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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.6 no.1 Rio de Janeiro nov. 2005

 

Artigo Científico

 

A dimensão do trágico na vida cotidiana: cognótica contemporânea ou tecnologia de subsunção da consciência.

 

The tragic dimension in the everyday life: the new contemporary cognotic or the seizure of consciousness

 

 

Gilbert Cardoso Bouyer

Universidade de São Paulo - USP/SP

 

 


RESUMO

Este artigo aborda uma "nova forma de observar" o clássico problema da questão filosófica do "ser" e da consciência, objetivando a análise filosófica sobre a questão do ser, abordando um problema sobre a consciência com o qual a "questão cognitiva" tem, historicamente, se deparado ao longo do tempo. Em um trabalho filosófico, como o que gerou este texto, uma "nova forma de observar" pode significar o uso de uma teoria já legitimada epistemologicamente e já comprovada através das vias ontológicas da realidade. Em outras palavras, uma "abordagem da cognição", que permita compreender a ação no "novo" capitalismo e sua "nova" sociedade. O "panoptismo cognitivo" é uma metáfora que explica o problema sobre o sujeito que, hoje, na "nova" sociedade, é um receptor e processador de informações provenientes de um ambiente externo artificial.

Palavras-chave: Consciência; cotidiano; ser; modo de produção.


ABSTRACT

This article focuses on a "new way of watching" the classical problem about the philosophical question of "being" and of consciousness. The objective, the philosophical analyses about the question of "being", focuses one problem about consciousness in which the "cognitive question" has historically been coming across with, as time goes by. In a philosophical work, such as the one that originated this text, "a new way of watching" may signify the use of a theory already legitimated in the epistemology and already proved through the ontological means of reality. In other words, on "approach of cognition", aiming at understanding the action in the "new" capitalism and in the "new" society. The "cognitive panoptisme" is a metaphor that explain the problem about the subject that, today, in a new society, is a receiver and a processor of information that come from an external artificial milieu.

Keywords: Consciousness; Everyday life; being; production way.


 

 

"A procura ciente pode transformar-se em investigação se o que se questiona for determinado de maneira libertadora"

Maurice Merleau-Ponty (2005)

"A consciência de si é o próprio ser em exercício"

Maurice Merleau-Ponty (2005)

 

Prólogo...

Um problema que de tão próximo tornou-se invisível. Tal objeto disforme convidou a uma revisão teórico-filosófica envolvendo parte da corrente existencialista da filosofia e o pensamento de Henri Bergson sobre tempo, cognição e consciência. Heidegger investigou as noções de "ser" e "ser-no-mundo", via um retorno aos gregos e mediante lúcida "re-criação" de um vocabulário que será bastante tocado neste texto: "Dasein", "dasMan", "Verfall", "Mitsein". Nietzsche, implodindo e removendo as barreiras do conhecimento que permanecera soterrado na história, esboçou a dimensão da tragédia que devastou as mentes, distorceu valores e conceitos, perverteu noções históricas e semeou a ausência de fundação e o niilismo na consciência individual. Michel Foucault, herdeiro do legado genealógico de Nietzsche, forneceu, na História da Loucura e em Vigiar e Punir, pontos extremos de sua vasta obra, elementos para a compreensão de dispositivos e técnicas de poder que operam sutilmente na sociedade contemporânea... Aqui, buscou-se compreender, por investigação puramente filosófica, o empobrecimento dos mecanismos da consciência individual pelo modo de produção vigente.

 

1 - Introdução e alerta quanto à causticidade do texto

"Verfall" do homem, superficialidade, perda de contato com seu "ser-no-mundo"; distanciamento de "Mitsein" e de "Dasein", ou seja, conversão do homem em objeto estranho a si, em autômato cognitivamente governado pela razão de outrem. Com esta síntese, Heidegger (2005) define dasMan. Despersonalização de pessoas, automatização de seres-humanos, coisificação e estranhamento. Impessoal. Impessoalidade. Não se conhece mais a "pessoa" na "pessoa".

Há que se perdoar o tom das linhas que destilam fel. É preciso ter provado do fel para dele poder dizer algo. A filosofia, muitas vezes, é amarga por conduzir ao retorno do sensível, ao resgate do imperceptível, à retomada da consciência. Fazer notar a presença de uma dada sensação que, de tão próxima e comum, tornara-se imperceptível. Infiltrá-la na consciência. Eis o amargor. A filosofia é, pois, "a pesquisa de tudo o que é estranho e problemático na vida" (Nietzsche, 2000).

Visto que se trata de observar uma dimensão do trágico, deveras imperceptível ao senso comum, não havia outra alternativa senão expor o amargo da questão. Algo que ao próprio senso comum pode indignar. Que solução?

A função soberana da filosofia é jogar luz ao que passa despercebido das mentes afoitas. Quanto mais aqui, que se aponta justamente um fato ontológico, ao mesmo tempo trágico, estampado na realidade do cotidiano contemporâneo de mentes afoitas, catatônicas, dopadas pelos excessos da "moda". A consciência do homem tornou-se seu inferno. Visto que os objetos se projetam na consciência por meio de atos de consciência, como memória e percepção. A consciência consiste, então, num "domínio unificador em que toda nossa cognição tem lugar" (Husserl, 2001). O que vem a diferir o reflexo consciente no homem é que este distingue propriedades objetivas da realidade, destacando-a do seu reflexo (Leontiev, 1978:69), ou seja, permite distinguir o mundo e as impressões interiores, tornando possível uma observação de si mesmo.

