SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.6 issue1Teacher's representation: a constructive visionReligious phenomenon: an anthropological and psychological perspective author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.6 no.1 Rio de Janeiro Nov. 2005

 

Artigo Científico

 

Crianças e adolescentes falam sobre a mentira: contribuições para o contexto escolar

 

Children and teenager talk about the lie: contributions for the school context

 

 

Ligiane Raimundo Gomes; Cilene Ribeiro de Sá Leite Chakur

Universidade Estadual Paulista - Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciência e Letras - Araraquara, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A moralidade é um domínio amplamente difundido no âmbito educacional, especialmente no que se refere à autonomia, que, segundo o referencial piagetiano, só será efetivada com a superação da heteronomia. O presente estudo investigou o desenvolvimento da noção de mentira, um conteúdo da moralidade que se constrói e se faz presente dentro do universo infantil e escolar. Entrevistamos crianças e adolescentes, partindo de histórias hipotéticas e recorrendo ao método clínico piagetiano; a análise dos dados seguiu as fases encontradas por Piaget para esta noção. Os resultados reafirmam uma seqüência hierarquizada no desenvolvimento da noção de mentira. Contudo, há o predomínio da responsabilidade objetiva, quando a mentira é avaliada em função de suas conseqüências (punição, por exemplo) ou do seu grau de falsidade, antes que pela intencionalidade do ato de mentir. Concluímos que predomina a moral heterônoma na amostra estudada, ressaltando algumas considerações do estudo do desenvolvimento moral para o contexto escolar. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 06: 33-43.

Palavras-chave: desenvolvimento da moralidade; noção de mentira; educação escolar.


Abstract

The morality is a large knowledge spread in the educational scope concerning with the autonomy, according to Piaget's referencials, this autonomy only will be accomplished with the surpass of the heteronomy. This study investigated the development of the lie notion, a content of the morality that is constructed along the development and it is made present inside of the infantile universe. For this, we used the Piaget's clinical method and for analysis of the data we followed the stages found by Piaget for this notion. The results reaffirm a hierarchical sequence of the lie notion. However, there is the predomination of the objective responsibility, in that the lie is evaluated in function of its consequences (punishment, for instance) or of the degree of falseness that its causes, before for the intention of the act of to lie. In conclusion, there is the predomination of the heteronomy moral and we can stand out important considerations for the school context. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 06: 33-43.

Keywords: development of the morality; lie notion; education.


 

 

 

Introdução

A educação constantemente ressalta a importância da formação de cidadãos críticos e participativos, portanto, de indivíduos autônomos. Na Introdução dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que constituem uma referência nacional para a formação escolar no Brasil, pretende-se um ensino capaz de propiciar o desenvolvimento da autonomia ao longo do Ensino Fundamental, ressaltando que a escola pode criar situações planejadas e sistematizadas que auxiliem na conquista da autonomia com o desenvolvimento de procedimentos e atitudes que podem estar presentes no cotidiano da sala de aula (Brasil, 1997:95). Assim, a questão da autonomia é reafirmada e constitui-se em um eixo norteador dos Temas Transversais, intitulado como Ética, sendo que seus pressupostos percorrem várias dimensões da vida social, e que está relacionado aos demais Temas Transversais, bem como às demais áreas disciplinares (Brasil, 1998:2).

Essa autonomia que se pretende, segundo a teoria piagetiana, só pode ser efetivada mediante a superação da heteronomia - relação pautada na coação e no egocentrismo - pela autonomia - relação em que se pressupõe a cooperação e a coordenação de diferentes pontos de vista.

Para Piaget (1932/1994:64), "é a partir do momento em que a regra de cooperação sucede à regra de coação que ela se torna uma lei moral efetiva". Sendo assim, a criança adquire a consciência moral em etapas, passando de um primeiro estágio de pré-moralidade - sem noção de regra ou consciência moral, anomia - para um estágio de heteronomia no qual as regras são impostas, até atingir a autonomia moral, ou seja, ser governado por si mesmo, diferente de fazer o que se deseja, pautando-se em relações de cooperação.

Segundo Piaget (1998:61-62):

"uma regra é um fato social, que supõe uma relação entre pelo menos dois indivíduos. E esse fato social repousa sobre um sentimento que une esses indivíduos uns aos outros, que é o sentimento do respeito: há regra quando a vontade de um indivíduo é respeitada pelos outros ou quando a vontade comum é respeitada por todos."

