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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.4  Rio de Janeiro mar. 2005

 

Revisão

 

Desenvolvimento cognitivo e o processo de aprendizagem do portador de síndrome de Down: revendo concepções e perspectivas educacionais

 

The cognitive development and the learning process of people with Down syndrome: reviewing concepts and educational perspectives

 

 

Maria Luísa Bissoto

Centro Universitário de Araras Dr. Edmundo Ulson, SP, Brasil

 

 


Resumo

Esse artigo é uma revisão bibliográfica de relevantes investigações realizadas na Inglaterra e nos Estados Unidos, a partir da década de 1990, quanto ao desenvolvimento cognitivo do portador de Síndrome de Down e os impactos que os resultados dessas investigações podem ter sobre seu processo de aprendizagem, tanto em termos de elaboração de recursos e metodologias educacionais, quanto em termos de compreensão das especificidades desse processo. Em nosso entender essa revisão é necessária, pois várias concepções quanto ao desenvolvimento cognitivo do portador de Síndrome de Down estão estereotipadas, originando perspectivas distorcidas de atenção a esse.

Palavras-Chave: síndrome de Down; cognição; aprendizagem.


Abstract

This paper is a bibliographical review of relevant researches that have been accomplished in England and in the United States, from the 1990's, about the cognitive development of the people with Syndrome of Down and the impacts that the results of these researches can have on its learning process both concerning at the elaboration of resources and educational methodologies and at the understanding of the singularities of this process. In our comprehension this review is necessary, therefore several conceptions related to the cognitive development of the person with Syndrome of Down are stereotyped arising distorted perspectives of attention to this.

Key words: Down syndrome; cognition; learning.


 

 

Introdução

O desenvolvimento cognitivo do portador de Síndrome de Down se mostra usualmente marcado por concepções tradicionalmente estabelecidas e sedimentadas, que acabam por assumir o caráter de inquestionáveis, balizando as perspectivas e práticas adotadas nos procedimentos de reabilitação e na educação familiar e escolar. Contudo, com o avanço de pesquisas que investigam essa Síndrome, realizadas em diversos países e em vários campos do conhecimento, tem-se levantado que muitas dessas concepções se mostram errôneas e estereotipadas; necessitando serem revistas. Esse texto tem o objetivo de contribuir para aclarar algumas dessas concepções, sintetizando numa revisão bibliográfica algumas relevantes considerações em relação aos aspectos cognitivos e aos processos de aprendizagem do portador de Síndrome de Down, feitas a partir da década de 1990. Isso se faz importante, pois a revisão de concepções permite novas perspectivas de compreensão e de intervenção nos processos de desenvolvimento cognitivo dos portadores de Síndrome de Down, impulsionando a qualidade da aprendizagem desse.

 

Considerações quanto ao desenvolvimento cognitivo do portador de Síndrome de Down

A Síndrome de Down se caracteriza, em sua etiologia, por ser uma alteração na divisão cromossômica usual, resultando na triplicação - ao invés da duplicação - do material genético referente ao cromossomo 21. A causa dessa alteração ainda não é conhecida, mas sabe-se que ela pode ocorrer de três modos diferentes. Em 96% dos casos, essa trissomia se apresenta por uma não-disjunção cromossômica total: conforme o feto se desenvolve, todas as células acabam por assumir um cromossomo 21 extra. Em cerca de 4% dos casos, entretanto, ou os portadores não têm todas as células afetadas pela trissomia, sendo denominados como casos "mosaico" (entre 0,5 - 1%), ou desenvolvem a síndrome de Down por translocação gênica (entre 3,0 - 3,5%), caso em que parte ou todo o cromossomo 21 extra se encontra ligado a um outro cromossomo, geralmente o cromossomo 14. A síndrome de Down freqüentemente acarreta complicações clínicas que acabam por interferir no desenvolvimento global da criança portadora, sendo que as mais comumente encontradas são alterações cardíacas, hipotonia, complicações respiratórias e alterações sensoriais, principalmente relacionadas à visão e à audição.

