagem ou situação venha propor uma nova missão ou uma jornada. As jornadas são missões que colaboram com o desdobramento do conflito principal, propondo sub-tramas. São estes elementos que darão ao protagonista um trajeto diferente de jogo para jogo, a partir das escolhas tomadas pelos jogadores/leitores, suas estratégias e modo como exercerão o desempenho de sua "leitura".

    Como já é possível notar, há uma predeterminação do enredo, isto é, o procedimento de Akara ao solicitar o auxílio do herói refere-se a um fato já posto, do qual o leitor tão somente toma ciência. Não haveria como o leitor alterar o fato de Citadel ter sido tomada por Andariel. Esta observação deverá estar clara durante todo o transcurso desta análise.

     

    Tabela 1 - Modelos de diálogos iniciais

    Devas - o Paladino

    Hades - o Necromântico

    "Well met, noble Paladin. It's been a while since I've seen any of your kind in the west. It would be an honor to aid you in any way that I can.

    No doubt you've heard about the tragedy that be fell the town of Tristram. Some say that Diablo, the Lord of Terror, walks the world again.

    I don't know if I believe that, but a Dark Wanderer did travel this route a few weeks ago. He was headed east to the mountain pass guarded by the Rogue Monastery.

    Maybe it's nothing, but evil seems to have trailed in his wake. You see, shortly after the Wanderer went through, the Monastery's Gates to the pass were closed and strange creatures began ravaging the countryside.

    Until it's safer outside the camp and the gates are re-opened, I'll remain here with the caravan. I hope to leave for Lut Gholein before the shadow that fell over Tristram consumes us all. If you're still alive then, I'll take you along.

    You should talk to Akara, too. She seems to be the leader of this camp. Maybe she can tell you more.

    "Geetings, stranger. I'm not surprised to see your kind here. Many adventurers have traveled this way since the recent troubles began.

    No doubt you've heard about the tragedy that be fell the town of Tristram. Some say that Diablo, the Lord of Terror, walks the world again.

    I don't know if I believe that, but a Dark Wanderer did travel this route a few weeks ago. He was headed east to the mountain pass guarded by the Rogue Monastery.

    Maybe it's nothing, but evil seems to have trailed in his wake. You see, shortly after the Wanderer went through, the Monastery's Gates to the pass were closed and strange creatures began ravaging the countryside.

    Until it's safer outside the camp and the gates are re-opened, I'll remain here with the caravan. I hope to leave for Lut Gholein before the shadow that fell over Tristram consumes us all. If you're still alive then, I'll take you along.

    You should talk to Akara, too. She seems to be the leader of this camp. Maybe she can tell you more.

     

    Os Jogos Eletrônicos de narrativa do tipo RPG ofertam ao jogador a proposição da leitura (latu sensu) de uma narrativa. Como veremos a seguir, os discursos sobre "a morte de autor" nos textos eletrônicos (Landow, 1995) não poderão ser aplicados a este objeto narrativo, pois como será evidenciada, a ruptura que este dispositivo propõem não se dá atribuindo ao leitor um inovador gesto de escrita que o insira no grau de co-autor da obra, mas, sim, um novo gesto de leitura através do qual apenas o desempenho ativo do leitor permitirá a este conhecer a narrativa ocultada pelo programa através de uma organização labiríntica que se desvela em face da ação do jogador. Caso este não dê o comando direcionando seu avatar ao encontro de Warriv ou de Akara nada lhe será dito. Neste sentido, vale resgatar a teorização de Aarseth acerca do que chama de escrita ergódica ou literatura ergódica:

     

    "The concept of cybertext focuses on the mechanical organization of the text, by positing the intricacies of the medium as an integral part of the literary exchange. However, it also centers attention on the consumer, or user, of the text, as a more integrated figure than even reader-response theorists would claim. (...) During the cybertextual process, the user will have effectuated a semiotic sequence, and this selective movement is a work of physical construction that the various concepts of 'reading' do not account for This phenomenon I call ergodic." (1997:1)

     

