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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.7 no.1 Rio de Janeiro Mar. 2006

 

Artigo Científico

 

O programa adaptacionista em psicologia e a teoria da evolução das espécies

 

The adaptationist program in psychology and the Theory of Evolution of the Species

 

 

Marcelo Leandro Eichler

Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil

 

 


RESUMO

Nos últimos anos, a psicologia evolucionária tem sido apresentada como um viés para a explicação dos fenômenos psicológicos. Por esse viés, a adaptação biológica e a seleção natural são vistas como eventos causadores das manifestações psicológicas atuais. Esse reducionismo explicativo é criticado por renomados biólogos. Parte fundamental desse debate se encontra sobre os significados dados ao termo "adaptação". Apesar de sua importância psicológica, Piaget é um biólogo negligenciado nesse debate. Seu posicionamento a partir do entendimento dos sistemas dinâmicos não-lineares e auto-reguladores é um ponto de vista cada vez mais emergente e aceito. Vieses de inspiração biológica na psicologia do desenvolvimento têm muito a aprender com o biólogo Piaget, ainda mais sobre sua cautela com as explicações reducionistas em geral. © Ciências & Cognição 2006; Vol. 07: 49-67.

Palavras-chave: psicologia evolucionária; adaptação biológica; Jean Piaget


ABSTRACT

Over the last years the evolutionary psychology has been presented as an approach to explain psychological phenomena. From this approach, biological adaptation and natural selection are seen as causative events of modern psychological manifestations. Such explicative reductionism is criticized by a large number of renowned biologists, although supported by other eminent ones. At the core of the debate is the discussion about the meanings given to the word "adaptation". Piaget, regardless his psychological importance, is a biologist who is neglected in this debate. His view of adaptation from the understanding of dynamic and self-regulator systems is an emergent and increasingly accepted point of view. Biological inspiration biases in the development psychology have much to learn from the biologist Piaget, especially from his caution regarding reductionist explanations in general. © Ciências & Cognição 2006; Vol. 07: 49-67.

Keywords: evolutionary psychology; biological adaptation; Jean Piaget.


 

 

"O determinismo biológico não é apenas um assunto divertido para conversas inteligentes sobre o animal humano, em festinhas. É uma noção geral com importantes implicações filosóficas e conseqüências políticas consideráveis." (Gould, 1992, p. 245)

 

Introdução

A pujança da psicologia evolucionária parece ter aumentado recentemente. Cerca de vinte anos atrás, Bunge e Ardila (1987) consideravam a psicologia evolucionária como pouco mais que um projeto de pesquisa. Poucos anos foram necessários para ver os resultados desse projeto, ainda que o projeto e seus resultados sejam discutíveis. Uma consulta nos bancos de dados de informações eletrônicas pode dar um rápido perfil desse viés. Em agosto de 2005, no Web of Science o retorno para a expressão de busca "evolutionary psychology" foi de 606 artigos indexados. Por sua vez, o PsycINFO retornou 1.163 entradas para tal expressão. Nota-se, portanto, a proficuidade desse viés na pesquisa psicológica.

Este artigo tem o objetivo de fazer uma crítica ao projeto de pesquisa da psicologia evolucionária. Essa crítica centra foco sobre o entendimento de adaptação biológica subjacente ao projeto de pesquisa. No desenrolar do artigo, a elaboração dessa crítica é acompanhada pela descrição de diferentes abordagens explicativas utilizadas na psicologia do desenvolvimento, para a qual a psicologia evolucionária ofereceria uma explicação reducionista. A seguir, debate-se o legado de Charles Darwin (1809 - 1882) para as pesquisas sobre a evolução das espécies e a psicologia evolucionária. Apresentam-se, também, os diversos entendimentos sobre a adaptação biológica que podem ser utilizados na condução e posicionamento desses debates. Nesse sentido, aborda-se o debate realizado em torno do conceito de exaptação de Stephen Jay Gould (1941-2002). Finalmente, próximo às conclusões desse artigo, indica-se que o biólogo Jean Piaget (1896-1980) poderia fornecer subsídios para o posicionamento de psicólogos do desenvolvimento nesses debates.

 

A psicologia evolucionária

O projeto de pesquisa da psicologia evolucionária possui subjacente a idéia que a psicologia do desenvolvimento teria muito a aprender com o darwinismo. No entanto, mesmo por parte dos psicólogos evolucionistas há o conhecimento das resistências encontradas. Charlesworth (1992), por exemplo, propôs-se a investigar quais seriam as razões da fraca relação entre as idéias e a teoria de Darwin e a pesquisa em psicologia do desenvolvimento. Ele postulou as razões ideológica, conceitual e metodológica. A primeira estaria relacionada com o meliorismo que conduz temáticas como saúde, educação e bem estar da criança, por exemplo. A segunda, refere-se aos entendimentos dados às perspectivas ontogenéticas e filogenéticas subjacentes ao desenvolvimento infantil. A terceira, diz respeito às diversas escalas associadas aos fenômenos biológicos, como, por exemplo, as escalas microscópica e ecológica. Após debater tais razões, Charlesworth defende a busca de um sinergismo entre a teoria evolucionária e a pesquisa desenvolvimentista.

Esse sinergismo parece ter encontrado uma expressão atual na psicologia evolucionária. Esse viés chega a ser entendido como uma disciplina darwiniana e como um novo paradigma teórico, em termos kuhnianos, que surgira no teatro científico (Bereczkei, 2000). No entanto, a psicologia evolucionária deve ser mais apuradamente descrita como um programa de pesquisa, em termos lakatosianos (Smith, 2000).

Um programa de pesquisa congrega um grupo de cientistas que possuem alguns pressupostos e métodos em comum. O núcleo central do programa de pesquisa da psicologia evolucionária incluiria um ponto de vista em que a evolução biológica e nossa herança genética teriam uma importância a ser ressaltada na compreensão de nosso entendimento da situação do homem e do comportamento humano. O programa, também, gera muitas hipóteses auxiliares, que estão sujeitas a vigorosos desenvolvimentos e testes. Os cientistas do programa desenvolvem isso através de uma combinação de heurísticas positivas e negativas. Heurísticas positivas incluem testes críticos, desenvolvimento e mudança de hipóteses auxiliares. Heurísticas negativas incluem a defesa do núcleo central do programa.

Dessa forma, Smith (2000) entende que o debate ao nível das hipóteses auxiliares (explicações de fenômenos em particular, conduzidos mais ou menos no interior do programa) será interessante para aqueles pesquisadores que aceitam o programa e menos para aqueles que não o aceitam. Os últimos estarão mais interessados em debater os princípios centrais, ou o núcleo central, do programa de pesquisas, como é o caso do autor deste artigo.

Uma das questões-chave relacionadas a esse viés envolve a adaptação biológica. Charlesworth (1992), por exemplo, chamara a atenção que a ênfase de Darwin na adaptação, como um importante conceito associado com a seleção natural não se tornara um legado de Darwin para a psicologia do desenvolvimento. Segundo o autor, isso seria lastimável, uma vez que uma das idéias fundamentais subjacentes à abordagem evolucionária da psicologia é que através do processo da seleção natural os organismos se tornaram adaptados aos seus meios ambientes (MacDonald, 1998). Dessa forma, a adaptação seria um atributo que permitiria ao indivíduo usar estruturas anatômicas, processos fisiológicos e padrões comportamentais que contribuem para a ampliação da aptidão genética em competição com outros membros de sua espécie (Bereczkei, 2000). Assim, há quem entenda que a seleção natural seria o único processo causal conhecido capaz de produzir mecanismos complexos do funcionamento orgânico (Buss, Haselton, Shackelford, Bleske e Wakefield, 1998), portanto a seleção natural explicaria a produção de tais Mecanismos.

