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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.5 no.1 Rio de Janeiro July 2005

 

Divulgação Científica

 

ERK: uma proteína responsável pelo desejo por cocaína?

 

ERK: a protein responsible for cocaine craving?

 

 

Maithe Arruda-Carvalho

Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, Centro de Ciências da Saúde, UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

 

 

Comentário sobre o artigo: "Central amygdala ERK signaling pathway is critical to incubation of cocaine craving" - Lu L.; Hope, B.T.; Dempsey, J.; Liu, S.Y.; Bossert, J.M. e Shaham, Y., Nature Nauroscience, 2005; 2: 212-219.

Um dos maiores problemas clínicos enfrentados no combate ao vício das drogas é a recaída. Estudos mostram que usuários são suscetíveis à volta ao consumo de drogas de abuso mesmo após longos períodos de abstinência.

As últimas décadas evidenciaram a contribuição da pesquisa em neurobiologia para o desenvolvimento de tratamentos para uma série de distúrbios psiquiátricos. Muitos trabalhos têm estudado os comportamentos relacionados à dependência de drogas. Mas a pergunta que sempre permaneceu é: Poderia a pesquisa oferecer um meio de regular o desejo pela droga e contornar o problema da dependência química?

Existe uma extensa literatura que busca elucidar os correlatos moleculares do uso de substâncias de abuso para compreender os comportamentos de vício e de recaída. É sabido que o sistema de recompensa mesocorticolímbico tem um papel crucial em comportamentos de dependência. A maior parte destes trabalhos parte da chamada hipótese da neuroadaptação, que prediz que a exposição a drogas de abuso provocaria alterações moleculares duradouras no sistema de recompensa. Desta forma, a compreensão e o mapeamento temporal destas modificações poderia fornecer informações para direcionar o desenvolvimento de fármacos que contribuíssem na solução do problema. Em humanos, a maior parte dos trabalhos utiliza casos de pacientes com lesões ou técnicas de imageamento (como ressonância magnética funcional e tomografia por emissão de pósitrons - PET) para identificar áreas do cérebro relacionadas com os comportamentos de consumo, vício e recaída. Em animais, o estabelecimento de paradigmas de consumo de drogas de abuso por auto-administração produziu um grande volume de informação sobre os circuitos neurais que medeiam o estabelecimento do vício, incluindo uma extensa descrição de neurotransmissores e receptores envolvidos.

A recaída ao uso de drogas é frequentemente precipitada pela exposição do usuário a situações associadas à droga, como o encontro de pessoas com quem a utilizava ou o retorno a lugares de consumo. Acredita-se que esta exposição a circunstâncias (ou pistas) relacionadas à droga gere um estado motivacional subjetivo de ânsia/desejo intenso pela droga, que precederia e direcionaria a procura por ela. A compreensão dos mecanismos neurais que medeiam este estado tem implicação potencial na clínica.

Em artigo publicado em fevereiro na revista Nature Neuroscience, um grupo de pesquisadores dos Estados Unidos liderado por Lin Lu utilizou um modelo animal para estudar a recaída ao uso de cocaína após abstinência. Seu paradigma consistia de três etapas. Inicialmente os ratos eram mantidos em uma gaiola em que podiam auto-administrar cocaína. A administração se dava pelo pressionamento de uma alavanca, cuja disponibilização era precedida por duas pistas: uma luz vermelha era acesa e um som emitido.

Na primeira etapa os ratos eram treinados por 10 dias - tendo sessões de auto-administração de 6 horas por dia - construindo uma associação entre a luz e o som e a possibilidade de se drogar. Ao treinamento se seguia um período de abstinência de duração variável. Após a abstinência os ratos faziam o chamado teste de extinção, em que voltavam à gaiola e eram expostos às pistas associadas ao consumo de cocaína - luz vermelha e som. Neste momento eles podiam pressionar a alavanca mas não havia injeção de cocaína, de modo que a quantidade de vezes que eles pressionam a alavanca é uma medida da ânsia/desejo pela droga que eles estão sentindo.

Os pesquisadores se surpreenderam ao verificar que esta ânsia ou desejo intenso pela droga é maior em ratos mantidos por longos períodos em abstinência do que nos primeiros dias sem cocaína. Quanto mais tempo eles permanecem em abstinência maior é o número de pressionamentos de alavanca quando são expostos a pistas relacionadas a cocaína. Baseados em dados clínicos, os autores propuseram a existência de uma síndrome tardia de ânsia pela droga que se desenvolveria nos primeiros três meses de abstinência. Uma vez que o estado de ânsia é determinante do comportamento de busca pela droga - e definidor da recaída - era relevante buscar compreender os substratos moleculares deste fenômeno.

Como a ânsia crescia junto com o tempo de abstinência, Lu e colaboradores procuraram uma alteração molecular que acompanhasse este crescimento. Os experimentos apontaram para o aumento da ativação de uma proteína na amígdala dos ratos. A amígdala é uma região muito envolvida na resposta a estímulos agradáveis e ao comportamento de busca pela droga. Em humanos a amígdala é ativada quando os voluntários são expostos a pistas relacionadas à droga, e a lesão nesta área impede a formação destas pistas. A proteína que teve sua ativação aumentada com o aumento do tempo de abstinência foi a proteína regulada por sinais extracelulares, ERK. Esta proteína está envolvida em eventos relacionados à memória e ao efeito de recompensa promovido por drogas de abuso.

A injeção de um inibidor de ERK na amígdala dos ratos provocou uma redução no número de pressionamentos da alavanca, diminuindo a ânsia. Entretanto, o tratamento com um agente que ativa esta via de sinalização aumentou o número de pressionamentos. Este aumento foi revertido quando o inibidor da proteína foi utilizado, indicando que somente a ativação de ERK na amígdala era responsável pelo aumento na ânsia com o tempo de abstinência.

Através de um paradigma simples este grupo demonstrou a associação de um comportamento tão complexo quanto o aumento do desejo por cocaína à ativação de uma proteína em uma área restrita do cérebro. Este artigo se coloca no contexto de uma série de trabalhos que buscam, pela elucidação dos fundamentos moleculares do comportamento, nos aproximar de uma compreensão da mente humana e de suas funções. Sua abordagem é um exemplo de simplicidade e elegância em pesquisa e ainda sugere, mesmo como possibilidade longínqua, um possível alvo de ação de psicofármacos para prevenção de recaída.

Este estudo ilustrativo de como a pesquisa básica com modelos animais é capaz de responder questões complexas e oferecer caminhos para a resolução de problemas clínicos. As aplicações e implicações éticas destas informações, no entanto, representam outros desafios e questões que precisam ser pensadas, e cuja relevância ultrapassa largamente o domínio das neurociências.

 

Endereço para Correspondência

Maithe Arruda-Carvalho é biomédica (UFRJ) e Mestranda no Curso de Pós-graduação em Biofísica (UFRJ) no Laboratório de Neurogênese, Programa de Neurobiologia do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF). E-mail para correspondência: maithe@biof.ufrj.br.

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