Assim, o respeito torna-se a unidade funcional que possibilita a aquisição das noções morais (Piaget, 1932/1994:4), podendo ser de dois tipos: o respeito unilateral, que caracteriza uma primeira forma de relação social, em que predomina a obediência, numa relação de coação do superior sobre o inferior. Portanto, a moral decorrente é essencialmente heterônoma; e o respeito mútuo caracterizado por um segundo tipo de relação social pautada na relação de cooperação, em que a moral resultante se caracteriza por um sentimento diferente, o do bem, "mais interior à consciência, cujo ideal de reciprocidade tende a tornar-se inteiramente autônomo" (Piaget, 1998:29).

A noção de mentira, sendo um dos conteúdos do desenvolvimento da moralidade, pode revelar características importantes desta, bem como do universo infantil. Assim, para este estudo elegemos a noção de mentira e com ela procuramos esclarecer um pouco mais sobre a moralidade no contexto escolar.

 

A mentira: um dos conteúdos da moralidade

Na obra O juízo moral da criança, Piaget (1932/1994) apresenta várias pesquisas no domínio da moralidade, entre as quais as da prática e da consciência das regras do jogo e da consciência da mentira. São esses estudos que guiaram a presente pesquisa.

Nos estudos sobre as regras do jogo, Piaget afirma que a coação do adulto favorece o aparecimento da heteronomia e, por outro lado, no que se refere à consciência, o egocentrismo não deixa que a criança consiga perceber e coordenar os diferentes pontos de vista.

Piaget compara a coação moral com a coação intelectual, por serem as regras exteriores, recebidas do adulto, predominantes nos juízos (moral) e na linguagem (intelectual), fazendo a comparação também entre o realismo nominal e o que denominou de realismo moral, ou seja:

"a tendência da criança em considerar os deveres e os valores a eles relacionados como subsistentes entre si, independentemente da consciência e se impondo obrigatoriamente, quaisquer que sejam as circunstancias às quais o indivíduo está preso." (Piaget, 1932/1994: 93)

Portanto, é com a intenção de estudar os juízos da criança que Piaget (1932/1994:114) aprofunda-se na noção de mentira, dizendo penetrar mais fundo na intimidade das avaliações infantis, pois "a tendência à mentira é uma tendência natural, cuja espontaneidade e generalidade mostram quanto ela faz parte do pensamento egocêntrico da criança".

Para analisar a evolução da consciência da mentira, Piaget estudou inicialmente a definição de mentira, revelando a dificuldade da compreensão da natureza da mentira por crianças menores de oito anos. Buscando mais subsídios, Piaget analisou duas questões: o conteúdo da mentira e suas conseqüências materiais, revelando a responsabilidade de tipos objetivo e subjetivo. A responsabilidade objetiva é aquela em que a criança avalia os atos "não em função da intenção que os desencadeou, mas em função de sua conformidade material com as regras estabelecidas" (Piaget, 1994: 94), pois a criança não consegue fazer a dissociação de um ato e da conseqüência material que o acompanha. A criança ao analisar uma situação objetivamente está demonstrando suas tendências realista e egocêntrica, insistindo mais sobre o elemento exterior e palpável que sobre a intenção adulta. A responsabilidade objetiva é característica marcante da moral heterônoma, em que prevalecem a coação do adulto e o respeito unilateral.

A responsabilidade subjetiva é aquela baseada na intencionalidade do ato, ou seja, é aquela em que o indivíduo atinge seus objetivos através de uma intenção deliberada. Para Piaget, a intenção predomina quando há relações de cooperação. Assim, a moral decorrente da responsabilidade subjetiva é a moral autônoma.

Piaget se preocupou, em seguida, em estudar como a criança adquire a compreensão real da mentira e o juízo da responsabilidade subjetiva. Analisou, assim, por que não se deve mentir, juntamente com a questão da punição, fundamental para averiguar o progresso da reciprocidade, um elemento importante no que se refere à sucessão do respeito unilateral ao mútuo.

Nesse caso, pode-se analisar se há ou não coação do adulto sobre as crianças abordando o respeito unilateral - próprio da heteronomia - e o respeito mútuo, fundamental para a autonomia.

Para Piaget, a criança pequena não mente por mentir; na verdade, ela altera a realidade em função dos seus desejos e fantasias, pois, até aproximadamente 7/8 anos, a criança não tem obstáculo interior à mentira, mente como brinca, não sentindo a necessidade de dizer a verdade. Foi o que Stern chamou de pseudomentira ou mentira aparente, devido à espontaneidade da mentira infantil.

