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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.4  Rio de Janeiro Mar. 2005

 

Resenha

 

Por uma democracia cognitiva: a reforma do pensamento e do ensino na visão de Edgar Morin

 

For a cognitive democracy: the reform of the thinking and of the teaching in the Edgar Morin's point of view

 

 

Gláucio Aranha

Programa de Literatura Comparada, Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil; Núcleo de Estudos Humanísticos Transdisciplinares, ICC, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil

 

 


Resumo

Este trabalho apresenta algumas considerações sobre o livro "A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento" de Edgar Morin, Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, ISBN 85-286-0764-X, 9ª. edição, 2004. 128 páginas.

Palavras-chave: complexidade; educação; ensino.


Abstract

This work presents some considerations about the book "A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento", de Edgar Morin, Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, ISBN 85-286-0764-X, 9a. edição, 2004. 128 pages.

Keywords: complexity; education; teaching.


 

 

 

Em A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, Morin vem apresentar um trabalho de sensibilização para a questão da complexidade, rubrica que representa o centro gravitacional de seu trabalho acadêmico, na Educação e no Ensino, tendo como objetivo principal a necessidade de uma reformulação de paradigmas que contribuam para o desenvolvimento de uma autonomia do espírito de busca. Para tanto, aponta como premissa fundamental na formação educacional, o dever de encorajamento do auto-didatismo para o surgimento do que considera uma "cabeça bem-feita".

Inicialmente são apresentados os pontos vistos por Morin como desafios para que se estabeleça uma ampla reforma do pensamento acadêmico rumo a uma democracia cognitiva. O primeiro ponto levantado trata da hiperespecialização, cuja particularização exacerbada pelo recorte cada vez menor acaba conduzindo a uma perda da contextualização e, com isto, de aspectos essenciais que muitas vezes somente podem ser apreensíveis tendo-se uma visão global do objeto investigado. Deste modo, apesar do desenvolvimento das disciplinas científicas ter colaborado, sem sombra de dúvida, para o conhecimento humano e para a elucidação de aspectos universais, seu extremismo conduziria para estados de ignorância e cegueira à medida que perde sua noção de interdependência. Neste sentido, Morin adverte: "uma inteligência incapaz de perceber o contexto e o complexo planetário fica cega, inconsciente e irresponsável" (2004:15). Morin está, portanto, chamando a atenção para a própria existência do caráter complexo do saber, procedimento que remete a outros trabalhos seus, tais como A ciência com consciência (2002) e Por uma reforma do pensamento (1999).

Em face de tais aspectos, ressalta a necessidade de se pensar a questão do ensino, levando em consideração pontos não só como a hipercompartimentação dos saberes, mas também como os obstáculos encontrados na articulação e debate destes saberes. Chega, assim, ao que chamará de "Babel descontrolada", do fenômeno contemporâneo de multiplicação vertiginosa da produção de informação e sua problemática (sobre o tema: Mattelart, 2002; Dupas, 2000). Por fim, aponta como outro desafio para uma reforma do pensamento a dificuldade de integração do conhecimento desenvolvido como ferramenta útil para a humanidade no tocante às questões de ordem prática de nossa é poça.

Seguindo com o tema, Morin trabalha a necessidade de se estruturar um perfil cognitivo capaz de dar conta dos desafios acima expostos. Face o quê sugere a constituição de "uma cabeça onde o saber é acumulado, empilhado, e não dispõe de um princípio de seleção e organização que lhe dê sentido" (2004: 21). Trata-se, em última instância, de uma inteligência geral cuja atividade crítica se desenvolva através do exercício da dúvida, sendo importante frisar que o referido "acúmulo" pressupõe uma aptidão para a organização flexível do saber acumulado, não se tratando, obviamente, de um mero arquivo de dados. A organização flexível deve ser entendida aqui como a capacidade de tradução e reconstrução do conhecimento adquirido de tal modo que este comporte "separação e ligação, análise e síntese" (2004: 24), sendo, assim, capaz de inserir determinado conhecimento em um contexto, situando-o globalmente sem contudo perder de vista seu caráter particular. Nas palavras de Morin: "o desenvolvimento da aptidão para contextualizar e globalizar os saberes torna-se imperativo da educação" (2004:24). É importante notar que a instauração deste modelo de inteligência, tal como preconiza Morin, caberia ao próprio sistema educacional, desenvolvendo-se um novo espírito científico ao qual se somaria uma renovação do espírito da cultura das humanidades.

Desenvolvendo o tema da reforma do pensamento, é apresentada uma reflexão sobre a condição humana em face da nova perspectiva proposta, partido do seguinte postulado: "a humanidade não se reduz absolutamente à animalidade, mas, sem animalidade, não há humanidade" (2004: 40). Decorre daí, portanto, um prisma duplo na conceituação da Condição Humana para Morin, sendo uma biofísica e outra psicossociocultutal. Entre estes dois aspectos não há que falar de autonomia absoluta, sendo fulcral para a visão do caráter complexo a sempre presente percepção da interdependência dos fatores. Desta relação, emergiriam, por exemplo, as grandes obras de arte como concepções estéticas do mundo que revelam de modo profundo o pensamento humano sobre sua própria condição.

