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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.3  Rio de Janeiro Nov. 2004

 

Resenha

 

O trajeto da leitura do texto impresso ao eletrônico

 

The changes of the reading from press to digital text

 

 

Igor L. Mechler

Núcleo de Estudos Humanísticos Transdisciplinares, ICC, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil

 

Impresso ou eletrônico? Um trajeto da leitura (2002). N. Villaça Rio de Janeiro: Mauad. ISBN: 857478074X.

Palavras-chave: leitura; novas tecnologias; texto impresso; texto eletrônico; hipertexto; literatura.

 

Em "Impresso ou eletrônico? Um trajeto da leitura", Nízia Villaça pensa a cultura letrada com ênfase nas transformações da leitura em face do advento do formato eletrônico em relação ao formato impresso. Não se ocupa do debate sobre projetos e "futurologismos", pelo contrário levanta questões e estabelece um lúcido diálogo teórico entre deslumbrados, céticos e pragmáticos. O trabalho é divido em cinco partes que se complementam, embora não teçam um contínuo.

Em um primeiro momento, levanta as questões da subjetivação no contemporâneo e as relações de poder calcadas em relação às novas tecnologias, apontando-as como objetivo da obra, a reflexão destes dois pontos. Assume como ponto de partida a observação do "contexto das motivações cognitivas das novas tecnologias face às demandas sociais de participação comunicativa e acesso democrático às fontes" (p. 15), concentrando-se nos usos e aplicações destas inovações tecnológicas. A autora salienta a importância de se refletir sobre o acesso ao saber na contemporaneidade e seu processo de legitimização, as questões culturais implicadas, dentre outros aspectos. Aliás, é possível notar que a preocupação com o viés cultural perpassa toda a obra, relacionando este com questões pontuais da literatura, da política, da economia, enfim, do contexto social no qual se insere o seu objeto central (texto impresso/texto eletrônico).

"Refletir sobre os processos de comunicação e cultura, sobre a constituição de novos sujeitos políticos em tempos de transnacionalização, significa deixar de pensar a partir das disciplinas e dos meios, significa romper com a hegemonia do pensamento tecnológico 'per se' e articular as práticas de comunicação aos movimentos sociais na produção do sentido em seus vários níveis." (pp. 16/17)

Ao longo do segundo capítulo, Villaça tematiza a função do livro e sua construção histórica (socialmente estabelecida), partindo do período renascentista e da passagem da escrita avulsa ("documento escrito") para o formato de "livro impresso". Transformações esta que vão provocar significativos impactos cognitivos, dentre os quais destaca-se o surgimento de um pensar crítico.

"Durante a Idade Média, a função do livro era. Sobretudo, de conservação, manutenção da palavra sagrada. O texto, sagrado, era indiscutível, ainda que sujeito a comentários. Também os livros utilizados à época, para conversão de moedas, operações numéricas, ligados ao comércio, não possuíam função imediata de comunicação." (pp. 30/31)

Partindo desta escrita documental e sua função mnemônica, na Idade Média, Villaça aponta o surgimento do livro impresso como elemento constituinte de valores, que orientados para o material, concreto e impregnado pela visão humanista, irá sustentar a comparação de textos e o surgimento de uma visão crítica calcada na referência a discursos acessíveis e não mais exilados em mosteiros e guildas.

"Estrategicamente separado do mundo, o texto a ele retorna no desejo de transformação. É neste lugar que o sujeito se instala na produção da escrita enquanto ordenação." (p. 32)

A seguir, a autora avança sua análise estabelecendo um debate teórico sobre questões de recepção, lançando mão de referências clássicas tais como Martin-Barbero, Tocqueville, Thompson, apontando aspectos gerais sobre recepção e cultura de massa, preparando terreno para a discussão sobre as "práticas de leitura" que se segue, onde faz um levantamento teórico dos entendimentos sobre estas práticas, concluindo que as transformações ainda se encontram em estado insipiente e nebuloso, necessitando voltar maior esforço acadêmico sobre aquelas:

"Assim, embora tenhamos algumas indicações do processamento da leitura, apenas podemos fazer conjecturas sobre as diferentes etapas por que passou de acordo com as culturas e repertórios." (p. 47)

O aspecto literário ganha destaque no terceiro capítulo, no qual sob o título de "Babel e vetorização eletrônica" é exposta a preocupação com o destino do livro. Villaça se refere à necessidade de uma atenção maior para a literalidade na cultura contemporânea que ruma para além da cultura livresca, mostrando-se aliada do pensamento Mário Perniola. Lança mão do mito de Babel como metáfora para a relação entre literatura e livro eletrônico, "remetendo a discussão das potencialidades de transformação dos mecanismos de poder a partir do descentramento reforçado pela rede, o virtual, a hipertextualidade e a interatividade" (p.55). Vai apontar, como caminho metodológico, a aproximação de três ramos do saber científico: os Estudos Literários, os Estudos de Mídia e os Estudos Culturais.

