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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.5 no.1 Rio de Janeiro jul. 2005

 

Artigo Científico

Reconhecendo a oniricidade: um estudo exploratório sobre a metacognição do estado onírico

 

Recognizing the oneiricity: an exploratory study about the oneiric state metacognition

 

 

Cleber Monteiro Muniz

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é compreender qualitativamente a alteração da consciência que origina o sonho lúcido e avaliar a transição do estado usual de consciência onírica para o estado não usual de lucidez. Sob uma perspectiva fenomenológica, pretendeu-se contribuir para a compreensão das modificações psíquicas e metacognitivas inerentes à instalação da lucidez no sonho, incluindo seus mecanismos mnemônicos e perceptuais internos. A hipótese defendida é a de que o reconhecimento do sonho provém da combinação de dados da memória autobiográfica recente com a aceitação do impacto realístico das imagens do sonho como possível a um estado onírico. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 05: 67-83.

Palavras-chave: sonhos lúcidos; consciência; metacognição; cognição; psicologia; sonho.


ABSTRACT

The aim of this article is to understand qualitatively the alteration in the consciousness that originates the lucid dream, and to evaluate the transition between the usual state of oneiric consciousness and the non usual state of lucidity. Under a phenomenological perspective, it was intended to contribute for the understanding of the inherent psychic and metacognitive modifications during the installation of the lucidity in the dream, including their inner mnemonic and perceptual mechanisms. The defended hypothesis is that the dream recognition involves the data combination in recent autobiographical memory and the acceptance of the dream images realistic impact as possible to an oneiric state. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 05: 67-83.

Keywords: lucid dream; consciousness; metacognition; cognition; psychology; dream.


 

 

1. Introdução

Comumente, não nos damos conta de que estamos sonhando nos momentos em que dormimos, isto é, o sonho não é reconhecido pelo próprio sonhador enquanto ocorre (LaBerge, 1980; LaBerge, 1998; LaBerge, 2000; LaBerge e DeGracia, 2000; LaBerge e Gackenbach, 2001). Durante o sonho, o ego onírico costuma acreditar que está em vigília. A consciência do estado onírico não está presente nos sonhos comuns, os quais são confundidos com a realidade. Há, entretanto, casos em que esta tendência não se verifica:

"Although one is not usually explicitly aware that one is dreaming while in a dream, a remarkable exception sometimes occurs in which one possesses clear cognizance that one is dreaming" (LaBerge, 2000).

Este é o chamado "sonho lúcido", no qual o sonhador está consciente de que sonha enquanto o sonho se processa (LaBerge, 1980; LaBerge, 1998; LaBerge, 2000; LaBerge e DeGracia, 2000; LaBerge e Gackenbach, 2001):

"Dreams in which the dreamer becomes aware of dreaming while continuing to dream are known as 'lucid dreams' " (Kahan e LaBerge, 1994: 251).

"In a 'lucid dream', one is aware of dreaming while dreaming" (Godwin et al., citados por Kahan, 2001: 340).

Estando a consciência reflexiva em torno das experiências subjetivas em si mesmas e a consciência dos próprios sentimentos, pensamentos e ações em curso entre as habilidades metacognitivas existentes (Globus, 1987; James, 1890; Natsoulas, 1987; Pollio, 1990; citados por Kahan e LaBerge, 1996), pode-se afirmar que reconhecimento do sonho enquanto o mesmo prossegue (Kahan, 2001; LaBerge e DeGracia, 2000; Kahan e LaBerge, 1994) é um processo metacognitivo pois implica em reconhecimento, pelo sonhador, do estado de sonho em que ele mesmo se encontra. Envolve os seguintes elementos: crença, dúvida, emoção, atenção, percepção, memória e comparações.

Por metacognição podemos entender a consciência de alguém a respeito de seus próprios processos cognitivos (Kahan, 2001). Esta inclui intencionalidade, auto-regulação (Kahan, 2001) e a capacidade de monitar e de dirigir voluntariamente o curso dos próprios pensamentos (Nelson e Narens, 1990; citados por Kahan e LaBerge, 1994 e por Kahan, 2001). Uma de suas dimensões é a auto-reflexão (Kahan, 2001), isto é, a capacidade de refletir a respeito de si mesmo e, portanto, do próprio estado em que alguém se encontra, característica encontrada no sonho lúcido.

Durante o sonho lúcido, as funções cognitivas são preservadas: o ego sonhante pode raciocinar clara-mente, recordar-se de sua vida vígil, agir reflexivamente, cumprir metas previamente estabelecidas, lembrar-se de instruções obtidas antes do sono, realizar experimentos e marcar momentos e eventos específicos do sonho por meio de sinalizações oculares (LaBerge, 2000).

Nos sonhos, os vários processos metacognitivos não estão ausentes:

"[There is] evidence that dreaming does involve metacognition, including self-reflection, intentionalitiy, and self-regulation" (Kahan, 2001: 345).

A auto-reflexão a respeito do estado em que se encontra o sonhador é uma modalidade assumida pela metacognição onírica e a característica que define o sonho lúcido:

"Whithout question, such lucid control dreaming exemplifies metacognition during sleep" (Kahan, 2001: 340).

"In addition to this self-reflection on 'state', which is their defining feature, lucid dreams often include other compelling examples of metacognition in sleep" (Kahan, 2001: 340).