Embora as diferentes formas de manifestação da trissomia possam provocar variações físicas, clínicas e nas capacidades cognitivas, existem poucos estudos comparativos que possam atestar as reais diferenciações existentes entre os três grupos de portadores de Síndrome de Down. Os estudos existentes mostram resultados diversos. Rondal e Comblain (1996) afirmam que há diferenças no potencial intelectual e nas habilidades de linguagem entre os portadores de mosaicismo e os portadores da forma típica da síndrome, atribuindo essa diferenciação a um menor número de células neurais afetadas, no caso do mosaicismo; o que apóia as concepções mais freqüentemente encontradas. Porém, pesquisa longitudinal e comparativa entre portadores de mosaicismo e da forma típica da síndrome, realizada por Leshin e Jackson-Cook (ver Jackson-Cook, 1996), não apontaram diferenças significativas entre os dois grupos. Crianças portadoras de síndrome de Down mosaico alcançaram em idades mais precoces o engatinhar e a deambulação, mas diferenças maiores não foram encontradas em relação ao desenvolvimento da aprendizagem.

Uma concepção infelizmente ainda muito presente em relação aos portadores de Síndrome de Down, e que será mais adiante discutida, é a de que esses se desenvolvem, todos, da mesma forma, ou seja, apresentam as mesmas características, incapacidades e limitações orgânicas, motoras e cognitivas; numa aparente continuidade do pensamento de um dos primeiros pesquisadores da síndrome, o Dr. J. Langdon Down que, em meados do século XIX, "catalogava" todos os portadores dessa síndrome numa espécie de sub-raça humana, a raça "mongolóide". A concepção de que o portador de síndrome de Down não constitui uma "raça" à parte, mas que apresenta, como qualquer outro representante da espécie humana, peculiaridades individuais de personalidade e no curso de seu desenvolvimento neuropsicomotor, vem ganhado espaço lentamente; e é de fundamental importância quando se pensa na influência que essa mudança de concepção tem na elaboração de estratégias de ensino, de programas de reabilitação, de orientação profissional, dentre outros.

Outra concepção também freqüentemente encontrada é a de que o portador de síndrome de Down alcança o ápice de seu desenvolvimento cognitivo, da linguagem e de esquemas motores ao atingir a adolescência, iniciando-se, então, um declínio dessas capacidades. Muito embora se estabeleça atualmente que portadores de Síndrome de Down apresentem possibilidades mais elevadas do que o restante da população de desenvolver a Doença de Alzheimer1 estudos realizados por Devenny e colaboradores (1992) com portadores de Síndrome de Down de alto rendimento (capacidades cognitivas média e moderadamente afetadas), num acompanhamento longitudinal de cinco anos, não revelaram achados significativos a apoiar a hipótese de co-relação entre envelhecimento e decréscimo das faculdades cognitivas dos portadores de Síndrome de Down. As pesquisas de Devenny e colaboradores (1992) encontram respaldo naquelas desenvolvidas por Holland (1997), de acordo com as quais as características de declínio das capacidades cognitivas do portador dessa Síndrome, caso as haja, devem ser cuidadosamente investigadas antes de serem atribuídas à demência (Alzheimer, principalmente) ou ao envelhecimento, pois podem decorrer de fatores outros, tais como situações de stress próprias à vida de todo aquele que envelhece (falecimento de pessoas próximas, declínio físico geral, limitações econômicas...), depressão, problemas com a acuidade visual e auditiva, mau funcionamento da glândula tireóide, entre outros.

Buckley e Bird (1994) levantam várias características relevantes quanto ao desenvolvimento cognitivo e lingüístico da criança portadora de síndrome de Down em seus primeiros cinco anos de vida, aqui sumarizadas:

  • O atraso no desenvolvimento da linguagem, o menor reconhecimento das regras gramaticais e sintáticas da língua, bem como as dificuldades na produção da fala apresentados por essas crianças resultam em que apresentem um vocabulário mais reduzido, o que, freqüentemente, faz com que essas crianças não consigam se expressar na mesma medida em que compreendem o que é falado, levando-as a serem subestimadas em termos de desenvolvimento cognitivo.
  • Essas mesmas alterações lingüísticas também poderão afetar o desenvolvimento de outras habilidades cognitivas, pois há maior dificuldade ao usar os recursos da linguagem para pensar, raciocinar e relembrar informações.
  • Vários estudos (ver abaixo) têm atestado que crianças portadoras de Síndrome de Down apresentam uma capacidade de memória auditiva de curto-prazo mais breve, o que dificulta o acompanhamento de instruções faladas, especialmente se elas envolvem múltiplas informações ou ordens/orientações consecutivas. Essa dificuldade pode, entretanto, ser minimizada se essas instruções forem acompanhadas por gestos ou figuras que se refiram às instruções dadas.
  • No mesmo sentido, por apresentarem habilidades de processamento e de memória visual mais desenvolvidas do que aquelas referentes às capacidades de processamento e memória auditivas, as crianças portadoras de Síndrome de Down se beneficiarão de recursos de ensino que utilizem suporte visual para trabalhar as informações.
  • É imprescindível que às crianças portadoras de Síndrome de Down seja dada toda a oportunidade de mostrar que compreendem o que lhes foi dito/ensinado, mesmo que isso seja feito através de respostas motoras como apontar e gesticular, se ela não for capaz de fazê-lo exclusivamente de forma oralizada.

