SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.6 número1Reflexões sobre a interação cérebro-máquina: muito além dos neurôniosUma velha receita: o que dieta e exercício podem fazer contra a doença de Alzheimer índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.6 no.1 Rio de Janeiro nov. 2005

 

Divulgação Científica

 

Surdez: perdas e ganhos

 

Deafness: losses and gains

 

 

Lígia Lorandi Ferreira Carneiro

Faculdade de Medicina, Centro de Ciências da Saúde, UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para Correspondência

 

 


RESUMO

Crianças começam a adquirir linguagem ainda no primeiro mês de vida e já se observa a atividade de regiões esquerdas cerebrais lateralizadas semelhantes ao observado em adultos bem antes da produção da fala. A privação sensorial auditiva leva a uma reorganização das funções corticais. Desta forma, a surdez induz uma lateralização atípica onde a memória será alocada, enquanto que a aquisição de uma língua de sinais proporciona uma melhora na realização de tarefas visuo-espaciais. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 06: 142-144.

Palavras-chaves: lateralização; fala; desenvolvimento; memória.


ABSTRACT

Human infants begin to acquire their language in the first month of life, and left-lateralized brain regions similar to those of the adults are already active well before the onset of speech production. The auditory sensorial deprivation leads to a reorganization of cortical functions. In this way, deafness induces an atypical lateralization for memory localization, while the acquisition of the sign language improves the performance in visuospatial tasks. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 06: 142-144.

Keyword: lateralization; speech; development; memory.


 

 

Desde as abelhas, que se sinalizam com sua dança a proximidade do perigo até o sofisticado canto de acasalamento de alguns pássaros, todos os seres vivos interagem com o meio ambiente e uns com os outros por meio de alguma forma de comunicação. É assim que os indivíduos de uma mesma espécie encontram seus parceiros sexuais, avisam ao grupo de perigos iminentes ou de uma nova fonte de alimentos, no caso das espécies mais sociais. Foi na espécie humana, entretanto, que a comunicação atingiu sua expressão máxima: a fala. A linguagem humana é a única na natureza capaz de simbolizar pensamentos, incluindo conceitos complexos e abstratos.

Os primeiros estudos sobre a linguagem humana começaram com pacientes que, por conta de traumatismos ou derrames, tinham perdido a capacidade de compreender ou elaborar a fala - os afásicos. Logo se observou que eles apresentavam lesões no hemisfério esquerdo, o que levou à conclusão de que a fala é uma função lateralizada, localizada assimetricamente no hemisfério esquerdo. A partir desta constatação, inúmeros estudos identificaram as regiões responsáveis por cada processo. O hemisfério esquerdo não é mais considerado dominante sobre o direito, ambos são especializados em funções diferentes e funcionam de forma complementar. Na maioria das pessoas, a fala, a escrita, a leitura, as relações espaciais qualitativas, a identificação de objetos e pessoas são funções do hemisfério esquerdo. A prosódia (aspectos emocionais da fala como os gestos corporais e a mímica facial), o reconhecimento de categorias, tanto de pessoas como de objetos, e as relações espaciais quantitativas ocorrem no hemisfério direito.

Ainda se sabe pouco sobre como e quando essa especialização hemisférica aparece no desenvolvimento humano. Os bebês começam a aprender sua língua nativa ainda nos primeiros meses de vida. A ressonância magnética funcional (RMf), técnica que mede o fluxo sangüíneo no cérebro, permite inferir quais regiões estão mais ativas em um determinado momento. Estudos recentes mostraram que bebês com três meses de idade discriminam frases de sua própria língua de frases faladas em outro idioma qualquer. Além disso, já possuem um cérebro lateralizado, com o hemisfério esquerdo especializado no processamento da fala muito antes de começaram a articular as primeiras sílabas.