Um contexto mais amplo parece ser mais interessante para a finalidade dessa secção. Em seu artigo de revisão, Charlesworth (1992) mostrou existirem, em relação ao comportamento humano ou a seus estados mentais, pelo menos duas matrizes conceituais que teriam sido geradas a partir da teoria evolucionista. A mais familiar está historicamente associada ao instinto e envolveria temáticas usuais ao desenvolvimento. Exemplos dessas temáticas podem ser encontrados nos trabalhos da sociobiologia, que incluem direta ou indiretamente estudos sobre:

  1. Socialização, desenvolvimento e personalidade;
  2. Evolução social, família e conflito entre pais e criança;
  3. Sexo, parentalidade e família;
  4. Evolução do autoconhecimento e engano;
  5. Moralidade e desenvolvimento moral;
  6. Experiência de infância e estratégias reprodutivas; entre outras.

As temáticas dessas pesquisas são relacionadas às características de reprodução repetitiva (seqüencial), sua relação com a seleção natural (favorecimento da característica reprodutiva melhor adaptada) e suas implicações desenvolvimentistas. Essa corrente envolve autores como Kevin B. MacDonald (1944- ), Henry C. Plotkin (1940- ), Robert L. Trivers (1943- ), Richard D. Alexander (1930- ), entre outros.

A segunda matriz suportaria mais diretamente as questões das características individuais, em contraste aos universais biológicos da anterior, e seu papel na seleção natural. Essa matriz enfatizaria o relaciona-mento funcional vital entre os indivíduos e os fatores ecológicos. Exemplos de pesquisas nessa direção incluem:

  1. Aspectos evolucionários gerais e comparativos do desenvolvimento do comportamento;
  2. Ecologia desenvolvimentista evolucionária dos humanos;
  3. Seleção natural, instabilidade ecológica e maltrato a crianças;
  4. Socialização e estratégias reprodutivas;
  5. Diferenças de personalidade e sua função evolutiva;
  6. Personalidade e aptidão reprodutiva; entre outros.

Essa corrente envolve autores como Jay Belsky (1952- ), Leda Cosmides (1959- ), David N. Buss (1956- ) e o próprio William R. Charlesworth (1958- ). O que chama a atenção nesse programa adaptacionista é o seu elevado grau de reducionismo, muitas vezes admitido. Bereczkei (2000) afirma que o reducionismo é uma ferramenta teórica poderosa na investigação científica, desde que judiciosamente empregado. Entretanto, ele ressalta que reduzir o comportamento humano complexo às propriedades biológicas muitas vezes cria medo nos pesquisadores de ciências sociais. Portanto, não é à toa que podemos encontrar em suas afirmações asserções como: "a abordagem adaptacionista para o fenômeno psicológico requer a identificação de certas características do comportamento humano que foram desenhadas pela seleção natural para servir algumas funções" e "[psicólogos] evolucionistas procuram por uma estrutura profunda de comportamento projetada pela seleção natural para servir determinada função a fim de promover a aptidão inclusiva" (tradução e grifos do autor).

Finalmente, é interessante verificar que MacDonald (1998), um dos importantes autores que procura aproximar a psicologia do desenvolvimento da teoria evolucionária, credita seu entendimento a um largo espectro de influências, incluindo Albert Bandura, John Bolby e Jean Piaget. Ele chega a afirmar que a teoria cognitiva desenvolvimentista tem o potencial de se tornar uma rica fonte de idéias para a análise sociobiológica do desenvolvimento. Além disso, ele credita e aponta que a concepção de Piaget para o desenvolvimento cognitivo foi fundamentalmente biológica.

No decorrer desse artigo, principalmente em seu fechamento, pretende-se mostrar o quanto é inapropriado a inclusão de Jean Piaget como influência de tais abordagens. Piaget aceitara o fato da evolução, no entanto negara que a seleção natural fosse o principal mecanismo que movimentasse ou dirigisse a evolução - indicando para essa outra causa, envolvendo a ação dos próprios organismos sobre o ambiente, como se pode ver em Piaget (1976).

Conforme será visto nas próximas seções, a aceitação do fato da evolução acompanhada da negação da seleção natural como sua causa é uma direção fortemente aceita no debate entre biólogos sobre a teoria da evolução, o programa adaptacionista, o darwinismo, os darwinistas e as idéias darwinianas. Porém, antes seria útil abrir parênteses e explicitar, na próxima secção, um pouco da preocupação com as explicações no seio da psicologia.

 

As explicações em psicologia do desenvolvimento

O tema dessa secção é amplo e, obviamente, não se pretende esgotá-lo com a multiplicidade de argumentos que seria necessário. Pretende-se apenas fazer alguma discussão, visando ao tema da crítica ao reducionismo biológico em psicologia.

Uma primeira aproximação ao tema pode ser feita através de Bunge e Ardila (1987), que, por exemplo, entendem que a literatura psicológica está repleta de pseudo-explicações, tais como as tautológicas, as teleológicas, as mentalistas e as metafóricas. Então caberia procurar pelos tipos genuínos de explicações psicológicas. Esses autores supõem que existiriam quatro tipos de explicações com potencial científico: as genéticas, as desenvolvimentistas, as evolucionárias e as fisiológicas.

No tipo genético, a hipótese seria que um comportamento ou característica mental A é herdado e não aprendido. Por essa hipótese, um gene existente (ou mais propriamente um grupo de genes) controlaria a morfogênese de um sistema neural B, que é específico à A. Haveria duas formas de corroborar essa hipótese, identificar o gene ou seu grupo por confirmação direta ou mostrar a insensibilidade da característica às variações ambientais. Dessa forma, as explicações genéticas seriam especulativas até que as hipóteses genéticas correspondentes sejam corroboradas, de uma forma ou de outra.

No tipo desenvolvimentista, onde se entende o desenvolvimento humano como um processo biossocial de reorganização neural entrelaçado com socialização, a hipótese envolveria um relato da emergência de habilidades em termos da maturação do sistema nervoso e da ocorrência de apropriados estímulos ambientais. Para corroborar tal hipótese, deveriam ser mobilizados dados para os dois diferentes conjuntos de observáveis. Assim, a promessa de explicações científicas de tipo desenvolvimentista somente permaneceria ao juntar uma bio-psicologia desenvolvimentista com uma psicologia social.

No tipo evolucionário, seriam apontadas hipoteticamente as vantagens ou desvantagens adaptativas de um comportamento ou de uma característica mental. No entanto, de forma um pouco diferente do que postulam Bunge e Ardila (1987), a corroboração dessa hipótese parece muito nebulosa, pois a própria noção de adaptação biológica necessita de uma melhor ponderação por parte da psicologia evolucionária, como será abordado adiante, em uma próxima secção. Por ora, consideram-se as explicações evolucionárias como especulações, mais pela necessidade de aclarações semânticas e teóricas do que pela possível fragilidade de leis, direções ou dados, como supunham aqueles autores.

Finalmente, no tipo fisiológico, as hipóteses se assentam em dados neurofisiológicos e neuroendrocrinológicos. A corroboração da hipótese se dá pela descoberta dos ciclos vitais relacionados a certo comportamento ou característica mental. Essa seria, por sua vez, muito mais pertinente aos domínios da medicina do que da psicologia.

Como se pode depreender, há muita austeridade com a psicologia nas asserções de Bunge e Ardila (1987). A partir da análise dos diferentes programas de pesquisa da psicologia contemporânea, os autores concluem que a psicologia sofre de um excesso de metáforas e de uma deficiência de teorias, particularmente teorias bem confirmadas de tipo mecanístico (isso é, que incluam alguns mecanismos capazes de explicar o fenômeno comportamental ou mental). Por isso, entendem que a construção de teorias deveria ser prioridade na psicologia contemporânea.

