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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.5 no.1 Rio de Janeiro jul. 2005

 

Artigo Científico

 

Construtivismo e ciências humanas

 

Constructivism and human sciences

 

 

Gustavo Arja Castañon

Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, Brasil

 

 


RESUMO

Nos últimos anos assistimos a uma proliferação do termo construtivismo em disciplinas como Psicologia, Educação, Sociologia e Filosofia da Mente. No entanto, se tomamos este conceito em seu sentido estrito, como a posição que defende o papel ativo do sujeito na sua relação com o objeto do conhecimento e construção de suas representações da realidade, vemos que diversas posições auto-denominadas construtivistas assumem teses que contrariam o espírito original desta tradição filosófica. Este artigo faz uma breve investigação das mais influentes utilizações contemporâneas do termo, pelas correntes do Construtivismo Piagetiano, Construcionismo Social, Construtivismo Radical e Construtivismo Social. Conclui que estas três últimas correntes não são estrito senso construtivistas, porque dissolvem o sujeito epistêmico. Além disso, demonstra que Construtivismo não implica em idealismo, e que o Racionalismo Crítico e o Construtivismo Piagetiano são os legítimos representantes de uma tradição construtivista que, aderindo ao realismo, se mantém no campo da Ciência Moderna. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 05: 36-49.

Palavras-chave: epistemologia; construtivismo; construtivismo social; construtivismo radical; racionalismo crítico.


ABSTRACT

In the last years, we observed a proliferation of the term constructivism in disciplines such as Psychology, Education, Sociology and Philosophy of Mind. Nervertheless, if we took this concept in its strict sense, as the position that defends an active role of the subject in his relation with knowledge object and in the construction of their reality representations, we see that several positions self-named constructivists adopts theories that contradicts the spirit of this philosophical tradition. This article makes a brief investigation on the most influential contemporary uses of this term, like Piagetian Constructivism, Social Construcionism, Social Constructivism and Radical Constructivism. It concludes that these last three currents are not strict sense constructivists, because they dissolve the epistemic subject. After that, it demonstrates that Constructivism does not implicate idealism, and that the Critical Rationalism and Piagetian Constructivism are the legitimate representatives of the constructivist tradition that, adhering to realism, behold in Modern Science field. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 05: 36-49.

Keywords: epistemology; constructivism; social constructivism; radical constructivism; critical rationalism.


 

 

Introdução

O termo construtivismo surge na Psicologia com a obra de Jean Piaget, no contexto de sua Epistemologia Genética, para indicar o papel ativo do sujeito na construção de suas estruturas cognitivas. Desde então, observamos muitas abordagens teóricas em Psicologia (Construcionismo Social, Construtivismo Radical, Construtivismo Crítico), Sociologia (Construtivismo Social) e Educação (Pedagogia Construtivista) se abrigando sob este rótulo. Entretanto, essas teorias assumem posições ontológicas e epistemológicas muito distintas entre si, tornando o sentido do termo construtivismo cada vez mais obscurecido e confuso. Assim, neste artigo busca-se um esclarecimento da definição de construtivismo filosófico para posteriormente avaliar o quanto cada uma das abordagens acima citadas é compatível com esta tradição.

 

Os Construtivismos

Para o psicólogo Michael Mahoney (2003), presidente e fundador da Society for Constructivism in the Human Sciences, a diversidade de teorias que se apresentam como construtivistas apresentam ênfase nos temas da proatividade humana; ordenamento ativo de informações; consciência e self; redes sociais simbólicas e desenvolvimento durante a vida. É no entanto uma definição relativamente vaga, que não parece ser compartilhada nem pelos membros fundadores da sociedade. E essa sensação de indefinição aumenta quando conhecemos o corpo de honored contributors da mesma, onde estão juntos psicólogos célebres e de concepções muitas vezes diametralmente opostas, como o neo-behaviorista Albert Bandura, o cognitivista Jerome Bruner, o humanista Joseph Rychlak, o fenomenólogo-existencial Viktor Frankl, o relativista pós-moderno Kenneth Gergen e o construtivista radical Ernst von Glasersfeld. Como o próprio Mahoney (1998) reconhece em outro texto, o termo construtivismo tem conhecido um aumento exponencial de sua utilização nos últimos vinte anos, sendo utilizado por abordagens das mais diferentes, o que dificulta o estabelecimento de definições básicas.

Um dos honored contributors mais célebres da Society, Joseph Rychlak, afirma (1999: 383) que, desafortunadamente, o termo construtivismo é usualmente empregado em dois sentidos básicos, o que provoca uma grande confusão em discussões teóricas . O primeiro é o que considera construção o processo de associação de partes separadas para a formação de algo. Esse processo dispensa a presença de um sujeito que constrói, e para Rychlak é o sentido na qual Kenneth Gergen e o Construcionismo Social usa o termo. Ele no entanto defende um outro significado no qual o termo é usado. Para ele, construção indica o processo de formação mental de algo, incluindo conceitos, interpretações, deduções e análises. Esta acepção do termo pressupõe a existência de um sujeito ativo e construtor de suas cognições.