Se começamos tão cedo a refinar nossos circuitos no processo de aquisição da fala, devemos esperar algumas diferenças no cérebro de pessoas surdas desde o nascimento. De fato, o senso comum já apontava para o desenvolvimento de outros sentidos quando um está em falta muito antes do estudo formal da neuroplasticidade. Hoje se sabe que à privação de um sentido qualquer, segue-se uma reorganização das funções corticais, como se o córtex "desocupado" de sua função original assumis-se outra para não ficar "ocioso". Portanto, falar em "perdas" sempre simplifica em demasia o processo, que inclui também "ganhos" em outras áreas, especialmente se o déficit se estabelecer em idades precoces, quando a plasticidade cerebral é bem maior.

No caso dos surdos desde o nasci-mento, a idéia de que a percepção visual mais apurada decorreria da falta da audição ficou conhecida como a hipótese da privação auditiva. Em oposição a ela, foi proposto que as habilidades visuo-espaciais poderiam decorrer da aquisição e uso da linguagem de sinais, constituindo a hipótese da linguagem de sinais.

Estudos recentes comparando surdos que utilizavam ou não linguagem de sinais (alguns surdos se comunicam com leitura labial e fala) com pessoas ouvintes que sabiam ou não linguagem de sinais, evidenciaram que o desempenho nos testes de localização de objetos e figuras no espaço era melhor nos surdos que utilizavam linguagem de sinais, seguido pelo grupo controle de surdos, pelo de ouvintes que sabiam língua-gem de sinais e por fim ouvintes comuns. Comparando o tempo de reação e a taxa de erros entre os grupos observou-se que a melhora da performance é função do aprendizado da linguagem de sinais.

Ao mostrar os estímulos ora do lado direito da tela, ora do esquerdo, determinando um processamento pelos hemisférios esquer-do e direito, respectivamente, os pesquisa-dores determinaram para cada tarefa qual era o hemisfério mais especializado, ou seja, de qual lado a resposta tinha sido mais eficaz. A surpresa foi constatar que a assimetria de resposta aos estímulos ocorre ao contrário em todos os surdos: o hemisfério esquerdo sendo especializado em detectar estímulos em coordenadas, função habitualmente realizada pelo hemisfério direito nos ouvintes, e o direito preferencialmente detectando catego-rias espaciais, função típica do hemisfério esquerdo. Isso indica que a falta da audição determina a lateralização atípica de algumas funções corticais.

Tanto usando como não usando a linguagem de sinais, os surdos utilizam somente a visão para ver e ouvir, precisando de pistas lingüísticas visuais como leitura labial e identificação de expressões faciais e corporais para compreender o sentido das mensagens. Portanto, a privação auditiva por si só determina o processamento sensorial alterado. A aquisição da linguagem de sinais exige que o indivíduo faça distinções lingüísticas baseadas em movimentos, tendo um efeito aditivo na habilidade visual. No entanto, ao comparar surdos e ouvintes que usam ou não a linguagem de sinais, os surdos sempre se saem melhor.

A plasticidade cerebral decorrente das privações sensoriais fornece um vasto campo de pesquisa das inimagináveis alterações adaptativas que nosso cérebro pode utilizar em caso de necessidade. Os termos como "déficit" e "perda" não englobam a dimensão verdadeira da condição vivida pela pessoa. A idéia de um cérebro alterado, mas não deficiente, pode ajudar a exterminar o preconceito arraigado que ainda leva pessoas a considerarem os surdos como incapazes. Afinal, em algumas tarefas eles são bem mais capazes do que nós ouvintes, considerados "normais".

 

Referências bibliográficas

Cattani, A. e Clibbens, J. (2005). Atypical lateralization of memory of location: effects of deafness and sign language use. Brain Cogn., 58, 226-239.

Dehaene-Lambertz, G.; Dehaene, S. e Hertz-Pannier, L. (2002). Functional neuroimaging of speech perception in infants.Science, 298, 2013-2015, 2002.

Lent, R. (2002). Cem bilhões de neurônios - conceitos fundamentais da neurociência.(Cap.19, 619-650). São Paulo: Editora Atheneu.         [ Links ]

Sacks, O.W. (1998). Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. Rio de Janeiro: Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

Endereço para Correspondência
L.L.F. Carneiro é Monitora de Neurofisiologia, Programa de Neurobiologia, Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF) e Graduanda do Curso de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). e-mail para correspondência: ligia@biof.ufrj.br.