Isso pode causar espanto para muitos psicólogos que costumam dizer que um dos problemas da psicologia é, ao contrário, o excesso de teorias. Há um pouco de razão para uma idéia assim. Isso porque a verdade e os graus de confirmação exigidos para uma teoria psicológica seriam muito diferentes dos requeridos nas teorias físicas. No entanto, fora do campo da física são chamadas de teoria simples conjecturas que não incluem o menor aparato comprobatório (Abbagnano, 1999).

Então, uma segunda aproximação à questão das explicações, mas dessa vez no seio da psicologia, parece útil. Piaget (1969) concorda que existe, infelizmente, um grande número de tipos de explicações possíveis em psicologia. Nesse capítulo de seu Tratado de Psicologia Experimental, em parceria com Paul Fraisse (1911-1996), havia o interesse de especular se existe algum critério de diferenciação entre a explicação (causas) e a descrição pura (fatos gerais ou leis). Ele agrupou os diferentes tipos de explicação psicológica em três grandes categoriais:

  1. Reducionismo psicológico, que recorre a um mesmo princípio causal de natureza psicológica;
  2. Outros reducionismos além das fronteiras da psicologia;
  3. Construtivistas, que embora atribuam alguma parte às reduções, dão ênfase principal aos processos de construção, atingindo especificidades que não são redutíveis às propriedades sociais, físicas ou orgânicas.

A segunda e a terceira categorias são subdivididas em outras três. Para os reducionismos além das fronteiras da psicologia se teria:

    2.1. As explicações sociológicas em psicologia ou psicossociais em geral, que tendem a interpretar as reações individuais em função das interações entre indivíduos ou estruturas de grupos sociais;

    2.2. As explicações fisicalistas, que propõe um isomorfismo entre as estruturas mentais e as estruturas orgânicas e, por fim, se apóiam sobre considerações físicas;

    2.3.As explicações organicistas em geral, que insistem nas reduções do psicólogo ao fisiológico.

Às explicações construtivistas estariam relacionados:

    3.1. Os modelos do tipo "teoria do comportamento", que apresentam o caráter comum de coordenar as diversas leis da aprendizagem nos sistemas baseados na aquisição de condutas novas;

    3.2. Os modelos do tipo mais propriamente genético (no sentido de gerador; aqui o termo não é derivado de 'gene'), que procuram, no desenvolvimento, certos mecanismos construtivos, suscetíveis de tomar conhecimento das novidades, sem apelar, simplesmente, à experiência adquirida;

    3.3. Modelos chamados abstratos, nos quais se procura destacar, sob a forma mais geral compatível com as exigências psicológicas, o mecanismo das próprias construções.

Piaget não entendeu que um desses tipos de explicação fosse melhor que o outro, ele mesmo utilizou mais de um tipo de explicação no decorrer de sua obra. Ele compreendeu que o desenvolvimento de certa explicação está relacionado com as oportunidades teóricas e fáticas do momento. Na fase final de sua obra, aquela iniciada com a formação do Centro Internacional de Epistemologia Genética, é que dará maior ênfase aos modelos abstratos envolvidos no desenvolvimento cognitivo.

É preciso dizer que Bunge e Ardila (1987) entenderam que os estágios do desenvolvimento cognitivo postulados por Piaget podem ser verdadeiros, mas não são explicativos. Para esses autores, os estágios seriam somente a base de dados. Em relação a isso, pode-se destacar os recentes artigos de Epstein (2001, 1999) que estariam corroborando neurofisiologicamente as propostas dos estágios de Piaget, mostrando um contexto explicativo para tal base de dados.

Além do mais, usando as próprias proposições de Bunge foi possível mostrar em outro lugar (Eichler, 2001) que as explicações por modelos abstratos de Piaget atendem às exigências analíticas da filosofia da ciência de Bunge (1974). Para tanto foram utilizados os mecanismos do modelo da abstração reflexionante e os exemplos dados foram relacionados à química, ou melhor, à apreensão da realidade química.

A terceira e última abordagem à questão das explicações em psicologia, assenta-se sobre o conceito de epigênese, que se encontra no cerne das atuais teorias do desenvolvimento, conforme sugerem Hopkins e Butterworth (1990). Eles postulam que, desde Aristóteles, as condições necessárias e suficiente para a mudança orgânica (do tornar-se e não apenas do ser) deveriam ser determinadas pela inclusão de todas as quatro causas em consideração, quais sejam, as causas material, eficiente, final e formal. Isso porque somente as explicações epigenéticas levam em conta todas as causas. É importante levar em conta que a epigênese de Aristóteles foi essencialmente vitalista e que sua causa formal somente recebeu uma explicação materialista aceitável pelos embriologistas ao final do Século XIX. No âmbito da neurologia da cognição, por exemplo, esse caminho histórico está descrito em Brazier (1977).

Segundo Hopkins e Butterworth (1990), as explicações materialistas da epigênese do desenvolvimento, tais como as de Piaget, tratam a causa final (ou a direção a um objetivo) como um produto de complexas interações entre os outros três tipos de causas e envolve, entre outras coisas, programas e circuitos de retroalimentação. Porém, Bryant (1990) pondera que, de qualquer sorte, é difícil coletar evidências convincentes sobre causas. Isso porque questões causais invariávelmente são confrontadas com algum problema empírico.

No entanto, isso não quer dizer que Piaget recaia seu conhecimento sobre explicações teleológicas, que não são suficientes e devem ser complementadas com explicações do tipo causal, probabilística ou evolucionária (Bunge e Ardila, 1987).

Piaget mostrou um comprometimento mais reservado com a determinação teleológica. Ele rejeitou interpretações vitalistas ou finalistas da teleologia baseadas em doutrinas pré-evolucionárias, que subjazem algum plano pré-estabelecido para o meio ambiente, que limitaria a atividade do organismo ou da inteligência. Ressaltando a atividade do indivíduo, Piaget enfatizou o paralelismo formal entre a autoregulação biológica e a cognitiva. Ele propôs a teleonomia, uma reinterpretação da teleologia em termos cibernéticos que contém critérios probabilísticos, como uma forma de responder ao problema do conhecimento do estado final em uma série de eventos do desenvolvimento (Hopkins e Butterworth, 1990).

Além do mais, a natureza fática da argumentação explicativa de Piaget está fundada, em parte, sobre uma certa circularidade, o que não deixa reducionistas muito felizes. Conforme Buscaglia (1985), sua teoria do conhecimento encontra a legitimação de sua naturalidade por recorrer aos níveis inferiores biológicos, e sua biologia se encontrada confirmada por recorrer ao nível superior de organização (psicologia).

Portanto, como vimos nessa secção, existem diferentes tipos de explicações que podem ser usadas para justificar os fenômenos psicológicos, inclusive algumas que são reduzidas aos conhecimentos biológicos. O biológo Piaget, no decorrer de sua obra epistemólogica e psicológica, fez usos de diferentes tipos de explicação. Porém, antes que se formule a crítica ao reducionismo biológico que subjaz ao programa de pesquisa da psicologia evolucionária, faz-se necessário abordar um pouco o conteúdo biológico relacionado à evolução das espécies. Esse é o tema da próxima secção.

 

O legado de Darwin: darwiniano e darwinistas

Como se viu anteriormente, a psicologia evolucionária chega a ser declarada uma disciplina darwiniana (Bereczkei, 2000). Essa declaração causa espanto, uma vez que esse viés da psicologia tem uma compreensão equivocada da obra de Charles Darwin, em geral, e da teoria da evolução das espécies, em particular, principalmente no que se refere ao papel da adaptação biológica na especiação.