Ainda no terceiro capítulo, levanta a questão do corpo em relação à leitura na passagem do impresso para o eletrônico. Após explanar sobre as expressividades do e no corpo, é levantada a questão da "desmaterialização" deste corpo na relação com o texto eletrônico. Neste ponto, porém, a autora tangencia o tópico central, fazendo referências mais superficiais sobre a questão e com menor suporte teórico do que se observa no restante do livro. O debate sobre "corpo e desmaterialização" em si acaba cedendo lugar a um breve apanhado de situações que poderiam ter sido mais aprofundadas, considerando a importância do tema que hoje remete a abordagens da ordem do dia, como por exemplo ciborgues1, virtualização do corpo em Lévy2, dentre outras.

O quarto capítulo versa sobre a comunicação como projeto e insere a discussão sobre o livro eletrônico no espaço de intercessão entre homem e máquina, contextualizando o debate no cenário da contemporaneidade em seu aspecto de cultura e economia global. Destaca o desenvolvimento de uma Ideologia da Comunicação que emerge após a segunda guerra mundial e lança mão de duas metáforas (Frankenstein e Cibionte) para tratar da relação homem/máquina.

"Com o apelo às metáforas do Frankenstein e do Cibionte, quero aludir inicialmente ao fato de que a questão do eletrônico, no complexo informático/comunicacional, participa por um lado de um imaginário maquínico, negativo, agente de desumanização, robotização, descorporificação, desmaterialização e, por outro, positivo, ao respeitar, devido a seu caráter interativo, a crescente complexidade homem/máquina, as incertezas e imprevisibilidades dos devires que vieram substituir o futuro programado do projeto moderno." (pp.94/95)

De fato, será neste capítulo que a idéia de desmaterialização do corpo será tratado. A metáfora do Frankenstein vem justamente expressar uma redução do indivíduo á condição maquínica, estabelecendo uma forma de controle à medida em que lhe retira a capacidade de discernimento pelo tautismo (repetição e autismo). Por outro lado, o Cibionte irá expressar a promessa de um novo estado do humano, de um devir antropológico. Encerrando a discussão sobre o caráter processual da comunicação, Villaça contrapõe argumentos pessimistas e entusiasmados de alguns autores em relação medo de uma nova tecnologia possa abolir antigas tecnologias. Faz, ainda, o levantamento de algumas tecnologias de texto eletrônico, concluindo que o livro eletrônico se encontra em estado de formação não havendo que se acatar ou refutar qualquer tecnologia, visto que ainda não há claramente uma definição do objeto em questão como um modelo que atenda as expectativas que sobre ele se depositam.

"De uma forma geral, o processo da passagem aos hábitos eletrônicos, ou seja, a incorporação dos novos meios, se faz paulatinamente desafiando os prognósticos sobre mortes ou revoluções. O livro impresso continua a circular, como também os manuscritos o fizeram até o século XIX." (pp. 109/110).

Por fim, ao longo do último capítulo, argumenta-se no sentido da necessidade de se estabelecer uma filosofia política da imbricação arte/ciência, compreendendo que os ambientes tecnológicos seriam da ordem da ciência, estando a produção artística neste ambiente em estado indiferenciado do científico.

"O encontro da arte com o ciberuniverso, como com outras revoluções técnicas anteriores, é um desafio para a ciência tecnológica e para a arte. No sentido de que a vida não se torne aleatória ou um destino, mas uma progressiva reformulação do sentido de projetar, que deverá estender-se aos dois campos." (p. 115)

A necessidade de uma "filosofia política da arte e ciência" se daria em razão do reconhecimento de que nos encontraríamos em um ponto de passagem ideológica, cuja chave residiria na ordem da política, da transformação do leitor/usuário que se colocaria diante de um novo paradigma. Cada terminal transformando-se em um pólo socialmente ativo, através dos quais "os consumidores transformam-se em utilizadores criativos dos recursos audiovisuais oferecidos, por exemplo, pelo texto eletrônico: a escrita, a imagem e a música" (p. 120). Assim, o ato de ler um texto eletrônico representa simultaneamente um "moldar-se" à um novo paradigma, à uma nova filosofia de vida. Esta "vitória do software" estabeleceria um pacto mundial que anuncia a emergência de "uma sociedade transcultural e transacional". Por fim, Villaça adverte:

"Nem a categoria de linearidade limitadora que tem sido conectada ao imaginário do livro, nem a noção de esperança no milagre tecnológico constituem resposta adequada aos problemas do contemporâneo, se este não for enfrentado como permanente enigma, lugar onde a complexidade não pode virar certeza, nem a tecnologia, deslumbramento lúdico." (p.121)

 

Notas

I.L. Mechler
E-mail: icc_brasil@yahoo.com.br.

(1) Vide a provocação acadêmica de Eduardo Duarte no artigo intitulado O advento dos ciborgues (2004). Ciências & Cognição; Vol 01: 22-28. Disponível em http://geocities.yahoo.com.br/cienciasecognicao).

(2) Lévy, P. (1996). O que é o virtual? Trad.: Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34.