SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 issue1The adaptationist program in psychology and the Theory of Evolution of the SpeciesThe new cognitive science and phenomenology: connections and emergencies in Francisco Varela's thinking author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.7 no.1 Rio de Janeiro Mar. 2006

 

Ensaio

 

Alguns aspectos sobre mito e "estrelas" no cinema à luz da psicologia analítica

 

Some aspects about myth and "stars" in movies under the view of analytical psychology

 

 

Maurício Aranha

 

 


RESUMO

Este ensaio tem por finalidade a discussão do conceito de mito, no sentido atribuído por Jung, no contexto da psicologia analítica. Sob esta perspectiva, foi produzida uma análise aplicada de tal conceito em relação à representação das "estrelas" de cinema. Argumenta-se, neste sentido, que estas são transformadas em "mito" pela necessidade psíquica do ser humano de projetar conteúdos do seu inconsciente individual num contexto coletivo de legitimação. © Ciências & Cognição 2006; Vol. 07: 68-80.

Palavras-chave: Arquétipos; inconsciente; mito; cinema; símbolo, psicologia analítica.


ABSTRACT

The aim of this essay is to discuss the concept of myth explored by Jung, in the context of the analytical psychology. In this way, it was produced an analysis applying this concept in relation to the representation of "stars" movies. Besides, it is explored the fact that movie stars are turned in myth by the human psychic needs to project contents of his individual unconscious in an unconscious collective context of legitimation. © Ciências & Cognição 2006; Vol. 07: 68-80.

Keywords: Archetypes; unconscious; myth; movies; symbol; analytical psychology.


 

 

As investigações de Jung sobre o conteúdo dos sonhos e das alucinações levaram-no a concluir que existem inúmeras interconexões psíquicas que encontram paralelo na mitologia. Por meio das associações prévias dos pacientes, bem como, de "conhecimentos esquecidos" foi possível perceber a existência de elementos que não sofrem influência da consciência. Por assim ser, as condições para a formação do mito podem estar presente na estrutura da psique, a partir da existência do inconsciente coletivo que contém experiências remanescentes e temas arquetípicos.

Em Jung (1971d: 35), o termo arquetipo se entrelaça aos conceitos de imagem arquetípica e também de instinto, de modo que seu significado envolve elementos primordiais e estruturais da psique, tornando os arquétipos "(...) sistemas de prontidão para a ação e, ao mesmo tempo, imagens e emoções". Deste modo, os arquétipos são fatores irrepresentáveis e invisíveis que atuam sobre o inconsciente conforme afirma Jung (1971c: 150) ao dizer que "Não se deve confundir as representações arquetípicas transmitidas pelo inconsciente com o arquétipo em si (...)", porque "Essas representações são formações amplamente variadas, que nos remetem a uma forma básica irrepresentável, (...), que, no entanto, só podem ser vagamente apreendidos" (1971c: 150). Isto confere ao arquétipo a qualidade de não se deixar representar como símbolo ou figura, mas de significar a possibilidade de representação ou manifestação o que acaba por revelar que a função do arquétipo é a de criar uma outra realidade a partir de possibilidades pré-existentes levando Jung (1971c: 150) a hipótese de que "a verdadeira essência do arquétipo seja incapaz de se tornar consciente, ou seja, é transcendente; (...)". Para Jung, transcender enquanto "processo" permite à consciência discriminar opostos, experimentar variáveis e integrar impressões; permiti a psique construir uma nova realidade por meio de um processo que tem início com a dualidade opositorum e culmina com uma síntese integrativa.

Deste modo, os mitos poderiam ser definidos como sendo histórias de encontros arquetípicos; do mesmo modo como o conto de fadas guarda relação com as atividades do complexo pessoal. O mito seria, em outras palavras, uma metáfora para as atividades do arquétipo.

Na concepção Junguiana a alma, é definida por Jung como sendo "(...) o elemento vital do ser humano, a vitalidade e, ela mesma a geradora dessa vitalidade; (...)" (1976: 36); e, completa "(...) a alma não se interessa por nossas categorias de realidade. Para ela, em princípio, real (...), é aquilo que tem efeito. (...) para identificar a alma é preciso descobrir o quanto alma e consciência são diferentes." (1971e: 48). Portanto, para Jung a alma representa uma atitude interna e uma possibilidade de relacionamento com o inconsciente. Afirma: "(...) A personalidade interna é o modo como uma pessoa se comporta em relação aos processos psíquicos interiores, é a atitude interna, o caráter que tal pessoa opõe ao inconsciente. Eu chamo (...) a atitude interna (...), de alma." (1971b: 391), portanto, a alma humana carece de noções imagéticas de cunho mítico. Os mitos são manifestações psíquicas que representam à essência da alma.