Dessa forma, para não se errar nos termos, costuma-se utilizar o adjetivo darwiniano para se referir a sua obra, sua teoria ou seus achados, ou seja, para a fonte de referência primária. Saindo desse escopo, é usado o termo darwinista, que está mais associado à produção secundária, aos seus leitores e seguidores.

Os equívocos têm os seus motivos. Thuillier (1982) e Gould (1992) entendem que muitos deles podem estar relacionados aos livros didáticos, ao ensino e à vulgarização da ciência biológica. Nessas ocasiões, o darwinismo é identificado simplesmente com a teoria da evolução das espécies. Essa simplificação envolve, entre outros abusos, uma idéia que a evolução:

"É um processo de inexorável aperfeiçoamento da forma: os animais são delicadamente postos em 'sintonia fina' com o seu meio ambiente, através de uma constante seleção de formas mais bem adaptadas." (Gould, 1992: 88).

Idéias como essa não mostram que o sistema de Darwin é um sistema pluralista no qual diversos elementos não são nada daquilo que propagam muitos darwinistas (Thuillier, 1982).

Darwin desenvolveu o que se pode chamar de a primeira síntese biológica. Para elaborar sua teoria da evolução, ele sintetizou e organizou uma enorme quantidade de fatos, por exemplo, geológicos, paleontológicos, biogeográficos, anatômicos, fisiológicos, embriológicos, etológicos e genéticos (Thuillier, 1982). O estabelecimento do fato da evolução utilizou três princípios metodológicos:

  1. Taxas de mudança observadas na seleção artificial (por exemplo, pombos);
  2. Eestágios no processo de especiação mostrados por populações modernas;
  3. Análises de estruturas vestigiais(Figura 1) em vários organismos (Gould, 1982).


Figura 1 - Esquema geral de organização dos mecanismos que produzem as adaptaçãoes (Marx, 1970)

 

Sobre a característica analógica da idéia sobre a seleção natural, Thuillier (1982) pondera que bastaria supor que a natureza procede da mesma maneira que os horticultores e os criadores (de animais, em geral, e de pombos, em particular). Para formar novas "raças", eles operam uma seleção sistemática e prolongada entre suas flores e seus animais. Por que, então, não imaginar que a natureza procede sobre o mesmo método?

Há de se admitir, entretanto, que Darwin fez duas coisas bem distintas, ele convenceu o mundo científico de que a evolução ocorrera e propôs a teoria da seleção natural como mecanismo (Gould, 1992). Entre seus contemporâneos, teve sucesso sobre a evolução, mas falhou em sua segunda proposta. A teoria da seleção natural não triunfou até por volta de 1940, à época da síntese moderna, ou neodarwinista.

Conforme Gould (1982), a essência do darwinismo repousa sobre a asserção que a seleção natural é a principal força que conduz a mudança evolucionária. A seleção natural seria criadora, ela criaria fenótipos adaptados por preservação diferencial. Geração após geração o organismo melhor adaptado seria selecionado a partir de um reservatório de variações aleatórias. Os contemporâneos de Darwin não se convenceram disso, pois faltariam evidências. Além do mais, conhecia-se pouco de genética na época.

Dessa forma, sua teoria da seleção natural não triunfou como uma ortodoxia até muito depois de sua morte (Gould, 1982). No século XX, a teoria da evolução de Darwin foi impulsionada, melhorada e enriquecida dos anos 1930 aos anos 1950 para formar o que se chama a teoria sintética da evolução ou teoria neodarwinista (Blanc, 1982).

Conforme Gould (1982), a nova síntese ocorreu em dois níveis:

  1. O programa de pesquisa mendeliano foi mesclado com as tradições darwinianas da história natural, tanto os mendelianos reconheceram a importância das micromutações e sua correspondência com a variação darwiniana, quanto a genética das populações forneceram um mecanismos quantitativo para a mudança evolucionária;
  2. As disciplinas tradicionais de história natural, sistemática, paleontologia, morfologia e botânica clássica, por exemplo, foram integradas com o núcleo darwiniano, ou ao menos submetidas a ele. Embora o termo síntese moderna, bem como sua definição, tenha sido cunhado por Julian Huxley [1887-1975; neto do biólogo Thomas Henry Huxley (1825-1895), colaborador de Darwin], os trabalhos iniciais da segunda síntese são creditados a Theodosious Dobzhansky (1900-1975). Ernest Mayr (1904-2005) também é um nome importante ao oferecer uma visão mais cristalizada da síntese moderna.

Hoje em dia, chega-se a postular que essa síntese domina toda a biologia. Entre-tanto, verifica-se que existem três correntes no neodarwinismo (Blanc, 1982). Uma que poderia se chamar neodarwinismo clássico, que se reivindica de Dobzhansky e de Mayr. Ela tem uma visão mais mecanicista (determinista) da evolução e da natureza em geral e está propensa a reduzir os organismos em suas engrenagens elementares (reducio-nismo). Mas admite que a noção de evolução, na qualidade de mudança de freqüência dos genes, apresenta dificuldades teóricas e que o polimorfismo elevado da população coloca em questão a noção de "sobrevivência do mais apto".

A segunda corrente é a de evolucionistas como Richard Lewontin (1929- ), Stephen Jay Gould (1941-2002) e Niles Eldredge (1940- ) que representam o neodarwinismo inovador. Esses autores possuem uma visão da natureza menos mecanicista, onde se coloca mais o papel do acaso na evolução e onde se procura considerar os organismos em sua integridade e hierarquias. Dessa forma, reconhece-se um papel menos diretor da seleção natural. Sobretudo, a idéia essencial é que a espe-ciação é um fenômeno que não se acompanha de simples adaptações locais das populações sobre a seleção natural. Esses biólogos evocam o fenômeno da especiação aos saltos. Eles fazem referência ao geneticista Richard B. Goldschmidt (1878-1958) que, em 1940, propôs uma teoria genética "saltatória" para a evolução.

Finalmente, existiria uma terceira corrente, que se gerou nos anos 1970, os chamados sociobiólogos. Pode-se qualificar essa corrente de neodarwinismo conservador, pois permanece ligado a um modelo mate-mático clássico da genética das populações. Não coloca em dúvida a noção da sobrevivência dos mais aptos e a noção de evolução como simples adaptação das populações. Além disso, o acaso não tem qualquer lugar na origem de novas espécies. Assim, reduz os seres viventes às partes elementares que se observam (reducionismo absoluto). Essa corrente compreende, entre outros, o estadunidense Edward O. Wilson (1929- ) e os britânicos Richard Dawkins (1941- ) e John Maynard Smith (1920-2004).

Nos últimos tempos, psicólogos, antropólogos e sociólogos se inspiraram nessa corrente para explicar, por exemplo, a crença em deuses, o rapto das fêmeas nas tribos primitivas e a capacidade de doutrinação das massas humanas. É interessante notar que os membros dessa terceira corrente, em suas publicações, negam as evidências dos autores das outras correntes, que sugerem que a evolução não seria conseqüência da adap-tação, mas sim da especiação (Blanc, 1982).

A existência dessas correntes mostra que o debate ainda persiste: a seleção é exercida sobre grandes ou pequenas varia-ções? Ou dito de outra forma, a evolução é contínua ou descontínua? A resposta de Darwin, segundo Thuillier (1982) seria que a matéria primeira da evolução, por assim dizer, é formada por pequenas variações as quais se dá o nome de diferenças individuais.

Os significados dados ao termo 'indivíduo darwiniano' é discutido por Gould (1982). Esse autor entende que nossa linguagem e cultura nos fazem aplicar o conceito de indivíduo somente para as pessoas. Apesar dessa tendência natural, mesmo em um glossário como o Aurélio, pode-se verificar os significados de indivíduo como: indiviso; exemplar de uma espécie qualquer, orgânica ou inorgânica, que constitui uma unidade distinta. Unidade, por sua vez, tem relação com escala, obviamente.