Este segundo sentido é o que defendo aqui. Mas gostaria de circunscrevê-lo melhor. Analisando etimologicamente o termo Construtivismo, estabelecemos a origem do verbo construir no verbo latino struere, que significa organizar, dar estrutura. Necessariamente, é uma inteligência que organiza e dá estrutura a algo. Se é verdade que muitas vezes encontramos referências ao suposto caráter precursor do construtivismo presente na filosofia de Sócrates, ou ainda de Vico, para uma correta compreensão do construtivismo contemporâneo, devemos recorrer à obra de Imannuel Kant, fundadora da Filosofia Contemporânea. É a inversão do sentido da relação entre sujeito e objeto que é a raiz do construtivismo. Tradicionalmente, a filosofia ocidental pensava o conhecimento como uma determinação do sujeito cognoscente pelo objeto conhecido. Kant apresenta o processo do conhecimento como a organização ativa por parte do sujeito - através das estruturas da mente - do material que nos é fornecido pelos sentidos. Ou seja, para o construtivismo, o sujeito constrói suas representações de mundo, e não recebe passivamente impressões causadas pelos objetos. O sujeito para o construtivismo é proativo, é foco de atividade do universo, e não um aglomerado de células que recebe passivamente estímulos do ambiente, sendo movidas por estes.

A assim chamada "revolução copernicana na Filosofia" de Kant teve vários desdobramentos, gerando interpretações construtivistas idealistas (como as de Hegel, Fitche ou ainda de Schopenhauer), pragmatistas (como a de Hans Vaihinger) e realistas (como a de Karl Popper). Schopenhauer afirma na primeira frase de sua obra prima O Mundo como Vontade e Representação: "O mundo é uma representação minha.". Hans Vaihinger, em A Filosofia do "como-se", argumentou que nossas teorias seriam ficções conscientes cujo objetivo não é alcançar a verdade sobre o mundo, e sim, orientar nossas ações eficientemente, pragmaticamente. Karl Popper, que dá o nome à escola filosófica fundada por ele de "Racionalismo Crítico" em homenagem ao criticismo kantiano, acredita (Popper, 1977) que sua filosofia é uma interpretação realista da filosofia kantiana.

Toda essa trajetória do construtivismo contemporâneo na Filosofia teve seus reflexos na Psicologia. Antes do surgimento do Construcionismo Social, fundado por Kenneth Gergen; e do Construtivismo Radical, de Ernst von Glasersfeld e Paul Watzlawick; o termo construtivismo foi introduzido na Psicologia por um dos maiores psicólogos de todos os tempos, Jean Piaget, que lhe conferiu o sentido original. Vamos nos referir a esta espécie de construtivismo a partir daqui pelo nome de Construtivismo Piagetiano.

 

Construtivismo Piagetiano

A questão central da obra de Jean Piaget (1973) é o problema do conhecimento. O que é, o que conhecemos, como obtemos conhecimento. Aceitando a distinção de Leibniz entre verdades de razão e verdades de fato, Piaget distingue conhecimento formal (lógica e matemática) de conhecimento empírico (física, química, biologia, psicologia, sociologia). As afirmações das ciências formais (todos os pontos da circunferência de um círculo são eqüidistantes do centro, dois mais dois é igual a quatro) não obtêm seu valor de verdade através de observações empíricas; são verdades necessárias e universais. Já as afirmações das ciências empíricas (corpos com densidade maior que a da água afundam, dois aviões atingiram as torres do WTC em 11 de setembro de 2001) adquirem seu valor de verdade em função da possibilidade da verificação dos fatos que enunciam.

Esses dois tipos de conhecimento são irredutíveis. Assim sendo, as verdades de fato não podem ser alcançadas por algum tipo de dedução lógica a priori, pois elas são contingentes, nem as verdades formais podem ser alcançadas a partir da experiência empírica, pois elas são necessárias. No entanto, apesar dessa irredutibilidade, os fenômenos físicos podem ser representados e inclusive antecipados por modelos matemáticos. Como podemos então explicar esse acordo entre matemática e realidade? Como explicar que um modelo elaborado independentemente da realidade empírica adeque-se explicativamente a esta? Isto nos leva ao problema ontológico da regularidade do objeto, ou mais especificamente, da racionalidade da realidade.

Mas de onde vêm esses dois tipos de conhecimento? As respostas tradicionais a esta pergunta são as estritamente empiristas e as estritamente racionalistas. Para o empirismo, que defende aquilo a que o construtivismo se refere geralmente como objetivismo, a origem do conhecimento estaria na realidade externa que o imporia ao espírito. Para o racionalismo, o conhecimento é inato e sua evolução seria apenas atualização de estruturas pré-formadas. O construcionismo de Piaget postula um terceira resposta possível, que é a construtivista. Para ele, a construção do conhecimento exige uma colaboração necessária entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido. É o sujeito que, ativo e a partir da ação, constrói suas representações de mundo interagindo com o objeto do conhecimento.

Piaget desenvolveu um modelo de desenvolvimento cognitivo construtivista, ricamente sustentado por dados empíricos, que apresentava o sujeito como artífice principal, através da sua ação no mundo, de suas próprias estruturas cognitivas. Dois dos conceitos principais de Piaget, que esclarecem a forma como ele explicava o processo de construção do conhecimento por parte do sujeito, são os de assimilação e acomodação. Quando uma criança ou qualquer pessoa tem uma experiência que não se coaduna com seus esquemas e teorias, ela primeiramente tenta assimilar essa experiência em seus esquemas existentes. No entanto, se a pessoa ver que suas explicações e predições são repetidamente desmentidas, prevalece a tendência no sentido de o esquema se modificar de modo a acomodar-se a esta nova informação. Ou seja, somos ativos quando interpretamos a experiência para assimilá-la aos nossos esquemas e teorias, e somos ativos quando mudamos nossos esquemas e teorias de forma a acomodarem-se à realidade. Piaget, claramente, é um realista. De forma semelhante a Popper, ele acredita que o mundo vai moldando nossos esquemas quando os desmente seguidamente, exigindo uma nova acomodação.