    Tomando o jogo em questão como um dos exemplos de literatura ergódica, vale ressaltar que é tão somente a partir do momento em que o leitor seleciona os signos de seu interesse, dando comandos para que com estes o avatar interaja, que se estabelece o processo de leitura. Suas ações alimentam o sistema de comunicação com informações que são processadas e que, por sua vez, realimentam-no com o envio de mensagens ao leitor. Um exemplo disto pode ser obtido valendo-nos ainda da mesma cena. Proposta a missão por Akara, o herói poderá partir, desbravando a região fora do acampamento ou buscar interagir com os demais personagens. Ao clicar novamente sobre o comerciante Warriv, abre-se uma tela com duas possibilidades de interação: conversar ou cancelar esta ação. Optando por conversar, abrem-se mais quatro possibilidades: repetir a introdução (introduction), tomar ciência de boatos (gossip), saber a opinião daquele personagem sobre a missão que está cumprindo ou prestes a cumprir (no caso, Den of Evil) e, por fim, cancelar o comando dado (cancel). Caso a escolha seja a segunda, Warriv fará um comentário - que varia de jogo para jogo, pois os boatos a tendem a escolhas randômicas, assim como as opiniões -, no caso da sessão de jogo aberta: "It's easy to become lost in the wilderness on the way to the Citadel. After you have come to the cairn Stone, you must remember that the path continues through the caves". Escolhida a opção sobre a missão em curso, Warriv reage com tom de ironia na voz, que acompanha o texto escrito: "One who seeks that cave, seeks death".

    O mesmo procedimento pode ser obtido em relação aos demais membros do acampamento, Charsi, a ferreira, uma vez consultada sobre a missão se manifesta menos pessimista que o comerciante Warriv, mantendo um timbre de voz cauteloso, mas seguro:

     

    "Hi there! I'm Charsi, the blacksmith here in camp. It's good to see some strong adventures around here.

    Many of our Sisters fought bravely against Diablo when he first attacked the town of Tristram. They came back to us true veterans, bearing some really powerful items. Seems like their victory was short-lived, though... Most of them are now corrupted by Andariel.

    The beasts from the cave have begun to roam throughout the countryside. You'd better be careful out there." (Blizzard Entertainnement, 2000)

     

    Esta é apenas uma amostragem de como os discursos são proferidos e de como vai se tornando mais complexo o conflito inicial. Ao longo de todo o jogo, novas situações, como humanos que se aliam a Diablo, a libertação de outras entidades sobrenaturais e o próprio ato de seguir o rastro de destruição deixado por Diablo vão enriquecendo o conflito, edificando um labirinto narrativo que abre numerosas possibilidades de ação e, por conseguinte, de leituras. Cada passo dado neste labirinto acrescenta fatos novos ao conflito geral, desenvolvendo-o. Aliás, esta metáfora do labirinto é tratada por Aarseth como característica imanente deste tipo de narrativa: "I refer to the idea of a narrative text as a labyrinth, a game, or an imaginary world, in which the reader can explore at will, get lost, discover secret paths, play around, follow the rules, and so on." (1997:3).

    Cumpre ressaltar ainda que o não cumprimento da grande maioria das missões não implica em um obstáculo em relação a continuidade da narrativa. O fracasso do jogador em dar cumprimento a uma dada tarefa pode ser na grande maioria das situações incorporado ao trajeto do herói, pois os fragmentos narrativos muitas vezes independem uns dos outros.

    Isto foi observado com a execução do jogo de duas maneiras diferente:

    • Valendo-me do avatar Devas, o Paladino, interagi o maior número de vezes possível com os PNJs, ainda que estes não sinalizassem ter algo a dizer. Desta experiência de jogo, foi possível verificar que, a cada momento que se partia enfrentando inimigos e retornava ao acampamento ou às cidades, ao interagir com os PNJs sobre os boatos, cada qual exibia uma caixa com comentários distintos que iam dos úteis (como orientações sobre locais que tornavam mais célere a procura por um determinado local) aos comentários completamente irrelevantes (como, por exemplo, "Leave alone!"). A cada missão solicitada e cumprida, alguma espécie de recompensa, em geral, era dada. Na cidade de Lut Gholein, por exemplo, Atma informa que por vingar a morte de seu filho, ela conversará com os demais PNJs solicitando a cooperação deles para com o herói. Assim, logo depois o custo das armas, o concerto de equipamentos, a compra de poções e outros itens cai em relação aos valores antes praticados. Fato que não ocorre caso o herói ignore a missão ou não a cumpra;