Assim, Gould (1982) pondera que qualquer entidade que tenha uma origem única e uma capacidade para reprodução com mudança pode servir como um agente evolucionário. Portanto, indivíduos darwinianos no diversos níveis de hierarquia estrutural incluem genes, organismos, populações, espécies e demes(Figura 2).


Figura 2 - Tímpano do arco.

 

Por tudo isso, Gould (1982) acredita que uma teoria evolucionária reestruturada reunirá a essência do argumento darwiniano em uma forma mais abstrata e hierarqui-camente extensa. Para ele, a síntese moderna estaria incompleta, não incorreta. Blanc (1982) disse, cerca de vinte anos atrás, que uma gama de concepções sobre os mecanismos de especiação se encontravam no centro do debate. Atualmente, pode-se dizer que o debate persiste como mostra, por exemplo, o artigo de Pigliucci e Kaplan (2000), que procura discutir o modelo de especiação macroevolucionário sugerido por Gould, há mais de 20 anos.

Nesta seção, buscou-se apontar um debate relacionado à especiação biológica, mais adiante se faz a crítica ao programa de pesquisa da psicologia evolucionária por negligenciar esse debate. Porém, antes disso, parece necessário se fazer uma aclaração sobre o termo 'adaptação', tema da próxima secção.

 

Os significados da adaptação

Uma das questões-chave relacionadas ao debate darwinista está relacionado aos diversos sentidos e significados que se confere ao termo "adaptação". Marx (1970) compreendeu que as idéias de Darwin - discutidas, criticadas, manuseadas, retocadas e desenvolvidas - constituem o fundamento das idéias atuais entre os biólogos. Nesse sentido, aponta que um grande debate se originou a partir da idéia da seleção natural, precisamente sobre os mecanismos de adaptação.

Em um simpósio cujo objetivo foi debater as noções de adaptação e sua utilização na psicologia científica, Marx lembrara que a palavra "adaptação" entrou na linguagem dos biólogos por volta do meio do século XIX. À medida que os estudos progrediram e conforme se precisaram os conhecimentos dos seres vivos em seus múltiplos aspectos, a palavra "adaptação" foi empregada para designar coisas muitos diferentes. Alguns biólogos trataram de marcar as diferenças mediante diversos nomes, tais como aclimatação, aclimação, acomodação e naturalização, por exemplo. No entanto, apesar de empregado em diferentes contextos, ao termo adaptação sempre se atribui os significados de ajuste anatômico (ou fisiológico) realizado ou de processo de adequação do organismo às condições internas e externas. Além disso, em muitos casos, o termo indica a idéia de utilidade e até de necessidade. Por fim, tal palavra está vinculada ao aspecto finalista dos organismos, que seria o único que distinguiria a biologia da física e da química.

Nesse simpósio, Piaget (1970) abordou as relações causais da adaptação biológica. Ele postulou que há três formas de interpretar a ação adaptativa do organismo às condições internas e externas. As duas clássicas: ou se recorre a uma ação direta do meio, ou se invocavam variações endógenas fortuitas com ajuste posterior por seleção. Como lhe é usual Piaget supõe uma terceira interpretação, a qual superaria tal antítese através de uma síntese de forma cibernética que invocaria circuitos cada vez mais complexos entre o organismo e o meio.

Essa interpretação cibernética poderia, por exemplo, ser descrita através de um esquema geral, conforme apresentado por Marx (1970) e representado na Figura 1. Nele, o adaptagente (a) atuaria primeiro sobre o processo regulador, que compreenderia uma cadeia de três elementos:

  1. Um ou vários detectores (D) do adaptagente ou das magnitudes reguladas;
  2. Uma via de transmissão (T), que pode conter ramos divergentes;
  3. Um ou vários efetores (E) governados pelos órgãos de transmissão e que, por fim, produziriam o ou os efeitos regula-dores (e).

Os mecanismos que efetuariam a adaptação seriam mecanismos suplementares (M) que modificariam o funcionamento do regulador. Esses mecanismos poderiam ser governados a partir dos detectores do regulador ou a partir dos efeitos da regulação.

No entendimento cibernético, a adaptação significa a estabilidade de uma estratégia de vida, um processo dinâmico envolvendo um conjunto de transformações, cuja propriedade genérica é à repetição de um ciclo de vida. Não há dualidade organis-mos/ambiente nesse processo porque a dinâmica do ciclo de vida se estende além do limite dos dois, uma vez que os organismos são, em termos termodinâmicos, sistemas abertos (Goodwin, 1990). Nesse sentido, a evolução também seria um processo de adaptação dos organismos às suas condições de existência (Marx, 1970).

Por esse entendimento, através da possível presença de múltiplos efectores, a seleção natural deixaria uma margem de variação considerável às formas orgânicas não eliminadas. Dessa forma, as leis que presidiriam a criação dessas formas apareceriam como os fenômenos mais importantes da evolução. Portanto, a aparição das formas vivas não se deveria ao acaso, onde o passo de uma a outra forma é uma mutação. O novo estado não é um estado qualquer, somente é um estado entre um pequeno número de estados possíveis. Assim, a seleção não criaria nada, simplesmente estabeleceria um limite entre as formas viáveis e as que não seriam (Goodwin, 1990; Marx, 1970).

Conforme Goodwin (1990) o debate sobre a adaptação e a seleção natural tem relação com a emergência da forma. Em biologia, o problema relacionado à forma, por sua vez, é identificar os tipos particulares da ordenação dinâmica que caracterizam popu-lações evoluindo, organismos desenvolvendo e cérebros funcionando, dando origem a formas e padrões distintos que constituem sua expressão natural.

Nesse sentido, Gould (1997) aponta que as causas da origem histórica devem, sempre, ser separadas das atuais utilidades da forma. Essa distinção é acompanhada por uma redefinição dos termos que expressam os fatos evolucionários. Em 1979, Gould e seu colega Lewontin tomaram emprestado o termo arquitetônico tímpano (superfície entre a curva dum arco e a parte retangular que o enquadra) para designar a classe de formas e espaços que são originados como subprodutos necessários de outras decisões de projeto, e não como adaptações para utilidades diretas. O termo pode ser entendido, por generalidade, como espaços deixados para considerações futuras. Uma ilustração de um tímpano pode ser vista na Figura 2.

Em geral, nos tímpanos dos arcos se colocam pinturas como decorações. Os arcos são necessidades estruturais. À época da solução arquitetônica, não se construíram os prédios com arcos para que esses fossem decorados com pinturas. Gould (1997) mostra o quanto certas escolhas e arranjos de pinturas foram re-significados para se encaixar nos tímpanos dos arcos disponíveis, e não o contrário. Após o arquiteto viria o pintor, e não o contrário.

Em biologia, a definição de um tímpano incluiria tanto sua origem como uma forma necessária, mas resultante (e por essa razão não adaptativa), quanto sua disponibilidade para uso posterior (ou adap-tação secundária) e potencialmente crucial. Esses dois conceitos permitem uma frutífera aplicação na biologia evolucionária.

Os tímpanos podem, então, ser subseqüentemente cooptados para usos altamente fecundos - levando a um resultado que pode ser chamado de exaptação. Exaptação - 'ex' + (ad)aptação - é um termo mais amplo que o mais comumente usado, pré-adaptação. Embora desenvolvido para uma função adaptativa particular, um organismo pode usar uma estrutura ou atributo para um propósito diferente, ou exaptativo. A exaptação seria um tipo particular de adaptação representada como um uso "secundário" de uma característica já presente por outras razões (geralmente históricas) (Pigliucci e Kaplan, 2000). Por exemplo, pingüins usam as asas para facilitar o nado, não o vôo. Assim, vale sempre a pergunta: qual é a decisão estrutural principal e qual é o subproduto não-adaptativo coop-tado por utilidade? (Gould, 1997).