Mas a despeito do construtivismo realista de Piaget, e do caráter moderno da filosofia construtivista, este termo foi apropriado por formas contemporâneas de relativismo e idealismo, mesmo dentro da Psicologia. É o que passaremos a ver agora.

 

O Construcionismo Social

Construcionismo Social é o nome que passou a designar o movimento de crítica à Psicologia Social "modernista" que tem sua principal referência teórica em Kenneth Gergen. Em dois artigos hoje célebres, "Social Psychology as History" de 1973, e "The Social Constructionist Movement in Modern Psychology", de 1985, Gergen traçou os fundamentos críticos e o panorama dessa abordagem da Psicologia Social, que se baseia em três grandes pressupostos: O primeiro é que a realidade é dinâmica, não possuindo qualquer tipo de essência ou leis imutáveis. A segunda é que o conhecimento é somente uma construção social, baseado em comunidades lingüísticas. A terceira é que o conhecimento tem conseqüências sociais, e que são estas que devem determinar se ele é válido ou não.Gergen (1973,1985,1992), em alguns artigos em que faz uma análise panorâmica do quadro da Psicologia Social contemporânea, estabelece o movimento do Construcionismo Social como uma oposição aos princípios básicos que norteiam a ciência psicológica, classificada por ele de "modernista". Essa classificação se dá pela adesão da Psicologia Social "padrão" (Gergen,1992) aos princípios básicos do otimismo epistemológico, do realismo ontológico, do método empírico de investigação da realidade, da regularidade do objeto e do progresso científico. Para os autores que se inserem no que eles classificam como a "virada pós-moderna" da Psicologia Social, o movimento construcionista social, esses princípios básicos não só são negados como substituídos por seus opostos. Kendall & Michael (1997) avaliam que esse movimento "pós-moderno" na Psicologia Social possui quatro características teóricas e metodológicas básicas. A primeira, é a tentativa de dissolver o tradicional objeto da Psicologia, substituindo a realidade da mente e do comportamento pelas convenções e recursos lingüísticos que "constróem socialmente" o mundo. A segunda, é o abandono da busca por propriedades universais na pesquisa psicológica e a adoção da reflexão histórica e contextual como centro da atividade em Psicologia. A terceira, é a marginalização do método e sua classificação, em versões mais radicais desse movimento, como um truque retórico. A quarta, seria o abandono da grande narrativa do progresso da ciência rumo a uma verdade objetiva para a adoção de uma concepção de conhecimento como fragmentário e contingente histórica e socialmente. Como afirma Zuriff (1998), a essência da posição ontológica do Construcionismo Social é a proposição de que não há realidade objetiva a ser descoberta; seres humanos constróem o conhecimento. Barbara Held (1998) acrescenta a isso o termo "socialmente". Para o Construcionismo Social nós construímos teorias a respeito do funcionamento do mundo através da interação social.

Essa é a essência da posição ontológica deste movimento, conforme expressa reiteradamente por Gergen (1985, 1992, 1994) e seus argumentos anti-representacionistas. Por representacionismo Gergen (1994) define a doutrina que defende existir ou poder existir uma relação estável entre as palavras e o mundo que elas representariam. Seguindo Wittgenstein (1975) e Rorty (1989), Gergen (1985, 1994) defende que a linguagem é um convencionalismo. O significado não se baseia nos objetos, no processo mental ou em entes ideais. Adquire-se através do contato social com outros habitantes da cultura em questão. Fora da linguagem não há ponto de apoio objetivo nem independente para o pensamento, portanto, a linguagem não representa nada fora dela mesma, é auto-referente e dependente de jogos de linguagem particulares. Assim, para o Construtivismo Social (Shotter 1992) nossas teorias socialmente construídas não nos aproximam de uma descrição mais acurada do "mundo como ele é", de uma realidade objetiva, independente do sujeito do conhecimento. Isso acarreta de qualquer maneira alguma forma de anti-realismo.

Aqui encontramos duas posições ligeiramente diferentes dentro do Construcionismo Social, entre as versões ontológicas que Held (1998: 198) classifica de "mais radical" e "menos radical". A versão ontológica "mais radical" desse movimento considera que uma vez que o sujeito do conhecimento constrói esse conhecimento através da linguagem e com nada além que a linguagem; a linguagem se constitui na realidade mesma para o sujeito. Não existe realidade além da linguagem construída pelo sujeito através de suas interações sociais. Essas manifestações de anti-realismo ontológico estão presentes fundamentalmente nos autores deste movimento mais influenciados pelo desconstrucionismo de Jacques Derrida, como por exemplo Richer (1992) ou Shotter (1992). Contrasta com a posição "menos radical" de alguns outros autores como Gergen (1985, 1992) e Polkinghorne (1992), que consideram que a teoria construída sobre os objetos do conhecimento através da linguagem, intermedia a relação entre o sujeito e o mundo de forma impermeável, de forma que a realidade objetiva, independente do sujeito, pode até existir, mas é inacessível. Aqui, apesar de não aderir a um anti-realismo ontológico, vemos o Construcionismo Social aderindo a um pessimismo epistemológico.