    • Por outro lado, valendo-me do avatar Hades, o Necromântico, evitei ao máximo manter a interação com os demais personagens, saltando as suas falas (pressionando ESC) com o fim de observar o quanto seria possível avançar na história, bem como se haveria o impedimento de continuar a leitura da trama principal. Salvo pelos elementos obrigatórios do enredo (introdução do Ato I e o Epílogo), as demais partes puderam ser saltadas. Assim, não permiti a conclusão das falas dos demais PNJs, ignorando também quando a interface indicava que algum deles possuía algo para ser dito. Negligenciei também o cumprimento das Jornadas propostas através de janelas não vinculadas a personagens específicos. Ao invés da impossibilidade de continuar com o jogo pela falta de conclusão de alguma etapa, fato que se verifica na quase totalidade dos jogos que compreendem a execução de missões, houve tão somente a redução da narrativa ao conflito central sem impedimento da execução do jogo. Na prática, poderia afirmar que o jogo é despido dos elementos que o categorizam como um jogo de RPG eletrônico, tornando-se mais próximo da categoria dos jogos de ação, mas ainda assim plenamente executável. Adotando esta postura de jogo, os elementos narrativos foram reduzidos ao seu nível mais básico, ou seja, foi dada ciência ao protagonista de que uma taberna de Santuarium foi incendiada, todos as pessoas dentro dela foram mortas, numerosos demônios e criaturas sombrias começaram a surgir na região e que estas continuam a surgir por onde passa The Wanderer. A isto se restringirá o conflito. O protagonista tentará desenvolvê-lo explorando a geografia de Santuarium em busca do antigo herói de Tristram. Por fim se deparará com Diablo, chegando ao Clímax da narrativa e tomará conhecimento do desfecho a partir da animação final que é passível de ser saltada. Os elementos básicos do enredo, ainda assim, podem ser verificados, bem como os demais elementos que serão apresentados após a conclusão da análise do enredo, tais como os personagens, o espaço, o tempo e o narrador. Desta forma, a eliminação dos conflitos secundários, apenas tornou a experiência mais pobre, ao contrário da experiência vivida no primeiro caso, onde desafios múltiplos são lançados estendendo e enriquecendo o background do tema central e, conseqüentemente do próprio herói. Mesmo assim, o jogo continuará sendo marcado pela existência de uma narrativa, confirmando o caráter indissociável desta em relação a este Jogo Eletrônico.

    É certo que o procedimento de proposição de conflitos e de relação com os PNJs irá se repetir ao longo de todo o jogo, inclusive nas outras cidades que compõem a ambientação da narrativa. Grosso modo, este procedimento partirá de PNJs, livros ou pergaminhos antigos encontrados pelo protagonista que indicam jornadas, caixas de diálogos através das quais são articuladas mensagens explicando aspectos particulares de um determinado cenário, dentre outros. A atividade de se imiscuir mais profundamente no enredo na busca da solução daqueles conflitos provoca alterações constantes na leitura praticada pelo protagonista/avatar, abrindo, por sua vez, novas possibilidades de ação; enfim, quanto mais o leitor (através de seu avatar) mergulhar na exploração do ambiente proposto pelo jogo, mais vozes serão articuladas informando aspectos até então desconhecidos da narrativa, contribuindo para o desenvolvimento "pleno" do conflito central.

    Tem-se, portanto, um objeto narrativo que é formado randomicamente quando o usuário escolhe seu avatar e atribui a este um login. Esta narrativa passa a existir de modo latente, em estado de potência que somente vai se evidenciar à medida que o protagonista der o feedback para o sistema, realimentando o processo comunicativo. Eis aqui o elemento que leva Aarseth (1997:3) a entender a natureza de objetos da ordem dos Jogos Elerônicos, como cibertextos, como máquinas produtoras de expressão, de significação, de um texto dotado de natureza outra em relação à percepção comumente estabelecida pelos estudos literários. Neste aspecto, Aarseth é categórico ao afirmar que: "(...) hypertexts, adventures games, and so fourth are not texts the way the average literacy work is a text".