Segundo Gould, um domínio da máxima expressão para tímpanos versus adaptações primárias se relaciona aos órgãos de extrema complexidade, que devem incluir capacidades para cooptação que podem exceder, ou mesmo desarmar, a adaptação primária. O cérebro humano - o exemplo mais importante na biologia - pode ter alcançado seu tamanho atual por um processo adaptativo ordinário, composto por benefícios específicos de mentalidades mais complexas para nossos ancestrais coletores-caçadores nas savanas da África. Mas os tímpanos implícitos em um órgão de tal complexidade devem exceder as razões funcionais mani-festas para sua origem, relevando as propriedades atualmente observáveis, como a linguagem. Essa argumentação pode ser encontrada, em outros termos, em Ruse (1995), um filósofo evolucionista, e em Leakey (1997), um antropólogo físico.

Finalmente, no entender de Pigliucci e Kaplan (2000), desde a publicação do artigo sobre os tímpanos, a biologia evolucionária teórica teve diversos avanços que tem auxiliado pesquisadores a questionar a abor-dagem puramente adaptacionista para o estudo da evolução fenotípica. Atualmente, a generalização correntemente aceita é que a arquitetura genotípica complexa é menos, e não mais, causada pelas alterações relacionadas à seleção natural. Um outro ponto conceitual que é fundamental na teoria em biologia evolucionária, mas que, entretanto, surge com vagar, é o reconhecimento do papel central da epigênese, ainda que largamente mal-compreendida, na mediação da função de regulação entre o genótipo e o fenótipo.

 

Algumas críticas à psicologia evolucionária

Na secção anterior o princípio dos tímpanos foi invocado com o objetivo de introduzir uma crítica à lógica adaptacionista subjacente à psicologia evolucionária, que é o tema desta secção. Conforme Gould (1997), a principal falácia da abordagem ultra-darwinista recai sobre a tendência de tratar uma dada utilidade corrente para qualquer característica individual como uma prova razoável de sua origem adaptativa. Uma vez que a psicologia evolucionária é tributária das concepções ultradarwinistas, o autor estendeu sua crítica a essa corrente de pensamento psicológico, indicando que Buss e colabora-dores (1998) promoviam inferências conjecturais sobre as razões iniciais a partir de informações sobre aptidões contemporâneas isoladas.

No entanto, Buss e colaboradores (1998) replicaram a crítica de Gould de que as exaptações e os tímpanos podem ser mais importantes que as adaptações para a psicolo-gia evolucionária. Nesse sentido, listaram trinta exemplos de descobertas empíricas sobre pensamento e comportamento humanos gerados pela adaptação e pela seleção natural. Entre eles, destacaram:

  1. Padrões de beleza envolvem simetria;
  2. Mulheres desejam companheiros com mais recursos;
  3. Homens preferem companheiras jovens;
  4. Mal estar durante a gravidez como uma adaptação a substâncias terato-gênicos;
  5. Diferenças entre os sexos na fantasia sexual;
  6. Diferenças entre os sexos em desejo por variedade sexual;
  7. Adaptações perceptuais universais para viver em terra;
  8. Proteção do companheiro como uma função do valor reprodutivo feminino.

É necessário enfatizar que para esses autores tais exemplos não estão relacionados às aprendizagens culturais, mas sim às adaptações biológicas que tornam tais características universais à espécie humana. No artigo de Buss e colaboradores (1998) não foram recenseadas as evidências indicadas por Gould (1997) em sua crítica ao argumento adaptacionista que procede a separação lógica e empírica das utilidades atuais para longe de sua origem e explicação históricas. Nesse caso, conforme se pode depreender dos parágrafos seguintes, parece haver divergên-cias metodológicas, na qual os psicólogos evolucionistas não compreenderiam, ou aceitariam para si, o funcionamento da pro-dução de conhecimento na área de biologia evolucionária, como a paleontologia estudada por Gould.

Então, os exemplos listados por Buss e seus colegas não serão debatidos, procura-se centrar o foco no aparato conceitual da psicologia evolucionária, deixando de lado a evidência empírica, conforme sugerido por Smith (2000). Desde já a contraposição das evidências e dos exemplos é uma boa sugestão para trabalhos futuros. Entretanto, é interessante notar que nas descobertas empíricas apresentadas do artigo de Buss e colaboradores (1998) existe, entre elas, uma característica de generalidade. Entretanto, a adaptação e a exaptação biológica possuem critérios de necessidade. Os exemplos bioló-gicos que se costumam dar para tais mecanismos envolvem características que podem ser achadas em todos os indivíduos da população, ou quando não são achados é por alguma falha reprodutiva, como quando um animal nasce sem um membro.

De acordo com Roney (1999), as pesquisas em psicologia evolucionária têm, na maioria das vezes, usado uma abordagem de caixa negra para presumir e documentar os produtos de supostos mecanismos sem qualquer esforço de demonstrar as caracterís-ticas de manejo dos processos psicológicos em questão. Entretanto, os principais problemas dessa abordagem não estão relacionados apenas com os diferentes mode-los explicativos possíveis.

O caso da linguagem, onde parece haver uma centralidade nos argumentos em relação às manifestações mentais e ao desenvolvimento cerebral, pode ser um bom exemplo de como essa discrepância de características se materializa e pode, então, apontar mais um ponto de atrito. Buss e colegas entendem que existe, por exemplo, uma polaridade em torno da origem da linguagem nos seres humanos. De um lado, alguns cientistas evolucionistas, como Gould, argumentariam que essa e outras qualidades humanas muito importantes são meramente subprodutos incidentais de cérebros grandes. De outro lado, outros argumentariam, entre os quais biólogos e lingüistas reducionistas, como Steven Pinker, que tais qualidades mostram evidências do projeto especial adap-tado para a comunicação e manipulação entre a mesma espécie. Nesse caso, a psicologia evolucionária, através de Buss e outros, traria evidências decisivas para corroborar a segunda corrente.

No entanto, Cuzzillo (1999) compre-ende que as restrições sistêmicas na evolução do comportamento humano não devem ser levadas em conta sem se considerar o que é conhecido sobre o sistema nervoso humano. Portanto, focalizar as funções, como a linguagem, sem estudar a neurofisiologia interveniente parece um modo convincente de evitar as dificuldades inerentes do trabalho multidisciplinar. No caso da linguagem, como de outras funções mentais, seria necessário incorporar à discussão os recentes estudos de neurofisiologia que enfatizam a plasticidade do sistema nervoso humano.

Conforme Skoyles (1999), a plastici-dade neural poderia ser vista como uma importante adaptação para o cérebro. Como outros tecidos plásticos, tal qual a plasticidade osteogênica, essa é uma vantagem adaptativa provavelmente ligada ao desenvolvimento fino. Nesse sentido, ocorrem no cérebro humano exaptações importantes, como o caso da linguagem. O cérebro humano adquire numerosos circuitos neurais que não estão fortemente ligadas a funções sensórias e motoras específicas e, então, estão abertas através da flexibilidade oferecida pela plasticidade neural para adquirir habilidades não-inatas ligadas a tais coisas como ferramentas de comunicação.