Harré (1989) é um dos construcionistas sociais mais representativos e mais preocupados com a questão ontológica, questão em cima da qual, segundo ele, a ciência psicológica precisa estar assentada. Ele procurou desenvolver uma ontologia que pudesse escapar do dilema anti-realista exposto acima. Harré (1989: 440) assume o pressuposto de que existem duas realidades humanas distintas, passíveis de serem estudadas cientificamente. Uma delas é fisiológica, a natureza biológica do ser humano e seus sistemas de interação molecular. A outra é nossa "natureza social" como elementos de uma rede de interações simbólicas mediadas. Ele afirma que no desenvolvimento de uma metodologia de pesquisa, os processos fisiológicos e as interações sociais precisam ser tratadas como ocorrentes em realidades independentes, reconhecendo que sua posição consiste num novo dualismo.

Assim, para a natureza biológica do homem, crê Harré (op. cit.), o tratamento das pessoas como indivíduos seria adequado. Mas para a natureza social esse tratamento seria inadequado, pois as pessoas não seriam mais do que "nós numa rede, nódulos numa estrutura, elementos num coletivo" (p.440). Seu argumento é que, tomados de um ponto de vista biológico, indivíduos podem ter propriedades únicas, como átomos isolados, mas tomados coletivamente, os atributos de uma pessoa somente podem existir em virtude de suas relações com outras.

Deste modo, Harré intenta dirigir a atenção da Psicologia para as atividades lingüísticas do ser humano, concentrando a atividade teórica e experimental desta ciência no mapeamento do caminho pelo qual fenômenos psicológicos como memória, emoção, percepção, dependem do lugar que a pessoa ocupa na rede de trocas comunicacionais da sociedade. Sendo que o conceito de trocas comunicacionais abrange toda aquela série de comunicações verbais e não-verbais onde o significado das trocas de sinais é convencional. Harré (1989) sabe que esta é uma ontologia radical. Ele pretende, ao adotá-la, enfatizar a estrutura às custas de outras possibilidades ontológicas, principalmente daquela que ele chama de "ontologia cartesiana", que seria a ontologia das Ciências Cognitivas. Enquanto a ontologia do Construcionismo Social de Harré define o objeto da Psicologia como sendo as interações sociais, a "ontologia cartesiana" propõe que existe uma substância mental, onde se dão os processos psicológicos. Poderíamos concluir disso que a ontologia proposta por Harré nega a existência da mente humana como entidade real. Isto podemos depreender da incrível afirmação feita por ele em outra obra (1984: 4 e 5), de que:

"nós devemos começar com o pressuposto de que o local primário dos processos psicológicos (em ambos os sentidos temporal e lógico) é coletivo antes que individual" .

Gergen (1989) também defende que o Construcionismo Social é uma outra revolução em curso na Psicologia, contrapondo-se ao Cognitivismo e sua ontologia e epistemologia comprometida com os princípios de uma metafísica dualista cartesiana, onde a mente deve funcionar como espelho do mundo. Para ele (Gergen, op.cit., 1989: 471), a revolução cognitiva é uma "revolução equivocada", e só serve para "cegar a disciplina para a muito mais penetrante revolução" do que ele denomina epistemologia social. Gergen (1989: 471) formula sua versão para uma "revolução epistemológica" na Psicologia partindo do princípio de que o local do conhecimento não é mais visto como sendo a mente individual, mas sim como sendo os padrões das narrativas sociais. Ele explica isto argumentando que ao abandonarmos o foco de nossa concentração da mente e do mundo e o dirigirmos para o problema da relação entre as palavras e o mundo, nós mudaríamos também a atenção antes dirigida às "proposições em nossa cabeça" para as proposições em nossa linguagem escrita e falada. Uma vez que a linguagem não é privada, mas por definição deve permitir a comunicação e portanto ser social, Gergen conclui que as proposições de conhecimento não são conquistas da mente individual, mas conquistas sociais.

Podemos dizer com John Maze (2001), que o Construcionismo Social é na verdade um desconstrucionismo. Com sua incapacidade para afirmar qualquer coisa a respeito de qualquer coisa em virtude de seu anti-representacionismo e seu argumento de que o "objetivismo" (que ele confunde com o realismo) é inerentemente autoritário, o Construcionismo Social se vincula à Derrida e ao desconstrucionismo, e portanto os enganos seguem de um para o outro. Como afirma Maze (2001), embora aceite que toda teoria epistemológica coerente deva valer para si mesma, o Construcionismo Social nega que qualquer assertiva possa ser verdadeira, assim como nega existir realidades independentes a serem referidas por essas assertivas. No entanto, trata dos discursos como tendo existência objetiva e assume que sua própria assertiva sobre o discurso é verdadeira. Assim, o Construcionismo Social se contradiz em suas premissas básicas. Da mesma forma, podemos afirmar que Construcionismo Social está muito longe de ser uma teoria construtivista, pois o sujeito aqui está totalmente dissolvido na rede de relações lingüísticas na qual está inserido e que o constrói, e não é construída por ele. Caso considerássemos esta corrente construtivista, estaríamos diante de um caso bizarro de construtivismo sem sujeito, onde quem constrói são as redes lingüísticas ou jogos de linguagem, que se tornam assim entidades quase místicas.

