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Ciências & Cognição

versión On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.4  Rio de Janeiro mar. 2005

 

Artigo Científico

 

Análise cognitiva do processo de trabalho em Sistemas Complexos de Operações

 

Cognitive analysis of the work process in Complex Systems of Operations

 

 

Gilbert Cardoso Bouyer; Laerte Idal Sznelwar

Departamento de Engenharia de Produção, Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, Brasil

 

 


Resumo

Este artigo é o resultado de três anos de pesquisa realizados em indústrias cuja natureza do processo de trabalho é, essencialmente, manual. Entretanto, os resultados até então obtidos, baseados em princípios e métodos da "engenharia cognitiva", mostram que, por detrás da aparente simplicidade desses gestos manuais, existe a complexidade da cognição humana que é mobilizada para solucionar problemas e manter a continuidade da produção nas fábricas. Isso ocorre mediante elaboração de estratégias mentais i.e. ativação de diferentes níveis cognitivos de controle da ação. Ou seja, são as capacidades de adaptação ao ambiente de constantes interdições cognitivas das plantas industriais estudadas que garantem a continuidade e a tendência de fluxo verificadas nesses sistemas de operações. A presente tese de doutorado, ainda em fase de conclusão, baseada nesses resultados, indica que esses sistemas conseguem funcionar num contexto de integração e flexibilidade graças à atividade cognitiva subjacente ao processo de trabalho.

Palavras-Chave: Engenharia cognitiva; controle da ação; trabalho.


Abstract

This article is the result of a three years research carried through industries where the nature of the work process is, essentially, manual. However, the results gotten so far, based on the principles and methods of the "cognitive engineering", show that, behind the apparent simplicity of those manual gestures, there is the complexity of the human cognition which is mobilized to solve problems and keep the continuity of the plant's production. This occurs by means of the elaboration of mental strategies i.e. activation of different cognitive layers of action control. Therefore, the capacities of adaptation to the environment of frequent cognitive interdiction, in the studied industrial plants, are what guarantee the continuity and the flow tendency verified on those operation systems. The present thesis, still at the conclusion stage, based on these results, indicates that those systems might work in a context of integration and flexibility on the account of the cognitive activity underlying the work process.

Keywords: cognitive engineering; action control; work.


 

 

Introdução

O termo "engenharia cognitiva" ("cognitive engineering") hoje denomina o vasto campo do conhecimento multidisciplinar voltado para a compreensão das possibilidades e limites da cognição humana nos sistemas complexos (vide, no anexo A, breve noção sobre complexidade nos sistemas de operações). Rasmussen (1986) adotou essa denominação em uma de suas principais obras, a qual traz no subtítulo a expressão "uma abordagem para engenharia cognitiva".

O uso de "estratégias mentais na solução de problemas" (Rasmussen, 1986); a questão do "erro humano" e suas relações com as novas tecnologias que envolvem interfaces homem-máquina (Rasmussen, 1987; Rasmussen et al., 1987); os limites da objetivação do saber prático nos dispositivos baseados em inteligência artificial e os aspectos sociais da automação (Collins, 1990); os fatores que geram a noção de complexidade e afetam a solução de problemas (Woods, 1988); a questão das demandas por elaboração de representações pelo operador na resolução de problemas e suas relações com os "mecanismos humanos de processamento" (Von Winterfeldt & Edwards, 1986; Perrow, 1984; Reason, 1987) e a natureza da expertise e os meios para sua aquisição (Rasmussen, 1994; Collins, 1990) são alguns dos principais tópicos que ainda não esgotam todo o escopo da engenharia cognitiva.

Com a inserção, nos sistemas de produção, da automação e de novas tecnologias baseadas na microeletrônica, tornou-se necessário o fortalecimento de um campo multidisciplinar de conhecimento que tivesse como objeto de estudo o comportamento humano em situações complexas. Essa abordagem da engenharia cognitiva é apontada por diferentes autores (Dorner, 1984; Fischhoff et al., 1979; Klein et al., 1986). Esses autores discutem os determinantes da complexidade da solução de problemas e sua influência sobre o desempenho do operador humano. Adota-se, ao longo do presente texto, para o termo operador, o mesmo significado utilizado por Guèrin e colaboradores (1997), qual seja: "toda pessoa que exerce uma atividade profissional, quaisquer que sejam suas características (ofício, classificação profissional, sexo, etc)".

São várias as fronteiras da engenharia cognitiva com outras disciplinas, tais como a psicologia cognitiva, a ergonomia cognitiva, as teorias da ação, inteligência artificial e engenharia de controle e automação. Nos trabalhos mais avançados de Rasmussen (1994), algumas interfaces interdisciplinares são mais ressaltadas, como no caso da "engenharia dos sistemas cognitivos" e a análise cognitiva aplicada na elucidação das relações entre modelos cognitivos e trabalho cooperativo (Rasmussen, 1994), numa abordagem de "cognição compartilhada" ou distribuída em redes de cooperação.

A compreensão dos fatores que produzem a complexidade para a atividade cognitiva do operador, as demandas cognitivas que a complexidade impõe e os problemas que surgem quando essas demandas não são atendidas são objetivos centrais das análises propostas pela engenharia cognitiva.

Por estar envolvida na própria "natureza" das engenharias, tem como objetivo, também, propor novos métodos e ferramentas para o funcionamento dos processos de produção. Entretanto, ao contrário das engenharias que se baseiam apenas nas leis das ciências da natureza, busca compreender o funcionamento da cognição humana, em situações práticas, como ingrediente imprescindível a sua atribuição de "engenharia", qual seja, a de propor novas "ferramentas cognitivas" que aprimorem a performance tanto do operador quanto dos dispositivos tecnológicos empregados. A segurança de instalações industriais e os meios de evitar acidentes de diferentes espécies estão relacionados, em grande parte, à compreensão da "cognição nos contextos de ação", ou seja, "em situação" (Lave, 1991).

Inclusive no setor de serviços, os instrumentos teóricos e metodológicos da engenharia cognitiva têm sido úteis na elucidação de estratégias cognitivas que agregam valor a um serviço e incrementam o desempenho econômico. Sobre essas estratégias articuladas no campo da cognição humana e que se materializam em resultados concretos, é bem pertinente a pesquisa de Bouyer (2004), a qual discute como uma boa "relação - de - uso cognitiva", em dispositivos de comunicação on-line, pode surgir do cuidado com as questões envolvendo a memória de trabalho, atenção consciente e assimilação da informação digital.

Os objetos de estudo e os métodos da engenharia cognitiva, embora sejam temas já bem conhecidos nos debates das ciências cognitivas, hoje ganham destaque num novo contexto: o cenário dos sistemas de operações ou sistemas produtivos contemporâneos. O enfoque desses estudos ganha relevância à medida que vem crescendo a difusão da automação de base microeletrônica e seus efeitos sobre a continuidade e a "fluidez" dos processos de produção.

A engenharia cognitiva voltada para o processo de trabalho responde, ao menos parcialmente, uma pertinente questão levantada por Salerno (2004) sobre a carência de novos conceitos na área da produção: "Será que o processo de trabalho é algo completamente compreendido? Não há nenhum aspecto a ser descoberto?" (Salerno, 2004).

No caso da presente tese de doutoramento, a engenharia cognitiva foi direcionada para a compreensão do processo de trabalho em três fábricas de componentes para a indústria automobilística que possuem, em comum, a reunião de operações manuais e operações automatizadas. Conseqüentemente, há, em todas as três plantas estudadas, a presença da interação homem-sistema automatizado, o que coloca em foco, por um lado, as componentes cognitivas do trabalho humano diante dessas novas tecnologias, com suas novas demandas no tocante à solução dos problemas (Anexo-C) nos sistemas de operações e tomadas de decisão, à elaboração de representações sobre os estados de funcionamento do processo produtivo e à análise das falhas e erros. Por outro lado, buscou-se analisar, no processo de trabalho ainda de base manual, os aspectos cognitivos que garantem a continuidade do fluxo produtivo das plantas.