O Sistema, ou conjunto de processos de reificação das relações de produção entre indivíduos e de personificação das coisas resultando na subsunção de indivíduos particulares ao tipo dominante de relações de produção (Rubin, 1987:34), determina novas formas de consciência dantes desconhecidas por povos primitivos. Pois se existe um determinismo histórico sobre a consciência humana, a história que trilhou uma trajetória do trágico diluído no tempo originou modos de consciência que refletem o movimento desta tragédia humana rumo ao vazio, ao nada, ao niilismo plúmbeo dos grandes centros urbanos. Se, para caracterizar a consciência, faz-se necessário "rejeitar as concepções metafísicas que isolam a consciência da vida real" (Leontiev, 1978:92), não há como não detectar, no fragmento holográfico da vida social chamado consciência, uma dimensão do trágico engendrado historicamente pela vida concreta, real.

A consciência degradada do homem resulta de seu modo de vida a-humano, distanciado de seu próprio ser-no-mundo (Heidegger, 2005). Segundo o pensamento da Psicologia Social, uma estrutura particular de relações histórico-sociais engendra uma estrutura particular de consciência. Está-se, portanto, no centro mesmo do problema a ser discutido. Um modo de vida que oblitera o ser, que o torna clausura de si próprio, que mimetiza o reflexo da realidade na consciência, transformada em mecanismo de devaneios distanciados da realidade interior, do conhecimento de si e para si. "Uma transformação radical das relações de produção acarreta uma transformação não menos radical da consciência humana, que se torna diferente qualitativamente" (Leontiev, 1978:91).

Se todo o pensamento histórico-social de Vygotsky, Leontiev (sobre a consciência e suas raízes históricas) e Luria, herdado do refinado legado materialista do marxismo científico, são epistemologicamente legítimos e corroborados pela ontologia da própria realidade (e quanto a isso não pairam dúvidas), trata-se, aqui, nestas linhas amargas, do apontamento de um fato ontológico, então, deveras trágico.

Em suma, tal fato é a degenerescência mental historicamente engendrada no e pelo mundo industrial. Em síntese, também, é a miséria das consciências que já não permitem ao indivíduo perceber a si próprio. Fenômeno similar àquele historicamente detectado no conhecimento sobre a loucura ao longo dos séculos (Foucault, 2005). Como circunscrever essa dimensão do trágico, diluída no espaço-tempo, como torná-la perceptível, se sua propriedade intrínseca é não se dar facilmente à percepção? Tarefa difícil, visto que "esta loucura nunca se manifesta em si mesma e numa linguagem que lhe seria própria" (Foucault, 2005 :173).

O trágico é não enxergar a si mesmo, é não se auto-perceber. "Sou sombra que vagueia sem um objeto concreto que me origine" (Bouyer, 2003). Andróides-projeção da vontade e da razão de outrem; subjetividades sem sujeito concreto que as produza ; Artefatos da nova ordem econômica e social. O que é uma consciência sem a noção de si mesma? A ruína, a deriva, a desesperança... Alguns exemplos, desagradáveis a muitos leitores, fizeram-se forçosamente necessários aqui, uma vez que, conforme o próprio título acusa, há o propósito de abordar casos cotidianos, agregando maior objetividade e contextualização às revisões filosóficas. Há, entretanto, a certeza que as consciências científicas ainda incólumes à catástrofe ora apontada estão acima dos melindres e sentimentos de "ego ferido". Quanto mais que estas consciências remanescentes não se enquadram em generalizações que obrigatoriamente se fizeram necessárias nestas linhas duras.

Cabe, ainda, ressaltar que consciências saudáveis ainda pulsam, com sofreguidão, dotadas de algum sopro de vitalidade e com sabe-se lá qual energia e/ou motivação, em diversos ambientes aqui citados, como em universidades públicas, em faculdades privadas, em partidos políticos corrompidos, em empresas e indústrias do próprio sistema, etc.

Sinta-se a salvo quem a própria consciência o permitir. Mas, fora isto, há algo de perverso e silencioso que se vem metabolizando silenciosamente, ao longo do arrastar lânguido do tempo, nas entranhas "devastadoras de mentes" do sistema. É disto que se deve tratar em linhas tecidas com fel. De fato, que se interrompa a leitura, por aqui, aqueles que perderam os ideais ascéticos e o gosto pelo amargor do conhecimento que explicita mazelas e depura feridas abertas. Nestas linhas intragáveis, não havia outra alternativa frente ao problema tratado.

 

2 - Caracterização do Objeto "Tragédia" e a Noção do Trágico Inacessível ao Senso Comum

Não se trata de discutir um suposto "hiato" entre o mundo como ele é e o mundo como ele deveria ser. Tampouco se propõe discutir a influência dos valores éticos sobre o funcionamento da economia, como brilhantemente foi abordado por Giannetti (1993), ou os impactos negativos do capitalismo flexível sobre os valores, o caráter e a ética (Sennett, 2001). O presente objeto situa-se mais próximo da degradação cognitiva da consciência. Pauperismo de atributos cognitivos humanos por um processo histórico de 'esquematização' : Limitação do repertório de possibilidades cognitivas mais amplas por uma cultura que demanda respostas simples a estímulos programados do sistema.

Quer se trate do mundo do trabalho, do mundo do lazer ou esporte, da religião, das relações afetivas entre pessoas, a tudo se interpõe uma mediação trágica de "gabarito" ou determinação das possibilidades de ação, restritas a uma lista finita e limitada de opções previsíveis. Paradoxo humanístico, visto que a consciência do homem é plural, complexa, imprevisível, de possibilidades infinitas. O que ocorre, então? A "des-hominização" do homem?