    Ao exibir o primeiro bloco de animação é enunciado o conflito central, o protagonista surge no meio de um cenário, que é a provocação do software ao seu uso. Portando o signo indicativo de "algo a ser dito", Warriv é o primeiro passo para que se estabeleça o processo ergódico, cabendo ao avatar realimentá-lo, indo até o PNJ ou tomando qualquer outra ação, em relação à qual o software emitirá uma outra resposta e assim sucessivamente. Trata-se não de outra coisa senão da propriedade procedural que Janet Murray (1997) aponta como inerente aos textos produzidos em ambientes digitais, ou seja, a característica de a partir de uma série de regras - um procedimento estrutural -, colocar em atividade um processo comunicativo que ultrapassa o nível de mero sistema de informação a partir do momento em que os dados não são meramente transportados, mas se constituem em mensagens, em unidades dotadas de significação que tomam parte de um sistema no qual emissão e recepção são postas em funcionamento.

    É importante lembrar ainda que no caso do jogo em modo multi-player, muitas vezes uma determinada complicação surge apenas para aquele leitor que atingiu o elemento gerador da complicação. Em face disto, tem-se neste modo de execução a multiplicação dos centros narrativos que podem, ainda assim, ser alterados caso o leitor que tenha recebido uma dada complicação convide outro a se unir a ele. Neste caso, é formada uma coterie - que pode ser desfeita a qualquer momento - comunicando a ambos um mesmo desafio, renegociando a distribuição dos conflitos.

    Clímax (Peripécia)

    O Climax é o momento culminante da narrativa, o ponto de referência que justifica todo o desenvolvimento do enredo e que funcionará como causa para a Solução do conflito principal. Na narrativa de Diablo II, há uma dupla linha condutora, sendo uma conduzida pelo avatar do leitor (através da atividade ergódica) e outra pelo autor do jogo (através das cenas cinematográficas não passíveis de intervenção). No mesmo sentido, dá-se o Clímax da história, ou seja, ele é iniciado a partir da ação do protagonista (avatar) enfrentando finalmente Diablo, sendo concluído na cena de animação computadorizada. Assim, o usuário se depara finalmente com o principal e mais poderoso inimigo. A destruição de Diablo celebra a confirmação do herói, isto é, ratifica sua superioridade sobre todos os demais personagens, legitimando-o como tal. Após eliminá-lo, tem início a reprodução do último bloco de animação.

    Dá-se então o momento do clímax (batizado por Aristóteles como Peripécia): "a alteração das ações, em sentido contrário" (Aristóteles, 2000:49). Trata-se do momento em que se dá a inversão do que deveria acontecer, ou seja, no lugar de restabelecer o equilíbrio original, gera-se uma instabilidade. Em Diablo II, tal momento ocorre quando Marius complementa a cena da derrocada de Diablo, informando que graças ao herói as Soulstones foram destruídas e com elas as almas dos demônios (Diablo, Baal e Mephisto). Subitamente, Marius interrompe sua fala, começa a chorar e informa que nem todas foram de fato destruídas, pois ele havia mantido consigo a Soulstone que havia retirado do peito de Baal (durante o Ato II). Marius implora pelo perdão de Tyriel e este pede a Marius que a pedra lhe fosse entregue para que pudesse ser destruída. Marius retira a Soulstone de dentro de sua roupa, entregando-a. Até este momento, Marius acredita que o visitante encapuzado é o Arcanjo Tyriel, mas neste momento é revelado que se trata de Baal, cuja alma está contida na última Soulstone.

    Soma-se, assim, à Peripécia, o segundo elemento do Clímax, chamado por Aristóteles de Reconhecimento:

     

    "A passagem do desconhecimento ao conhecimento; tal passagem é feita para amizade ou ódio dos personagens, destinados à ventura ou ao infortúnio. O mais belo dos reconhecimentos é o que se dá ao mesmo tempo que uma peripécia, como sucedeu no Édipo" (Aristóteles, 2000:49).