 

Construtivismo Radical

A terceira corrente aqui abordada que se utiliza do termo construtivismo na Psicologia é o Construtivismo Radical, defendido por teóricos como Ernst von Glasersfeld, Paul Watzlawick e Heinz von Foerster. O Construtivismo Radical é uma abordagem não-convencional ao problema do conhecimento, que parte do pressuposto que o conhecimento não é nada mais do que uma construção que fazemos com base nos dados subjetivos de nossa experiência. Nós viveríamos somente no mundo que construímos, e não teríamos nenhuma base objetiva para julgar nossas representações ou as dos outros, portanto, viveríamos isolados no mundo de nossas próprias construções. Assim, se o sujeito é quem determina absolutamente o objeto dentro da relação de conhecimento; ou seja, se o que nós chamamos de realidade é somente aquilo que construímos como tal, nossas construções acerca do mundo não sofrem a influência de um mundo externo objetivo e independente. Em outras palavras, o Construtivismo Radical não é nada mais que uma forma contemporânea de solipsismo, sendo um tipo especial de idealismo. Essa avaliação é também compartilhada com Efran e Fauber (1995), que sustentam que esta corrente é idealista, não se preocupando com a natureza última da realidade que, segundo eles, é algo que não é passível de ser tocado pela mente humana, estando além de suas possibilidades.

Apesar de se declarar uma disciplina que abrangeria as Neurociências (com Varela e Maturana) e a Educação (Glasserfeld) o Construtivismo Radical tem sua influência principal restrita a um pequeno campo da psicoterapia contemporânea. Mesmo no domínio da assim denominada Terapia Construtivista, ela é somente uma das tendências, embora a predominante. Para o Construtivista Radical Robert Neimeyer (1998), o que uniria os construtivistas é seu comprometimento com uma "epistemologia pós-moderna", "cuja ênfase é a busca por um sistema de crenças legitimado pessoal e socialmente, num mundo que não oferece facilmente segurança, onde nenhuma perspectiva é intrinsecamente mais correta, adaptativa ou funcional que outra" (Neimeyer, 1998: 123). Para Mahoney (1991), terapeuta construtivista que se declara aderido ao pensamento crítico e a Piaget (fora portanto do Construtivismo Radical), os principais representantes do Construtivismo Radical seriam Heinz von Foerster, Ernst von Glaserfeld, Humberto Maturana, Francisco Varela e Paul Watzlawick. O nome de Robert Neimeyer e Vittorio Guidano também deveriam constar desta lista. Para a psicoterapia derivada do Construtivismo Radical, o terapeuta deve incentivar a pessoa a questionar os pressupostos básicos de sua visão de mundo, sem usar como referência qualquer parâmetro objetivo, racional ou lógico. Em outras palavras, se como afirma o lema de Paul Watzlawick "a verdade é a mentira que deu certo", então tudo vale, e podemos reconstruir nossas experiências como bem entendermos, sem levar em conta a razão ou a experiência. A única coisa que devemos levar em conta é nosso bem estar. Resta saber, se tal postura não pode induzir sujeitos desestruturados a surtos psicóticos ou a posturas delirantes perante a realidade.

Assim, o Construtivismo Radical se apresenta como anti-científico, anti-racionalista, idealista, solipsista, relativista e subjetivista. Mas se esta postura fosse plenamente vislumbrada por leitores leigos por detrás do emaranhado conceitual onde ela está escondida, seria provavelmente mais prontamente rechaçada por todos aqueles que não estão dispostos a abrir mão da idéia de que existe uma realidade externa a nós e de que nós podemos conhecê-la em parte ao menos aproximadamente. O idealismo e o subjetivismo são totalmente incompatíveis com a Ciência Moderna. Portanto, o Construtivismo Radical sai do campo da Psicologia e vai para o campo da filosofia pós-moderna, devendo ser abandonado prontamente por todos aqueles que quiserem seguir no desenvolvimento de uma psicoterapia cientificamente fundamentada.

Se como dizem Efran e Fauber (1995) os construtivistas radicais não sustentam que a sua posição seja objetivamente correta, nem mesmo que sejam eles que a escolham racionalmente, mas sim em virtude do meio em que se desenvolveram e também das construções que foram levados a produzir sobre esse meio, então temos que perguntar se o Construtivismo Radical é verdadeiramente um construtivismo. Se o Construtivismo Radical foi desenvolvido em função das contingências do meio, contingências sócio-históricas, então em última análise o ambiente determinaria o sujeito e suas representações, eliminando qualquer possibilidade de construtivismo. Além disso, esta abordagem não passaria de um ponto de vista como outro qualquer, que foi selecionado em determinado momento histórico devido a uma certa configuração contingencial de fatores. Portanto, se as nossas contingências sócio-históricas são outras, modernas, o que poderia nos levar a aceitar como válido o posicionamento pós-moderno radical? E como os construtivistas radicais poderiam nos tentar convencer a adotar algo que eles próprios sequer podem defender que seja verdadeiro, nós que não compartilhamos de seus valores e crenças? Em outras palavras, se eles não podem defender que a teoria deles é melhor do que as outras, porque devemos aceitá-la, se em nossos constructos, que seriam tão válidos quanto os deles, nossa teoria é uma aproximação da verdade melhor do que a deles?