A auto-reflexão abrange a capacidade de examinar os próprios pensamentos, sentimentos e compor-tamentos durante o sonho; é uma das dimensões da metacognição, a qual, como já vimos, pode ser entendida como o conhecimento dos próprios funcionamentos cognitivos e inclui intencionalidade (Kahan e LaBerge, 1994).

O estado de sonho aqui referido e considerado não corresponde exclusivamente à fase letárgica conhecida como REM ou fase dos Movimentos Rápidos dos Olhos, uma vez que os sonhos podem ocorrer na fase NREM (Kahan, 2000) e há provocativas evidências que os estados REM e onírico são dissociáveis (Khambalia e Shapiro, 2000).

O objetivo deste artigo é compreender a auto-reflexão que conduz ao reconhecimento do sonho durante seu desenrolar e sem interrompê-lo, seja durante a fase REM ou não. A mesma corresponde a apenas uma das várias modalidades de metacognição oníricas existentes.

 

2. Sofisticadas habilidades cognitivas no sonho

A idéia muito comum de que durante o sonho as habilidades cogni-tivas são suprimidas ou qualita-tivamente diminuídas ("visão defi-cientista") é contradita por pesquisas (Kahan et al., 1997) e desafiada pela existência de sonhos lúcidos:

"The ocurrence of 'lucid dreaming' presents a significant challenge to deficiency views of dreaming" (Kahan et al., 1997: 133).

A cognição onírica não é inferior à vígil em termos qualitativos (Kahan et al., 1997) e ambas possuem mais semelhanças entre si do que se supunha:

"The present findings suggest that dreaming cognition is more similar to waking cognition than previously assumed and that the differences between dreaming and waking cognition are more quantitative than qualitative" (Kahan et al., 1997: 132).

Ambas compartilham qualida-des. As formas que assumem podem ser as mesmas. Não se encontrou deficiências globais na cognição onírica em relação à cognição vígil:

"Episodic recall of dreaming experiences did not reveal global deficiencies in cognition relative to episodic recall of waking experiences" (Kahan et al., 1997: 144).

A idéia de que nos sonhos as funções cognitivas sofrem rebaixamento ou diminuição pode não corresponder à realidade, uma vez que não foi confirmada. Ao contrário, a ocorrência de habilidades cognitivas de alto nível em sonhos comuns, não lúcidos, é confirmada por vários teóricos:

"Interestingly, many theorists have asserted that high-order cognitive skills do occur in nonlucid dreaming" (Kahan, 2001, p. 341).

Há fortes indícios, ainda, de que sofisticados funcionamentos cognitivos ocorrem durante o sono/sonho:

"In summary, recent research suggests that reflective consciousness and other high-order cognitive abilities do characterize dreaming. Also, other research suggests that waking cognition may not be characterized by a uniformly high level of reflective consciousness, rationaly, or volition" (Kahan et al., 1997: 135).

A consciência reflexiva pode ocorrer enquanto dormimos (Kahan, 2000, 2001). Isto significa que é possível que uma pessoa reflita cuidadosa e criticamente naqueles exatos momentos em que dorme e sonha. A capacidade de analisar, criticar, duvidar, refletir e pensar cuidadosamente não exige que o corpo esteja desperto para ocorrer pois pode se dar em pleno sonho.

Durante o sonho, algumas pessoas chegam, inclusive, a raciocinar intencionalmente:

"Dreaming consciousness can also be as volitional and rational as waking consciousness" (LaBerge, 1998, s/p.).

Além de raciocinar, o sonhador é capaz de decidir e tomar decisões. A cognição vígil não é, portanto, continuamente marcada por maior criticismo, análise e intencionalidade do que a cognição nos sonhos. Em alguns casos, estas habilidades cognitivas oníricas podem ser direcionadas ao estado em que o sonhador se encontra (Kahan, 2001). O sonhador reflete conscientemente e voluntariamente, então, a respeito de sua condição imediata, problematizando a questão de estar ou não sonhando naqueles instantes. Ora, esta é a principal questão em torno da qual giram os testes de realidade desenvolvidos por vários estudiosos (LaBerge e Levitan, s/d; Price et al., s/d; Tholey, 1989). É possível, portanto, que uma pessoa reflita sobre sua condição (isto é, se está sonhando ou não) com intensidade, cuidado e criticismo tanto no sonho como em vigília. O ego onírico é capaz de problematizá-la seriamente e buscar a resposta de forma racional, intencional e criteriosa antes que o sonho termine.

 

3. O reconhecimento do estado onírico a partir da cognição vígil

Há continuidade na cognição através da vigília e do sonho (Snyder, citado por Kahan, 2001); os mesmos sistemas cognitivos são responsáveis pela cognição em ambos os casos (Foulkes, citado por Kahan, 2001).

"(...) the same cognitive system that operates during waking also operates during sleep/dreaming" (Kahan, 2001: 346)

Não há distinção entre ambas as modalidades de cognição no que se refere aos sistemas operantes. Os fluxos, arranjos e rearranjos de informação, a seletividade perceptual etc. operam de forma semelhante nos dois casos. Ao menos uma das funções metacognitivas oníricas pode ser aprimorada voluntariamente:

"[Há indicações de que] o nível de auto-reflexão no sonho pode ser aumentado por meio de manipulações experimentais de intenção e atenção" (Kahan, 2001: 343-344, traduzido pelo autor).