A realidade que se percebe, pelo prisma da investigação filosófica, é que se trata de enunciar: A realidade da vida cotidiana, com suas formas ativas de subsunção de consciências. O senso comum é, sob tal perspectiva, convertido em objeto de análise filosófica, visto que não dispõe dos instrumentos necessários à investigação de si próprio. Tarefa da filosofia e da ciência ainda imunes a dasMan. A noção do trágico, pelo senso comum, engloba idéias de ruptura abrupta com um dado curso de normalidade de um sistema dinâmico. O assassinato monstruoso, por exemplo, numa "irrupção súbita da contra-natureza na natureza" (Foucault, 1978). Um ataque repentino e fulminante do coração, um acidente automobilístico com vítimas fatais, um terremoto devastador, um desabamento, uma avalanche, uma explosão industrial. Uma outra dimensão do trágico dá-se de forma lenta, histórica, num outro "ritmo de duração" (Bergson, 1999); distendida num tempo em que surge uma "diferença de natureza" (manifesta no mistério da consciência) entre passado e presente, na qual o último é o grau mais contraído do primeiro e, também, sua oposição (Bergson, obra citada).

O senso comum não dispõe das condições de possibilidade necessárias à percepção de uma outra dimensão do trágico na vida cotidiana, a dimensão lentamente cristalizada por uma contra-natureza que subsumiu a natureza do "ser" e do "estar-no-mundo" heideggerianos. Esta carência é, a um só tempo, o produto e o processo gerador da própria tragédia que assola as consciências inseridas nos grandes blocos do sistema, para usar as palavras de Habermas (1984). Sistema, pois, devorador de mercadorias e serviços supérfluos expelidos pelo modo de produção das sociedades industriais contemporâneas.

A dimensão do trágico que ora se aborda está diluída no tempo histórico, que ruiu as estruturas de percepção daquilo que se percebia como essencial ao ser. Está, também, dispersa nos grandes aglomerados urbanos nos quais personificações (Rubin, 1987) de patologias obsessivo-compulsivas do consumo mórbido rondam, atônitas, os canais urbanos pelos quais o sistema excreta sua seiva degradante. Por instinto, autômatos cumprem a sina de repetir. Rastejam nos sulcos de um labirinto: Repetição mental resultante do panóptico (Foucault, 1975) cognitivista plantado nas consciências individuais. A cognótica da contemporaneidade. Eis, então, que a dimensão do trágico corre nos veios do sistema e atinge as consciências, diferindo da tragédia comum por ocorrer num tempo-espaço relativamente esparso. Longe da catástrofe imediata, a nova noção de cataclismo não vem no tempo comprimido a um instante absoluto, mas no tempo estendido bergsoniano, pelo qual o passado sufoca o presente e esmaga a essência mais sublime do ser (perdida no holocausto do niilismo e da ausência de sentido). Trata-se do trágico refletido no massacre da consciência em seu sentido marxista mais fidedigno ou, melhor dizendo, na erupção cancerosa de um novo modo de consciência, degradada, fétida, incapaz de perceber a si mesma, de enxergar seu próprio processo histórico de degeneração.

As construções culturais humanas, numa concepção hegelinana, conforme Châtelet (1995), são, a um só tempo, produto e causa de três estados de consciência: consciência subjetiva, consciência objetiva e consciência abstrata. A proposta da filosofia hegeliana, no tocante à consciência, foi concretizar uma genealogia das construções culturais da humanidade e, conseqüentemente, das formas de consciência amalgamadas no pensamento abstrato e seus produtos concretos. Tal filosofia idealista elaborou uma noção de dialética intrínseca à consciência, dinamizada por determinantes sócio-históricos e determinantes psicológicos. Estes dois domínios de determinação, em sua dinâmica interna, sintetizavam a consciência no processo histórico de sua constituição.

O "problema" da consciência foi objetivamente delimitado por Vygotsky (1996), embora a morte precoce tenha posto fim ao promissor caminho iniciado pelo jovem estudioso da consciência e seus desenvolvimentos histórico e social. "A consciência é a vivência das vivências", afirmara o jovem Vygotsky (1996 :71) , um apaixonado pelos estudos da ontogênese da consciência:

"Mas, talvez, o mais importante seja que à luz desses pensamentos explica-se o desenvolvimento da consciência desde o momento em que se nasce, sua procedência da experiência, seu caráter secundário e, por conseguinte, sua dependência psicológica em relação ao meio. A experiência determina a consciência: Esta lei pode-se obter aqui pela primeira vez, recorrendo a uma certa redução, um significado psicológico exato, e descobrir o próprio mecanismo de tal determinabilidade" (Vygotsky, 1996:80).

Mecanismo convertido na produção do trágico, selado em esquemas cognitivos.

 

3 - A Tragédia em Esquemas Cognitivos - Automatização do Ser

"Schémas" determinados por uma lógica perversa, de condicionamento, de produção de reflexos, componentes que a psicologia sócio-histórica de Vygotsky quis reduzir ao comportamento dos animais e, triste ironia, a própria sociedade contemporânea, filha de uma história longa de automatismos e despersonalizações, colocou no centro de toda conduta e de toda ação do homem "hominizado" no cotidiano globalizado da atualidade.

Mesmo que a consciência seja tomada como produto de relações e práticas objetivadas nos intercâmbios sociais, espaços de uma dialética entre "produtos objetivados" na mente, conforme projeto de P. Bordieu (Bordieu & Wacquant, 1992), no qual "se trata de uma atividade de construção, dotada de reflexão prática, que as noções comuns de pensamento, consciência e conhecimento nos impedem de conceber adequadamente" (Bordieu & Wacquant, 1992:97), ainda assim, ela é produto e resultado de um processo histórico, uma imersão num cotidiano do vazio absoluto, cotidiano do nada, < >, produto e resultado de uma história trágica.