Outra crítica importante à psicologia evolucionária é o seu silêncio ou negligência em relação aos debates atuais relacionados à biologia, em geral, ou à especiação, em particular. O neuropaleontólogo Harry Jerison (1999) lembra que a teoria da evolução é uma grande síntese das ciências da vida. O seu artigo critica os autores de psicologia que não costumam ler além de seus pares, restringindo as visões mais amplas, necessárias, às sínteses. Dessa forma, embora Buss e colaboradores (1998) se vangloriem de sua síntese, Jerison (1999) reclama que as referências cruzadas entre sua obra mais geral (um capítulo para o Handbook of Human Intelligence, de Robert Sternberg; com 271 referências) e o artigo de Buss e colabora-dores (com 98 referências) tem somente uma obra em comum. Essa crítica não se restringe apenas a esse fato, diz mais ao fato do artigo de Buss e colaboradores não citar nenhum biólogo conhecido pela "síntese moderna" da teoria da evolução, como Dobzhansky ou Mayr.

Mas o que é particularmente impor-tante é o fato de Jerison, amplamente citado por Bunge (1988) e Gould (1992), escrever entre outras coisas sobre "a evolução da capacidade do processamento da informação como primariamente refletido nos registros fósseis da evolução do cérebro vertebrado", também "enfatizado dados e evidências dos correlatos morfológicos da inteligência". Nesse sentido, Jerison clama que as consultas bibliográficas daqueles que escrevem na interface entre psicologia evolucionária e biologia evolucionária se aproximem.

As relações morfológicas e sua importância para a psicologia, também, foram apontadas por Goodwin (1990), que indica que quando se fala de evolução biológica, se está falando da forma biológica, alguma coisa materialmente tangível que expressa e possibilita o estudo morfológico das adapta-ções e exaptações. Essa importância pode ser notada em um exemplo biológico já citado, o pingüim. Nele as penas teriam a função adaptativa de regulação térmica e a função exaptativa de auxiliar o vôo. Entretanto, nos exemplos citados para as funções adaptativas de cunho psicológico, pretensamente relacio-nadas à seleção natural, não são encontradas descrições morfológicas que expressam ou possibilitam a descrição de tais adaptações, talvez por essas descrições contrariarem os pressupostos da psicologia evolucionária.

Finalmente, o último ponto dessa crítica. Retoricamente, Buss e colegas (1998) entendem que adicionar a exaptação ao conjunto conceitual da psicologia evolucio-nária em nada diminui a importância da seleção natural como o princípio primário responsável por criar projetos orgânicos complexos. Esses autores supõem que esse é um ponto aparentemente endossado por todos os lados envolvidos no debate conceitual, inclusive pelos seus críticos. Ou seja, ou esses autores não entenderam a crítica ou a negligenciaram.

Conforme Cuzzillo (1999), ao invés de adotarem a complexidade da teoria evolu-cionária, eles cooptaram a noção de Gould de exaptação para seus próprios propósitos. Dessa forma, Buss e colegas criticaram Gould por não reduzir linguagem ou religião, e assim sucessivamente, em claras histórias adaptativas. Portanto, compreende-se que para esses psicólogos o debate atual sobre a biologia evolucionária é inócuo, porque é negligenciado.

Nesse sentido, Gould (1997) ressalta que os promotores da importância dos tímpanos, e da não-adaptação em geral, não estão tentando descarrilar o esforço para esta-belecer a verdadeira "psicologia evolucioná-ria" em genuínos princípios darwinianos, conforme Buss e colegas, ou mesmo subverter a centralidade da adaptação na teoria evolucionária, como pondera Ruse (1995). O que Gould afirma é que espera enriquecer a teoria evolucionária com uma apreciação apropriada da interação entre a mudança estrutural (incluindo a origem não adaptativa do tímpano como um tema central) e a adaptação funcional (como analisadas convencionalmente em estudos de seleção natural) na produção da complexidade total e historicamente contingente da forma e do comportamento orgânico. Nesse sentido, sugere que o comportamento humano poderia ser estudado por metáforas do comportamento orgânico.

 

Algumas considerações sobre o biólogo Piaget, ou o que a psicologia tem a aprender com sua biologia

No início dessa secção parece útil recapitular algumas compreensões contem-porâneas da biologia evolucionária. Conforme Hoffman (1998), contrariamente à visão professada pela ordotoxia vigente, a teoria neodarwinista não é mais suficiente para abarcar a explicação do processo evolutivo em sua plenitude. A superação tem se dado em relação a princípios teóricos fundamen-tais, cujo principal talvez seja o que apela às hierarquias em evolução, entendidas não como o uso das hierarquias na evolução, mas como hierarquias em processo de evolução.

Hoffman indica, ainda, que há muito tempo a noção de níveis de organização tem sido utilizada para a representação da natureza sob a perspectiva do aumento de complexidade, dos níveis molecular e celular aos níveis ecossistêmico e ecosférico. Atual-mente, reconhecida a importância da escala temporal e, então, geológica, o conceito de níveis de organização se tornou um modelo genérico útil para a compreensão da teoria hierárquica. Essa é uma teoria sobre as interações de fenômenos de escalas dife-rentes. Mas também é uma metateoria, no sentido de que propõe que as teorias sem considerações de escala tendem a ser deficientes.

Essas idéias e as palavras que as expressam não são estranhas aos piagetianos, ainda mais para aqueles que conhecem sua obra tardia ou seus ensaios biológicos. No entanto, isso não é disseminado entre os psicólogos do desenvolvimento, em seus diferentes vieses, haja vista a indicação de que Piaget seria um dos inspiradores da sociobiologia (McDonald, 1998). Então, para tentar evitar o proselitismo, parece útil ver o que alguns biólogos (Buscaglia, 1982, 1985; Hooker, 1994) têm a dizer sobre o biólogo Piaget.

Os biólogos conhecem Piaget por sua psicologia e por sua epistemologia (Buscaglia, 1985; Hooker, 1994), não por sua biologia, que não parece ter qualquer papel novo nos debates contemporâneos (Buscaglia, 1985). Mesmo que ele enfatizasse a importância da biologia e da filosofia durante toda a sua vida, Piaget é raramente lido pelos biólogos (Hooker, 1994). Uma vez que o número de textos de Piaget que apresenta sua biologia (mais de 42 artigos e 3 livros) é considerável, é possível evocar a relativa marginalidade dessa parte de sua obra, e isso tem suas justificativas (Buscaglia, 1982 e 1985).

Buscaglia (1985) cita três justificativas. A primeira, seria a fraca difusão da obra biológica de Piaget, principalmente pelo caráter quase confidencial das publi-cações onde ele se exprimiu sobre o assunto. Ele escreveu para revistas que, mesmo em seu tempo, possuíam uma natureza marginal. Assim Piaget, que chega a se reconhecer como um heterodoxo marginal em relação ao neodarwinismo dominante e às correntes ortodoxas, ficou mais restrito ao círculo dos biólogos genebrinos. A segunda, sua compreensão biológica possuiria, mesmo para os biólogos contemporâneos de Piaget, bases experimentais e técnicas fracas, com referência quase nula à bibliografia especializada (embriologia molecular, cito-fisiologia, bioquímica da mutação, etc.). Dessa forma, suas grandes alavancas explicativas da ontogênese e da filogênese seriam difíceis de integrar na perspectiva da teoria sintética da evolução, cujo caráter simplista e reducionista Piaget denunciava. Finalmente, o próprio conteúdo e a retórica da biologia de Piaget são, de uma certa maneira, próximos do discurso filosófico. Uma vez que lhe faltara tempo suficiente consagrado à experimentação, ele construiu uma biologia racional que foi elaborada sobre poucas observações sistemáticas (crassuláceas, do gênero sedum, e limneídeos), mas sobre uma leitura crítica das teorias antigas e contemporâneas.