A atenção e a intenção dirigidas e utilizadas propositalmente podem enriquecer a reflexão acerca de si mesmo dentro do sonho. Por meio de treinamentos, a auto-reflexão pode ser desenvolvida (Kahan et al., 1997) e pessoas motivadas a desenvolver a lucidez no sonho podem fazê-lo (LaBerge e Gackenbach, citados por Kahan, 2001). A capacidade de reconhecer o sonho se desenvolve com a prática correta.

Portanto, a educação atencional e mental durante a vigília pode repercutir em lucidez durante o sonho. A auto-reflexão diária a respeito do estado em que nos encontramos (se estamos sonhando ou acordados) pode ser aperfeiçoada e repercutir durante a noite, levando-nos a reconhecer o sonho durante seu processamento (Tholey, 1989), sem interrompê-lo.

A postura atencional adotada durante o dia, com a qual nos acostumamos, pode prosseguir nos sonhos e será tanto mais eficiente quanto mais a aprimorarmos aqui e agora com o intuito de reconhecermos se estamos ou não sonhando. Trata-se da capacidade de discernir entre o par de opostos sonho/vigília ou entre o imaginal e o "real". Por esta via operam os testes de realidade, um dos quais consiste em nos perguntarmos várias vezes ao dia o que aconteceu nos instantes ou horas antecedentes (Tholey, 1989). Tais testes de realidade podem ser reflexivos (Tholey, 1989) ou perceptuais. Podem ainda ser auxiliados por dispositivos que comunicam ao sonhador por via sensorial a informação de que está sonhando (LaBerge e Levitan, s/d; Price et al., s/d; LaBerge e Levitan, 1995).

A consciência imediata não se desvincula do presente diretamente percebido (Engelmann, 1997). Ao irromper nos sonhos, poderá abranger em seu campo a oniricidade, fato que resultará em lucidez.

 

4. A influência da motivação e da expectativa no reconhecimento do sonho

A consciência pode ser comparada ao holofote de um teatro (Baars, 1997): os conteúdos sob a luz do holofote corresponderiam aos conteúdos conscientes e os elementos que permanecem na escuridão poderiam ser comparados aos conteúdos inconscientes. A área, normalmente circular, abrangida pela luz do holofote equivaleria ao campo abrangido pela consciência. Aquilo que percebemos [conscientemente] depende em grande medida da expectativa (LaBerge, 1998). A expectativa e a motivação influenciam a percepção nos sonhos, os quais resultam dos mesmos processos mentais e perceptuais utilizados para compreender o mundo em vigília (LaBerge, 1998). Os fatores que constroem a experiência consciente são vários:

"(...) the perceptual experiences of consciousness appear to arise out of a complex and unconsciouss process of inference. This constructive process utilizes a variety of factors beyond simple sensory input. These fall into two major classes: expectations and motivations" (LaBerge, 1998: s/p.).

Meros processos inferenciais inconscientes não originam, por si sós, a experiência consciente. Além dos "inputs" sensoriais, são necessárias a expectativa e a motivação para que tomemos consciência de algo. A combinação entre os dados sensoriais disponíveis, a expectativa e a motivação do agente perceptor parece selecionar o que adentrará ao "centro do holofote" ou campo da consciência. Logo, não podemos adquirir consciência da oniricidade apenas percebendo elementos da realidade circundante, é necessário que estejamos motivados para percebê-la. A expectativa com relação ao estado de sonho nos conduz a este reconhecimento. Uma das funções da consciência é a detecção de erros (Baars, 1997):

"Conscious input is monitored by unconscious systems, which will act to interrupt the flow if errors are detected. The knowledge of what makes an error an error is rarely conscious".

Os sinais de oniricidade podem ser considerados "erros" ou discrepâncias, do ponto de vista da lógica vígil, passíveis de detecção em pleno sonho. A oniricidade é detectada por meio da atenção à realidade circundante associada à comparação do que se percebe com informações sobre a realidade vígil presentes na memória (Muniz, 2004) e por meio da retrospectiva de fatos presenciados em um passado recente (Tholey, 1989) correspondente a algumas horas.

 

5. Elementos que denunciam o sonho

A familiarização com o sonho conduz ao seu reconhecimento:

"People are more likely to recognize an experience as dreamlike if they are familiar with what their dreams are like" (LaBerge e Gackenbach, 2001: 153)

Na medida em que vamos nos familiarizando com nossa própria e particular vida onírica, vamos tomando consciência de inúmeros detalhes que a diferenciam da vida vígil. Esta tomada de consciência facilita o discernimento de que estamos sonhando. O reconhecimento do sonho se baseia mais em sua instabilidade do que em sua vividez (LaBerge, 1990). Esta última não é um critério muito eficiente para discernir pelo fato de que os sonhos apresentam intenso impacto realístico e numinosidade. Por outro lado, a instabilidade dos acontecimentos, principalmente de letras e de frases em textos escritos, parece ser um critério de identificação muito eficiente para discernirmos se estamos ou não sonhando (LaBerge, 1990).