 

Objeto da Pesquisa

No contexto dos sistemas de operações estudados, a maior parte das tarefas executadas é de tipo manual, demandando habilidades de destreza e agilidade sensoriomotora por parte dos operadores. O fluxo da produção das fábricas depende basicamente do controle do comportamento nesse nível. No entanto, as funções cognitivas subjacentes ao trabalho manual concreto são determinantes da "fluidez" do processo produtivo. Isso fica claro nas situações de "ruptura" ou de "fratura" (Winograd e Flores, 1986) com o fluxo normal das operações, o que ocorre em conseqüência das interdições cognitivas que incidem sobre esse "trabalho cognitivo subjacente". A forma como o processo de trabalho, ainda que essencialmente manual, garante a "fluidez" da produção, está dada pela ativação de níveis de controle do comportamento baseados em regras e conhecimentos, conforme denominação adotada por Rasmussen (1986, 1994).

Em situações de fratura, o operador retorna ao estágio inicial do ACT, o da interpretação declarativa, quando, então, necessita agir novamente de forma intencional e consciente. Analogamente, pode-se dizer que se trata de uma incursão no nível mais alto do esquema de Rasmussen (1986), ilustrado na Figura-1. Mesmo estando todos os níveis simultaneamente "em uso" na ação, em determinadas situações, o conhecimento precisa ser articulado, no nível consciente, sobre um background conceitual mais abstrato para, em seguida, transitar pelos demais níveis até se materializar novamente em ação manual concreta sobre o objeto de trabalho.

O que se define, na presente tese, como "interdição cognitiva", são os elementos do ambiente de operações das fábricas que interrompem o processamento cognitivo da informação, no nível das habilidades sensoriomotoras e demandam, para efetivação da ação, um processamento mais elaborado nos níveis de controle da ação (Rasmussen, 1986; 1994) baseados em regras e/ou razões e intenções do operador. Interdição, portanto, do processamento naquele nível em que a ação humana se dá de forma automática (Collins, 1990; Rasmussen, 1986, 1994) e, conseqüentemente, ativação do controle consciente não-automatizado como pré-requisito para a continuidade do processo de operações das fábricas.

Essa variabilidade de processamento permanece subjacente aos aspectos objetivos visíveis do processo de trabalho. Ou seja, trata-se da adaptabilidade, portanto, da cognição do operador, às falhas, fraturas, "eventos" que tenderiam a romper com o fluxo rotineiro do processo produtivo. A capacidade de adaptação, que se caracteriza pela mobilidade (intangível, invisível, de difícil objetivação) do processamento cognitivo em diferentes níveis de controle da ação, constitui a garantia de "fluidez" e "continuidade" (tangíveis, visíveis e de fácil objetivação pelo observador) a um processo de produção de natureza intrinsecamente descontínua.

O nível mais alto do esquema de Rasmussen (1986, 1994) é ativado, no plano consciente da ação, por esses elementos de interdição. A organização do trabalho também impõe severas restrições de ordem temporal e, conseqüentemente, das possibilidades de manipulação simbólica dos elementos do ambiente num nível conceitual demandado por algumas situações que interditam o processamento da informação no nível já "automatizado" e inconsciente. Também, provenientes da organização do trabalho, são as restrições das possibilidades de trocas de conhecimentos oriundos das situações inusitadas e compartilhamento de aprendizagens delas resultantes, comprometendo a necessária modificação dos modelos mentais.

As três plantas estudadas mantêm operações essencialmente manuais, que representam uma objetivação do processo de trabalho sem deslocar o elemento humano do próprio processo (Moraes-Neto, 1991). Mesmo guardando um trabalho que aparenta ser puramente manual, as análises realizadas revelaram que a atividade requer mobilização de estratégias mentais hipotético-dedutivas e de indução (Rasmussen, 1986) por parte dos operadores, de modo a suprir falhas do fornecimento de dados e do fluxo de informação (fragmentado, arbitrário) na produção das fábricas. Os operadores do "trabalho manual" necessitam, então, embora isso não seja evidente a um primeiro olhar do observador externo, articular decisões num contexto de incerteza que dificulta a elaboração das representações e estratégias necessárias.

Como as plantas conseguem atender às demandas fundamentais de "integração" e "flexibilidade" ou, melhor dizendo, como conseguem funcionar de forma a fornecer resultados típicos dos "sistemas integrados, flexíveis, automatizados" (por exigências de um setor pautado pelo just-in-time, pelos modernos sistemas de informação gerenciais, etc) e, sobretudo, como conseguem garantir uma "fluidez" e uma "continuidade" aos seus processos de produção, se estes ainda dependem, essencialmente, de um processo de trabalho manual e parcelado?

A premissa inicial foi a de que a resposta deveria ser encontrada no próprio elemento humano em sua atividade concreta, ora localizado no cerne dos sistemas de operações investigados. Atividade que, por sua vez, guarda um "trabalho cognitivo" que está intimamente relacionado à garantia de fluidez do processo não apenas nas situações em que interage com os dispositivos automatizados mas, principalmente, nas situações em que a automação de base microeletrônica ainda não foi implantada (e talvez não possa sê-lo).

Mesmo no "trabalho manual" analisado pelo presente projeto de pesquisa, foram detectadas demandas cognitivas associadas à solução de problemas e tomada de decisão no cenário de incerteza, típico do processo de produção das três fábricas. Essas demandas referem-se à necessidade de elaboração de representações para antecipação e predição dos estados futuros do processo, bem como a adoção de estratégias mentais (Rasmussen, 1986) para lidar com a organização arbitrária das tarefas e informações associadas a elas. Conforme a discussão realizada por Suchman (1987), tal necessidade determina, no caso do trabalho coletivo que é realizado de forma parcelada em tarefas individuais, uma representação compartilhada sobre o estado do processo e sobre o problema a ser resolvido.

Alguns autores estudaram o tratamento da incerteza e suas conseqüências sobre a solução de problemas. O melhor estudo nesse sentido foi realizado por Dubois e Prade (1987), porém em cenários diferentes dos que são configurados pelos processos de trabalho das três plantas ora pesquisadas.

Observando mais detalhadamente as próprias componentes cognitivas da atividade em determinadas situações, a pesquisa de campo remeteu as investigações teóricas para o terreno da natureza do processo de trabalho e da estrutura organizacional das plantas. Isso ocorreu em função de boa parte das obstruções encontradas pelos operadores, em seu trabalho cognitivo (interdições), ter sua origem nas formas como as tarefas e informações são divididas e atribuídas aos indivíduos.

A "evolução dos processos de trabalho" (Moraes-Neto, 1996), nas indústrias que ainda dependem essencialmente do trabalho manual, é alcançada, segundo alguns autores estudiosos dos processos de trabalho (como o próprio Moraes-Neto (1991, 1996), além de Fleury (1985), que estudou a "tendência de fluxo"), com a inserção da automação microeletrônica, a qual permite "integração, interdependência e continuidade" (Ferro et al., s/d) no processo produtivo. Isso configura uma tendência progressiva (evolutiva) de aproximação, desses processos, com aqueles típicos da produção contínua. Nesse sentido, a automação de base microeletrônica viabiliza essa evolução ou aproximação com a indústria de processo contínuo (IPC), estágio último e mais avançado a ser alcançado pelos processos discretos de produção.

Entretanto, o que dizer quando se constata, mediante métodos de pesquisa científica, que "integração, interdependência e continuidade" inerentes à automação são verificadas nas etapas do processo que, pouco ou nada automatizadas, concentram-se na atividade humana de caráter manual? Resumidamente, o que explica a existência dos "efeitos de automação onde não há automação"?

Como algumas plantas do setor automotivo conseguem funcionar como organizações "integradas e flexíveis" (Salerno, 1999) e atender plenamente às severas demandas postas por um cenário de cadeia produtiva permeado pelas tecnologias da informação se são, ainda, precárias do ponto de vista do processo de trabalho (manual, parcelado, rotineiro)?

Como foi possível essa evolução rumo a uma tendência de "fluxo" (Fleury, 1985) nos processos em que a essência do processo de trabalho ainda permanece na divisão parcelada ou fragmentação do coletivo, na alocação de tarefas manuais individuais?