 

O Construtivismo Social

Muito da abordagem pós-moderna relativista na Psicologia tem sua base na "tese forte" da Sociologia do Conhecimento, que crê ter colocado no âmbito da Sociologia as questões epistemológicas relativas à sua própria validade. Ao rejeitar o realismo ontológico, o Construtivismo Social faz das concepções socialmente construídas da realidade a única e própria realidade, afastando-se assim dos limites da Sociologia do Conhecimento tradicional e caindo no relativismo pós-moderno. Essa posição foi apresentada por sociólogos como David Bloor, Barry Barnes e Bruno Latour. Rejeita a enunciação de um critério de cientificidade, de demarcação entre ciência e não-ciência; rejeita o assim chamado "objetivismo", que segundo esta abordagem é a crença de que os resultados da ciência são determinados pela natureza, dizendo que estes resultados são fruto de "interação social"; dissolve o conceito de sujeito em redes lingüísticas e culturais que o "constroem" e determinam; inverte o critério de cientificidade do modelo da ciência natural para dar à Sociologia o poder de explicar ciências como a Física. Estas teses, que são algumas entre muitas polêmicas e de frágil sustentação, caracterizam o Construtivismo Social, que se afasta assim drasticamente da tradição construtivista da filosofia ocidental, roubando no entanto o termo que a denomina.

A Sociologia do Conhecimento é a disciplina que inspirou o surgimento do Construtivismo Social na Sociologia e do movimento Construcionista Social na Psicologia Social contemporânea. Seu ancestral filosófico é Karl Mannheim, sociólogo que defendia a idéia de que a sociedade determina toda ideação humana, exceto os conceitos físico-matemáticos. Em virtude dessa ressalva, afirmava não haver capitulado ao relativismo absoluto. A expressão Construtivismo Social, surge da obra de Berger & Luckmann (1973), "A Construção Social da Realidade", de 1966. Esta é uma obra sobre Sociologia do Conhecimento que exerceu grande influência sobre a Psicologia Social e a Sociologia contemporânea. Sua reivindicação principal é a de que a "realidade" é construída socialmente. Define a "realidade" como a qualidade pertencente a fenômenos que reconhecemos terem um ser independente de nossa própria volição, e o conhecimento como a certeza de que os fenômenos são reais e possuem características específicas. Berger & Luckmann esclarecem que usam esses termos fora do significado estrito, no sentido do que o homem comum julga como real e como conhecimento. É portanto uma análise não do conhecimento, mas de suas representações sociais, das concepções de conhecimento construídas pelo homem comum, independentemente de sua realidade ou irrealidade última. Como afirmam Berger & Luckmann: "Incluir as questões epistemológicas concernentes à validade do conhecimento sociológico na sociologia do conhecimento é de certo modo o mesmo que procurar empurrar o ônibus em que estamos viajando" (1973: 27).

No entanto, isso é precisamente o que faz o Construtivismo Social pós-moderno ao crer ter colocado no âmbito da Sociologia as questões epistemológicas relativas à sua própria validade. Mais do que na tradição intelectual supra-citada, o Construtivismo Social se apóia no pensamento de alguns filósofos contemporâneos, entre os quais os principais nomes são os dos filósofos Ludwig Wittgenstein e Richard Rorty e os dos filósofos da ciência Thomas Kuhn e Paul Feyerabend. Ao rejeitar o realismo ontológico, o Construtivismo Social faz das concepções socialmente construídas da realidade a única e própria realidade, afastando-se assim dos limites da Sociologia do Conhecimento e entrando no terreno do pós-modernismo. Essa posição é o núcleo do chamado "programa forte" em sociologia da ciência, desenvolvido por sociólogos como David Bloor, Barry Barnes e Bruno Latour.

Como afirma Oliva (2003), enquanto as filosofias da ciência tradicionais se comprometiam com a universalização dos métodos das ciências naturais, as epistemologias "heterodoxas" passaram a acalentar a pretensão que os próprios Berger e Luckmann consideraram contraditória: a de explicar a racionalidade das ciências, incluindo as naturais, recorrendo às ciências sociais, em especial à sociologia. Isso se trata de uma grande inversão: a disciplina mais questionada em sua cientificidade, a Sociologia, passa a querer explicar a condição de cientificidade de disciplinas como a Física. Oliva (2003) demonstra que essa mudança radical nas pretensões da sociologia não decorre de nenhuma mudança interna da disciplina, e sim das novas concepções epistemológicas surgidas da "nova filosofia da ciência", em outras palavras, do pós-modernismo de Thomas Kuhn e Paul Feyerabend.

A filosofia da ciência pós-moderna afirma que a ciência não é um modo de produção de conhecimento superior aos outros, e que a distinção entre contexto de justificação e contexto de descoberta não é válida. A posição epistemológica tradicional afirma que a produção da pesquisa pode ser explicada em termos do ambiente sócio-cultural em que a pesquisa se dá, mas a sua validação, a aferição do valor epistêmico dela, são determinadas por critérios lógicos e empíricos que em nada dependem do contexto social. Esses critérios é que são questionados em sua a-historicidade e universalidade pelos pós-modernistas Kuhn e Feyerabend e pelo Construtivismo Social, que os julga tão condicionados pelo ambiente sócio-cultural como as teorias científicas, afinal de contas, estes critérios também seriam teorias.

O Construtivismo Social é em seu conteúdo a repetição das teses básicas de Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Richard Rorty, em nada acrescentando de substancial às críticas efetuadas por estes filósofos à concepção moderna de ciência. A única coisa em que o Construtivismo Social difere destes filósofos é a forma pela qual se apresenta. Mas esta diferença só acrescenta uma nova contradição a esse emaranhado de contradições pós-modernas. Essa contradição é a contradição de uma disciplina pré-científica, a sociologia, que jamais conseguiu um único resultado generalizadamente aceito em toda a sua longa existência, que, cansada de sua inconsistência como ciência moderna, resolve renunciar à sua longa história de fracassos honestos para passar a julgar, através de vários diferentes pretensos métodos sociológicos, a cientificidade de outras disciplinas científicas que tem acumulado resultados espetaculares nos últimos duzentos anos.