Em relação aos déficits na memória auditiva de curto-prazo, estudos comparativos realizados por Bower e Hayes (1994) entre crianças portadoras de Síndrome de Down e crianças que apresentavam dificuldades específicas de aprendizagem ligadas a outras etiologias, apontaram que houve maior dificuldade das crianças portadoras de Síndrome de Down em executar os testes relacionados à memória auditiva de curto-prazo, corroborando achados de outros pesquisadores. Bower e Hayes (1994: 49) alertam para as repercussões desses achados na escolarização dos portadores de Síndrome de Down:

"Este estudo tem algumas implicações práticas para crianças, adolescentes e adultos com Síndrome de Down e tem enfatizado que crianças com Síndrome de Down têm necessidades educacionais relacionadas às dificuldades específicas que elas apresentam na área de processamento da memória de curto-prazo, e conseqüentemente no desenvolvimento da linguagem expressiva e receptiva. Esses achados são importantes para pais, educadores, terapeutas e pesquisadores ligados ao desenvolvimento continuado das pessoas com Síndrome de Down."

Estudos realizados por Marcell (1995) quanto ao desempenho de adolescentes portadores de Síndrome de Down em termos de memória auditiva de curto-prazo também confirmaram que esse desempenho se mostra deficitário nesse grupo, mesmo em condições de controle que minimizavam distrações auditivas e visuais. Adicionalmente, o mesmo autor considera que o déficit na memória de curto-prazo não aparentou estar relacionado a um déficit intelectual, nem tampouco pareceu estar casualmente relacionado à desatenção.

Conquanto a dificuldade na memória auditiva dos portadores de Síndrome de Down pareça estar bem estabelecida, as causas dessa dificuldade ainda se mostram objeto de discussão. Pinter e colaboradores (2001) realizaram investigações neuroanatômicas comparativas de portadores de Síndrome de Down com idades entre 5 e 23 anos, e crianças e jovens da mesma idade, mas que não eram portadores da síndrome, através de ressonância magnética de alta-resolução. Analisando principalmente as medidas de áreas específicas do encéfalo e a composição do tecido nervoso, o grupo de pesquisadores encontrou, mais significativamente, menores volumes de matéria cinzenta e branca no cérebro dos portadores de Síndrome de Down, além de hipoplasia cerebelar; dados que corroboram achados anteriores de outros estudos. A hipoplasia cerebelar tem sido relacionada à hipotonia generalizada, bem como a dificuldades motoras e distúrbios articulatórios, apresentados pelos portadores de Síndrome de Down. O volume dos lobos frontais, também significativamente reduzido nos portadores da Síndrome de Down, parece ser o responsável pelos déficits cognitivo, incluindo a falta de atenção e a tendência à perseveração. Entretanto, a hipótese de que nos portadores da síndrome haveria uma redução no giro superior temporal, justificando as dificuldades no processamento auditivo e na linguagem, não foi confirmada.