A criança recorre à pseudomentira quando deseja sair de uma situação difícil, então, inventa uma história. Assim como do ponto de vista intelectual a criança evita questões difíceis, do ponto de vista moral não percebe nada de errado em alterar a realidade conforme seus desejos. Trata-se da própria estrutura do pensamento espontâneo da criança e não de uma verdadeira intenção de mentir.

Buscando como a criança avalia e julga a mentira, Piaget encontrou três fases.

Na primeira, puramente realista, a criança define a mentira como "nome feio", mas ela sabe que mentir consiste em não dizer a verdade. O que ocorre é um sentido comum da palavra "mentira"; seria uma falta moral que se comete através da linguagem. Isso, provavelmente, acontece porque o adulto repreende a criança da mesma forma quando ela diz coisas não verdadeiras e quando ela pronuncia palavrões e blasfêmias. Com isto a criança acaba por estabelecer uma relação entre essas duas situações, considerando ambas como mentiras. Assim, a proibição de mentir permanece sob a coação do adulto; portanto, a mentira é exterior à consciência da criança.

Nesta fase há o predomínio da responsabilidade objetiva: a criança concebe a mentira relacionada com a punição, isto é, se houver punição é realmente uma mentira e não se deve mentir; e sem punição, não há mentira, então, pode-se mentir. Outra característica desta fase é que a mentira se relaciona com a gravidade que ela proporciona, isto é, para a criança pequena, a mentira mais grave é aquela que mais se afasta da realidade.

Na segunda fase, a mentira consiste em uma falta em si, pois a criança não distingue na prática um ato intencional de um erro involuntário; portanto, mesmo se não houver punição, a mentira é considerada como tal. Somente quando ocorre um avanço das noções do intencional e do involuntário, é que a criança fará a diferenciação entre erro e mentira, considerando esta como uma afirmação intencionalmente falsa, o que constitui a terceira fase da evolução da consciência da mentira, isto é, a mentira opõe-se à confiança e ao respeito mútuo. Assim, a "consciência da mentira interioriza-se então pouco a pouco, e podemos apresentar a hipótese de que isto sucede sob influência da cooperação" (Piaget, 1932/1994:137). Nesta última fase, a mentira mais grave é aquela que consegue atingir seus objetivos, havendo diferenciação entre mentira e erro ou exagero, o que não acontecia antes.

A noção de mentira está, portanto, associada aos dois tipos de respeito que fundamentam o desenvolvimento da moralidade. O respeito unilateral, aquele em que a criança, por ainda estar presa às condutas egocêntricas, não consegue interiorizar e compreender a regra de não mentir imposta pelo adulto, o que faz essa regra ser considerada como sagrada pela criança; e o respeito mútuo, quando há cooperação e a coordenação de diferentes pontos de vista. Somente com a cooperação e a superação do egocentrismo é que será possível que a criança aos poucos compreenda a necessidade da regra de não mentir, ou seja, quando o respeito mútuo tiver primazia sobre o respeito unilateral e seus julgamentos não estiverem mais pautados na responsabilidade objetiva, ou seja, em função das conseqüências materiais do ato.

 

Desvendando a compreensão da noção de mentira em crianças e adolescentes

Objetivo e participantes

Esta pesquisa teve por finalidade investigar a noção de mentira em crianças e adolescentes do Ensino Fundamental, visto que a mentira está presente em todo o processo do desenvolvimento da moralidade.

Foram selecionados nove participantes entre 7 e 14 anos, divididos em três faixas etárias: de 7 a 8 anos; de 10 a 11 anos; e de 13 a 14 anos, tomados de escolas públicas de uma cidade paulista. Para a coleta de dados utilizamos o método proposto por Piaget em seus estudos sobre a mentira - o método clínico.

 

O método clínico e o procedimento de análise dos dados

Piaget foi o primeiro a utilizar o método clínico nos estudos da inteligência introduzindo-o na Psicologia do Desenvolvimento. Este método proporcionou resultados magníficos para a descoberta de fatos novos e para a exploração de aspectos do desenvolvimento até então desconhecidos (Delval, 2002).

Em 1932, Piaget aplica seu método a um novo campo, estudando as idéias morais da criança, sua noção das normas e sua compreensão de justiça (Delval, 2002, p.58), apoiando-se na entrevista verbal e na ação do próprio sujeito ao analisar as regras do jogo. Adepto do ponto de vista de que as questões morais são passíveis de estudo científico, Piaget foi pioneiro ao abordar o tema da moralidade no campo da Psicologia, discutindo a moralidade infantil e, por meio dela, busca pensar a moralidade humana, tomando o cuidado em associar o desenvolvimento moral ao desenvolvimento geral da criança (La Taille, 1994).