É a lógica da prática, na concepção de Bordieu & Wacquant (1992), em sua teoria de habitus, que atesta essa passividade da consciência ante o instinto de sobrevivência do trágico concretizado sobre o seu objeto, digerido e assimilado como substância vital de uma lógica perversa. A consciência sugada que cede espaço ao vácuo. O hábitus engendra o que é razoável, aceitável, o comum que banalizou a vida cotidiana. Ele se compõe de um sistema de esquemas geradores adquirido, ou seja, os instrumentos de ação da tragédia da banalização na consciência humana. Células da mediocridade se reproduzindo no panoptismo mental (a nova cognótica da contemporaneidade) engendrado pelo sistema, inflado por dasMan. Panóptico consiste num dispositivo disciplinar estudado por Bentham e descrito por Foucault (1975). Este dispositivo objetivava favorecer a visibilidade plena dos indivíduos e, assim, produzir disciplina por um sistema de efeitos, no âmbito de uma arquitetura projetada para tal.

A tragédia da Cognótica contemporânea: A automatização do homem, seu estranhamento perante o ser. Percebe-se a previsibilidade de uma conduta de circularidade e autoprodução do próprio dispositivo mental ao qual se encontra subsumida a cognição do indivíduo. Enquanto acoplado ao mundo artificial de repetição: repetição-reprodução e repetição do mesmo (Deleuze, 1968) e replicação (Maturana & Varela, 1984) dos esquemas cognitivos, reproduz uma lógica abstrata implantada na mente - a lógica dessa cognótica ou o jogo de um panoptismo cognitivista - reprodução dos esquemas, repetição, replicação... Se pudesse ser transposta para um plano, tal cognótica daria origem, em traços firmes e concretos, a um diagrama em forma de labirintos concêntricos nos quais a ação, em suas coordenadas cognitivas, desenvolve-se sem jamais escapar dos limites deste panóptico cognitivista.

Os esquemas de Bordieu (Bordieu & Wacquant, 1992) funcionam como os operadores práticos pelos quais as estruturas objetivas que os produziram tendem a se reproduzir nas práticas do cotidiano dominado por uma tragédia histórica silenciosa.

Um processo trágico enquanto que lento, segregado em mudez e vagareza que aterrorizam pela sutileza com que corrói as essências de dasein e as converte no mais negro líquen de dasMan, segundo termos heideggerianos. O sistema vingou soberano, excretou seu sêmen contaminado sobre as finas membranas de dasein, esgotando suas defesas, minando suas capacidades de reação. O sistema não encontrou oposição. Dominou, possuiu e fez reinar seu dasMan nas consciências dos indivíduos socializados em ambientes virtuais. A tragédia continua, segue seu curso lento. O predomínio do automatismo. É o reino de dasMan, a obstrução do 'ser' de Heidegger.

O sistema, com seu modo de produção vigente, violentou, penetrou e dominou o cenário global. Possuiu-o em plenitude, de forma vigorosa, sem sofrer qualquer ameaça de interrupção do seu ímpeto, uma vez que nunca houve alternativa ao seu gesto, nunca houve ameaça forte o bastante para suprimir sua volúpia. O trágico se instaurou livre na consciência do indivíduo.

"Em um mundo onde a educação é um privilégio e o aprisionamento da consciência impede de toda maneira o acesso das massas à experiência autêntica das formações espirituais, já não importam tanto os conteúdos ideológicos específicos, mas o fato de que simplesmente haja algo preenchendo o vácuo da consciência expropriada..." (Adorno, 2002b:94).

Fim das ideologias, dos idealismos, dos sonhos desvairados dos comunistas utópicos; com a queda dos muros que carregavam símbolos e a edificação de muros que separam semelhantes e comuns; com a derrocada da ética de esquerda; com a reinante calmaria dos ventos que dantes sopravam do leste europeu e flamejavam o vermelho de bandeiras ingênuas mas cheias de ruminante esperança... Finalmente, dasMan assolou, de vez, a consciência individual.

A experiência dionisíaca de dissolução das subjetividades até o completo esquecimento de si (Nietzsche, 1999) na extravagância e embriaguez; negação do indivíduo e da consciência. A consciência de si se tornou virtual. Restam o pesar, a desesperança com a existência e a falta de sentido e finalidade para o ser. Horror e absurdo em "ser-no-mundo". O mundo do "ser" existe apenas como uma fotografia digitalizada, esquecida, nos instantes, na distração da mente condicionada... Aquela imagem que resta tão somente como um protetor... de tela, ... , longe... da consciência... Esquecida e jamais ativada "em-si"... Apenas vista, ao simples toque do dedo, que novamente retornou ao seu estágio... de instrumento... de macaco. Digital lembra o tempo... Tempo de macaco.

Deriva, ruína, desesperança. O trágico é a não percepção da deriva da razão e da consciência apolínea de Nietzsche (1999). Esta dimensão trágica é a ruína mental dos formadores de opinião. São as ausências de fundação e de sentido para a existência na demência in-consciente do mundo global. Nuvens negras de desesperança e niilismo, pairando sobre as metrópoles desoladas pelo "salve-se quem puder!", acinzentam o quadro de uma catástrofe muda.

O trágico exposto por Nietzsche (1996) é representado pelo instinto dionisíaco desmesurado. A tragédia em si é o instinto terrível que submete o saber apolíneo à extinção ante o furor dionisíaco. "A forma mais universal do desatino trágico é a vitória alcançada na derrota. A cada vez a individualidade é vencida: E, entretanto, sentimos seu aniquilamento como uma vitória" (Nietzsche, 1999). O trágico, em seu espetáculo holográfico, replica-se em milhões de telas de tv, disseminando a estupidez. É absorvido por mentes miseráveis, que processam estímulos banais fartamente ofertados, e respondem com formas comportamentais pré-programadas por dasMan.