Posteriormente, é retomada a questão da Educação com ênfase no seu dever de ferramenta para o estabelecimento de um estado que transcende a mera informação, isto é, um dever da Educação o desenvolvimento da capacidade de transformar conhecimento em sabedoria, informação em experiência de vida. Para tanto, caberia pensar a cultura das humanidades como escolas de preparação para a vida no sentido de formação da expressão plena no trato com o outro, da emoção estética, da descoberta de si, do conhecimento da complexidade humana, da compreensão daquilo que pela lente do senso comum se faz invisível. Ao tomar tal posição teórica, Morin não está de modo nenhum advogando no sentido da existência de um conhecimento definitivo e verdadeiro sobre a vida. Muito pelo contrário, afirma que "conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza" (2004: 59).

Nestes termos, Morin dá início propriamente dito à sua concepção do que viria a ser uma "reforma do pensamento". Partindo do princípio de Pascal sobre a interdependência entre Parte e Todo na produção do conhecimento, avança tendo como estandarte o princípio segundo o qual "é preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento de complexo, no sentido originário do termo 'complexus': o que é tecido junto" (2004: 89). Justamente pautado sobre a visão do saber como um tecido único é que o autor clama por uma reforma, que longe de partir de um marco zero, partiria, sim, de uma intensa convergência do saber até então produzido pelas ciências de modo isolado, fragmentado. A complexidade diria respeito a um conjunto de eventos, com ênfase naqueles relacionados com o saber científico do final do século XIX em diante.

No intuito de apresentar bases metodológicas que sirvam com instrumental para a edificação da reforma sugerida, Morin aponta sete diretivas (complementares e interdependentes), a saber: 1) o princípio sistêmico ou organizacional, o qual ligaria o conhecimento das partes ao conhecimento do todo, opondo-se à concepção reducionista por meio da visão sistêmica; 2) o princípio 'hologrâmico', que trata da posição global de que tanto a parte se inscreve no todo quanto o inverso também se verifica; 3) o princípio do circuito retroativo, referindo-se à teoria introduzida por Norbet Wiener (1954), a qual se opõe ao princípio da causalidade linear em face da existência de processos auto-reguladores através dos quais os efeitos também atuam sobre as causas; 4) o princípio do circuito recursivo, entendido como um sistema na qual produtos e efeitos devem ser percebidos simultaneamente como produtores e causadores daquilo que os produz; 5) o princípio da autonomia/dependência (auto-organização), que trata os seres vivos como seres inerentemente auto-organizadores que desprendem e demandam energia, sendo por conseguinte inseparáveis do meio em que vivem (Navarro, 2004); 6) o princípio dialógico, que remete à fórmula de Heráclito, concebendo uma relação dialética da existência na relação constante e indissociável entre ordem, desordem e organização; 7) o princípio da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento, o qual viria apontar todo conhecimento como sendo uma reconstrução de outros conhecimentos, tendo como diferencial a cultura e a época em que é produzido.

Para a instauração desta reforma, Morin reforça a idéia de que o ponto de partida deve ser a retomada da missão do ensino, não se limitando ao exercício de uma função, de uma atividade profissional, mas assumindo também "uma tarefa de saúde pública". O ensinar estaria assim imbuído da missão de transferência não só de informação, mas sobretudo de competência, formando capacidades culturais que sejam úteis para uma mentalidade distintiva, contextualizante, multidimencional capaz de preparar mentes para o enfrentamento de desafios impostos pela crescente complexidade dos problemas humanos. Estaria inscrito nesta competência o preparo para lidar com as incertezas, fomentando a estruturação de inteligências estratégicas. Instaura-se, portanto, a necessidade de ultrapassar o senso de que o papel da ciência e do ensino é suficiente enquanto problematização do homem e da natureza.

"O desenvolvimento de uma democracia cognitiva só é possível com a reorganização do saber; e esta pede uma reforma do pensamento que permita não apenas isolar para conhecer, mas também ligar o que está isolado, e nela renasceriam, de uma nova maneira, as noções pulverizadas pelo esmagamento disciplinar: o ser humano, a natureza, o cosmo, a realidade" (Morin, 2004: 104)

Trata-se, enfim, de dar início a problematização da própria ciência em suas profundas ambivalências, processo que evoca a necessidade de uma reforma cognitiva, de um novo renascimento.

 

Referências Bibliográficas

Dupas, G. (2000). Ética e poder na sociedade da informação: de como a autonomia das novas tecnologias obriga a rever o mito do progresso. São Paulo: UNESP.         [ Links ]

Mattelart, A. (2202). História da sociedade da informação. São Paulo: Loyola.         [ Links ]

Morin, E. (1999). Por uma reforma do pensamento. Em: Pena-Veja, A. & Nascimento, E. P. do (1999). O pensar complexo: Edgar Morin e a crise da modernidade. Rio de Janeiro: Garamond.         [ Links ]

Morin, E. (2002). A ciência com consciência. Rio de janeiro: Bertrand Brasil.         [ Links ]

Morin, E. (2004). A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.         [ Links ]

Navarro, M. B. M. de A. (2004). Homem e natureza: cognição e vida como elos indissociáveis. Ciências & Cognição; Vol 01: 29-33. Disponível em www.cienciasecognicao.org         [ Links ]

Wiener, N. (1954). Cibernética e Sociedade: o uso humano de seres humanos. São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

 

 

Notas

G. Aranha
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