O método clínico piagetiano possui algumas características próprias. Dentre elas, a flexibilidade da entrevista, que procura seguir o curso do pensamento do entrevistado, buscando argumentos nas próprias respostas do sujeito. Com isso, o pesquisador tem liberdade para retomar os questionamentos e fazer contra-argumentações quando necessário, elaborando novas hipóteses ao longo da entrevista, a fim de certificar-se do que o participante está revelando. Segundo Delval (2002:68), "a essência do método consiste na intervenção sistemática do experimentador diante da atuação do sujeito e da resposta às suas ações ou explicações".

Cabe ao pesquisador "abrir mão de sua forma de pensar para introduzir-se na forma de pensar do sujeito e, por isso, não pode atribuir aos termos que ele utiliza o mesmo sentido que tem para si próprio, mas deve buscar esclarecer qual é o sentido desses termos dentro da estrutura mental do sujeito". Assim, o método clínico "baseia-se no pressuposto de que os sujeitos têm uma estrutura de pensamento coerente, constroem representações da realidade à sua volta e revelam isso ao longo da entrevista ou de suas ações" (Delval, 2002:70-72).

Como nos estudos propostos por Piaget, selecionamos um par de histórias: uma delas marca uma grande distorção da realidade, em que a criança não teve nenhuma intenção maldosa no relato do fato, pois conta para a mãe ter visto um cachorro do tamanho de uma vaca; e outra em que o relato tem um conteúdo verossímil, com visível intenção de enganar, ou seja, a criança diz à mãe que a professora lhe dera boas notas e a mãe a recompensa, mas na verdade a professora não havia dado nota, nem boa, nem má, à criança (Piaget, 1932/1994:120-121).

Para este par de histórias, buscamos elaborar um roteiro de entrevista que abarcasse todas as questões propostas no conjunto de estudos sobre a mentira realizados por Piaget, ou seja, sobre a definição de mentira, sobre erros ou enganos, sobre responsabilidade objetiva ou subjetiva, sobre punição, tais como: Há alguma criança mentindo? Qual? Qual criança mentiu mais? A mãe acreditou no que a criança da primeira história contou? E a mãe da segunda história, acreditou? Alguém merece ser castigado? Quem? O que é uma mentira? Sempre que a gente mente, a gente merece ser castigado ou não?

Para observar se a criança fazia ou não a distinção entre "nome feio" e mentira, pedimos: Fale um palavrão, você falou uma mentira ou não? Por quê?1

Como mencionado, Piaget encontrou três fases (estágios) de desenvolvimento da noção de mentira, apresentados resumidamente por Chakur (2002:51) e tomados como nosso critério de análise, quais sejam:

  • Fase I: a mentira é definida como "nome feio" e a punição é o critério da gravidade da mentira: se não houvesse punição, poder-se-ia mentir.
  • Fase II: a mentira é uma falta em si - incluindo até os erros involuntários - assim permanecendo mesmo se não houver punição.
  • Fase III: a mentira é uma afirmação intencionalmente falsa; constitui-se em falta porque se opõe à confiança e à afeição mútuas.

Como procuramos reunir o conjunto de pesquisas de Piaget sobre a mentira, estabelecemos uma seqüência de análise. Para isto, classificamos, inicialmente, as repostas de nossos participantes, analisando aspectos separados da noção de mentira, como: a questão do palavrão ou blasfêmia; a punição; a responsabilidade objetiva e a intencionalidade, para depois classificarmos os depoimentos dos participantes, tomando como critério o maior número de características de uma determinada fase.

A seguir, apresentaremos os resultados encontrados exemplificando com as respostas dadas pelas crianças.

 

O que é mentira: a fala de crianças e adolescentes

Assim como nos estudos piagetianos, as três fases do desenvolvimento da noção de mentira foram encontradas, o que reafirma o processo evolutivo desta noção, visto que não encontramos nenhuma criança com menos de oito anos na Fase III, assim como não há crianças maiores, de treze anos ou mais, na Fase I.

No que se refere à definição de mentira, Piaget havia notado que uma definição comum e que pode permanecer até bem tarde, é de que a mentira é o contrário da verdade. Nos estudos de Piaget (1932/1994), esta definição permanece até por volta dos 10 anos, aproximadamente.