     

    Correspondendo a esta prescrição da Poética, temos imediatamente após Marius entregar a Baal a Soulstone, a retira por este da ilusão que ocultava sua face, levando Marius ao desespero, atingindo o ponto culminante do drama: o fracasso em deter a tríade.

    Desfecho

    A narrativa atinge o Desfecho, quando chega à solução, boa ou não, do principal conflito. Neste caso, registra-se no desfecho de Diablo II, a catástrofe aristotélica, ou seja, "uma ação de que resultam danos e sofrimentos, como ocorre com as mortes em cena, as dores lancinantes, os ferimentos e demais ocorrências semelhantes" (Aristóteles, 2000:50). Baal de posse da Soulstone elimina Marius e sai da prisão/manicômio onde este se encontrava, deixando atrás de si tudo incendiando, enquanto um tapete de ratos vai surgindo aos seus pés, anunciando o surgimento de pragas e concluindo a narrativa.

    O desfecho põe termo à evolução do enredo, encerrando-o estruturalmente e fechando o ciclo causal sem ferir a natureza ficcional (lógica causa/conseqüência). O enredo percorre todos os elementos que lhe são essenciais, confirmando a presença de cada qual destes. Restam, porém, três elementos a serem observados para que se encerrem também os requisitos essenciais da narrativa, quais sejam: o tempo, o espaço e o foco narrativo.

    Do tempo

    A questão da temporalidade que se coloca como elemento essencial da narrativa, diz respeito ao tempo interno do texto, não se trata de um quantitativo de dias, horas ou qualquer medida neste sentido, mas do modo como os elementos do enredo se ligam uns aos outros. Em Diablo II, o tempo histórico evoca o período da Idade Média. Não se trata de uma retratação, mas de uma equivalência, onde a atmosfera gótica impregna a narrativa com a temporalidade medieval: os processos de locomoção basicamente apoiados sobre a corporalidade humana; o padrão das armas (espadas, escudos, maças d'armas, alabardas, etc.) e armaduras (couro rígido, cota de malha, couraças, elmos, manoplas, etc.); as tochas carregadas por Marius e os archotes nas paredes dos corredores; o poder reverencial da Igreja (A Igreja da Luz de Zakarum com seus arcebispos e cavaleiros remete à Igreja Católica e seus Cruzados; a conduta dos "bravos e nobres" Paladinos - como se apresentam conceitualmente - saem pelo mundo de Santuarium, eliminando tudo o que surge em oposição à sua fé em honra de um poder Divino, que a própria personagem Fara - Ato II - vai denunciar ser um círculo de gananciosos e corruptos).

    Além deste sentido da temporalidade histórica, inerente à narrativa, há outro a ser observado que se refere à temporalidade da narração, em como se articulam no tempo os fatos narrados. Neste sentido, a narrativa segue uma temporalidade híbrida com prevalência de um tempo pretérito.

    Ao abrir o Ato I, Marius começa a se reportar ao que ocorreu a partir do momento que encontrou e começou a seguir The Wanderer. A ação desenvolvida em tempo presente (ser visitado na prisão/manicômio por um estranho a quem conta uma história) se mistura ao tempo passado da história que é contada. Assim sendo, o protagonista mergulha em uma atualização da história que de fato já ocorreu. O tempo que a este parece presente é parte do passado de Marius, ou seja, a narrativa não transcorre cronologicamente, na ordem natural dos fatos tratados no enredo. Este aspecto vai, outrossim, ressaltar a imersão do leitor na narrativa e um novo modo de "ler" a obra, um novo gesto de leitura que ao simular a imersão do leitor, dissimula a temporalidade, dando-lhe a impressão de tempo de presente, mascarando o caráter pretérito da ação. Longe de provocar uma co-escrita objetiva, como prescrevem alguns teóricos, o desempenho do leitor por meio de seu avatar irá, sim, representar uma alteração no modo como ele toma conhecimento da história pré-estabelecida, por conseguinte, uma alteração no gesto de leitura. Inobstante os esforços empregados pelo jogador, a narrativa já está concebida. Faça o que fizer em sua trajetória, Mephisto e Diablo morrerão, enquanto Baal escapará, (para ressurgir como ponto de conflito na expansão Lord of Destruction).