Os sonhos diferem da realidade vígil por suas ilogicidades e por certas características típicas, as quais constituem sinais de oniricidade (Muniz, 2001) por serem raras ou impossíveis, não ocorrendo na vida real particular do sonhador. Por exemplo: um cachorro falante, uma pessoa falecida que conversa ou um elefante voador não fazem parte da realidade mas podem surgir no mundo imaginal dos sonhos, denunciando ao sonhador o fato de que está sonhando. Os sinais de oniricidade (dreamsigns) podem ser assim definidos:

"A definition of dreamsign is, 'a peculiar event or object in a dream that can be used as an indicator that you are dreaming'" (Levitan, 1992: s/p).

Estes sinais indicadores de oniricidade ou dreamsigns podem ser elementos do sonho que nos parecem "estranhos" quando tomados isoladamente, a forma anômala como elementos absolutamente "normais" se combinam espacial e/ou temporalmente no sonho ou ainda a descontinuidade na sequência vígil dos acontecimentos, a qual é acessada pela memória autobiográfica recente (Muniz, 2004), um dos vários elementos aos quais a consciência tem acesso (Baars, 1997); ou seja, são anomalias em relação à vida usual da vigília.

O conceito de dreamsign foi elaborado com o intuito capturar características anômalas comuns nos sonhos e que estimulassem as pessoas a concluírem que estavam sonhando (Levitan, 1992)

Em um estudo descrito por Levitan (1992), os sinais de oniricidade puderam ser encontrados por meio da análise de centenas de sonhos lúcidos visando a seleção de acontecimentos que antecederam a precipitação da lucidez. As peculiaridades comuns aos sonhos e que tendiam a conduzir a um incremento de reflexão necessária à lucidez foram catalogadas e classificadas. Foram coletados 964 dreamsigns em 227 sonhos originários de 44 pessoas. Os dreamsigns encontrados estavam diretamente ligados às pessoas, aos objetos e aos lugares sonhados, bem como ao ego onírico dos sonhadores.

O sinais de oniricidade encontrados no ego onírico foram: a imobilidade (paralisia), formas corporais, realização de tarefas, percepções, pensamentos, emoções, sensações erógenas e sensações corporais fora do comum, isto é, diferentes das experienciadas pelo sonhador em vigília. Além disso, ocorreram sensações de estar fora do corpo e a alteração dos acontecimentos pelo pensamento. As pessoas que surgiram nos sonhos apresentaram as seguintes diferenças em relação a seus correspondentes na realidade vígil: fisionomia, uso de vestimentas, realização de tarefas, desempenho de funções ou atuação em lugares impossíveis ou estranhos. Os objetos do sonho apresentaram diferenças em suas formas, em seus funcionamentos e nos lugares em que se encontravam. Também foram detectadas distorções espaço-temporais: cenas oníricas em lugares estranhamente construídos ou impossíveis, localização do sonhador em lugares que não costumava ir, vivências de acontecimentos no passado ou algum futuro projetado (Levitan, 1992).

Em outro estudo (Levitan, 1992), os dreamsigns foram condensados em quatro grandes categorias:

"That study had permitted condensation of the larger 20 class catalog into a more concise list focusing on the characteristics of dreamsigns most relevant for stimulating lucidity. This list is composed of four categories:

  • Inner Awareness: Peculiar thoughts, strange emotions, unusual sensations or altered perceptions.
  • Action: The dreamer, a dream character, or an object does something unusual or impossible.
  • Form: The dreamer's body or another body or object is oddly formed or changes form.
  • Context: The setting or situation in a dream is anomalous." (Levitan, 1992: s/p).

Em síntese, os dreamsigns podem ser entendidos como elementos estranhos à vida particular usual do sonhador. O estudo acusou correlação entre a incidência de lucidez e a quantidade de dreamsigns nos sonhos, sugerindo que a habilidade para ter sonhos lúcidos pode ser intensificada através da conscientização dos sinais de oniricidade:

"The interesting result was that people were more likely to become lucid in dreams that contained many dreamsigns. The frequency of Inner Awareness and Action dreamsigns in particular correlated significantly with lucid dreaming frequency. This finding suggests the possibility that increasing our awareness of dreamsigns might enhance our ability to notice them in our dreams, and hence our chances of becoming lucid" (Levitan, 1992: s/p).

A presença de elementos denunciadores do sonho pode não ser suficiente para que o sonhador conclua definitivamente que está sonhando mas podem levá-lo a cogitar tal possibilidade, iniciando um trabalho mental de auto-reflexão em torno da questão. Para que a conclusão se efetive, são necessárias modificações subjetivas e valorativas no ego onírico, ou seja, mudanças no significado atribuído aos conteúdos conscientemente percebidos em pleno sonho. O sonhador conclui que está sonhando quando deixa de atribuir qualidades "físicas" aos acontecimentos do sonho e deixa de acreditar que está acordado.

 

6. A emoção no jogo entre a dúvida e a crença

A cognição vígil e a cognição onírica são mais semelhantes do que diferentes entre si; distinguem-se apenas pela freqüência com que incidem as habilidades de elevada ordem mas não pelas modalidades das mesmas, isto é, apresentam diferenças quantitativas e não qualitativas (Kahan e LaBerge, 1996) sendo que o segundo tipo de cognição é reflexo do primeiro (Folkes citado por Kahan e LaBerge, 1996). Logo, considerações sobre a função cognitiva da dúvida não são válidas apenas para a vigília mas também para os sonhos.