Caycho e colaboradores (1991) investigaram a cognição matemática do portador de Síndrome de Down, principalmente quanto à habilidade para contar, concluindo que o portador de Síndrome de Down é capaz, sim, de desenvolver princípios cognitivos de contagem, estando o nível de complexidade dessa habilidade mais relacionada a comportamentos envolvendo esses princípios, do que a limitações impostas pela base genética da síndrome; discordando de resultados anteriormente apontados por Gelman, em 1988. Outras investigações também têm posto a relação entre dificuldades na cognição matemática e especificidades "estruturais" da síndrome em xeque (Nye et al., 2001). Estes pesquisadores apontam resultados de pesquisas que relacionam dificuldades no raciocínio lógico-matemático, principalmente à habilidade de aprender a contar, há uma defasagem na linguagem receptiva, na qual estão envolvidas a memória e o processamento auditivo de informações. Nessa perspectiva, essas dificuldades, embora ainda relacionadas a especificidades referentes à síndrome, estão também ligadas a fatores culturais, principalmente quanto ao modo como o conhecimento/raciocínio lógico-matemático é apresentado ao portador de Síndrome de Down; podendo, portando, serem minimizadas. Nye e colaboradores (1995) já haviam realizados estudos afirmando que a performance quanto ao raciocínio lógico-matemático mostra-se mais aprimorada entre os portadores de Síndrome de Down, tomando por base o desempenho de portadores da síndrome de décadas atrás, apontando, como uma possível justificativa, a inclusão de um maior número de portadores no sistema regular de ensino (britânico), ampliando assim a exposição desses à "alfabetização" matemática (numeracy).

Porter (1999), também levantou indagações em relação às dificuldades lógico-matemáticas apresentadas pelo portador de Síndrome de Down. Essas indagações se dirigem a saber se essas dificuldades podem ter, como pano de fundo, um não investimento, por parte de pais e professores, em ensinar os fundamentos matemáticos aos portadores de Síndrome de Down, resultante da visão estereotipada de que esses não desenvolverão - ou desenvolverão pouco - habilidades numéricas, ou, ainda, quanto à propriedade das metodologias instrucionais utilizadas.

Considerações adicionais quanto aos processos cognitivos das crianças portadoras de Síndrome de Down, agora relacionadas aos estilos de aprendizagem e à motivação para o aprendizado, são encontradas em Wishart (1996, 2001). Ela sugere evidências de que, de forma geral, podem-se observar três características centrais nos processos espontâneos de aprendizagem dessas crianças:

  • Um crescente uso de estratégias de "fuga", quando confrontadas com a aprendizagem de novas habilidades,
  • Uma crescente relutância para tomar a iniciativa em situações de aprendizagem,
  • Uma sobre-dependência de outros ou uma má utilização de habilidades sociais (atitudes para "chamar a atenção", como afastamento ou retraimento, distração do grupo para outros eventos, demonstrações exacerbadas de afetividade, birra...) em situações de solicitações cognitivas mais complexas.

No entender de Wishart (1996, 2001), explicações para tais condutas, que surgem mesmo quando as situações de aprendizagem estão ao alcance das habilidades cognitivas já desenvolvidas pelas crianças, podem estar relacionadas às várias experiências negativas de aprendizagem vividas por uma criança portadora de Síndrome de Down, ao longo de sua educação formal e informal. O acúmulo das tensões resultantes dessas vivências poderia explicar a baixa motivação que elas apresentam para se engajarem de forma mais ativa às situações de aprendizagem encontradas. Uma outra razão poderia estar na concepção estereotipada de que as crianças portadoras de Síndrome de Down, apesar das dificuldades cognitivas, apresentam características comportamentais "compensatórias", como uma grande afetividade, docilidade de comportamento e felicidade. Mesmo que esse seja um "estereótipo positivo" (Wishart, 2001) - observando-se que não há ainda estudos significativos sobre o desenvolvimento da personalidade do portador de Síndrome de Down2 - ele não ajuda muito em termos das expectativas de pais e profissionais quanto ao desenvolvimento das habilidades cognitivas; e assim da motivação a impulsionar o aprendizado dessas crianças.

 

O desenvolvimento cognitivo e os processos de aprendizagem do portador de Síndrome de Down: correlações necessárias

Quais as implicações que esses achados científicos e concepções mais atuais quanto ao desenvolvimento cognitivo dos portadores de Síndrome de Down podem trazer para o aprimoramento dos procedimentos educacionais e terapêuticos dessas pessoas?

Uma importante repercussão, relacionada ao uso intenso de recursos educacionais visuais a apoiar a aprendizagem do portador de Síndrome de Down, já foi anteriormente referida. Investigações nesse sentido têm sido feitas por Foreman e Crews (1998), utilizando os recursos de diferentes sistemas de comunicação aumentativos/ alternativos no atendimento aos portadores de Síndrome de Down. Foreman e Crews afirmam que o uso interligado de sinais (imagens/gestos) associados à fala, na comunicação com crianças portadoras de Síndrome de Down que ainda não desenvolveram a linguagem (bebês e crianças até 03 anos), pode reduzir as dificuldades de comunicação encontradas por essas crianças mais tarde, melhorando o padrão da fala e o conteúdo da linguagem.