 

O Problema da Realidade e sua relação com o Construtivismo

Bruce Ryan (1999) observa que na raiz da contenda epistemológica entre a modernidade e pós-modernidade está a questão da natureza da realidade. Na modernidade a realidade é concebida como objetiva, externa e independente do sujeito do conhecimento, além de passível de ser descoberta em alguns de seus aspectos pela ciência. Para a pós-modernidade, a ciência cria, ela própria, a realidade no curso de sua prática. Assim, podemos resumir essa contenda com a pergunta feita por Ryan (1999: 484):

"A realidade existe de forma completamente independente dos sujeitos, ou os sujeitos criam a realidade, como o pós-modernismo poderia sugerir?"

Ou seja, Ryan acredita que devemos responder à pergunta sobre se os novos conhecimentos são criados ou descobertos. Talvez esta seja uma falsa questão, fruto da própria confusão pós-moderna entre as teorias válidas sobre a realidade (o conhecimento), e a própria realidade.

O Construtivismo Filosófico oferece uma resposta nova para a antiga questão da origem do conhecimento e sua relação com a realidade. Para o Construtivismo refletido nas obras de Piaget ou de Popper, nós criamos hipóteses sobre o real, e nossa relação com o real se faz através destas hipóteses, porém esta relação existe. Nós criamos hipóteses, e através delas e de suas falhas, des-cobrimos a realidade encoberta. As hipóteses que se tornam justificadas por uma metodologia aceita passamos a assumir como conhecimento, porém, conhecimento provisório. Assim, nós não construímos a realidade para o Construtivismo, nós construímos nossas representações da realidade. Mas quem as constrói, é um sujeito ativo. Assim, o Construtivismo tradicional é realista e defende o sujeito epistêmico como a fonte de todo conhecimento. Essas duas crenças eliminam do campo do Construtivismo o Construtivismo Radical (idealista) e o Construtivismo e Construcionismo Sociais (coletivistas).

Porque no entanto estas correntes se declaram construtivistas? O que há de comum entre todas as abordagens que se declaram construtivistas é a rejeição ao objetivismo. As formas pós-modernas "sociais" do Construtivismo parecem acreditar que a rejeição ao objetivismo é suficiente para se caracterizarem como construtivistas. Objetivismo pode ser definido aqui como a posição filosófica que defende que o objeto determina no sujeito a representação que este tem dele. Ou seja, para o objetivismo, o objeto é algo dado, com uma estrutura que é de alguma forma imposta ao sujeito na relação de conhecimento, e as representações que temos do mundo, mesmo que não sejam idênticas a ele, são determinadas em nós pelos objetos que buscamos conhecer.

Mas não podemos confundir objetivismo com a solução pré-epistemológica para o problema da relação sujeito-objeto, que considerava as representações mentais cópias perfeitas do mundo externo. Nem o empirismo filosófico defendia esta tese. Mesmo Locke já distinguia nas qualidades dos objetos que nos eram dados pelos sentidos o que seriam qualidades primárias e qualidades secundárias. Só as primeiras (como a extensão, solidez ou movimento por exemplo) pertenceriam ao objeto mesmo, enquanto as segundas (como a cor, sabor ou cheiro) pertenceriam à mente do sujeito, não tendo existência objetiva (só subjetiva), não se assemelhando exatamente as propriedades que estão nos corpos e que a produziram. Portanto, como se pode ver facilmente, uma concepção de objetivismo que defende ser este uma doutrina que acredita que o material dado pelos sentidos, se depurado e racionalmente trabalhado, nos revela a realidade tal como ela é, simplesmente não existe na filosofia desde os pré-socráticos naturalistas.

Da mesma forma, não podemos confundir o objetivismo com o realismo. O objetivismo é um caso particular de realismo, que por sua vez, não se resume a aquele. Realismo é a tese ontológica que sustenta a existência real dos objetos do conhecimento, com características que independem de nossas teorias e de nossa vontade. Para o realismo, nossas representações se referem a objetos que tem existência independente de nossa mente, e que de alguma forma influenciam as nossas teorias sobre eles. Hoje, com a derrocada de uma das formas de realismo que é o objetivismo, o primeiro é sustentado pela tese do realismo crítico. Para o realismo crítico, nossas teorias sobre a realidade são construídas por nós, e condicionam o nosso olhar e interpretação sobre ela. Condicionam, porém, não determinam. Quando nos deparamos com um erro, ou seja, quando nossas teorias sobre a realidade são seguidamente contraditadas por observações que não se adaptam a elas, acabamos por modificar nossas teorias e representações do mundo de forma a adaptá-las à experiência. Assim, nossas teorias, apesar de condicionarem nossa experiência da realidade, não a determinam. É ao falharem em predizer a sucessão de sensações que teremos (Popper, 1975b), que nossas teorias provam que não são a realidade mesma. Quando erramos, tropeçamos numa realidade que se revela independente de nossa mente. Assim, para o realismo crítico, apesar de nossas teorias não serem uma cópia do real nem terem sido produzidas por ele, mas sim pelo sujeito, elas são suas aproximações, e o objeto do conhecimento, apesar de não determinar nossas representações e teorias sobre ele, influencia o processo de suas construções pelo sujeito através da resistência que oferece algumas vezes em se comportar como nossas teorias esperam.