Nos sonhos comuns, não lúcidos, uma crença prevalece: a de que estamos acordados, em vigília:

"(...) we regularly mistake our dreams for reality (...)" (LaBerge, 1998, s/p.)

"We ordinarily experience our dreams as if they are physical reality and only recognize them as dreams after we awaken" (LaBerge e Gackenbach, 2001: 152)

Entretanto, no ato de reconhecermos o sonho e torná-lo lúcido, há dúvida e questionamento:

"Dreamers commonly became lucid when they puzzle over oddities in dream content and conclude that the explanation is that they are dreaming" (LaBerge e Gackenbach, 2001: 153, grifo do autor).

Ao "quebrar a cabeça a respeito do estranho" o sonhador é impulsionado por uma dúvida a refletir sobre o estado em que se encontra. A dúvida é um estado de irritação e desconforto que nos impele a eliminá-la (Peirce, 1877: s/d):

"A irritação da dúvida causa uma luta para atingir um estado de crença."

"A dúvida é um estado de desconforto e insatisfação do qual lutamos para nos libertar e passar ao estado de crença; enquanto este último é um estado calmo e satisfatório que não desejamos evitar ou alterar por uma crença em outra coisa qualquer. Pelo contrário, agarramo-nos tenazmente, não meramente à crença, mas a acreditar exatamente naquilo em que acreditamos."

A irritação é um desconforto do qual tentamos escapar por meio do estabelecimento de uma crença.

Sendo a dúvida insatisfação e irritação, possui um substrato emocional. O estado de crença, ao qual precisamos nos apegar, possui igualmente um aspecto de emoção. Os sentimentos que temos nos sonhos são reais (LaBerge e Rheingold, 1990) e, quando ocorrem sob forma de dúvida e tendo como objeto o modo de realidade em que estamos inseridos, abrem caminho para a aceitação de que não estamos atuando sob forma vígil.

Quando sonhamos acreditando estar acordados, não há o desconforto emocional da dúvida porque a crença está estabelecida. O desconforto surge apenas no ato de duvidarmos da realidade do que nitidamente percebemos de forma clara, "óbvia" e "inequívoca". O mundo experienciado nos sonhos pode parecer vividamente concreto e não distinguível do mundo real (LaBerge, 1998; LaBerge, 2000). Tal impacto realístico fixa no sonhador a crença de que está acordado.

A tomada de consciência de que estamos sonhando implica em ruptura com a crença de que estamos acordados mas não se completa com a dúvida a respeito da condição em que nos encontramos, exigindo uma mudança na estrutura de crenças. A conclusão é a adoção de uma nova crença que substitui a crença anterior.

A ruptura real com a crença parece não resultar de uma simples indagação superficial. É necessário que a dúvida nos atinja com intensidade (Peirce, 1877: s/d):

"Mas o mero fato de colocar uma proposição de forma interrogativa não estimula a mente para que se afadigue em busca da crença. Deve existir uma dúvida real e viva, e sem ela toda a discussão é ociosa."

A dúvida deve ser verdadeira para que a mente procure de fato alcançar uma crença. O que seria o oposto de uma dúvida real e viva? Uma dúvida falsa e morta, ou seja, uma dúvida superficial, fria, sem os sentimentos de irritação e desconforto correspondentes. Parece-me ser este um dos pontos nevrálgicos da falta de lucidez no sonho pois muitas vezes o aspirante a onironauta não é capaz de se perguntar em profundidade, com intenso sentimento de dúvida: "Será que estou sonhando neste momento?"

A mudança do eixo crença/dúvida não é algo simplesmente mental, realizado "pela cabeça", mas também, e principalmente, uma mudança emocional na qual o sonhador sofre uma dissonância cognitiva, o que provoca um mal estar específico "no coração", acompanhado pela necessidade de resolvê-lo, um desconforto.

Se o auto-questionamento não for acompanhado por intenso sentimento de dúvida, será apenas uma formulação superficial sem resultado.

Nos sonhos, estão presentes as mesmas habilidades metacognitivas da vigília, entre as quais a percepção dos próprios pensamentos e sentimentos, a auto-reflexão, a focalização atencional em tarefas ou objetivos (Kahan e LaBerge, 1996), a intencionalidade e o deliberado controle dos processos de pensamento (Kahan, 2001). Portanto, nossa atenção pode se concentrar na sensação de duvidar mesmo durante o sono; é possível diferenciá-la da sensação de acreditar:

"Sabemos, geralmente, quando queremos perguntar uma questão ou pronunciar um julgamento, pois existe uma dissemelhança entre a sensação de duvidar e a de acreditar"

O sonhador tem a capacidade de saber se está realmente duvidando a respeito de seu estado pelas típicas sensações que caracterizam a dúvida ou a crença de se estar acordado ou sonhando. Para distinguirmos se realmente estamos duvidando ou não, há alguns pressupostos:

"Um momento de reflexão mostrará que uma variedade de fatos já são supostos quando a questão lógica é primeiro colocada. É implicado, por exemplo, que existem estados de espírito como crença e dúvida - que é possível a passagem de um a outro permanecendo o objeto do pensamento o mesmo, e que esta transição está sujeita a regras que informam igualmente todas as mentes."