"O espectador não deve trabalhar com a própria cabeça; o produto prescreve toda e qualquer reação: não pelo seu contexto objetivo - que desaparece tão logo se dirige à faculdade pensante - mas por meio de sinais. Toda conexão lógica que exija alento intelectual é escrupulosamente evitada" (Adorno, 2002a :31).

A demência tornou-se normalidade, numa difícil inversão de posições entre desatino e razão. O difícil relacionamento entre desrazão e razão, historicamente, conduziu a um "jogo da verdade" determinante de que a primeira se revelasse à segunda, permitindo, como bem elucidou Foucault (2005), "fazer manifestar de modo positivo a negatividade da loucura". Tal "jogo da verdade" não se efetiva num cenário tão trágico quanto o que assola a contemporaneidade, em que sua "loucura" permanece com o status de sanidade, obscura a qualquer forma de simbolização.

Simplicidade de mecanismos que produzem efeitos avassaladores sobre mentes. Uma razão não-razoável que domina, com um aparato sofisticado tecnologicamente. Tecnologia segundo concepção de Mauss (1999), que a concebe como algo a mais que artefatos materiais; portanto, trata-se de uma tecnologia composta por esses dispositivos de depreciação ou "sucateamento" das capacidades cognitivas das grandes massas, manipulados por uma estratégia de poder subjacente aos aspectos visíveis dos intercâmbios sociais. Tecnologia da razão de dasMan.

O interessante fenômeno do fototropismo positivo pode ser observado nas dafnifiláceas, por exemplo. Esta espécie nutre-se da luminosidade, acompanhando os seus feixes, perseguindo vigorosamente o menor fio de claridade que se deixe penetrar em sua clausura. Os movimentos do ser acompanham a direção da luz. A dafnifilácea, evolutivamente distante da espécie humana, supera-a por ainda saber locomover-se rumo à luz. O sujeito dominado pela tecnologia de dasMan obedece ao esquema de panóptico do antitropismo. Segue, na escuridão, rumo aos pontos mais obscuros do espaço-tempo de um dispositivo panóptico que determina os trajetos possíveis de uma cognótica premeditada. Permite a ampla visibilidade de comportamentos previsíveis imersos no breu. Não vêem, mas são vistos: Tecnologia de panóptico cognitivista, no qual modos mecanizados de pensar estão determinados pelas estruturas condicionantes de atos cognitivos elementares.

A razão de dasMan triunfa sobre a demência por ela projetada, a qual "nunca é algo além daquilo que a razão pode possuir dela mesma" (Foucault, 2005:344). A razão de dasMan só assegura sua certeza na posse da desrazão; "ascensão a uma experiência em que uma e outra se implicam indefinidamente" visto que "seria loucura, um outro tipo de loucura, não ser louco" (Foucault, 2005:344). Ou ainda, conforme atesta o historiador-filósofo, " a razão se aliena no próprio movimento em que toma posse do desatino " (Foucault, 2005:344). Por isso, ser medíocre é ser normal hoje. Ser lúcido é ser demente.

Deriva, ruína, desesperança. Vocábulos que se tornaram parte comum da vida cotidiana. A dimensão do trágico se traduz, com todas as suas letras, nas míseras consciências sem consciência de sua própria deriva, de sua trágica ruína e da desesperança que delas desponta. As mentes não são mais capazes de nada além de apontar para fora de si mesmas. Não percebem sua mediocridade, tampouco sua falta de lucidez.

Não há saída para o paradoxo desta tragédia sem precedentes na história da humanidade. É impossível a uma consciência tomar ciência de sua própria loucura, de seu desatino ou, para usar o termo cunhado por Michel Foucault (2005), de sua "desrazão". Em verdade, "desrazão" é tudo que se pode dizer da dimensão trágica que assola as consciências contemporâneas, posto que não pode a desrazão atribuir-se, a si própria, um status de racionalidade. A consciência degradada pode tudo: O crime, o roubo, a fraude, a corrupção, a mediocridade, a mais-valia... Ela só não pode "estar segura de si mesma, isto é, segura de não estar louca" (Foucault, 2005:166).

Se há uma tecnologia política do corpo que articula o poder através da disciplina moldada numa microfísica (Foucault, 1975), pode-se denotar uma "tecnologia político-cognitiva" ou cognótica que articula um poder de dominação através da subsunção das consciências.

"Vi a terra dos homens tornar-se cavernosa, o seu peito oprimiu-se, tudo o que vive apareceu-me como uma podridão humana, feita de ossadas e de um passado carunchoso" (Nietzsche, 2005).

Não há pensamento. Há resposta aos estímulos que dasMan impõe para revigorar seu fluxo de consumo. O cinema morreu. As salas estão escuras.

"O eterno sorriso dos mesmos bebês das revistas coloridas, o eterno funcionar da máquina do jazz. Não obstante os progressos da técnica de reprodução, das regras e das especialidades, não obstante a pressa agitada, o alimento que a indústria cultural oferece aos homens permanece como a pedra da estereotipia. Ela vive do ciclo, da maravilha justificada que as mães, apesar de tudo, continuem a parir, que as rodas continuem a girar. Isso serve para reforçar a imutabilidade das relações" (Adorno, 2002a :47).

 

4 - No Cotidiano...

A academia está enfraquecida. Alguém não o percebe? Universidades de porte produzem ciência e filosofia com receio. Fim da antiga tradição da academia sinônimo de templo do saber. O mercado não quer o conhecimento que não se aplique, imediatamente, na replicação e na autoprodução do sistema. Aquilo que não servir para manter a circularidade do trágico, não terá valor para o mercado. Não será produzido.

