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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.5 no.1 Rio de Janeiro July 2005

 

Divulgação Científica

 

Vício, ética e neurociências

 

Addiction, ethics, and neuroscience

 

 

Lígia Lorandi Ferreira Carneiro

Faculdade de Medicina, Centro de Ciências da Saúde, UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

 

 

Comentário sobre o artigo: "Neuroscience research on the addictions: A prospectus for future ethical and policy analysis" - Wayne Hall; Lucy Carter e Katherine I. Morley, Addictive Behaviors, 2004; 29: 1481-1495.

A regulamentação das pesquisas envolvendo seres humanos exige uma REVISÃO ética dos riscos e benefícios da experiência, a obtenção do consentimento livre e informado de cada um dos participantes e a garantia de que as informações obtidas serão mantidas em sigilo. No caso dos viciados surge um problema: será que eles são capazes de entender racionalmente todas as questões envolvidas com a pesquisa e portanto estão aptos a decidirem sobre sua participação no estudo? Até recentemente considerava-se que, não estando sob o efeito da droga ou sofrendo sintomas de abstinência, os dependentes eram capazes de decidir por conta própria. Essa visão está sendo contestada hoje por alguns pesquisadores que alegam a impossibilidade de um dependente químico não tratado se recusar a participar de um estudo onde ele receberá a droga de graça, sugerindo que o consentimento deveria ser dado por parentes ou outra pessoa responsável.

No caso de pesquisas genéticas, outras questões devem ser levadas em consideração. O caráter preditivo da informação genética pode afetar negativamente a vida das pessoas e de seus familiares, além de poder se tornar um estigma. Um grande desafio é garantir a privacidade das informações para não comprometer as relações familiares; muitas vezes, a falta de compreensão sobre um distúrbio e seu tratamento leva a atribuições de culpa entre os pais. Por isso, as informações individuais não devem ser repassadas para os participantes da pesquisa, que devem ser informados apenas dos resultados gerais.

Há muito tempo ocorrem discussões sobre as diferentes abordagens do vício: o modelo moral e o médico. A visão moral mostra o uso de drogas como um comportamento voluntário que as pessoas decidem adotar e vício como uma desculpa para o mau comportamento, uma forma para os viciados não assumirem suas responsabilidades. O modelo médico, ao contrário, reconhece que muitas pessoas consomem drogas sem se tornarem viciados, enquanto uma minoria perderá o controle sobre o uso, necessitando de tratamento para as crises de abstinência. As Neurociências incluíram detalhes nas explicações das alterações cerebrais envolvidas, levando à identificação de uma doença cerebral resultante do abuso crônico de drogas.

A nova perspectiva possui muitas vantagens em relação ao modelo moral. O reconhecimento de que o uso de drogas não é apenas uma questão de escolha individual permite uma mudança na resposta ao vício: menos punição e mais tratamento, devendo contribuir para a redução do estigma dos viciados como moralmente degradados. Por outro lado, o modelo médico não deve ser reduzido à simplificação de que só alguns grupos estão sob risco de se viciarem, no caso do álcool, podendo o resto da população utilizar a substância impunemente. Essa visão ignora os grandes efeitos do álcool na saúde pública tanto na intoxicação aguda quanto a longo prazo.

Ao considerar os dependentes químicos doentes cerebrais sem autonomia e com a capacidade de consentir em tratamento prejudicada surgiu a idéia de tratá-los obrigatoriamente, "para o seu próprio bem". No caso dos crimes em parte motivados pelas drogas, o tratamento é uma alternativa mais barata do que a prisão. O recente consenso da Organização Mundial de Saúde recomenda que o tratamento obrigatório seja instituído somente se os direitos do indivíduo forem assegurados e se um tratamento eficaz e humano for oferecido.

A identificação de genes relacionados à susceptibilidade ao vício não parece ser uma alternativa promissora na prevenção. Como muitos genes estão envolvidos e a prevalência de combinações de alto risco é rara, muitos indivíduos teriam de ser testados para identificar aqueles com maior risco. Além do mais, a triagem só se justifica na existência de uma intervenção eficaz, hoje inexistente. Essas tecnologias podem acabar sendo usadas por companhias de seguro, empresas e tribunais, quando se terá de discutir os problemas éticos de tal violação de privacidade e da discriminação dela resultante.

A tecnologia também oferece a oportunidade de melhorar o desempenho de pessoas normais. Muitos fármacos já são utilizados com o propósito do melhoramento, como o Viagra em pessoas sem impotência e antidepressivos para modular humor e mudar a personalidade. Num futuro próximo, muitos antevêem o uso dos fármacos para reduzir os déficits de cognição e memória da doença de Alzheimer, fármacos que serão utilizados amplamente por pessoas normais. Muitos críticos alertam para o risco de tais medicações: numa pessoa doente, os benefícios ultrapassam de longe os efeitos colaterais, nas pessoas sadias isso não está claro. Outro argumento, este de natureza social, alerta que essas tecnologias, estando disponíveis apenas para as classes economicamente favorecidas, irão ampliar as desigualdades sociais já existentes. Ainda existe a possibilidade de que o melhoramento, sendo adotado em larga escala, aumente a discriminação contra os inválidos e contra aquelas pessoas que se recusarem a aderir aos fármacos.

O interesse do público leigo no assunto leva muitos cientistas a publicarem suas descobertas na imprensa comum. Sempre há a possibilidade de as notícias serem sensacionalistas ou triviais demais, deturpando o sentido exato da pesquisa. Alguns cientistas menos escrupulosos usam a mídia para alavancar a carreira e conseguir investimentos. Esses contratempos não devem ser obstáculos para a divulgação científica. Muitos eminentes cientistas assumiram a tarefa de "educar" a população, disponibilizando informações confiáveis numa linguagem acessível. As novas descobertas das Neurociências e da Genética precisam ser divulgadas pelos próprios cientistas para reduzir as potenciais interpretações erradas e para satisfazer a curiosidade e interesse dos leigos em geral.

 

Endereço para Correspondência

L.L.F. Carneiro é Monitora de Neurofisiologia, Programa de Neurobiologia, Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF) e Graduanda do Curso de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail para correspondência: ligia@biof.ufrj.br.

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