Apenas a criança mais nova da nossa amostra considerou a definição da mentira como "nome feio", característica da fase I, que é puramente realista. A criança sabe que mentir é não dizer a verdade, mas define a mentira associando-a a qualquer palavrão ou blasfêmia, conforme o exemplo a seguir2:

(Fale um palavrão) Hum... P. (É uma mentira ou não?) É uma mentira. (Por quê?) Ah. Porque eles falam muitas besteiras e é muito feio isso, aí. É uma mentira, é um palavrão" (6;11 anos)3.

Os demais participantes corroboram com a definição de que a mentira é o contrário da verdade. Portanto, para o presente estudo, esta definição permanece até os 14 anos. Para eles, mentir é:

"Inventá uma coisa que não existe" (10;0 anos).

"Falá uma coisa que não aconteceu, ou seja, uma coisa que não fez" (11;6 anos).

"... não contar a verdade, é isso" (14;6 anos).

A maioria dos participantes encontra-se na Fase II, em que predomina a responsabilidade objetiva, ou seja, a criança privilegia o resultado material de um ato ao invés da intenção que o desencadeou. No caso da amostra pesquisada, a mentira mais grave foi considerada aquela que mais se afasta da realidade: a mentira da criança que diz ter visto um cachorro do tamanho de uma vaca é mais grave, levando-se em consideração os elementos mais exteriores e realistas da situação colocada, conforme os exemplos apresentados a seguir:

(Qual das duas crianças mentiu mais?) Da primeira história. (Por quê?) Porque nunca pode ter um cachorro tão grande... (10;0 anos).

(Você acha que alguém está mentindo?) O da primeira história. Não tem um cachorro assim. (Qual das duas crianças mentiu mais?) A criança da primeira história, pelo tamanho do cachorro (14;1 anos).

 

Segundo Piaget (1932/1994), a responsabilidade objetiva é um fenômeno freqüente entre os pequenos e diminui consideravelmente com a idade, sendo sucedida pela responsabilidade subjetiva. Nesta última, a mentira mais grave será aquela menos aparente e a que afirma a intenção deliberada de enganar alguém. É justamente a intencionalidade, que é algo subjetivo, que torna uma afirmação mentirosa.

Para o autor, a regra de não mentir é imposta pelo adulto e assim é considerada como sagrada e imutável, fazendo com que sua interpretação sobre a situação seja objetiva. A responsabilidade objetiva é a conseqüência do respeito unilateral. Assim, predomina a moral heterônoma.

Em algumas respostas das crianças, pudemos perceber a coação do adulto, conforme o exemplo a seguir:

(E se a gente não fosse castigado a gente poderia mentir?) Não. (Por quê?) Porque a gente começa menti coisa pequena e depois vai passando pra outra... vai piorando e aí a gente faz mentira grande e conseqüentemente vai ficar de castigo. Assim, sempre que a gente conta uma mentira a gente deve ter um aviso, que da próxima vez vai ficar de castigo (11;0 anos).

Para esta criança, não se deve mentir, mesmo não sendo castigado; a mentira é uma falta em si, característica da fase II. Ela considera que a mentira pode tornar-se um hábito e a punição ou o castigo é uma conseqüência da mentira. Fica clara no depoimento a coação do adulto sofrida pela criança, pois, antes do castigo, "a gente deve ter um aviso". Esse tipo de coação do adulto é comum e freqüente quando se deseja que uma regra seja validada pela criança.

Além da responsabilidade objetiva, a não distinção entre erro/engano e mentira predomina nas respostas dos participantes e percebemos que eles apresentam grande dificuldade para explicar o por quê dessa consideração e, mesmo com várias contra-argumentações, a distinção entre erro/engano e mentira não nos pareceu muito clara. Mas a falta de distinção era facilmente percebida quando chamávamos o participante por um nome que não era o dele e questionávamos se isso era uma mentira ou não. Algumas respostas das crianças exemplificam esta questão:

(Se eu disser que seu nome é Rafaela, eu estou mentindo ou não?) Tá mentindo. Porque eu não chamo Rafaela (13;0 anos).

(Se eu disser que seu nome é Fernando, eu estou mentindo ou não?) Tá. Porque meu nome é... e você está ma chamando de outra coisa (11;0 anos).