As grandes editoras nunca publicaram tanta falácia, tanto engodo e vazio quanto hoje. Uma visita às prateleiras de livrarias de "bom gosto" pode comprovar o que vem da realidade cotidiana. Num reino de Coelhos encantados por Alquimistas e Magos, isso até que é perdoável, já que lá se manifesta com mais nitidez a tragédia da consciência tomada pela perversão paranóica do sistema.

O que espanta é a angústia dos acadêmicos... Onde está o Professor Universitário da pesquisa engajada, o Professor que todos tinham orgulho de ler os consistentes artigos, de citá-los com reverência? Onde está o Professor que produzia Ciência? DasMan o expeliu da academia. Na Academia, na Universidade, lugares da ciência e da filosofia por excelência, falar em ciência e filosofia é constrangedor nos dias de hoje. Só se pode falar em Modelos, em Projetos, em Gestões, Qualidades Totais, Clientes e seus Desejos. Os pensadores da filosofia e da ciência estão acuados, recolhidos em guetos discriminados por dasMan. A lógica cognitivista do sistema dominou boa parte das consciências na academia. Hoje, o professor e pesquisador universitário de carreira precisa se tornar medíocre para sobreviver. A mediocridade é alternativa para não morrer de fome. O acadêmico morreu. A consciência da universidade hoje é uma consciência de dasMan. Que o digam as áreas da Gestão: Lixo. Não há mais ciência na casa da ciência. Não há mais filosofia na casa da filosofia. Interesses de repetição, de reprodução, de auto-produção da tragédia dominaram a casa da ciência e a casa da filosofia. O pensamento foi mecanizado e doutrinado no espaço onde, historicamente, dever-se-ia "pensar sem fronteiras".

Na política, a consciência do político foi amputada. Um orgânulo denominado moral foi decepado de seu organismo consciente, sistêmico. Petizaram a consciência política.

A intelectualidade independente, composta por aqueles que viviam fora das academias e dos centros legitimados para a produção do conhecimento, está dopada. Sim. Os intelectuais estão atônitos com os efeitos das novas drogas. A dimensão do trágico está na sua nova consciência ou pseudo-consciência quimicamente elaborada. Os intelectuais, dantes laicos e ascéticos, se curvaram aos prazeres de dasMan. Perversão pura do intelectual boêmio, agora dopado pelos benzodiazepínicos e eufórico com as atrocidades do sistema, graças aos efeitos dos novos antidepressivos: "ser-impessoal" que subsumiu o "ser-pensante" ou sujeito cognoscens.

O que dizer da educação? A educação, à revelia dos belos discursos de novas pedagogias e modernos métodos educativos socializadores, é pura reprodução. Há algum professor que não perceba e não sinta isso? Qual é o "modelo mental" dos alunos do novo ensino superior? Apenas esta resposta atende o propósito de toda esta discussão. Dantes, esperança de resgate do ser em sua autenticidade... Virou um jogo de absorver esquemas para aplicar no mercado. Aplicação. Repetição. Automação. Mas a lógica do mercado prevaleceu na educação. E o mercado, na dimensão da tragédia cotidiana, coloca em sala de aula, num espaço sagrado de resgate do ser, as mais trágicas "personificações" (Rubin, 1987) dos perversos objetivos de dasMan. Vilipendia-se a "função educativa da educação" para priorizar o status mercadológico dessas personificações perversas colocadas, erroneamente, na posição de educadores: os "professores de mercado". Não ensinam a pensar, adestram para a aplicação imediata. Repetir. Reproduzir. Produzem as réplicas incumbidas de perpetuar a tragédia sem precedentes na história humana.

Eis o que inviabiliza a formação de competências, a atividade de reflexão, a reflexão-na-ação (Schön, 1990) e a tomada de consciência em seus espaços propícios. Foram estranguladas as condições de possibilidade de resgate do ser e retomada da consciência via educação. Educação, hoje, significa retroalimentação do sistema.

A verdade é que o modo vigente introduziu sua substância amarga nas entranhas mais profundas do corpo social, dócil, indefeso, passivo. Pela sua abertura mais frágil, com toda vulnerabilidade estampada, o organismo da sociedade foi vitimado por invasões bárbaras silenciosas, sem demonstrar qualquer capacidade de resistência. A inexorável perversão do sistema ou dasMan de Heidegger se embrenhou pelas carnes sociais, pelos corpos dóceis movidos por forças as quais não podem compelir. O íntimo, sensível, vital órgão que as carnes sociais não puderam (e não podem...) impedir que o sistema violentasse foi vítima da maior e mais longa tragédia que a história da humanidade já conheceu: a dimensão do trágico, na vida cotidiana, materializa-se no massacre das consciências, este mais sublime e falível órgão de um corpo docilizado.

O ideal de Heidegger, de resgate do ser, já demonstrava, na sua mais reluzente iluminação filosófica, para bem aquém da noção de trágico do senso comum, a idéia do trágico configurada por este obscurantismo catastrófico do "ser", do "estar-no-mundo". Heidegger foi quem melhor explicitou a invasão de dasMan nas consciências.

 

5 - O Ser Obliterado

O vazio, mais que a certeza do vazio, a problemática concepção do vazio nasce com uma nostalgia do passado pleno que deixou um vácuo.

"A concepção de um vazio nasce, aqui, quando a consciência, em atraso com relação à si mesma, permanece presa à lembrança de um estado antigo, muito embora um outro estado já esteja presente" (Bergson, 1996:282).