Posições contrárias às afirmações acima se referem principalmente a três pontos: (a) receio de que o uso de sistemas de comunicação aumentativos/alternativos possam deixar a criança "preguiçosa" em relação ao uso da linguagem oralizada, (b) o preconceito da sociedade em relação aqueles que se utilizam de comunicação pictográfica/gestual, pois a norma geral é a linguagem oralizada e (c) a dificuldade da família em aprender os símbolos/sinais e em usá-los corretamente.

Foreman e Crews (1998), que partem do princípio de que as crianças portadoras de Síndrome de Down compreendem mais do que conseguem expressar, contestam esses pontos. Sua argumentação é a de que as crianças que foram expostas ao uso de sistemas de comunicação alternativos/ aumentativos, concomitantemente ao uso da linguagem oral, mostraram-se menos frustradas em suas relações interpessoais e de aprendizagem por conseguirem expressar melhor desejos e pensamentos, além de terem enriquecido sua linguagem básica com novos conceitos. Embora reconhecendo que o uso de sistemas alternativos/aumentativos não seja a solução definitiva para os problemas de linguagem do portador de Síndrome de Down, Foreman e Crews (1998) defendem que o uso desses sistemas permite que a criança alcance uma intervenção comunicativa de melhor qualidade junto ao seu meio, possibilitando e encorajando-a a "firmar-se" nesse meio com maior propriedade.

Buckley e colaboradores (1993) também defendem o uso de sistemas de comunicação aumentativos/alternativos como recurso para facilitar a aprendizagem dos portadores de Síndrome de Down. Partilhando a hipótese de Foreman de que a compreensão dos portadores de Síndrome de Down é mais ampla do que aquela que eles conseguem, verbalmente explicitar, Buckley desenvolve, desde a década de 1980, investigações quanto ao aprendizado de leitura/escrita do portador de Síndrome de Down utilizando predominantemente atividades visualmente/gestualmente apoiadas (ver Buckley e colaboradores, 1993, cap. 5).

Considerando ainda que uma grande porcentagem dos portadores de Síndrome de Down apresenta variadas intercorrências visuais (que vão desde comprometimentos da acuidade visual até uma maior dificuldade de fixação olho-objeto devido à hipotonia dos músculos ópticos) e auditivos3, Buckley e colaboradores (1993) observam que alguns cuidados cotidianos na interação com o portador de Síndrome de Down podem impulsionar em muito o seu processo de aprendizagem. Entre esses cuidados está o apoiar em sinais e símbolos gráficos a fala e as instruções/informações dadas, falar clara e descritivamente - evitando o excesso de palavras, mas narrando ações/situações e usando adjetivos e advérbios que ajudem à composição de um todo compreensivo mais amplo, proporcionando adicionalmente "pistas" para facilitar a percepção dos códigos e padrões lingüísticos cotidianamente usados na linguagem falada - e com a face voltada para a pessoa portadora e, sobretudo, para que se dê tempo e oportunidades para que essa processe as informações e comunique-se satisfatoriamente.

Recursos de treinamento da memória também foram utilizados por Buckley e colaboradores (1993) como forma de intervir na defasagem da memória auditiva de curto-prazo, com resultados bastante positivos. Esse treinamento envolveu técnicas de rememoração da informação prévia enquanto nova informação estava sendo transmitida e de categorização das informações de forma a facilitar a recuperação dessas.

Buckley e Bird (1994, cap. 4), discutem várias formas de impulsionar o aprendizado matemático do portador de Síndrome de Down, considerando principalmente relevantes a utilização/ensino interdisciplinar (tanto em relação aos professores e pais, quanto em relação aos terapeutas) de vocabulário matemático, como por exemplo, aquele relacionado a medidas, volume, comparações, quantidade, ações - ponha mais um, quantas vezes você jogou...- e o uso de suportes para manter presente e recuperar a informação, tais como ábaco, quadros numerados, cartões com quantidade/numeral em relevo, números de borracha/plástico, objetos de contagem, computador, entre outros.