Apenas um participante foi classificado na Fase III. Ele apresentou uma clara distinção entre erro/engano e mentira, quando chamado por outro nome. Ele também fez a distinção entre palavrão e mentira dizendo que o primeiro é um xingamento, portanto, diferente de mentira:

(Se eu disser a você que seu nome é Marcelo, eu estou mentindo ou não?) Tá... não péra aí... às vezes você não sabe (o nome). E se eu não tivesse colocado o meu nome na folha... às vezes você confundiu. [...] (Fala um palavrão.) Ah... P. (É uma mentira ou não?) Não, acho que não. (Por quê?) Porque é um xingamento (14;6 anos).

Além disso, percebe a intencionalidade de um ato ao considerar que a criança da primeira história não merece ser castigada, pois mentiu (exagerou), porque ficou assustada, conforme o exemplo de sua resposta:

(Que castigo você daria à criança da primeira história?) Eu acho que da primeira história nenhum... porque ele ficou assustado e disse que tinha visto um cachorro daquele tamanho (E para a criança da segunda história, qual seria o castigo?) Eu... um castiguinho só de não ir brincá naquela tarde. (Por quê? Porque... sei...lá...pra ele não menti de novo (14;6 anos).

Percebemos que este participante busca uma aplicação de castigos no sentido da reciprocidade, pois pensa que o primeiro personagem não teve intenção de mentir e não merece castigo e o que mentiu intencionalmente merece um castiguinho. Para Piaget, é o progresso no sentido da reciprocidade que marca que o respeito unilateral está sendo sucedido pelo respeito mútuo.

Mas, mesmo apresentando essas características da Fase III, quando questionado sobre o que é uma mentira, o adolescente diz que "é não contar a verdade".

Um tipo de mentira não mencionado por Piaget e encontrado neste estudo é a chamada mentira piedosa, isto é, em certos casos pode-se mentir por pena, ou piedade de um doente, de um amigo etc., e em algumas respostas pudemos identificar este tipo de mentira através da expressão "mentira boa". A seguir daremos dois exemplos desse tipo particular de mentira:

(Você acha que a gente deve sempre falar a verdade ou não?) Não e sim. (Por quê?) Porque se você chega numa pessoa doente e fala que ela vai morrê, ela vai ficá chateada. Então, você fala que ela vai ficá boa. É uma mentirinha... É uma mentira boa (14;6 anos).

(Você acha que a gente deve sempre falar a verdade ou não?) Não, porque às vezes você tá num momento difícil assim, [...] agora, como eu posso explicá... deve sempre falar a verdade. (Então, deve sempre dizer a verdade?) É... só que às vezes... que nem...é... uma amiga chega e fala pra você...é... 'Nossa, sabia, aconteceu um negócio super-chato na minha família e eu só posso contar pra você'. Então você não conta pra ninguém. [...] Aí, depois outra pessoa fala assim... 'Nossa! Então, o que ela falou pra você?' Aí, às vezes eu falo assim: 'Nada...' pra não magoar a pessoa. Nessa hora eu invento alguma coisa, porque eu não posso falar a verdade que ela tinha falado pra mim. Então, eu tive que inventá alguma coisa. Aí, se eu não falasse ela ia ficá magoada, sabe? Sabe como é as meninas, né? (11;6 anos).

De modo geral, mesmo encontrando a seqüência do desenvolvimento da noção de mentira entre os participantes de nossa pesquisa, notamos que a maioria deles ainda não tem interiorizada a regra de não mentir, o que significa que estão subordinados às regras exteriores e à coação adulta.

Entretanto, podemos considerar, também, que as crianças que acham que a mentira é uma falta em si (fase II) estariam no que Piaget (1932/1994:155) denomina semi-autonomia, pois "há sempre uma regra que se impõe de fora sem aparecer como o produto necessário da própria consciência". Dessa forma, a autonomia, no que se refere à veracidade, surge quando a criança percebe a necessidade das relações de simpatia e respeito mútuo favorecidas pela reciprocidade, fazendo com que ela trate os outros como gostaria de ser tratada.

Tendo como referencial a classificação das fases da evolução da noção de mentira e as particularidades encontradas no presente estudo, faremos algumas possíveis considerações buscando ressaltar a importância do desenvolvimento moral e de seus estudos para a educação.

 

Considerações para o contexto escolar

A questão do desenvolvimento da moralidade no âmbito educacional requer uma intervenção deliberada e sistemática por parte dos professores.