 

Tese

Postula-se, neste trabalho, a tese de que, mesmo nas etapas em que a atividade manual permanece como essencial ao sistema, a progressiva evolução do processo rumo à fluidez da produção contínua, tão ressaltada por outros estudiosos dos processos de trabalho, como Moraes-Neto (1996) e Fleury (1985), decorre da elaboração da ação com base em sofisticados níveis de controle do comportamento. Envolve, portanto, representações sobre o estado do processo produtivo (ou elaboração de modelos, em diferentes níveis de controle cognitivo do comportamento, via conhecimento abstrato, regras, habilidades, etc. (Rasmussen, 1994)) para a predição dos comportamentos futuros, antecipação das falhas e solução dos problemas decorrentes do modo como tarefas e informações estão divididas. Dizem respeito, ainda, à utilização de estratégias mentais (Rasmussen, 1986) para lidar com as sobrecargas geradas na memória de trabalho. Ou seja, os dados apontam que, por detrás da aparente simplicidade das tarefas manuais, o coletivo parcelado executa um trabalho cognitivo que garante o fluxo da produção ao solucionar problemas complexos e gerir a temporalidade do processo de produção num contexto de erros e imprevistos. Por isso, pode-se falar de um sistema cognitivo (Rasmussen, 1994), subjacente ao processo de trabalho objetivo e tangível.

Por detrás do coletivo parcelado, há um sistema cognitivo envolvido num "trabalho cognitivo", que busca garantir "continuidade" e "fluidez" ao fluxo produtivo, segurança e combate aos acidentes e panes. Esse trabalho encontra severas restrições às suas elaborações em decorrência da noção de interdição cognitiva. Os elementos demandados para sua realização geralmente não são disponibilizados devido à natureza fragmentada do processo de trabalho e à distribuição arbitrária de informações entre as tarefas parceladas.

O trabalho nas fábricas, quer em seus aspectos físicos tangíveis já bem discutidos na literatura de saúde e ergonomia ou, principalmente, em seus aspectos cognitivos intangíveis da engenharia cognitiva (estratégias mentais para solução de problemas e trato com a complexidade), encontra obstáculos para a sua efetivação. Estes decorrem sobretudo do projeto das tarefas (desde a sua concepção) e permanecem após tempos de funcionamento das plantas. A capacidade adaptativa dos trabalhadores, ao ambiente das fábricas pautado por estes "impedimentos" ou constrangimentos de ordem física e "interdições" de ordem cognitiva, garante o funcionamento das plantas em uma aparente continuidade no interior mesmo de um processo que engloba a variabilidade e a descontinuidade do gesto humano. Tal capacidade adaptativa se dá nos níveis intangíveis da atividade de trabalho, com suas regulações e rearranjos sobretudo no seu funcionamento cognitivo.

Diante dos obstáculos (impedimentos, interdições), o fluxo do processo produtivo é garantido pela capacidade do operador humano de se adaptar. Isso envolve diretamente as estratégias cognitivas que facilitam a elaboração das representações e a redução da sobrecarga na memória de trabalho.

 

Metodologia de Pesquisa

Quanto à compreensão dessas estratégias e suas relações com o conceito de interdição cognitiva, foi útil, nos casos em questão, o emprego de dois instrumentos a saber:

1 - ACT ou Adaptative Control of Thought de Anderson (1982,1983).

2 - O esquema de Rasmussen (1986, 1994), formado pelos três níveis de controle do comportamento na ação (habilidades, regras e conhecimento). As tarefas avaliadas no processo foram classificadas segundo os níveis ativados para controle da ação.

Maiores detalhes sobre a utilização do ACT na análise cognitiva do processo de trabalho podem ser encontrados no Anexo-B.

O ACT ajudou a elucidar os mecanismos que permitem ao processo de trabalho mover-se livre de "gargalos" ou interrupções de fluxo produtivo enquanto um sistema cognitivo. Embora se baseando numa abordagem simplificadora e unitária dos processos superiores, a qual divide a memória do sistema em seus conteúdos declarativos, procedimentais e de trabalho, permitiu compreender o processo adaptativo ao ambiente de interdições das plantas mediante análise das fases de declaração, compilação e ajuste do sistema.

O esquema de Rasmussen (1986, 1994) foi útil tanto para a comprovação dos resultados obtidos pelo ACT quanto para caracterizar como a interdição cognitiva solicita a ativação dos três níveis de controle da ação:

Controle da ação no nível dos comportamentos baseados em habilidades (desempenho sensório-motor, sem controle consciente, apoiado em captação de sinais dos ambientes dos sistemas de operações das plantas estudadas);

Controle da ação no nível dos comportamentos baseados em regras (adoção de procedimentos, sob controle consciente, apoiada em regras previamente incorporadas pelas experiências anteriores, mediante emprego de signos associados às sub-rotinas i.e. situações comuns nos sistemas de operações);

Controle da ação no nível dos comportamentos baseados em conhecimento (o nível mais elaborado do esquema de Rasmussen (1994), de manipulação de símbolos para solução de problemas, o qual envolve a adoção premeditada de estratégias para a ação, baseada em conceitos adquiridos e modelos mentais; volta-se para o alcance de metas específicas, demandando deduções e induções para a predição dos efeitos das ações adotadas).

Os métodos de entrevista empregados aproximam-se da observação participante (Becker, 1997). Foram utilizados, também, questionários visando uma observação estruturada (Laville & Dionne, 1999) das estratégias de ação adotadas pelos operadores. As entrevistas não-estruturadas, segundo o modelo de observação participante (Becker, 1997), tiveram o objetivo de elucidar as razões e motivos dos operadores.

De acordo com a Análise Ergonômica do Trabalho - AET (Wisner, 1987, 1994), o discurso dos trabalhadores a respeito da atividade de trabalho deve ser mediado pelos traços objetivos da própria atividade. Sendo uma grande parte da atividade regulada de forma subconsciente, unicamente a observação exterior e sistemática das ações visíveis não possibilita um acesso à consciência dos trabalhadores e às suas estratégias mentais. Assim, a AET veio a contribuir de modo a fornecer um contorno mais nítido e objetivo para as verbalizações dos operadores.

A maior parte das questões, nas fases posteriores às grandes discussões, foi formulada de forma contextualizada (Wisner, 1987), referindo-se a situações concretas (Wisner, 1994) que haviam ocorrido momentos antes, ou durante o desenrolar dos atos na atividade de trabalho. Procurou-se manter o verbo no presente e remeter o sujeito ao seu próprio comportamento de acordo com aquilo que fora observado. Questões do tipo "o que você está fazendo na..."; "como você soube que..."; "quando é que você alterou o ... o que fez você decidir por esta alteração..." etc., foram largamente empregadas, conforme métodos propostos por Wisner (1987, 1994).

Uma amostra aleatória de cerca de cinco trabalhadores, em especial, foi submetida a observações sistemáticas e entrevistas, nas quais o gravador e a câmara de vídeo foram largamente utilizados. Alguns diálogos foram transcritos.

Nos primeiros contatos com o campo, algumas técnicas da AET de registro de variáveis foram empregadas, como direção do olhar, medição do tempo de atenção a determinado dispositivo e/ou duração de determinada tarefa, etc (Wisner, 1987). O cronômetro, nessas etapas iniciais de pesquisa, foi um instrumento útil.

O tempo de resposta a uma dada situação, dependente, em grande parte, do tipo de estratégia mental envolvida na ação, mostrou estar correlacionado à existência ou não de interdições específicas (Tabela-1) incidentes sobre as tarefas analisadas (Tabela-2). Essa correlação tempo-interdição foi confirmada em pela validação dos próprios operadores e por "entrevistas de autoconfrontação" (Wisner, 1987).

 

Tabela 1

Tabela 1 - Elementos de interdição cognitiva nos sistemas de operações.

 

Tabela 2

Tabela 2 - Algumas variáveis de análise do processo de trabalho. ** S = sem interdição; **C = com interdição; H = Habilidades; DCL = Declarativo; GNR = Generalização; R = Regras; PCD = Procedimental; DSC = Discriminação; C = Conhecimento; CMP = Composição; FRT = Fortalecimento.

 

Entender o "porquê" ou as razões de atos objetivamente observados requer a compreensão do contexto, das minúcias de cada situação de trabalho, as estratégias utilizadas pelos trabalhadores, seus conhecimentos tácitos, etc. Isso não tem como ser feito a não ser utilizando-se do próprio discurso dos atores como material de análise. Entretanto, requer aprofundar nesse mesmo discurso, para além das fronteiras propostas pelos métodos de entrevista semi-estruturada ou daqueles filiados à observação participante.