O absurdo da idéia do nada absoluto, para Bergson (obra citada), enquanto abolição de tudo, é a impossibilidade de pensar a ausência de uma coisa sem a co-presença, mais ou menos explícita, de outra coisa. Inexistente... Por causa da impossibilidade bergsoniana, não há que se representar o objeto "consciência" como inexistente, e sim o "conteúdo", produtor de efeitos concretos, ou "vazio". Conteúdo "vazio" ou inexistente, o vácuo absoluto, que engloba uma positividade do "mais" do vazio contra o "mais" do conteúdo. Pois, vazio que produz obsessivamente/compulsivamente nas fábricas, nas usinas, nas manufaturas, células produtivas e maquinarias do modo de produção vigente; vazio produtor do marketing que adestra humanos e as publicidades que convencem pela força dos panópticos cognitivistas.

No bergsonismo, não há impossibilidade de pensar o que haveria (no sentido de dever-ser) no espaço-vácuo da consciência vazia ou vazio de consciência: a-consciência produzida por dasMan:

"Há mais e não menos na idéia de um objeto concebido como "não existindo" do que na idéia desse mesmo objeto concebido como "existindo", pois a idéia do objeto "não existindo" é necessariamente a idéia do objeto "existindo" com, em acréscimo, a representação de uma exclusão desse objeto pela realidade atual tomada em bloco". (Bergson, 1996:286).

Pensemos, sim, no vazio de dasMan nas consciências propagadoras do vazio. Réplicas andrógenas do trágico maior que lhes ocupou o espaço, antes ocupado pela plenitude do ser. Plenitude do ser mitigada pela plenitude do vazio.

O caráter emergente do "eu" ("self") e do sujeito estão afirmados, já há bastante tempo, nas análises de Heidegger (2005). Acreditar na presença de um "eu" constante, senhor de suas condutas e desejos, não possui fundamento algum, visto que : "O esclarecimento do ser-no-mundo mostrou que, de início, um mero sujeito não "é" e nunca é dado sem mundo. Da mesma maneira, também, de início, não é dado um "eu" isolado sem outros" (Heidegger, 2005:167).

O projeto filosófico de Heidegger parte em busca de uma investigação da estrutura ontológica disto que é, assim, dado. A essência do "eu", que tanto intriga os psicanalistas profissionais, está fundada em sua existência no mundo.

"Para que possa ser uma constituição essencial da presença, o "eu" deve ser interpretado existencialmente" (Heidegger, 2005:168).

A presença, em Heidegger, só "é" existindo. Presença, em seu vocabulário, tem um sentido próprio ou dasein.

"A 'substância' do homem é a existência e não o espírito enquanto síntese de corpo e alma. (...) Os "outros" não significa todo o resto dos demais além de mim, do qual o 'eu' se isolaria. Os outros, ao contrário, são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, ninguém se diferencia propriamente, entre os quais também se está " (Heidegger, 2005:169).

Os postulados de Heidegger encontram respaldo ontológico na investigação das línguas. Há algumas, segundo o filósofo, nas quais o "eu" é expresso pelo "aqui"; o "tu" pelo "aí"; o "ele" pelo "lá": Advérbios locativos na função de pronome pessoal. "Eu" não existe. Existe "eu" que "é" enquanto "está-no-mundo". O "estar-no-mundo", determinante ontológico do "eu", faz emergir esta entidade que jamais possuiu a constância absoluta e transcendental objetivada por algumas correntes de psicanálise.

"Na estrutura da mundaneidade de mundo reside o fato de os outros não serem, de saída, simplesmente dados como sujeitos soltos no ar, ao lado de outras coisas. Eles se mostram em seu ser-no-mundo, empenhado nas ocupações do mundo circundante, a partir do ser que, no mundo, está à mão" (Heidegger, 2005:175).

Ser e mundo são especificados reciprocamente, num processo de co-determinação mútua (Maturana e Varela, 1994). É por isso que é difícil descobrir o ser ofuscado dentro de incrustações calcificadas pelo mundo circundante degradado e trágico. O ser, por sua natureza, é inacessível, segundo a filosofia heideggeriana. É impossível definir, apreender ou ver o ser... No entanto, a fenomenologia existencialista afirma que o modo de ser do homem é o próprio "pensar".

"É por esta vertigem de "Ser e Tempo" que pensar é o modo de ser do homem, no sentido da dinâmica de articulação de sua existência. Pensando, o homem é ele mesmo, sendo outro. Para o pensamento, não há lugar preenchido num tempo ocupado. Tudo está vazio de realização. Só o saber, só o fazer , só o crer não são suficientemente pobres, nem bastante desprendidos para a embriaguez que se entrega ao imprevisível, ao inesperado. Os criadores sabem alguma coisa desta embriaguez, pois vivem do arrebatamento dessa paixão. (...) No silêncio, o sentido do ser chega a um dizer sem discurso nem fala, sem origem nem termo, sem espessura nem gravidade, mas que sempre se faz sentir, tanto na presença como na ausência de qualquer realização ou coisa" (Leão, 2005).

É difícil não pensar na tragédia da "ausência do pensar" ou da ausência de uma "cultura do pensar" na vida cotidiana e, principalmente, na Escola, o seu lugar original "por natureza". A ausência do "ser-pensar", do "pensar" enquanto "ser", do "ser" que se dá no e pelo "pensar", é uma manifestação deste "real" não-simbolizado da dimensão do trágico na vida cotidiana.