Apesar de a autonomia estar inserida nos temas transversais do documento "Ética" (PCN), portanto, um tema que percorre todas as disciplinas, não aparece como obrigatório na prática pedagógica. Mas devemos ressaltar que, mesmo não havendo esta obrigatoriedade com relação ao tema, as atitudes cotidianas do universo escolar, especialmente nas relações professor-aluno, pressupõem: regras, respeito, situações de justiça e injustiça, autoridade e autonomia. Estes são componentes do desenvolvimento da moralidade e que podem revelar os dois tipos de moral, a heterônoma e a autônoma.

Portanto, acreditamos que esses componentes devam ser sistematizados nas práticas pedagógicas e não devam ser tratados com sutileza, pois uma das funções da escola - formação para a cidadania - é formar o cidadão autônomo, consciente de seus direitos e deveres, capaz de participar ativamente da vida em sociedade.

As práticas pedagógicas que auxiliam no desenvolvimento da moralidade podem ser constituídas desde atividades de rotina da sala de aula até a seleção de conteúdos específicos, a fim de promover esse conhecimento. Mas, não devemos ter a ilusão de que, ao se trabalhar com conteúdos da moralidade, as crianças sigam fielmente o que lhes foi proposto, pois, assim como nos demais conhecimentos, no que se refere à autonomia, "a realização dos objetivos propostos implica necessariamente que sejam desde sempre praticados, pois não se desenvolve uma capacidade sem exercê-la" (Brasil, 1997:94).

Uma outra consideração importante está relacionada ao desenvolvimento e à aprendizagem, pois são diferentes, mas complementares.

A este respeito, Chakur (2002:26-27) ressalta que

"o desenvolvimento, para Piaget, constitui-se num processo natural, na medida em que a seqüência de aquisições mostra-se constante, sem ligações necessárias com idades cronológicas fixas. Isto não impede, contudo, a existência de determinados marcos de idade, faixas etárias que representam na verdade, idades médias correspondentes ao aparecimento de certas aquisições. Acelerações e atrasos possíveis relativamente a esses marcos devem-se, predominantemente, ao meio social e à experiência do sujeito, ou seja, à qualidade de suas interações com o ambiente físico e social."

Portanto, o desenvolvimento é um processo espontâneo, pois as estruturas de conhecimento são adquiridas sem necessidade de intervenção deliberada (Chakur, 2002:27), diferentemente da aprendizagem escolar, que é intencional e ocorre através de uma intervenção sistemática, promovendo o avanço nos mais variados conhecimentos.

Ao retratar a mentira, um dos conteúdos da moralidade, estamos falando em desenvolvimento e ao considerar este conteúdo como um importante auxílio para a autonomia, estamos nos referindo à educação.

Para Piaget (1932/1994), dizer a verdade só se tornará uma exigência moral na proporção dos encontros do pensamento próprio com o dos outros. Portanto, quando a criança for capaz de colocar-se no lugar do outro. Enquanto a criança permanece egocêntrica, ou seja, presa somente aos seus pontos de vista, a verdade não poderá interessá-la e buscará atender apenas seus desejos e fantasias.

Assim, conforme os resultados encontrados no presente estudo, percebemos o predomínio do egocentrismo, bem como da responsabilidade objetiva, decorrente da moral heterônoma, isto é, de uma moral pautada nas relações de coação e respeito unilateral, em que a criança insiste sobre elementos que são exteriores e palpáveis.

O rompimento do elo de confiança que une as pessoas pode causar transtornos na vida em sociedade, assim como na prática pedagógica, pois a relação professor-aluno também é uma relação social.

O estudo da noção de mentira, além de fornecer subsídios que indicam o tipo de moral predominante, pode auxiliar no reconhecimento de possíveis transtornos pedagógicos causados pela ação de mentir e que interferem na relação professor-aluno e nas relações entre pares; a ação de mentir pode revelar a noção que está por trás de tal ato. Assim, ao se deparar com a ação de mentir, o professor poderá interferir significativamente para que haja a interiorização da regra da veracidade. E, sem recorrer, simplesmente, a "lições de moral", pode chamar a atenção dos seus alunos para aspectos que são centrais na noção de mentira: sua diferença com relação ao "palavrão" e aos erros e enganos não intencionais, a presença de responsabilidade subjetiva, sua relação não necessária com o castigo.

Por outro lado, os estudos de Piaget sobre a consciência da mentira, bem como os estudos brasileiros piagetianos sobre a moralidade em geral, por exemplo, La Taille (1996; 2002), Vinha (2000), Araújo (1996) e Menin (1996; 2000) sugerem que as relações de coação não são as mais adequadas no contato entre professores e alunos e podem, inclusive, interferir negativamente no desenvolvimento do juízo moral, reforçando o egocentrismo e a heteronomia naturais da criança. Eis aí mais uma razão para os professores refletirem sobre suas atitudes em sala de aula que, muitas vezes, revelam um autoritarismo exacerbado ou, inversamente - o que se mostra igualmente nefasto -, uma permissividade que confunde e desorienta os alunos em seus comportamentos e atitudes.