 

Conclusão

Conquanto ainda haja muita discussão quanto à natureza do processo de desenvolvimento do portador de Síndrome de Down, havendo argumentações que se dirigem a entender esse desenvolvimento como "apenas" mais lento do que o desenvolvimento neuropsicomotor típico, ou como acompanhando o desenvolvimento neuropsicomotor típico em algumas fases, diferenciando-se em outras, ou ainda que haja a mesma sucessão de fases, havendo diferenciação em especificidades do desenvolvimento (ver Nye e colaboradores, 1995), parece haver uma forte tendência a considerar esse desenvolvimento como essencialmente balizado pelos efeitos das alterações cromossômicas próprias dessa síndrome. Essa perspectiva leva a que se considere que os portadores de Síndrome de Down devem se desenvolver da mesma maneira, com limitações de aprendizagem e de desenvolvimento cognitivo, assim como de habilidades sociais e de peculiaridades comportamentais, até agora "conhecidas".

Entretanto, vários estudos contrabalançam essa tendência, apontando que o desenvolvimento do indivíduo portador de Síndrome de Down é, tanto quanto o de qualquer não portador, resultante de influências sociais, culturais e genéticas; incluindo-se aí as expectativas havidas em relação às suas potencialidades e capacidades e os aspectos afetivo-emocionais da aprendizagem. Deve-se então observar que, muito embora os portadores de Síndrome de Down apresentem características peculiares de desenvolvimento, isso não se constitui numa uniformidade a predizer comportamentos e potencialidades. Mesmo do ponto de vista genético é preciso lembrar, como alerta Jackson-Cook (1996), que o portador de Síndrome de Down também possui 22 outros pares de cromossomos, que lhe conferem um pool de diversidade.

A ação educacional ou terapêutica adotada em relação ao portador de Síndrome de Down precisa levar em consideração a concepção de que há necessidades educacionais próprias de aprendizagem relacionadas a especificidades resultantes da síndrome, que devem ser investigadas, reconhecidas e trabalhadas através de técnicas apropriadas, sendo importante a adoção de uma diversidade de recursos instrucionais - e de outras compreensões do tempo/espaço escolar e pedagógico - de maneira a propiciar que as informações sejam mais efetivamente compreendidas/interpretadas. Por outro lado, as ações educacionais e terapêuticas devem também se levar em conta o entendimento de que cada portador de Síndrome de Down possui um processo de desenvolvimento particular, fruto de condições genéticas e sócio-históricas próprias. As políticas de Educação Inclusiva4 também encontram raízes e justificativas nessa idéia.

Acredita-se que o desenvolvimento cognitivo do portador de Síndrome de Down será tão mais efetivo quanto menor forem os estereótipos a limitarem as concepções que se tem desse.

 

Referências Bibliográficas

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Notas

M. L. Bissoto
Endereço para contato: Rua Prudente de Moraes, 1341/172, B. Alto, Piracicaba, SP 13419-260, Brasil.
E-mail: malubissoto@yahoo.com.

(1) Segundo Bosch (2004), 75% dos portadores de Síndrome de Down, com 60 anos ou mais, apresentam a Doença de Alzheimer; sendo que na população que não apresenta síndrome de Down a média de afetados pelo Alzheimer varia entre 30-50%, aos 85-90 anos.
(2) Para um dos poucos trabalhos nesse campo ver o artigo de Moore, D.G.; Oates, J.; Hobson P. e Goodwin, J. (2002) Cognitive and social factors in the development of infants with Down syndrome. Downs Syndr. Res. Pract. J.,  8, 43-52.
(3) A audição parece se mostrar particularmente afetada: entre 60% e 80% dos portadores de Síndrome de Down apresentam, crônica ou com freqüência regular, dificuldades na audição. Essas podem se originar em aspectos anatômicos do aparato auditivo, em quadros de doenças respiratórias ou mesmo pelo acúmulo de secreções. Para mais informações visite o site da National Down Syndrome Society: http://www.ndss.org.
(4) É relevante ressaltar que vários dos autores citados consideram que a educação do portador de Síndrome de Down em classes regulares de ensino contribui, em muito, para avanços em seu processo de aprendizagem. Ver especialmente os trabalhos de Buckley e Bird (1994), Foreman (1998) e Wishart (1996).