Foi possível, então, com as entrevistas e mediante emprego do ACT de Anderson (1982, 1983) e do esquema de ação de Rasmussen (1986, 1994), nas situações dos sistemas de operações das três plantas, caracterizar parcialmente, até o presente momento, a noção de interdição cognitiva no processo de trabalho e como ela afeta o processamento de informação (variação nos níveis de controle do comportamento) e a formulação das ações, necessárias à continuidade da produção.

 

Resultados e Discussão

Os elementos de interdição cognitiva, produzidos pelos ambientes das fábricas, foram registrados na Tabela 1. Cabe lembrar que os itens incluídos em "Elementos que sobrecarregam a memória de trabalho" podem gerar ou potencializar todos os demais obstáculos cognitivos encontrados nas pesquisas e registrados nas linhas superiores da Tabela 1. A distribuição arbitrária de informações, por exemplo, no caso descrito no final deste tópico, ilustra um desses elementos de sobrecarga da memória de trabalho, observado numa das plantas pesquisadas.

Seis tarefas, que aparentemente são, em sua essência, manuais, foram analisadas sob o ponto de vista das demandas cognitivas.

As variáveis analisadas foram: freqüência de interdição (unidades/hora), média temporal, níveis de controle da ação ativados na tarefa, seqüência de ativação dos estágios do ACT na tarefa e elementos de interdição. Mesmo que vários níveis ou estágios permaneçam ativados, simultaneamente, no processamento, as seqüências, conforme registradas na Tabela 2, não afirmam o contrário. Elas têm a função de mostrar que algumas situações demandam, dentro do tempo da produção, a ativação, no plano consciente, de níveis e/ou estágios mais elaborados, que permaneciam fora da consciência quando da execução automática de gestos manuais baseados em habilidades.

Foram medidos os tempos gastos em cada tarefa, tendo-se o cuidado de se fazer as medições sempre com os mesmos operadores.

A freqüência de interdição refere-se ao número de vezes, por hora, que o ritmo normal da execução (processamento) é afetado por interdições cognitivas. A Tabela 2 contém os resultados encontrados.

Os resultados obtidos indicam que, por detrás da aparente "banalidade" das tarefas manuais, ocorrem variações nos níveis de controle do comportamento envolvendo, quando estas tarefas são confrontadas com situações de interdições cognitivas, a ativação, no plano consciente, do nível de controle mais elevado pesquisado por Rasmussen (1986), o qual envolve, segundo ele, manipulação de conhecimento elaborado, de caráter simbólico abstrato, para concretização da ação. Somente os comportamentos baseados em habilidades sensoriomotoras e respostas aos sinais do ambiente, elementos típicos do nível de controle mais elementar descrito por Rasmussen (1986), não seriam suficientes para evitar interrupções no processo produtivo das fábricas. Alguns dados, registrados na Tabela 2, apontam que, nas situações de interdição, o tempo para ação é maior (média temporal envolvendo desde a percepção dos sinais do ambiente até a concretização do ato sobre o objeto de trabalho).

As entrevistas de diferentes modalidades, realizadas com as amostras de operadores, confirmaram que esse tempo médio de ação maior resulta, exceto nas situações de fadiga mental e/ou de sobrecarga da memória de trabalho, de alterações no processamento cognitivo da informação, que ativam níveis mais elevados para concretização da ação. Ou seja, aqueles níveis que atestam a existência, subjacente às tarefas aparentemente baseadas apenas nas habilidades manuais, de uma atividade cognitiva intensa pautada por mobilização de conhecimento simbólico abstrato (Rasmussen, 1986, 1994) ou, segundo classificação do ACT, "retorno ao estágio não-automatizado de processamento cognitivo do tipo declarativo / verbal" (Anderson, 1982, 1983).

As duas abordagens empregadas, baseadas no ACT e nos níveis de controle cognitivo da ação, possuem, em comum, a caracterização de uma espécie de "distanciamento" da ação dos seus aspectos puramente manuais (ou seja, sensoriomotores, segundo atos já "fortalecidos e encadeados numa execução automática, inconsciente" (Anderson, 1982), bem mais ágil) para a sua aproximação de um processamento mais sofisticado (declarativo (Anderson, 1982), solicitando nível consciente que pode envolver razões / intenções (Rasmussen, 1986) do operador). A Tabela 3 contém os significados de cada estágio do ACT, sua função no processo de trabalho e a abreviação correspondente utilizada ao longo deste texto (DCL, PCD, CMP, etc). Para os níveis de Rasmussen (1986, 1994), H, R e C correspondem, respectivamente, aos níveis 1, 2 e 3 descritos na Figura 1.

 

Figura 1

Figura 1 - Diagrama simplificado da solução de problemas em sistemas de operações complexos, baseado nos três níveis de controle da ação de Rasmussen (1986).

 

Os resultados indicam que, sem a ativação consciente até DCL (estágio declarativo, indicado nas seqüências da Tabela 2) ou até o nível C (mais elevado no esquema de controle da ação, indicado na Tabela 2), o processo de produção sofreria interrupções constantes, perdendo sua tendência de continuidade e fluxo. Assim mesmo que o tempo para efetivação da ação (édia temporal da Tabela 2) seja maior, a continuidade do fluxo de produção é assegurada pela mobilização de níveis de controle cognitivo da ação localizados bem aquém do nível baseado nas habilidades manuais.

Os dados de entrevistas e observações (Tabela 1 e Tabela 2) apontaram que, diante das situações eventuais e/ou de interdição cognitiva, para não interromper o fluxo produtivo, os operadores "transitam", cognitivamente, nos diferentes estágios do ACT e do esquema de Rasmussen, adaptando-se a essas situações típicas de ruptura, de falha ou, conforme denominação de Winograd e Flores (1986), de "fratura". Capacidade adaptativa, portanto, intangível e de difícil objetivação, se comparada com a materialidade dos gestos manuais e dos objetos do processo de trabalho parcelado. O mundo físico das fábricas, que se mostra objetivamente em suas tendências de continuidade e fluxo, dimensões bastante tangíveis no contexto dos sistemas de operações do setor industrial estudado, ocorre paralelo ao mundo intangível da cognição do coletivo parcelado. Este último, a fração invisível do processo de trabalho manual e visível, gera efeitos concretos sobre aquele outro, tido como o único passível de objetivação científica por alguns adeptos da "razão fechada" (Morin, 2001).

Entretanto, os dados obtidos e analisados ao longo desses dois últimos anos de contato tanto com o "mundo material" quanto com "mundo cognitivo imaterial" das fábricas, têm conduzido a resultados, ainda que parciais, indicativos da relevância do "trabalho cognitivo" para o "trabalho manual".

Por exemplo, observando a Tabela 2, um observador mais desatento pode não "enxergar" nada de especial. Afinal, são dados simples, como tempo, freqüência de ocorrência de "situações inusitadas", etc. No entanto, escondida nessa simplicidade, está a complexidade do processamento cognitivo da informação, realizado pelos operadores. Da mesma forma que o trabalho manual "simples" esconde algo de "sofisticado" que cabe à postura científica contemporânea explicitar. A premência dessa postura é dada pelas próprias exigências da produção nos dias de hoje, quais sejam, de flexibilidade e integração aliadas à produtividade elevada e alta qualidade dos produtos. Resultados que podem surgir de uma análise cuidadosa dos dados e índices "objetiváveis", como os da Tabela 2 (dentre outros), indicando estreita relação com aquilo que não se oferece tão facilmente à objetivação, como é o caso de estratégias mentais, variação cognitiva da ação e utilização de conhecimento abstrato onde só aparenta existir "destreza manual".

Nesse aspecto de "explicitação", de "objetivação" do que se mostra subjacente (como é o caso dos fenômenos cognitivos do processo de trabalho "manual"), esse "ir além", esse aprofundamento necessário para aquém do que indicam os dados objetivos, foi possibilitado pelos recursos das entrevistas, conforme já detalhado no tópico sobre "metodologia", nesse mesmo artigo. Por exemplo, as causas ou razões de um tempo maior para ação numa dada situação, em uma dada tarefa, só puderam ser obtidas pelas verbalizações dos próprios "sujeitos da produção", os operadores.

