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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.3  Rio de Janeiro nov. 2004

 

Opinião

 

Fazer ciência no Brasil entre o Palácio do Imperador e o Vale dos Leprosos

 

 

Gláucio Aranha

Núcleo de Estudos Humanísticos Transdisciplinares, ICC, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil

 

O drama do fazer científico no Brasil vem sendo encenado em um palco com dois cenários: o Palácio do Imperador e o Vale dos Leprosos. De um lado, as enriquecidas instituições de ensino de âmbito privado; de outro, as cambaleantes e anêmicas instituições públicas.de ensino. No "circuito alternativo", quase sem chances de serem vistas pelo grande público, estão algumas iniciativas não-governamentais, tentando produzir suas pequenas montagens.

No Palácio do Imperador, o comércio de títulos sustenta uma nobreza ignorante e frágil. A preocupação e o comprometimento com objetivos mais elevados são desconsiderados e a pesquisa científica só é - quando é - útil enquanto fachada, enquanto mais um elemento do discurso do marketing. Via de regra, o investimento cessa nas salas "especiais" e laboratórios destas instituições logo após a feitura da fotografia publicitária. Isto, quando a imagem institucional não julga tais gastos demasiadamente desnecessários para os cofres do Imperador, substituindo-os por um espaço de lazer ou algum baile da corte.

Já no Vale dos Leprosos, a produção acadêmica geme e se agoniza. A morféia econômica faz com que projetos sejam despedaçados, com que esforços sejam abandonados como pedaços apodrecidos. A insensibilidade burocrática faz com que o corpo acadêmico seja ferido e sua chaga envolta pela imunda bandagem do descaso. A gangrena faz com que se amputem quadros funcionais, bem como o relacionamento professor/aluno, pesquisador/orientando. Muitas vezes este relacionamento se dissolve em descaso mútuo ou transformação de estagiários e orientandos em silenciosos carregadores de macas. Nos leitos podres do ambiente de trabalho que não oferece conforto ou condições apropriadas, os moribundos se instalam. Há que se ressaltar, todavia, o devir de um interessante sintoma. Alijados dos grandes salões, muitos líderes do vale se enchem de orgulho por cada mancha, por cada pedaço perdido, por cada pedaço que resta. Tão orgulhosos que sorriem diante do espelho embebidos na vaidade com a própria miséria.

Curiosamente, nas janelas do Palácio é possível flagrar, ainda, olhares pardos contemplando o vale dos leprosos, desejosos pela doença que ao menos lhes tiraria da esterilidade da corte. Enquanto isto, orgulhosos habitantes do Vale cospem e amaldiçoam os habitantes do palácio para a seguir mostrar suas feridas aos estrangeiros que passam suplicando a doação de moedas, muletas ou outra caridade, inclusive que lhes carreguem dali.

Há, ainda, que se falar dos Párias. Daqueles persistentes utópicos que vagam pelas ruas do mercado, associando-se em guildas no intuito de construir uma aliança, através da qual nobres e leprosos possam cooperar. Associações não-governamentais que longe do mercantilismo de muitas instituições privadas e do isolamento egóico dos vales públicos se esforçam no sentido de estabelecer um espaço de cooperação. Contra seus esforços, há a inquisição imperial buscando assumir o controle das possíveis parcerias, transformando-as em possessões, em novas terras para serem agregadas ao império. Atitude similar vem dos líderes do Vale que como Constantinos tentam encher os espaços oferecidos com seus doentes, adoecendo todos os envolvidos ou, então, percebendo que determinada iniciativa vai beneficiar mais um do que outro líder, acabam impondo entraves e se digladiando até que apenas mais chagas restem naqueles que tentavam cooperar.

Infelizmente, ainda não atingimos a maturidade social e acadêmica para o desempenho de ações em parceria. A comunidade acadêmica brasileira, via de regra, reproduz ainda o ambiente dos pátios de colégio, onde disputas infantis entre pequenos grupos impedem a percepção do significado de palavras como "coletividade" e "bem comum". Enquanto isto, resta apenas manter os esforços e a esperança de que nossa comunidade científica se dê conta de que moradores do Palácio ou do Vale, teriam apenas a ganhar com a associação e o cooperativismo entre diferentes instâncias, com a formação de parcerias saudáveis e maduras. Enquanto isto não acontece em nossa comunidade acadêmica resta aos utópicos somente a certeza de que é preciso persistir.

 

Notas

Gláucio Aranha
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