A finalidade de sua pesquisa biológica é centrada sobre os dois maiores eixos dessa ciência, a ontogênese dos indivíduos e a evolução das espécies. Esses temas conduzem e unificam seu projeto de pesquisa em diversas disciplinas: história das ciências, psicologia genética, epistemologia genética, etc. A interrogação chave é compreender a significação das interações entre os orga-nismos e seu meio - interações que foram muito cedo percebidas - nas suas dimensões transformistas. Essas interações foram vistas como essenciais, tanto na formação das raças e variedades, como na das novas espécies. Já em sua tese de doutorado em malacologia, defendida no início da década de 1920, Piaget pôde verificar os estágios por que passa a especiação dos moluscos (Buscaglia, 1982).

Na biologia de Piaget se encontram construtos que estão relacionados a sua epistemologia. Veja-se, por exemplo, o que ele escreve em Biologia e Conhecimento (Piaget, 1996) sobre a as funções e estruturas da adaptação (§12 do Capítulo IV):

"a organização é indissociável da adaptação, porque um sistema organi-zado é aberto para o meio e seu funcionamento supõe assim trocas com o exterior, cuja estabilidade define o caráter adaptado que possui." (Piaget, 1996: 198)

Nesse sentido, ele propõe uma distinção entre a adaptação-estado e a adap-tação-processo, na qual centra o esforço de sua argumentação. Que inicia por uma definição:

"convém (...) destacar as condições desse processo [de adaptação]. I. Assimi-lação e acomodação - as condições funcionais constantes são em número de duas, cuja solidariedade, mais ou menos estreita, resta determinar: a assimilação e a acomodação." (Piaget, 1996: 199)

É, a partir de então, que utilizará os seus conhecidos construtos de assimilação e acomodação para abordar: a relação entre adaptação e genoma (item II), a adaptação fenotípica (III), a relação entre adaptação e comportamento (IV), as adaptações cognoscitivas (V) e, por fim, a relação entre a adaptação e as operações da inteligência (VI).

Dessa forma, Hooker (1994) aponta que várias idéias atuais na biologia já eram apregoadas por Piaget 50 anos antes de se tornassem corriqueiras. Ele mostra que Piaget se focalizou, durante sua vida, na concepção de organismos vivos como sistemas dinâ-micos, construtivos e auto-reguladores. Entretanto, o que diferenciaria Piaget seria seu entendimento de que a manifestação fundamental da atividade regulatória é a construção. Sistemas regulatórios constroem a si mesmos - e normalmente o ambiente a volta deles, também. É o organismo que ativamente constrói uma estrutura operacional interna em sua busca da homeostase regu-latória (equilíbrio). É essa estrutura que codifica a informação ambiental em virtude do papel seletivo do ambiente em sua gênese, assim o conhecimento surge como um subproduto da atividade.

Portanto, a atividade construtiva seria o foco distintivo da psicologia e da biologia de Piaget. Isso explicaria seu afastamento das posições ortodoxas neo-darwinistas na biologia (e lamarckista também), comporta-mentalistas em psicologia (e introspeccio-nista, também) e empiricista em filosofia (e racionalista também).

Buscaglia (1985) resume os temas constantemente retomados e articulados, de diversas maneiras, na biologia de Piaget:

  1. A oposição à idéia de uma seleção natural passiva, do tipo neodarwinista;
  2. A importância atribuída à intervenção da atividade individual, e por conse-qüência da construção das vias possíveis da evolução - os indivíduos são os determinantes da direção tomada, cujos limites determinam a seleção;
  3. A elaboração de um modelo intera-cionista, epigenetista dos desenvol-vimentos ontogenético e filogenético;
  4. A concepção do organismo como totalidade autoregulada.

É útil destacar que o modelo elaborado por Piaget para explicar a evolução adaptativa (Piaget, 1976) foi tributário tanto da epigênese e da assimilação genética de Conrad Hal Waddington (1905-1975), quanto da teoria de sistemas hierárquicos de Paul Alfred Weiss (1898 - 1989) e de Ludwig von Bertalanffy (1901-1972).

Conforme Buscaglia (1985) as séries causais cibernéticas propostas por Piaget, à guisa de formalização-interpretação de suas observações, são certamente insuficientes e necessitam ser corroboradas. Porém, os desenvolvimentos mais recentes da biologia teórica autorizam uma compreensão estrutural e funcional da ontogênese e da evolução das espécies que não foram a ele acessíveis, conforme descritos por Hoffman (1998). E tudo isso, como se pode perceber, está muito longe da psicologia evolucionária.

Como se pode depreender, o biólogo Piaget tem muita relevância para os psicó-logos desenvolvimentistas que não obstam retoricamente, ou negligenciam, o debate sobre a filogênese e a ontogênese do conhecimento. Ao final dessa secção é ilustrativa uma passagem, com o pesar que esta ironia enseja:

"O Piaget autor defende a realidade dos processos de assimilação, e ele mesmo resultou vítima de ditos processos. O Piaget assimilado, deglu-tido, incorporado a esquemas prévios (sem a necessária acomodação) se converteu em uma caricatura de si mesmo" (Ferreiro, 1996: 177).

 

Conclusões

Neste artigo, buscou-se criticar o núcleo duro do projeto de pesquisa da psicologia evolucionária. O núcleo duro desse programa de pesquisa envolve a tese de que a herança genética e a evolução biológica, através da seleção natural, são componentes explicativos do comportamento humano. O conceito de adaptação biológica é subjacente às idéias de evolução biológica e de seleção natural. Nesse sentido, a crítica centrou foco sobre o entendimento de adaptação biológica que possui a psicologia evolucionária, aqui representada por um de seus principais articuladores e divulgadores, David Buss.

Dessa forma, foram arrolados diversos entendimentos sobre a adaptação biológica que podem ser utilizados na condução e posicionamento do debate sobre o papel da biologia evolucionária na explicação das manifestações psicológicas do indivíduo humano. Procurou-se mostrar que os mecanismos da especiação biológica ainda seguem em discussão no seio da biologia evolucionária. Nesse particular, indicou-se que o mecanismo da seleção natural não é consenso entre os biólogos para explicar a especiação. Então, pôde-se mostrar que o debate pode ser melhor orientado utilizando-se o conceito de exaptação e o princípio dos tímpanos, conforme proposto por Stephen Jay Gould e rejeitado por David Buss.

Nessa ocasião, criticou-se o programa de pesquisa da psicologia evolucionária por negligenciar o debate. Supôs-se que tal negligência pode ser devida às divergências metodológicas entre a biologia e a psicologia evolucionárias.

No decorrer deste artigo, também, apresentaram-se diferentes abordagens expli-cativas utilizadas na psicologia do desenvolvimento como forma de apontar a natureza reducionista da explicação dos comportamentos humanos oferecida pela psicologia evolucionária. Nesse sentido, indicou-se que o biólogo Jean Piaget poderia fornecer importantes subsídios para o posicionamento de psicólogos do desenvolvimento nesse debate.

 

Agradecimentos

Gostaria de agradecer: à CAPES pelas bolsas de doutorado e de estágio no exterior (Programa PDEE), realizado nos Archives Jean Piaget, na Universidade de Genebra; e à Tânia Sperb e Silvia Parrat-Dayan pelas leituras atentas às versões anteriores desse manuscrito.

 

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Notas

M.L. Eichler é Licenciado em Química, Mestre e Doutor em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS). Atua como Professor da UERGS e Pesquisador da Área de Educação Química da UFRGS. Endereço para contato: Área de Educação Química - UFRGS. Av. Bento Gonçalves, 9500, Sala D114, Campus do Vale. CEP 91501-970, Porto Alegre, RS, Brasil. Telefone para contato: (51) 3316-6270, Fax: (51) 3316-7304. E-mail para correspondência: exlerbr@yahoo.com.br.