Assim, toda a elucidação do mundo cognitivo com seus "dados" subjetivos de difícil acesso, mundo este que é subjacente ao mundo material e aos dados objetivos que as fábricas oferecem facilmente em suas facetas visíveis, deu-se pelo acesso à consciência dos operadores, mediante as diferentes formas de entrevistas. Estas permitiram a caracterização dos elementos de interdição citados na Tabela 1 e das funções dos estágios do ACT (Tabela 3) no processo de trabalho que se depara com esses elementos. Os níveis envolvidos no esquema de controle da ação (Figura 1), para determinadas situações enfrentadas nas tarefas dos sistemas de operações estudados, puderam se tornar acessíveis graças ao material obtido nas entrevistas. Conseqüentemente, as seqüências de estágios e níveis, registradas na Tabela-2, resultaram da análise dos dados das entrevistas e das correlações estabelecidas com os dados das Tabelas 1 e 3.

Isso permitiu constatar que a ação mais demorada, segundo as médias temporais da Tabela 2, diante das situações de interdição, é resultante do processamento da informação em diferentes estágios e níveis, abarcados no plano consciente, conforme já explicado anteriormente. Ou seja, ainda que mais demorada, a ação é, contudo, eficaz no tocante a evitar a interrupção do fluxo de produção. Demorada, salvo as situações de fadiga e/ou sobrecarga da memória de trabalho, em função do trabalho cognitivo demandado pelas situações. Em alguns casos, a própria sobrecarga da memória de trabalho e a fadiga cognitiva podem demandar estratégias mentais dos operadores para a solução dos problemas no tempo imposto pela produção, o que está, ainda, em fase de estudo.

As seqüências, então, revelaram a adaptação dos operadores ao contexto de interdições oferecidas pelo ambiente "complexo" dos sistemas de operações. Por exemplo, na tarefa "colocação de arames", a ação envolve duas seqüências mais extensas, de ida e vinda do processamento da informação, em função das situações de interdição. Conforme indicado pelas setas da Tabela 2, tem-se:

Sinais do ambiente - FRT - GNR/DSC - CMP - PCD - DCL

DCL - PCD - CMP - GNR/DSC - FRT - Ato eficaz sobre o objeto do mundo físico

Por ser mais demorado, o estágio DCL expande o tempo de ação na linha de produção. Segundo o esquema de níveis de controle da ação, tem-se que:

Sinais do ambiente - H - R - C

C - R - H - Ato eficaz sobre o objeto do mundo físico.

A discussão desses resultados pode ser expandida para as possibilidades e limites da automação na linha de montagem. Segundo Collins (1990), a ação que envolve os níveis C ou DCL são impossíveis de automatizar por que diferem dos "atos maquinais", caracterizados pelo envolvimento dos níveis H e R somente, ou, conforme o ACT, apenas os estágios automatizados do comportamento humano (FRT - GNR/DSC - CMP). Os dispositivos da microeletrônica, mesmo os baseados em inteligência artificial, possuem limitações quando se trata de situações que demandam processamento nos níveis DCL ou C.

Segundo Collins (1990), mesmo quando adequadamente instalados, os artefatos da microeletrônica, baseados em inteligência artificial, ainda que atuem apenas nas situações que demandavam do operador humano o controle exclusivamente nos níveis H e R (ou seja, sem envolver, na outra classificação, o nível DCL), ainda assim, só podem funcionar a contento porque operam como uma "prótese social" (Collins, 1990). O conceito de "prótese social" refere-se aos dispositivos que funcionam no interior de um contexto social, no qual se inserem exercendo funções dantes executadas pela cognição humana. Este contexto social é que, efetivamente, garante o seu funcionamento eficaz. Ou seja, ao contrário de algumas idéias do cognitivismo (Anexo A), que atribuem esse funcionamento eficaz dos artefatos às suas características e propriedades funcionais intrínsecas, Collins (1990) vai afirmar que o "bom funcionamento" provém do "tecido social" que lhes fornece suporte.

A ampliação dessa discussão fica como sugestão para trabalhos futuros, de diferentes áreas, que se possam servir do campo multidisciplinar da engenharia cognitiva.

Independente daquilo que se pode ou não automatizar no processo de trabalho, os dispositivos que venham a ser empregados, quando não puderem substituir completamente o operador em determinadas tarefas, deverão servir para amenizar a sobrecarga cognitiva. O trabalho cognitivo mais "pesado" para os operadores estudados nas três fábricas é o de converter ou "interpretar" as propriedades do ambiente físico para este nível simbólico e conceitual quando a situação o exige.

Uma informação apenas é percebida como dotada de conteúdo simbólico (e não apenas como um sinal do ambiente físico que dispara comportamentos automatizados na ação humana) quando o operador já possui um background conceitual. Isso permite a sua própria elaboração de representações, sendo aqui utilizado o conceito de "representações" segundo a exata conotação empregada por Montmollin (1984).

Diferentes graus de abstração dentro de uma hierarquia envolvem a elaboração da representação, a qual o operador constrói mediante observação daquilo que pode ser avaliado no ambiente físico da fábrica e que seja funcionalmente necessário ao sistema. Na verdade, os três níveis (Figura 1) de Rasmussen (1986, 1994) fazem parte da elaboração de representações, que se efetiva no nível mais alto. O problema se torna "sob domínio" quando o operador consegue, finalmente, elaborar uma representação que permita lidar com a situação. Isso remete o problema novamente para os três níveis do esquema, permitindo lidar conscientemente com as regras envolvidas na situação e efetivar comportamentos mais elementares no nível sensório-motor demandados pelas leis físicas do processo produtivo.

Ou seja, a elaboração da representação que partiu de um esquema ascendente, agora retorna para o nível do ambiente físico, materializando-se em atos sobre os componentes físicos do processo (matéria-prima e ferramentas), conforme ilustrado na Figura 1.

Quanto às habilidades de nível sensoriomotor mobilizadas nas linhas de montagem, a noção de interdição surge, com bastante freqüência, quando da sobrecarga da memória de trabalho (última linha da Tabela-1). A caracterização, nesse nível, se deu pela avaliação dos fatores que afetam as demandas de processamento cognitivo (Card et al., 1983), no patamar mais elementar do esquema de Rasmussen (1986), e que podem sobrecarregar a "memória de trabalho" (Baddeley, 1990). Esses fatores de interdição relacionam-se, então, a uma distribuição arbitrária de tarefas e informações.

Mesmo nas tarefas mais rotineiras, observou-se que a sua disposição arbitrária, no tocante ao fluxo de informações, obriga o operador a manter, sob seu domínio individual, um volume de informações que se faria necessário distribuir no coletivo ou, de outra forma, organizado nos dispositivos técnicos utilizados (instruções, legendas e sinalização nos painéis de controle; outra forma de organização dos botões) de modo a solicitar menos esforço da memória de trabalho.

Em algumas situações, foi possível constatar que uma nova informação requerida por uma determinada tarefa não pode ser utilizada em outra pela impossibilidade de transferência (impedimentos oriundos da organização do trabalho), o que gera uma demanda maior de memória, por parte dos operadores, que devem despender esforço de aprender constantemente algo que poderia estar disponibilizado numa outra configuração do sistema.

 

Figura 2

Figura 2 - Plataforma de testes.

 

Figura 3

Figura 3 - Painel de controle da plataforma, com distribuição arbitrária da informação: Sobrecarga da memória de trabalho.

 

Reduzir a quantidade de informação arbitrária no processo de trabalho torna mais eficaz o próprio fluxo informacional e reduz as interdições baseadas na sobrecarga cognitiva sobre os operadores (Um caso típico foi ilustrado nos pares de figuras 2-3 e 4-5. Situação de Interdição: Figura 2 e Figura 3; Solução proposta para não interditar a memória de trabalho: Figura 4 e Figura 5). A redução dos elementos arbitrários facilita a "regulação" cognitiva das tarefas.

O problema da interdição não está apenas na quantidade, mas também na dificuldade de condensação e automatização de novos elementos, de maneira mais funcional. A forma como são distribuídas as tarefas pode facilitar ou dificultar a ativação e a recuperação freqüente das informações necessárias, conforme já foi detectado também por Norman (1988) nos contextos das ações cotidianas.