Portanto, consideramos importante que a preocupação com o desenvolvimento da noção de mentira desde a infância esteja presente também na escola, pois será através da interação que a criança estabelece ao longo do seu desenvolvimento que haverá a evolução da consciência da mentira e, consequentemente, é através da educação que esperamos que a heteronomia seja sucedida pela autonomia e que as crianças possam perceber a intenção oculta de um ato.

Segundo Piaget (1932/1994, p. 139), "a veracidade deixa assim, pouco a pouco, de ser um dever imposto pela heteronomia para tornar-se um bem encarado como tal pela consciência pessoal autônoma".

Somente com o auxílio dos estudos sobre o desenvolvimento e a aprendizagem é que nós, professores, poderemos interferir significativamente no processo educativo e na formação de nossos alunos como cidadãos autônomos.

 

Referências Bibliográficas

Araújo, U.F. (1996). O ambiente escolar e o desenvolvimento do juízo moral infantil. Em L. Macedo (Org.). Cinco estudos de educação moral. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Brasil. (1997). Secretaria de Educação Fundamental. Introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF.

Brasil. (1998). Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais. Brasília: MEC/SEF.

Chakur, C.R.L. (2002). O social e o lógico matemático na mente infantil: cognição, valores e representações ideológicas. São Paulo: Arte e Ciência.         [ Links ]

Delval, J. (1994). Cómo sabemos lo que hacen y piensan los niños. Em DELVAl, J. El desarrollo humano (pp.499-528). Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores.         [ Links ]

Delval, J. (2002). Introdução à prática do método clínico: descobrindo o pensamento das crianças (F. Murad, Trad.). Porto Alegre: Artmed.

La Taille, Y. (1994). Prefácio à edição brasileira. Em PIAGET, J. O juízo moral na criança (pp.7-20). São Paulo: Summus.

La Taille, Y. (1996). A educação moral: Kant e Piaget. Em L. Macedo (Org.). Cinco estudos de educação moral. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

La Taille, Y. (2002). Vergonha, a ferida moral. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Menin, S.S. (1996). Desenvolvimento moral: refletindo com pais e professores. Em L. Macedo (Org.). Cinco estudos de educação moral. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Menin, S.S. (2000). Representações sociais de lei, crime e injustiça em adolescentes.Livre Docência, Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente, SP.         [ Links ]

Piaget, J. (1994). O juízo moral na criança (E. Lenardon, Trad.). São Paulo: Summus. (Original publicado em 1932).

Piaget, J. (1998). Sobre a pedagogia. (Compilação de textos inéditos de Piaget. organizada por Silvia Parrat e Anastásia Tryphon, Org.) (C. Berliner, Trad.). São Paulo: Casa do Psicólogo.

Vinha, T.P. (2000). O educador e a moralidade infantil: uma visão construtivista. Campinas: Mercado de Letras.         [ Links ]

 

 

Endereços para Correspondência
L.R. Gomes é Professora do Ensino Fundamental e Doutoranda em Educação Escolar pela Faculdade de Ciências e Letras - UNESP/Araraquara. Formada em Pedagogia (Instituto Taquaritinguense de Ensino Superior - ITES) e especialista em Psicopedagogia Institucional (UNIARA). e-mail para correspondecircncia: ligianeg@bol.com.br.
C.R.S.L. Chakur é Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências e Letras - UNESP/Araraquara. e-mail para correspondência: chakur@fclar.unesp.br.

 

 

Notas
(1) Gostaríamos de esclarecer que as crianças não se sentiram constrangidas ao falar um palavrão e que para este estudo não importava qual era o palavrão dito pela criança e sim se ela considerava ou não o palavrão uma mentira.
(2) Os exemplos das respostas das crianças estão em itálico e as intervenções da pesquisadora entre parênteses. Quando nos referimos aos palavrões ditos pelas crianças optamos por representá-los pela letra P., evitando, assim, qualquer constrangimento ao leitor.
(3) Nota do Editor - Nas anotações de idade, o primeiro número representa a idade em anos e o segundo indica os meses. Assim, a anotação "6;11 anos" deve ser lida como "6 anos e 11 meses".