    O esforço do leitor se justifica à medida em que este almeja conhecer a história, a qual somente se revelará à medida que ele percorrer com seu avatar, na qualidade de protagonista, as etapas previstas pelo roteiro. Seu esforço é análogo ao do expectador que diante de uma escultura vai se movendo para mais detalhes apreender desta. Colocar-se estático diante dela não o impedirá de apreender aquela imagem, mas contornando-a vai desempenhar um esforço enriquecedor á medida em que enriquece sua percepção daquele objeto pronto e acabado. Quem está na dependência da ação ergódica (novo gesto de leitura) não é a narrativa que já existe virtualmente (potencialmente), mas o processo comunicativo, que necessita da realimentação (feedback) do leitor para dar continuidade à atualização da narrativa.

    Neste sentido, não procede a freqüente alusão à uma hipotética liberdade no modo de recepção da narrativa dos Jogos Eletrônicos. Diferente de modelos como o livro (tanto impresso, quanto no formato de e-book, por exemplo), nos quais é possível ao usuário adiantar-se ao texto, lendo o desfecho antes da exposição, em jogos como Diablo II a leitura fica circunscrita ao procedimento ditado pelo software e seu autor, qual seja, a passagem por cada Ato após atravessar todos os cenários, trilhas e ambientações do mundo de Santuarium.

    O espaço

    Por definição, espaço é o lugar onde se passa a ação em uma narrativa. Em Diablo II, ao contrário do episódio anterior, há uma maior afluência de espaços que vão de acampamentos a duas cidades (Lut Gholein e Kurast) e um local situado em uma dimensão entre Santuarium e o Inferno, chamado Pandemoniun Fortress, além das cercanias correspondentes a cada um destes.

    O espaço tem como função principal situar as ações dos personagens, estabelecendo com eles um "diálogo", por exemplo, quando Marius no Ato III, desce pelos corredores do túmulo de Tal Rasha estes lhe causam sensações de estranheza. O mundo de Santuarium consiste em uma série de pequenas áreas interligadas que são cruzadas enquanto o protagonista empreende sua busca por Diablo. Cada área está, na maior parte das vezes, cercada por alguma técnica humana de fixarem fronteiras (cercas, muros, etc.) ou por barreiras naturais. Enquanto a maioria das áreas possui apenas uma passagem para a área contígua, além da passagem de volta, existem algumas poucas exceções, nas quais uma passagem secundária pode ser encontrada para outras regiões.

    O leitor através de seu avatar irá trafegar por essa topografia durante a execução do jogo. As áreas são variadas e seu design comunica diferentes texturas geográficas: desertos, florestas tropicais, dimensões paralelas, dentre outros, mas sempre dialogando com impressões de desolamento, solidão, destruição e perda. Os locais próximos aos Western Kingdoms, por exemplo, possuem as melhores estradas e são terras bem conhecidas, todavia não são muito freqüentadas, o seu traçado é mais longo e despovoado ampliando a mensagem de despovoamento e abandono. Aliás, a maioria das estradas deste mundo, mesmo as que já foram grandes rotas costumam estar desertas, com o surgimento cada vez maior de monstros e criaturas sobrenaturais. Encontros, como o que ocorre com a personagem Flavie são raros, salvo quando jogando em sistema multi-player no qual "forasteiros" costumam aparecer.

    Trata-se de um cenário de fantasia medieval, ou seja, uma versão da Idade Média povoada por elementos fantásticos, como mortos-vivos (zumbis, esqueletos animados, múmias), criaturas bestiais (demônios, vermes gigantes, Wendigos, golens), licantropos (criaturas híbridas de humanos e animais), enfim, um universo fantástico no qual conceitos mágicos justificam a existência de múltiplas manifestações mitológicas. Ao longo deste cenário, se multiplicarão templos, cavernas, torres e castelos, labirintos e masmorras.