Um arranjo que permita reduzir o volume de informações restrito aos indivíduos e que viabilize sua partilha no coletivo de trabalho provoca uma maior fluidez no fluxo produtivo. Por sua vez, determinadas estratégias de elaboração dos dados do processo necessários às ações dos operadores podem favorecer a organização do material, conferindo-lhe significado e auxiliando na recuperação. Os próprios operadores utilizam-se de instrumentos mnemotécnicos baseados nessas estratégias.

 

Plataforma de testes

Mesmo tendo sido enfatizado apenas na etapa do "fortalecimento" (FRT), a sobrecarga da memória de trabalho interdita a "fluidez" e/ou a velocidade de execução dos demais estágios do ACT, como a compilação (em todos os seus dois sub-níveis PCD e CMP) e a etapa de ajuste (nos três sub-níveis de generalização (GNR), discriminação (DSC) e fortalecimento (FRT)).

Isso ocorre porque a memória de trabalho tem a função, justamente, de armazenar apenas a informação necessária à imediata execução das tarefas, num procedimento já automatizado.

Quando da sua solicitação em situações que poderiam deixá-la com menor carga de informação (por exemplo, quando o operador é obrigado a memorizar dados que poderiam estar armazenados num dispositivo auxiliar, como num painel de sinalização), ocorre a sobrecarga. Esta compromete o tempo necessário às demais etapas do ACT, como a compilação e o ajuste, que acabam, então, por demandar mais tempo para se efetivarem, comprometendo a rapidez do próprio processo de produção das plantas (ainda dependente das habilidades manuais e das "habilidades cognitivas" dos operadores humanos).

A Figura 3 ilustra um caso típico, em que a distribuição arbitrária da informação sobrecarrega a memória de trabalho.

 

Figura 4

 

Figura 4 - Painel de controle da mesma plataforma, com nova organização da informação. Dessa vez, a memória de trabalho é poupada graças a uma melhor distribuição que evita a memorização constante. A disposição dos botões de controle evita a sobrecarga.

 

A plataforma de testes contém peças (Figura 2; Figura 4) que são controladas pelos botões do painel (Figura 3; Figura 5). No caso, a sobrecarga decorre da ocupação da memória de trabalho com informações que uma organização coerente no painel (como na Figura 5) poderia evitar.

 

 

Figura 5 - Painel de controle da mesma plataforma, com nova organização da informação. Dessa vez, a memória de trabalho é poupada graças a uma melhor distribuição que evita a memorização constante. A disposição dos botões de controle evita a sobrecarga.

 

Conclusões

O fluxo da produção, nos sistemas de operações investigados, adquire sua continuidade graças à natureza adaptativa do sistema cognitivo subjacente ao processo de trabalho.

Observa-se que o aumento progressivo das habilidades, dessa vez não mais no nível sensoriomotor apenas, mas naqueles de elaboração das estratégias envolvidas na ação e, principalmente, nas transições entre as etapas do processamento (ser mais "hábil" em processar as informações inerentes a uma "fratura", de modo a converter sinais em estratégias e, finalmente, estratégias em atos concretos sobre o objeto do mundo físico, no restrito espaço temporal da produção) determina a tendência de fluxo onde a automação e as formas flexíveis de organização do trabalho ainda são desconhecidas.

Essa habilidade de transição ou de processamento vem a servir de base para uma maior fluidez dos sistemas de operações em que figuram, predominantemente, tarefas dependentes das habilidades manuais dos operadores. Negar esse fato seria negar a dimensão cognitiva do trabalho manual e a relevância das habilidades cognitivas dos operadores para solucionar diferentes problemas que surgem continuamente no setor produtivo (e permanecem, na maioria das vezes, invisíveis graças, justamente, a essas habilidades intangíveis que são postas a serviço da fluidez e da continuidade do processo).

Mais que isso, seria negar a própria tendência, tão difundida na atualidade, dos modernos sistemas de operações que se caracterizam como integrados e flexíveis justamente por possuírem as propriedades necessárias ao trato com os imprevistos, com as "fraturas", dentro da temporalidade rígida do processo de produção.

Entretanto, muito se discute sobre o papel da automação microeletrônica para a garantia dessa "excelência" no tocante aos elevados níveis de integração e flexibilidade esquecendo-se, porém, que setores industriais tidos como "inovadores" e "de ponta" (como é o caso do setor investigado pelo presente trabalho de pesquisa) mantêm, em seu interior, a maior parte dos seus sistemas operacionais dependentes do trabalho manual.

Sendo assim, o que garante a aproximação dos processos produtivos das tendências de fluxo e continuidade, em contextos que exigem "flexibilidade" e "integração", nos sistemas de operações investigados, não é a automação, ainda neles sub-utilizada e/ou inexistente.

Tampouco os aspectos de "flexibilidade" e "integração", apresentados por esses sistemas em seus resultados, provém de modernos modelos de organização do trabalho, baseados em trabalho em grupo, uma vez que, mesmo adotando denominações inovadoras (células de produção, times, etc), as empresas estudadas guardam, por detrás desses belos nomes, um processo de trabalho essencialmente rotineiro, parcelado e "manual".

Longe da "tecnologia flexível" e da "organização flexível", o que, então, vai permitir a fluidez e a continuidade da produção, livre dos indesejáveis gargalos e interrupções, em sistemas que alojam o elemento humano e suas habilidades como elementos-base do processo, é a capacidade de adaptação dos operadores ao contexto não apenas de interdições, mas também de contradições.

Contradições entre, por um lado, as severas exigências de um moderno cenário de cadeia produtiva, exterior às fábricas, pautado pela integração proporcionada pelos sistemas de informação gerenciais e pela produção enxuta e, por outro lado, o precário processo de trabalho, no interior das fábricas, manual, parcelado e rotineiro, forçado a acompanhar as exigências desse exuberante cenário exterior com o qual dramaticamente contrasta. Peripécia essa somente possível graças aos fenômenos que se desenrolam no mundo cognitivo dos ambientes de produção.

 

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ANEXO A

A Noção de Complexidade nos Sistemas de Operações

Algo pode ser caracterizado como complexo quando não é totalmente previsível e não localmente antecipável (Le Moigne, 2000).

O problema da complexidade de alguns sistemas de operações é dado pela sua própria natureza envolvendo procedimentos cognitivos de representação de uma situação potencialmente imprevisível (Le Moigne, 2000). Ao invés de buscarem a previsibilidade, os sistemas complexos de operações precisam alcançar a adaptação a qualquer ocorrência não prevista ou não programada inicialmente. A cognição constitui-se, então, em elemento fundamental dos mecanismos de adaptação e/ou regulação necessários ao trato com a complexidade dos sistemas de operações.

Por exemplo, a execução de uma tarefa na linha de montagem, atualmente, mesmo possuindo um caráter essencialmente manual, envolve a antecipação de um resultado fixado dentro de condições determinadas. Entretanto, nesse contexto de produção pautado pela imprevisibilidade e pelo rigor do just-in-time, sobretudo nas indústrias do setor automotivo, pode-se falar da complexidade envolvida no trato constante, do sistema cognitivo, com a incerteza do sistema operacional. As condições, previamente determinadas no segundo, modificam-se abruptamente, convidando a uma intensa mobilização do primeiro, no sentido de solucionar os problemas da incerteza.

Logo, a noção de complexidade de um sistema de operações (setor produtivo de uma fábrica de componentes automobilísticos, no presente caso) perpassa a caracterização da incerteza que permeia estes sistemas produtivos contemporâneos. O projeto de uma fábrica sem trabalhadores humanos é um antigo sonho, presente na cultura de boa parte dos informáticos, engenheiros e demais especialistas responsáveis pela concepção de sistemas de operações que, entretanto, se depara com os limites da própria inteligência artificial no trato com situações complexas.

Os modelos de funcionamento da mente humana, presentes na cultura dos projetistas que almejam eliminar o homem do cenário produtivo, são baseados nos tradicionais modelos computacionais de tratamento da informação (Simon, 1969; Fodor, 1975; Turing, 1996). As fragilidades desses modelos são as suas pressuposições teóricas, que envolvem uma lógica já bem conhecida na história da ciência, de negação da complexidade e tentativa de simplificação, e de separação entre sujeito e objeto (ego cogitans x res extensa). Ou seja, uma "razão fechada" conforme denominação de Morin (2001).