A Escola, as instâncias educativas, incluindo o "novo" ensino superior, teriam a função de preparar as novas gerações para o domínio do cabedal cultural das gerações pretéritas. O preparo, hoje, compõe-se apenas de aspectos instrumentais que descartam o "pensar". Logo, descartam o "ser". O vestibular, o mercado de trabalho, a certificação rápida para o exercício de algo tecnológico, instrumental. A reprodução, a repetição... Tecnólogos que não pensam. Advogados que apenas executam normas. Réplicas. Andróides. A educação brasileira está mergulhada na dimensão do trágico.

Ora, como não perceber que não há mais "pensar" em sala de aula? Em qual sala de aula do ensino, sobretudo do ensino superior atual, vivencia-se, hoje, esta "embriaguez do pensar", em seu pleno sentido expresso nas palavras de Emmanuel Carneiro Leão (2005)?

Em qual espaço social contemporâneo, em qual instância da vida cotidiana, o pensamento vagueia, apoiado em seu vazio criativo, no silêncio, na intimidade do ser consigo mesmo?

Onde há "pensar" enquanto "sentido do ser" na cotidianidade atual?

Não há "pensar" na Escola, seu lugar de excelência. Na Escola de hoje, o ser se apagou, o pensar se apagou... cedendo espaço aos atos maquinais da mente panoptizada, às reproduções e memorizações, aos reflexos do panóptico cognitivista engendrado nas disposições do sistema nervoso humano ontogeneticamente e histórico-culturalmente destinadas à criação, à reflexão, à autoconsciência e... ao pensar. O pensar ficou obsoleto. Desbotado em uma sociedade embrenhada na sua cultura trágica do conformismo e da obediência mecânica à nova cognótica, o ser se apagou na vida cotidiana.

"Este conviver dissolve inteiramente a própria presença (dasein) no modo de ser dos "outros" e isso de tal maneira que os outros desaparecem ainda mais em sua possibilidade de diferença e expressão. O impessoal desenvolve sua própria ditadura nesta falta de surpresa e de possibilidade de constatação" (Heidegger, 2005:179).

DasMan destrói a autenticidade do encontro com o ser do outro. A impessoalidade ativa que deprecia a ética, a estética e a linguagem lírica da arte.

"Toda primazia é silenciosamente esmagada. Tudo que é originário se vê, da noite para o dia, nivelado como algo de há muito conhecido. O que se conquista com muita luta, torna-se banal... nivelamento de todas as possibilidades do ser" (Heidegger, 2005:180).

 

6 - Uma Conclusão? Talvez a Esperança no "Resgate do Ser".

O projeto de Heidegger e suas investigações filosóficas passam pelo resgate do ser, pela tentativa de uma compreensão do ser em si, em sua essência. Ora, tal compreensão, em uma investigação filosófica verdadeira, impõe conhecer a presença do ser ou dasein, que descobre um mundo e o aproxima de si mesmo. Dasein, no mundo, revela o seu ser, em sua autenticidade, num descobrimento já incomum e desconhecido pela história trágica de dominação cognitiva de dasMan e seu sistema.

"Quando a presença (dasein) descobre o mundo e o aproxima de si, quando ela abre para si mesmo seu próprio ser, este descobrimento de "mundo" e esta abertura da presença se cumprem e realizam como uma eliminação das obstruções, encobrimentos, obscurecimentos, como um romper das deturpações em que a presença se tranca contra si mesma" (Heidegger, 2005:182-183).

Não se dá sem esforço uma visibilidade e uma compreensão da constituição fundamental de dasein. Mesmo que encrostado pelo negrume de uma cotidianidade do impessoal (dasMan), o "ser-no-mundo" torna-se visível em sua cotidianidade, em seu "ser-em".

A interpretação ontológica de dasein faz-se a partir do mundo, o qual oferece a ontologia mais próxima da essência do ser, dasein, que coloca no mundo, e permite pelo seu mundo (por seu intermédio), suas condições de possibilidade de um "sentido puro do ser". O que está encoberto por dasMan pode ser descoberto pelo fenômeno positivo do "ser-no-mundo". O processo interpretativo, dado pelo encontro com dasein.

"Desta maneira, a demonstração do fenômeno positivo do ser-no-mundo mais cotidiano possibilita penetrar nas raízes da interpretação ontologicamente desviada desta constituição de ser. É ela própria que, em seu modo de ser cotidiano, de início, encobre-se e não é encontrada" (Heidegger, 2005:183).

A constituição do ser, em seu modo de ser cotidiano, foi encoberta pelos instrumentos parasitários que dasMan infiltrou no cotidiano industrializado das grandes massas. O pensamento e a ação, em suas coordenadas reflexivas, movem-se por caminhos cibernéticos do panóptico mental estruturado em forma de esquemas geradores das práticas cotidianas.

"A indústria cultural perfidamente realizou o homem como ser genérico. Cada um é apenas aquilo que qualquer outro pode substituir: coisa fungível, um exemplar" (Adorno, 2002a:43).

A esperança é uma palavra sagrada. O Resgate heideggeriano do ser sobrevive enquanto "ser" da própria esperança. As consciências imunes podem (no sentido de ter poder...) disseminar a esperança... da retomada do contato com o "ser-no-mundo", com a pre-sença, com dasein (Heidegger, 2005).

No pensamento oriental, há elementos preciosos que a própria ciência do ocidente (sobretudo as ciências da cognição, conforme teses de Varela, Thompson e Rosch (2003), na abordagem da mente incoprorada) começam a descobrir como alternativas para produção de uma ciência do resgate.

A filosofia sobrevive como esperança... deste resgate do ser.

 

7 - Referências Bibliográficas

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Notas
G.C. Bouyer é Mestre em Engenharia de Produção (UFMG) e Doutorando do Departamento de Engenharia de Produção (USP). Atua como Professor Universitário em Belo Horizonte, MG.