    Do foco narrativo

    Por fim, chega-se à questão do foco narrativo. Concentra-se neste ponto grande parte dos debates acerca do papel desempenhado pelo receptor nos modelos textuais produzidos através do computador. É também o foco de um dos principais equívocos, quando autores, como Landow (1995), insistem em tematizar o desempenho do receptor ante um texto eletrônico como gesto autoral. Pautados neste pensamento advogam a morte do autor (Aranha, 2004), tendo em vista que em suportes desta natureza, nos quais os Jogos Eletrônicos se inserem, o receptor ocupa uma função de narrador. Justamente nesta última colocação repousa o equívoco. O fato do receptor se ocupar da função de narrador não macula em nada o seu caráter de receptor, não rompe de modo algum o contrato narrativo, já exposto anteriormente, pelo contrário. Se o contrato narrativo estabelece uma delegação da função de narrador para um personagem, o que se dá no caso dos Jogos Eletrônicos, é a delegação também em relação ao Receptor. Essa delegação, todavia, prevê a dissimulação do autor, dando-lhe uma ficta inexistência.

    A imersão redefine o gesto de leitura, mas não os atores do pacto: autor e leitor. O autor mais do que nunca passa a contar com um suporte que fortalece sua ocultação contratual, enquanto o leitor, mais do que nunca, imiscui-se na obra, "ignorando" a figura autoral.

    Mas e quanto ao narrador? Bem, não procede qualquer confusão entre autor e narrador. Ainda que um autor resolva escrever sua biografia, aquilo que é narrado, por mais fidedigno que parece será um recorte, uma representação de sua vida e não a sua vida, bem como aquele que o narra é o narrador e não o autor. A "primeira pessoa" de um narrador é ainda uma persona, um avatar (como os arquétipos de Diablo), que se coloca como expressão de. As variantes de narrador em primeira ou em terceira pessoa são inúmeras, dependendo exclusivamente da concepção de seu autor em relação ao seu texto. Fortalecendo, ainda mais a separação entre autor e narrador, cumpre dizer que, assim como os personagens, o narrador é uma entidade de ficção, uma criatura lingüística do autor.

    No momento em que a história passa a ser apresentada pelos olhos do leitor - enquanto perspectiva - e este passa a vasculhar o interior da narrativa em busca da solução do conflito, essa imersão não o retira de sua condição, embora altere completamente o procedimento cognitivo que o faz tomar ciência do que lhe é apresentado. Por sua vez, o autor continua nos bastidores compondo a trama e seus limites. Não é lícito ao jogador subir uma montanha que não tenha sido especificada como caminho trafegável, não é possível segurar um objeto que não tenha sido para esta função "escrito". Ainda que um jogador tente vender a qualquer dos PNJs o item chamado The Horadric Cube esta ação não se concretiza, surgindo a impassional observação "este item não pode ser negociado aqui". E quem o determina? O autor como detentor das regras de sua obra.

    Por tudo isto, discursos como o de Landow, evocando a morte do autor, não fazem sentido. Este está nos Jogos Eletrônicos tão "vivo" quanto o leitor, embora este se encontre reconfigurado, acumulando também outras funções que não seu papel tradicional, que, todavia, não o desqualificam enquanto receptor da obra.

    Mas se narrador e autor não se confundem, que tipo de narrador está presente em Jogos Eletrônicos como Diablo II? Para responder tal questão é preciso retomar a percepção conceitual acerca do narrador e seu papel. Em uma narrativa, o papel do narrador é essencial, pois é ele o organizador da narrativa, de onde a expressão chapada dos estudos de narratologia: "não existe narrativa sem narrador". Há duas categorias de narrador, as quais se manifestam pelos pronomes pessoais indicativos de primeira ou terceira pessoa do singular.

    O narrador em terceira pessoa (narrador observador) é aquele que se coloca à margem do texto, fora do que é contado e está imbuído com duas características principais, quais sejam: a onisciência dos fatos e dos aspectos subjetivos pertinentes a cada personagem que compõem a narrativa e a onipresença em todos os locais onde a história acontece. Este tipo de narrador comporta dois tipos de variações em sua configuração, sendo a primeira a do narrador intruso e, a segunda, o narrador parcial. O intruso de dirige normalmente ao leitor, produzindo opiniões de valor a respeito dos personagens, enquanto o parcial expressa a sua identificação com determinado(s) personagem(ns), dando-lhe(s) maior ênfase.