Essa mesma lógica filiada a uma "razão fechada" se pauta pelo combate de todas as fontes de incerteza que se possa antever e pela tentativa de operacionalização de todos procedimentos e "tarefas" necessários ao sistema, antecedendo a automação. Redução da autonomia e maximização do controle sobre atos pautados pela aparente simplicidade do complexo tornado simples. O complexo torna-se, então, algo meramente operatório, maquinal, pronto para automação.

A complexidade, então, não é apreendida, numa significativa sintonia com as práticas da clássica ciência de inspiração cartesiana, que "ia muito logicamente do complexo ao simples" (Morin, 2001). Entretanto, o que realmente se faz necessário para a compreensão das atribuições que permanecem exclusivas da cognição humana nos sistemas complexos de operações, é adotar uma atitude do pensamento científico contemporâneo, que "tenta ler a complexidade do real sob a aparência simples dos fenômenos" (Morin, 2001; grifo nosso). Escondida na simplicidade dos gestos manuais dos operadores, se esconde a complexidade dos "gestos cognitivos" que garantem continuidade ao processo produtivo.

A negação da complexidade gera transtornos aos operadores no que se refere ao seu "trabalho cognitivo". Nas Ciências Cognitivas, essa negação atinge seu nível máximo no Cognitivismo.

O Cognitivismo é a abordagem tradicional das Ciências Cognitivas que afirma ser a cognição um processamento de informações sob a forma de manipulação simbólica por meio de regras objetivas (Varela et al., 2003; Teixeira, 1996, 1998). Segundo essa visão cognitivista tradicional, qualquer aparato que possa conter os símbolos e manipulá-los segundo regras objetivas funcionará de modo que produza fenômenos cognitivos. Para o cognitivismo, esses fenômenos podem ser soluções satisfatórias de problemas que resultam tão somente da correta representação, por meio de símbolos, de partes da realidade.

O cognitivismo é uma visão reducionista diante da complexidade. Esta última relaciona-se com incerteza, indeterminação e aleatoriedade que a automação microeletrônica não pode processar. Partindo da mesma lógica reducionista que busca definir, previamente, um conjunto de regras para processamento da informação proveniente do ambiente, os dispositivos artificiais "inteligentes" se vêem em dificuldade quando se trata de resolver um dado problema que o seu conjunto de regras não previu.

No cenário do processo de trabalho de base manual, o trato com a complexidade requer o uso de componentes do "sistema cognitivo" dos operadores, intrinsecamente relacionados às suas competências (com suas coordenadas de habilidades e aprendizagens adquiridas ao longo de uma história no processo produtivo (Bouyer, 2002)).

A contribuição de Leplat e Terssac (1990) e Leplat (2001), no tocante à compreensão da complexidade dos sistemas de operações e suas tarefas, consistiu em colocar a discussão em termos mais concretos, que têm a vantagem de incluir o operador e sua competência. Assim, ao falar em complexidade, é fundamental que se questione:

  • Complexidade do quê?
  • Complexidade para quem?
  • Complexidade para quê?

Uma mesma tarefa pode ser muito complexa para um operador e pouco para outro. Além disso, sua complexidade pode variar de acordo com o momento em que um mesmo operador a execute. Isso explica, segundo Leplat (2001), porque uma mesma tarefa poderá ser vivenciada como sendo menos complexa por um operador mais competente.

A complexidade de um sistema, segundo o mesmo autor, depende:

  • do número de elementos ou de variáveis envolvidas;
  • do número de relações envolvidas entre elas e a natureza das mesmas;
  • da opacidade do sistema sócio-técnico (fonte de incerteza);
  • do caráter dinâmico dos sistemas sócio-técnicos (irreversibilidade da ação; modificações, etc); da abertura da tarefa.

Assim, a complexidade da tarefa pode ser modificada por duas formas bem distintas e não-excludentes (podem ocorrer simultaneamente): pela modificação da operação propriamente dita e/ou pela modificação do operador.

Um avanço oferecido pela abordagem de Leplat (2001) é a perspectiva de relação, entre complexidade e competência (sobretudo em suas coordenadas cognitivas), de co-determinação (affordance). Não existe complexidade enquanto elemento objetivo, exteriorizado, ou objeto independente do sujeito (dissociação sujeito-objeto, comum nas abordagens tradicionais). O conceito de complexidade depende da relação estabelecida entre tarefa e operador.

Os próprios operadores já não mais percebem alguns dos problemas cognitivos ou interdições que poderiam ser evitados desde o projeto do sistema.

Todas as circunstâncias que envolvem uma determinada tarefa não podem ser completamente prescritas quando do seu projeto. Cada situação envolve, de forma inextrincável, o contexto em que ocorre e os aspectos dados pelas características específicas do momento, a variabilidade (das matérias-primas, dos estados das máquinas e dos próprios operadores). Donde se pode dizer que toda tarefa possui uma certa abertura (Leplat, 2001) que se choca com a tentativa de sua prescrição detalhada. Há situações de trabalho que são ricas em diversidade e oferecem a incerteza freqüentemente, não podendo ser enquadradas num modelo orientado pela lógica da certeza, como em alguns fenômenos de laboratório. Algumas situações de trabalho, em um sistema de operações, são, portanto, para os operadores, um frente-a-frente com a complexidade.

Sob esse aspecto, Keyser (1988) ofereceu vários exemplos mostrando que nos sistemas automatizados é possível se observar, com freqüência, uma busca de fontes de informação não previstas no projeto inicial. Trata-se de uma ampliação do campo da tarefa ou sua abertura, evidenciando a importância do contexto para um projeto mais fiel à realidade.

No processo de trabalho de base manual das plantas do setor automobilístico, observou-se o trato com a complexidade nas situações que remetem o controle cognitivo da ação para o nível mais elevado do esquema de Rasmussen (1986, 1994). Adotando o modelo da ACT de Anderson (1983), foi possível entender como, em tais circunstâncias, mesmo os operadores mais experientes retornam ao nível declarativo de modo a processar as informações necessárias à ação eficaz.

 

ANEXO B

ACT (Adaptative Control of Thought) na análise cognitiva do processo de trabalho

Os mecanismos cognitivos de adaptação ao ambiente de interdições (que conferem ao processo de produção continuidade e tendência de fluxo) foram apreendidos pela análise do processo de trabalho segundo o enfoque do Adaptative Control of Thought (ACT) de Anderson (1982, 1983).

Mesmo se tratando de uma abordagem computacional unitária, o ACT possui os méritos de ser a mais completa e ousada tentativa incorporar, num mesmo modelo, os pressupostos das ciências cognitivas filiadas ao processamento computacional de informação.

Independente dos julgamentos de valor sobre o ACT, o fato é que, no domínio ora empregado, qual seja, o de análise do processo de trabalho, ele se mostrou eficaz, mesmo que proponha englobar, num mesmo sistema subjacente, todas as funções cognitivas superiores, como memória, linguagem, representações, dedução e indução.

Nas situações em que o comportamento automatizado descrito por Anderson (1982) não mais é suficiente para resolver um problema, faz-se necessário uma outra forma de organização do conhecimento e de representação mental da situação, segundo uma estruturação mais conceitual. O último nível do esquema de Rasmussen (1986) e o estágio declarativo do ACT explicam bem essa estratégia.

Uma das principais vantagens do ACT é sua capacidade de ser aplicado em diferentes áreas experimentais. No caso em questão, o ACT foi útil para diferenciar os estágios de controle da ação, desde os que demandam atenção e controle conscientes até aqueles em que a ação se desenvolve de modo automático.

Nessas situações que demandam planejamento baseado em razões e intenções dos operadores, ou seja, o nível de controle da ação mais "sofisticado" do esquema de Rasmussen (1986), a interdição da ação é causada pela falta de tempo para elaboração das estratégias de indução e pela impossibilidade de se afastar da esteira para trocar informações necessárias à elaboração de estratégias hipotético-dedutivas. De acordo com o ACT, são obstáculos à elaboração de representações com base em conhecimento declarativo.