A possibilidade de passarmos do estado de crença ao estado de dúvida (e vice-versa), bem como o caráter geral das regras desta transição, já estão pressupostos quando nos questionamos a respeito da lógica dos acontecimentos visando concluir se estamos sob forma vígil ou onírica. Se não houvesse esta pressuposição, não haveria sentido algum nos testes de realidade.

O processo de identificação dos objetos percebidos a partir de modelos mentais de mundo previamente construídos e internalizados pelo cérebro se aplica aos níveis mais abstratos da mente, incluindo a linguagem, a memória, o raciocínio (LaBerge, 1998) e os sonhos. Um modelo mental de mundo em que os sonhos sejam concebidos como irreais e no qual a realidade se restrinja ao externo impede a identificação do teor imaginal das cenas oníricas em curso por incompatibilizar-se com o numinoso impacto realístico dos sonhos. Tal modelo mascara a natureza dos objetos percebidos e impede que a questão de se estar ou não sonhando se torne um problema lógico capaz de atingir a mente e os sentimentos. E isto é necessário uma problematização real:

"(...) nada que não afete a mente poderá ser motivo de esforço mental. O máximo que pode ser sustentado é que buscamos a crença que julgaremos ser verdadeira."

Afetar a mente é atingi-la. Um problema ou questão atinge a mente quando alcança os pensamentos e nos leva, neste caso, a revisar sinceramente nossas crenças e a buscar a crença mais sensata, mais coerente com todos os dados de que dispomos e precisam ser levados em consideração.

O indivíduo que se pergunta a respeito de seu estado e dispõe de informações suficientes para concluir que está sonhando, eliminando toda dúvida sobre a possibilidade de estar acordado, finaliza o trabalho cognitivo em torno da questão e se fixa na crença de que sonha:

"Quando a dúvida cessa, a ação mental sobre o sujeito termina; e, se continuasse, não teria qualquer objetivo."

No caso dos testes de realidade, a conclusão, seja ela a de que estamos sonhando ou não, implica em finalização da dúvida.

 

7. Conclusões

A lucidez onírica precisa ser compreendida de forma totalizante. Em seu surgimento se articulam: a atenção do sonhador direcionada para os elementos que o rodeiam; estados de expectativa com relação a ilogicidades; pressupostos inconscientes e semi-conscientes sobre as diferenças entre "sonho" e "realidade"; pressupostos sobre o que identificaria um sonho; mudanças no eixo crença-dúvida; estados emocionais de dúvida a respeito de estar acordado; estados emocionais de desconfiança com relação à vividez do que se percebe; recordações das características típicas das realidades vígil e onírica, recordações dos lugares em que se esteve nos momentos que antecedem o instante do sonho e detecção de ruptura na lógica da seqüência espaço-temporal dos acontecimentos (informações contidas na memória autobiográfica recente).

Dados a limitação do campo da consciência e indefinição dos limites do inconsciente, não é possível precisar a quantidade total de dreamsigns existentes em um sonho e que poderiam exercer a função de incrementadores de lucidez. É uma quantidade, senão infinita, provavelmente indefinida e muito maior do que a limitada quantidade captada pela atenção do sonhador lúcido.

Para reconhecermos o sonho, necessitamos romper com a crença dominante de que estamos acordados para duvidar da falsa "exterioridade" sugerida pelas sensações e percepções internas.

A tendência mais comum, entretanto, é a de simplesmente formularmos superficialmente o questionamento a respeito de nosso estado em vigília, tirando automaticamente a conclusão de que estamos acordados e, consequentemente, fazê-lo do mesmo modo nos sonhos. Sendo o desconforto da dúvida pouco ou quase nulo, não pode resultar em lucidez.

A dúvida e a crença a respeito de estarmos ou não sonhando apresentam um substrato emocional cujo papel na instalação da lucidez é fundamental. O ato de duvidar da fisicalidade daquilo que é percebido é o ato de sentir emocionalmente o efeito de tal pergunta. É por isso que despertamos no sonho quando nos colocamos verdadeiramente a questão: "Estou sonhando ou acordado?". Apesar de genérica, esta indagação pode desencadear um trabalho mental de auto-reflexão que considere o passado individual recente e a observação de acontecimentos circundantes ao ego de modo a conduzir indivíduo à conclusão de que está sonhando naquele instante.

O ato de duvidar, observar, refletir e discernir resultará mais facilmente em lucidez quando realizado com intensa concentração, estando o sonhador ciente de que está realmente sentindo a dúvida, o que poderá ser verificado por meio da observação de si próprio. A possibilidade de identificarmos e diferenciarmos as sensações de duvidar e de acreditar nos permitem saber se realmente estamos questionando o estado de realidade ou apenas simulando tal questionamento para nós mesmos sem o percebermos.

Deste modo, a lucidez se instala quando o sonhador cai na dúvida a respeito da oniricidade do que está vivenciando, saindo da crença fixa de está acordado, e conclui que está sonhando. Terá então atingido a lucidez e despertado internamente a consciência, a despeito de estar exteriormente inconsciente naquele período. Não obstante, poderá ainda retornar ao estado de indiferenciação se não reter na memória consciente onírica as informações necessárias para se manter lúcido, ciente de que sonha.