Podemos resumir então nosso problema da seguinte forma. Todo construtivismo é anti-objetivista. Porém, ele pode assumir a tradição realista ontológica da filosofia ocidental, como nos casos do Construtivismo Piagetiano e do construtivismo realista do Racionalismo Crítico; ou assumir uma face idealista, que nega qualquer acesso a uma possível realidade externa às construções mentais ou lingüísticas, como nos casos do Construtivismo Radical e do Construtivismo Social. É o que nos coloca Held (1998: 194) quando observa que os construcionistas sociais tipicamente presumem que um processo de conhecimento ativo por parte do sujeito, que está implícito no próprio termo 'construcionismo', necessita de uma ontologia anti-realista e uma epistemologia construcionista para se sustentar. Discordando firmemente dessa posição, ela lembra que a própria epistemologia genética de Piaget é uma forma de construcionismo que se baseia numa ontologia e epistemologia realistas, ao mesmo tempo em que defende a possibilidade de acesso racional do sujeito a uma realidade objetiva e independente.

 

Conclusão

Vimos que o que divide fundamentalmente as interpretações do Construtivismo são os posicionamentos que cada corrente assume frente ao estatuto ontológico do objeto do conhecimento. Dito de outra forma, são as respostas à pergunta de o que nós construímos? A "realidade" ou nossas representações dela?

Não é necessária a adoção de uma postura idealista nem relativista quando rejeitamos o objetivismo, e o maior exemplo disso é o Racionalismo Crítico, escola de filosofia da ciência fundada por Karl Popper à qual se atribui a responsabilidade pelo fim do Positivismo Lógico e que se tornou hegemônica na filosofia das ciências naturais. Sua principal idéia é precisamente a idéia central do construtivismo: a de que não existe observação neutra, objetiva da realidade, pois toda observação se faz à luz de uma teoria (Popper, 1975). Porém, ao contrário das três correntes pós-modernas que se utilizam do termo construtivismo, e em sintonia com as idéias de Piaget, Popper demonstra que apesar de condicionar nossas observações, nossas teorias não as determinam. O que ele quer dizer não é que nossas teorias e hipóteses sobre a realidade são impermeáveis a ela, e sim que toda observação que é feita, sempre é feita contra ou a favor de uma teoria. A nossa garantia de acesso à realidade não nos vêm de uma suposta neutralidade ou objetividade no processo de obtenção do conhecimento, muito menos de uma determinação de nossas representações sobre o objeto do conhecimento. A garantia vem de nossos erros, de nossas predições sobre o funcionamento da realidade que não se confirmam. Os nossos erros são a prova de que nossas teorias sobre o objeto não o determinam, pois aquelas ao fazerem predições sobre o comportamento do objeto que se revelam falhas através da experiência, revelam uma realidade que existe apesar e para além delas. Para o Racionalismo Crítico, é quando erramos que tropeçamos na realidade. Essa falsificação de nossas hipóteses de tempos em tempos, nos obriga a construir uma hipótese superior para dar conta da experiência empírica, o que faz o conhecimento ser sempre de caráter hipotético e aproximativo.

Assim, o Racionalismo Crítico é construtivista, pois acredita que o processo de conhecimento parte da atividade do indivíduo, do sujeito, que constrói, não a realidade mesma, mas suas teorias e hipóteses sobre ela. Ao mesmo tempo, o Racionalismo Crítico é realista, pois considera que é a realidade, estável e independente do sujeito, que julga as hipóteses e teorias deste último sobre ela. Por último, o Racionalismo Crítico de forma alguma é objetivista, pois considera que nossas representações não são cópias fiéis da realidade nem provocadas por ela, mas somente modelos simplificados desta que de tempos em tempos são falsificados e exigem a construção de um novo modelo por parte do sujeito.

A segunda parte da questão construtivista, esquecida pelo pós-modernismo, é a do sujeito ativo na construção do conhecimento e foco do vetor epistemológico, como dizia Bachelard. As formas sociais auto-intituladas "construtivistas" apresentam uma forma bizarra de "construção" sem sujeito, onde estruturas lingüísticas onipresentes construiriam os nódulos da estrutura do tecido social aos quais nós, ingênuos modernos, chamaríamos "sujeitos". Como afirma Rychlak (1999), a essência do Construcionismo Social é que o comportamento e as crenças humanas são desenhadas e formadas pela sociedade e está para além da capacidade do "indivíduo" mudar as coisas (pág. 383). Dessa forma, não há sujeito ativo, ele é construído por um novo objetivismo, que rejeita o objeto "natural" em prol de um objeto "socialmente construído", a linguagem. Neste novo objetivismo, o sujeito é construído, e não constrói. Com certeza, não pode se tratar de um construtivismo.

Assim esclarecemos a verdadeira encruzilhada das teorias auto-denominadas construtivistas. Esta se resume aos seus posicionamentos em relação ao realismo e ao idealismo, e em relação a um sujeito ativo ou determinado. O Construtivismo Social, o Construtivismo Radical e também o Construcionismo Social são formas pós-modernas de teoria que se utilizam do termo construtivismo conferindo a este um significado diverso do original. E neste caso, temos que reconhecer que estas abordagens se colocam fora do âmbito tanto do Construtivismo como também da Ciência Moderna.

 

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Endereços para Correspondência

Gustavo Castañon é Psicólogo, Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É Professor de Epistemologia e Métodos e Técnicas de Pesquisa em Psicologia no Curso de Psicologia da Universidade Estácio de Sá. E-mail para correspondência: gustavocastanon@hotmail.com.

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