A atividade cognitiva do processo de trabalho foi sub-dividida de acordo com as três memórias de um sistema de processamento do tipo ACT:

  • Memória declarativa: contém conhecimento descritivo do sistema de operações da fábrica
  • Memória procedimental: contém informação para a execução das habilidades necessárias ao processo de produção da fábrica.
  • Memória de trabalho: memória de curto prazo que contém informação proveniente do mundo exterior e/ou proveniente das outras memórias, utilizada na execução das tarefas em tempo real.

Pode-se fazer uma analogia rudimentar entre os conteúdos das memórias declarativa e procedimental respectivamente com as expressões "saber que" e "saber como". A elaboração das entrevistas e a sua execução foram norteadas por essa analogia. O conhecimento declarativo é composto por informação a respeito de como está organizado o processo produtivo e o que nele ocorre. Ele nunca produz ações diretas sobre o funcionamento do processo, mas ativa o conhecimento procedimental que produz ações concretas. A memória declarativa possui uma estrutura em forma de rede hierárquica, envolvendo três tipos de unidades cognitivas: cadeias temporais, imagens espaciais e proposições.

As unidades cognitivas que chegarão à memória de trabalho (ativação) e que poderão influenciar o processamento serão aquelas que tenham uma maior freqüência de utilização ou que estejam emparelhadas com a informação contida na própria memória de trabalho. Avaliou-se, então, a freqüência de recuperação durante períodos da jornada de trabalho. A ativação é proporcional ao grau de associação da unidade cognitiva à informação em uso.

A força de ativação de cada unidade cognitiva seria, então, função de sua freqüência de uso. Entretanto, uma hierarquia se estabelece entre os mais fortes e os mais fracos e a ativação de uma unidade cognitiva se propaga através da rede hierárquica.

Assim, a freqüência de utilização determina a probabilidade de ativação de um conhecimento declarativo na memória de trabalho. Esses conhecimentos ativados atuam sobre o conhecimento procedimental.

Há uma semelhança entre a memória declarativa do ACT e os modelos de memória semântica, enquanto que a memória procedimental funciona conforme pares "condição-ação" dos sistemas de Newell & Simon (1972).

Na memória procedimental, o conhecimento se armazena sob a forma de pares "condição-ação". Uma situação que ocorre com freqüência numa das plantas estudadas é:

Condição: Se: peça encaixada no molde não firmar

Ação: Então: manter pressão manual até a peça estabilizar no molde.

O problema a ser resolvido, nesse tipo de situação, é equacionar, na ação, as três variáveis: "tempo necessário de manutenção da pressão manual"; "tempo disponibilizado segundo a velocidade da esteira rolante"; "indício para descarte da peça".

Quando há o emparelhamento entre o conhecimento declarativo ativo na memória de trabalho e a condição do procedimento, a ação será imediatamente executada. Assim, se uma peça escapa do molde, ao invés de deixá-la seguir na esteira rolante, o operador precisa decidir se, e durante quanto tempo, mantém a pressão manual na peça, ou se descarta a mesma por falha grave de qualidade. O que é "falha grave" depende do julgamento do operador.

Tanto a condição como a ação, em um procedimento, podem estar associados a mais de um elemento. De outro modo, o tempo certo de manutenção da pressão com as mãos não seria nunca percebido. Os procedimentos não costumam ser armazenados de modo isolado. A condição de eficácia do conhecimento que contêm é, justamente, a sua propriedade de intercâmbio com outros procedimentos, de tal maneira que a ação de um procedimento atenda a condição do seguinte. O conhecimento vai, progressivamente, se convertendo em procedimentos efetivos da ação. A solução de um problema, no setor produtivo, envolve a mobilização de procedimentos concatenados.

O ACT incorpora, então, o processamento de informação em três estágios sucessivos:

1 - Interpretação declarativa

2 - Compilação (procedimentação (PCD); composição (CMP)

3 - Ajuste (generalização (GNR); discriminação (DSC); fortalecimento (FRT)).

O objetivo final alcançado após o processamento da informação é a ação.

O principal postulado do ACT é que, por ser o conhecimento declarativo computacionalmente difícil em função das restrições da memória de trabalho, a sua automatização aumenta a eficácia do sistema mediante um processamento em paralelo que não sobrecarrega a memória de trabalho. É no segundo estágio de processamento (compilação) que a informação já pode ser tratada de forma automática, uma vez que o conhecimento declarativo converte-se em conhecimento procedimental.

O mecanismo fundamental do ACT é, portanto, a compilação. Esta consiste em dois subprocessos: A procedimentação (PCD) e a composição (CMP).

Na procedimentação (PCD), o conhecimento declarativo é transformado em procedimento. É neste subprocesso que ocorrem mudanças qualitativas no conhecimento, viabilizando sua aplicação de forma automática e com menor solicitação da memória de trabalho. Uma vez que a habilidade já se encontra automatizada, o operador não precisa processar verbalmente o conhecimento declarativo a cada ação.

Seguindo a procedimentação, surge o segundo subprocesso, a composição. Nesse segundo momento, unidades cognitivas (declarações, outros procedimentos) se fundem. Anderson (1982) postula a existência de uma "contigüidade lógica", segundo critérios lógicos, nas fusões (ou encadeamentos) da composição.

O terceiro estágio é o ajuste, formado por três mecanismos: generalização (GNR), discriminação (DSC) e fortalecimento (FRT).

  • Generalização (GNR): Ampliação do campo de aplicação de uma unidade cognitiva. Baseia-se na semelhança entre as condições de aplicação de uma unidade cognitiva de uma situação atual com outras pretéritas.
  • Discriminação (DSC): Restrição do campo de aplicação de uma unidade cognitiva. É necessária experiência prévia de casos de aplicações bem sucedidas e mal sucedidas da unidade cognitiva. Baseia-se num processo de busca aleatória na memória procedimental (Anderson et al., 1980).
  • Fortalecimento (FRT): Emparelhamento mais rápido das unidades cognitivas mais fortes com as informações da memória de trabalho, aumentando a probabilidade de utilização. A força de uma unidade cognitiva define a sua freqüência de ativação (em sintonia com as demandas das situações práticas envolvidas nas rotinas das fábricas). A cada aplicação com êxito, a força da unidade envolvida é aumentada.

A Tabela 3 contém uma descrição resumida dos estágios do ACT aplicadas ao processo de trabalho das fábricas estudadas.

 

ANEXO C

"Resolver um problema" nos sistemas de operações

Para Rasmussen (1986), "resolver um problema" é um conceitopreciso. Um problema, segundo o próprio autor, é aquilo que, num dado ambiente, demanda ações humanas que não se resumem em reprodução mecânica de comportamentos adquiridos pelas experiências prévias. Ao invés disso, o "problema" requer, para a sua solução, deduções resultantes de uma representação mental da sua estrutura causal (ou intencional, quando associada às razões...) e do estado de funcionamento do ambiente. Isso ocorre no nível mais alto do esquema, ou seja, naquele denominado pelo autor como "nível dos comportamentos baseados em conhecimentos", no qual um modelo mental é mobilizado para acolher a representação simbólica da situação, em seu contorno conceitual mais refinado.

A solução de um problema num contexto de interdições não se resume na aplicação de estratégias automatizadas ou compiladas. Envolve o uso de componentes de representação que se sintonizam com razões e intenções do operador (Rasmussen, 1986), definição de planos e estratégias e a antecipação a problemas vindouros, elementos esses que se apóiam num conhecimento mais elaborado de nível conceitual (o nível mais alto do esquema de Rasmussen (1986, 1994)).

O conceito de "solução de problemas" está, na engenharia cognitiva, estreitamente relacionado ao conceito de representação. A complexidade de um problema, para o operador, está vinculada aos elementos que comprometem o que Keyser (1988) chama de "demanda cognitiva associada à antecipação ou predição do comportamento do mundo" (no caso em questão, "mundo" significa os sistemas de operações das fábricas) e a necessidade de ser hábil para elaborar uma estratégia dentro da temporalidade intrínseca desses sistemas produtivos.

A organização do trabalho impõe severas restrições a essas demandas cognitivas, o que exige, por parte dos operadores, níveis cada vez mais elaborados de elaboração de estratégias mentais para solucionar problemas.