Importa, ainda, apontar informações-chave que adentram ao campo da consciência resultando em lucidez. São dados cruciais que se mantém nas zonas obscuras da psique, excluídos do "foco do holofote" (Baars, 1997) durante os sonhos não lúcidos.

Uma conclusão resulta de uma cadeia de informações associadas sequencial ou simultaneamente. A conclusão de que estamos sonhando se origina de uma combinação de informações-chave que a precedem, seqüencial ou simultaneamente, no campo da consciência, formando uma rede que inclui, entre seus dados centrais:

  • o fato de que nos deitamos para dormir sem termos retornado ao estado vígil;
  • o fato de que visões entre estes dois momentos apenas podem ser oníricas e jamais de outra ordem conhecida;
  • o fato de que imagens sólidas e nítidas podem perfeitamente ser imagens de sonho;
  • no caso de notificação sensorial durante o sono, de que as sensações correspondentes apenas serão experimentadas enquanto estivermos adormecidos.

Quando alguém recebe algum sinal sensorial durante o sono (Price et al., s/d) e se dá conta de que estou sonhando, está conectando conscientemente a informação de que o sinal apenas é emitido em sonho à informação de que se deitou a ainda não se levantou. Está também conectando a mesma informação à informação de que visões entre estes dois extremos apenas poderiam ser oníricas. Similarmente, quando reage a algum dreamsign e se dá conta de que está sonhando, está conectando as duas últimas informações à informação de que os dremsigns são indicadores de um possível estado onirico. Depreendemos assim que os dreamsigns e os emissores de sinais sensoriais atuam sobre a memória, estimulando-a a trazer à consciência importantes informações, mas não fazem as associações de dados necessárias à desejada conclusão de se estar sonhando. A ligação de dados que conduz à inversão da crença apenas é feita pelo próprio sonhador ao conectar as informações necessárias acessíveis em sua memória consciente. Deste modo, um ponto nevrálgico a operar parece estar na memória consciente, o que converge com as técnicas imaginativas mnemônicas de Laberge (Price et al., s/d.) e os testes de realidade mnemônicos de Tholey (1989). A crença de que se está acordado apresenta vínculo direto com a vividez das imagens do sonho a apenas pode ser solapada por uma cadeia de elementos fortemente convincentes formada no campo da consciência de modo a forçar uma inversão nas conclusões automáticas às quais a mente está acostumada.

A transição do sonho não lúcido para o sonho lúcido parece abranger uma linha ao longo da qual se escalam: a cogitação da possibilidade de se estar sonhando, aceitação do impacto realístico das imagens oníricas (da "materialidade" do sonho), a dúvida em relação à fisicalidade do concreto (das vívidas imagens "materiais" do sonho), a recordação do que aconteceu em um passado recente, a captação da descontinuidade na seqüência dos acontecimentos vígeis e, por último, a aceitação da condição onírica em que se está, seguidos por todo um substrato emocional correspondente. Provisoriamente, podemos descrever seqüencialmente o processo como segue:

 

Seqüência lógica de instalação da lucidez ou da conclusão de que se está sonhando

sonho não lúcido (1) (2) (3) (4) (5) (6) (7) (8) sonho lúcido

 

Linha temporal metacognitiva:

(1) crença de que se está em vigília.

(2) cogitação da possibilidade de se estar sonhando por detecção de dreamsigns, por comunicação sensorial ou simplesmente por repetição em sonho do hábito vígil de auto-questionamento.

(3) observação intencional da realidade circundante.

(4) consideração e aceitação do impacto realístico do sonho.

(5) recordação dos fatos que antecederam o instante presente.

(6) captação da descontinuidade espaço-temporal ou de interrupção na seqüência dos acontecimentos vigeis.

(7) dúvida em relação à fisicalidade das cenas percebidas no sonho aliada à recordação de já ter-se deitado e adormecido sem haver retornado ao estado vígil.

(8) aceitação do estado de sonho.

Não obstante, considero o processo ainda muito pouco compreendido. Entre o ponto em que o sonhador cogita a possibilidade de estar sonhando (2) e ponto em que se dá a aceitação de tal fato há uma imensa distância. Os elementos que a preenchem ainda precisam ser melhor conhecidos. O maior obstáculo cognitivo parece se encontrar exatamente no ponto 7; os testes de realidade são aplicados entre as fases 3 e 7.

A auto-reflexão da pessoa adormecida a respeito do seu próprio estado pode ser motivada por testes intencionais de realidade, os quais, por sua vez, são passíveis de reforço pelo envio de sinais sensoriais externos durante o sono. Não obstante, a conclusão de se estar sonhando, aqui identificada com a lucidez, não deve ser confundida com a auto-reflexão e nem tampouco com os testes pois pertence a uma etapa posterior.