    O narrador em primeira pessoa (narrador personagem) é aquele responsável por um desempenho direto dentro do enredo. O campo de visão deste tipo de narrador irá, por conseqüência de sua inclusão na trama, ser limitado. Não apresentará a onisciência dos fatos que demandam a leitura, podendo comportar dois tipos de configurações: o narrador testemunha e o narrador protagonista. Aquele, via de regra, será um personagem secundário que narra fatos por ele presenciados ou dos quais teve notícia; enquanto este representa o narrador que desempenha uma função central no desenvolvimento da narrativa.

    Em Diablo II, temos a prevalência da narração em primeira pessoa, entretanto este modelo narrativo não se restringe a um único narrador. Como exposto, o desenvolvimento do jogo como uma narrativa solicitou a multiplicação das vozes narrativas. O caráter de convergência multimedial inerente ao computador contribuiu para esta multiplicação. Temos, portanto, formando a rede de comunicação que constrói a narrativa do jogo, o filme de animação no qual duas vozes narrativas se verificam. A tomada que registra a chegada disfarçada de Baal através dos corredores da prisão, Marius deitado no chão da cela e, por fim, a revelação de Baal, o assassinato de Marius e a partida do demônio configuram claramente um foco narrativo em terceira. Por outro lado, a partir do momento que Marius interfere relatando o que lhe ocorrera, soma-se àquele foco o foco narrativo em primeira pessoa, da ordem do narrador testemunha, uma vez que o protagonista dos filmes de animação é, sem sombra de dúvida, Diablo. Já, a partir do momento em que se inicia a atividade ergódica, é possível encontrar a repetição do narrador testemunha quando os PNJs assumem o papel de relatores de fatos e histórias que irão desencadear os conflitos secundários, quer seja em Deckard Cain narrando o passado da ordem Horadrim ou em Jerhyn relatando como seu harém foi invadido e seus guardas e esposas foram mortas. Por último, chegamos ao leitor que imerso no desenvolvimento do enredo, dele tomando parte como o herói da narrativa vai constituir o foco narrativo em primeira pessoa como narrador protagonista.

     

    Conclusão

    Diante de todo o exposto e ao fim da análise estrutural do jogo Diablo II, evidencia-se nos Jogos Eletrônicos a presença de todos os elementos essenciais a uma expressão textual para que esta possa ser considerada como uma narrativa. Ao longo desta análise, apontei também os pontos em que este modelo narrativo transcende as fronteiras que regulavam o papel tradicional do leitor em relação ao texto narrado, abrindo a possibilidade de imersão deste leitor dentro da narrativa, através da confecção de um avatar. Particularidade esta que não se verifica em outros modelos textuais rígidos, como, por exemplo, o livro e o cinema contemporâneo, e que somente se tornou possível pela mediação da tecnologia do computador como modo de atualização deste tipo de narrativa.

     

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    Notas

    (1) www.blizzard.com/books/ebooks.shtml.

    (2) www.blizzard.com/books/novels.shtml.

    (3) Até a presente data, a softhouse lançou apenas duas expansões, Hellfire (para a primeira versão de Diablo) e, em 2001, Lord of Destruction (para Diablo II). Vale citar, ainda, a existência de um número enorme de patches e expansões piratas que são desenvolvidas por usuários e disponibilizadas gratuitamente na rede, todavia ative-me a trabalhar com o material oficial neste recorte.

    (4) Isto no jogo básico, pois a expansão Lord of Destruction, disponibiliza duas novas classes de personagens, isto é, mais dois arquétipos.

    (5) Este nome deve ter o mínimo de duas letras e o máximo de quinze, não podendo ser formado com números arábicos, espaços ou hífens (estes no início ou fim do nome).

    (6) Esta atividade deve ser entendida, segundo a concepção de Aarseth, como o feedback informacional necessário por parte do usuário para que se realize dos cibertextos.