Um possível teste de realidade, ainda a ser averiguado e aperfeiçoado empiricamente por pesquisas futuras, poderia consistir em se tentar acreditar que se está sonhando, obviamente com base em fatos. Este seria um teste puramente emocional e atencional, sem nenhuma pergunta especificamente formulada, mas que incidiria diretamente sobre a crença bloqueadora da lucidez, encurtando o caminho ao lançar a dúvida reflexiva imediatamente à etapa 7. Considerando que a crença dominante é a de que sempre se está acordado, se fôssemos capazes de realmente experimentar a sensação proporcionada pela crença oposta, ou ao menos duvidar da crença prévia, talvez pudéssemos concluir que realmente sonhamos; caso contrário, isto é, se nosso aparelho psíquico não permitisse a instalação de tal crença e não a sentíssemos de verdade no coração, o mais sensato seria concluir que atuamos em vigília. Em outras palavras: se tentarmos acreditar que estamos sonhando e realmente o conseguirmos, isso significará que estamos realmente sonhando e não acordados pois como poderíamos ter tal sensação? Neste caso, iríamos diretamente à nossa crença e à nossa concepção de realidade para descobrirmos, por uma via absolutamente introspectiva, qual é o nosso estado naquele instante, como no seguinte relato:

"Eu caminhava por uma avenida próximo à minha residência. De repente resolvi me perguntar se estava ou não sonhando. Observei a realidade e tudo estava absolutamente igual ao que sempre vejo por ali. O sol brilhava normalmente e os objetos eram nítidos e com aparência sólida, absolutamente concreta. Não havia nada vaporoso ou abstrato. Pensei: 'Não! Eu jamais poderia estar sonhando agora pois tudo que estou vendo é muito real.' Considerei absurda tal cogitação. Movido por um impulso ou motivo que desconheço, contra toda lógica e bom senso (pois não havia nenhum indício de sonho, nada), resolvi insistir e tentar acreditar que eu estava sonhando. Não consegui sentir a sensação típica de acreditar. Ainda assim, continuei com a 'brincadeira' cognitiva, fazendo um esforço para aceitar a idéia que estava sonhando. Prossegui caminhando, agora simulando estar em um sonho mas não acreditando de verdade que o estivesse. Então me esforcei ainda mais e perguntei: 'Será possível para mim acreditar de verdade que eu estou sonhando neste momento?' Duvidava de tal possibilidade mas prolonguei o estado de dúvida, tentando aceitar a idéia. Senti então que a crença em estar acordado se dissipava, ficava mais fraca, ao mesmo tempo em que a crença oposta, a de que eu poderia realmente estar sonhando, se intensificava. Esta última foi reforçada quando revirei meu passado imediatamente recente em busca de informações que me permitissem saber se eu poderia ou não estar sonhando. Pensei nos lugares em que estivera nas últimas horas, tentando saber se por acaso eu não haveria de estar dormindo naquele momento sem me dar conta. Pensei: 'Será que não me deitei há pouco e ainda não estou dormindo?' Ao fazê-lo, as dúvidas se enfraqueceram ainda mais, pois eu me recordei que havia realmente deitado há pouco e ainda não havia me levantado. Entretanto, algum ceticismo ainda restava. Observei um homem que passou por mim e constatei que ele era idêntico a um homem real, o que me desconcertou um pouco. Ponderei que, mesmo sendo o citado transeunte absolutamente real, ao menos em aparência, eu deveria considerar o aumento na sensação de crença em estar sonhando e me pareceu que tal aumento somente poderia ocorrer em virtude de alguma informação inconsciente o permitir. Aceitei, com reserva e cuidado, a idéia de que eu poderia realmente estar sonhando, deixando-a se apoderar de mim, e passei a agir de forma consoante à esta idéia. Mantinha a precaução em não cometer nenhum exagero e a expectativa em encontrar algo que me provasse o contrário, isto é, que eu estava acordado. Como nada apareceu que perturbasse minha conclusão, deixei de lado as últimas reservas e me dirigi à antiga casa em que morei. Eu havia utilizado a minha própria capacidade de acreditar que estava sonhando como um teste de realidade e mantive o firme propósito de anotar, quando acordasse, este procedimento para indução de lucidez" (Muniz, 2004, relato de sonho do próprio autor).

Poderíamos incluir neste teste de realidade a tentativa de nos lembrarmos se já nos deitamos e adormecemos ou ainda não o fizemos. A obtenção desta informação pode proporcionar uma base para uma conclusão firme com menor exposição a equívocos.

Suspeito que esta seja uma das razões pelas quais apresentamos resistência psicológica em reconhecer a oniricidade: teríamos que sofrer dissonâncias cognitivas. É pequeno o nosso poder de questionar e duvidar da "óbvia" realidade do que percebemos com profundo impacto realístico, clareza e nitidez. Acerca deste pormenor, nos diz Tholey:

"We have found countless examples that suggest the apparent existence of various forms of psychological resistance which appear to hinder or prematurely end dream lucidity." (Tholey, 1981, 1988, citado por ele próprio, 1989)

Portanto, dois elementos parecem sintetizar a resposta para o problema proposto neste artigo: a aceitação do impacto realístico do sonho como algo inerente a um estado onírico e a recordação consciente de que se está tendo percepções em um ponto da linha temporal da vida diária que apenas poderia pertencer a um sonho. Esta última parece ser a informação-chave que, ao adentrar ao campo da consciência, permite ao ego onírico concluir que está sonhando.

 

Agradecimentos

Agradeço à Drª Tracey Kahan pelos materiais enviados e pelo incentivo.

 

 

8. Referências Bibliográficas

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Endereços para Correspondência

 

C. M. Muniz é Especialista em Abordagem Junguiana pela COGEAE da PUC-SP, Licenciado em geografia e história, realizador do projeto musical Esplendor (world music com tendência ibérico-medieval e temáticas oníricas). E-mail para correspondência: othna@terra.com.br.

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