"A construção primitiva do espírito não inventa os mitos, ela os vivencia. Os mitos são, originalmente, revelações da psique pré-consciente, proposições involuntárias a respeito do acontecimento psíquico, nada mais que alegorias dos processos psíquicos. (...) Os mitos, (...), têm um significado vital. Eles não apenas representam, mas são a vida psíquica da linhagem primitivas e, uma vez perdida a herança mítica herdada dos antepassados, essa linhagem desmancha-se e sucumbe, assim como um homem que perdeu a alma. A mitologia de uma linhagem é sua religião viva. Sua perda representa sempre, mesmo no caso do homem civilizado, uma catástrofe moral. (...) Muitos desses processos inconscientes podem até ser provocados indiretamente pela consciência, mas nunca por uma arbitrariedade consciente". (Jung, 1976: 156)

É importante salientar que "primitivo" é a descrição da psique humana original e indiferenciada. Diz Jung:

"Emprego o termo 'primitivo' no sentido 'primordial', e ... [isso] não implica nenhum tipo de juízo de valor. Também quando falo em 'vestígio' de um estado primitivo, não quero dizer necessariamente que esse estado, mais cedo ou mais tarde, chegará a um fim. Pelo contrário, não vejo impedimento algum para que perdure tanto quanto durar a humanidade." (1971c: 39).

Os mitos não são imaginados conscientemente; surgem espontaneamente assim como os sonhos e isto se dá a partir da "força irracional do instinto". Esta força teria sua origem no fato de que se deixando levar pelas experiências da vida psíquica, o ser humano, permite a incitação das fantasias, o que acarreta a formação de sonhos e imagens míticas. Jung (1976: 17) descreve tal experiência como "expressão simbólica para o drama interior e inconsciente da psique".

"Mas não nos demos conta ainda de que os mitos são, antes de tudo, uma manifestação psíquica que representa a essência da alma. (...) um homem primitivo; (...) possui uma necessidade imperiosa ou, melhor dizendo, sua psique inconsciente é dotada de um ímpeto insuperável de assimilar todas as experiências exteriores dos sentidos sob a forma de acontecimentos psíquicos. Não basta ao homem primitivo ver o sol se pôr. O que ele observa tem que ser, ao mesmo tempo, um acontecimento psíquico, ou seja, o sol, em seu modo de se transformar, tem de representar o destino de um deus ou de um herói, que na verdade, habita nada mais nada menos do que a alma humana. (...) os acontecimentos naturais mitificados não são nada mais que alegorias dessas experiências objetivas, do que expressões simbólicas para o drama interior e inconsciente da psique, drama que, no caminho da projeção, isto é, espelhado em acontecimentos naturais, torna apreensível a consciência humana".

Deve ficar esclarecido que ao mencionar acima "herói", Jung quer se referir ao motivo arquetípico baseado na superação de obstáculos e no alcance de determinadas metas. Jung (1971a: 423) assim define:

"O herói simboliza o self inconsciente de um homem; este se manifesta empiricamente, como a soma total de todos os arquétipos, incluindo, portanto, o arquétipo do pai e do velho sábio. Neste sentido, o herói é seu próprio pai e seu próprio procriador".

E que projeção:

"(...) significa a expulsão de um conteúdo subjetivo para um objeto; é o oposto da introjeção. Conseqüentemente, é um processo de desassimi-lação, pelo qual um conteúdo subjetivo se aliena do sujeito e, por assim dizer, encarna-se no objeto. O sujeito se desvencilha dos conteúdos dolorosos e incompatíveis, projetando-os." (Jung, 1971b: 436).

Para as culturas tribais o mito e a religião constituem uma unidade. O mito da personificação de Deus em Jesus é uma apreensão de um mito já existente.

"Todavia, o mito é constituído por símbolos que não foram inventados; eles simplesmente aconteceram. Não foi o ser humano chamado Jesus que criou o mito do deus personificado. Este já existia há séculos. Ao contrário, ele próprio foi apreendido por essa idéia simbólica, que, descreve Marcos, o tirou da oficina do carpinteiro e da limitação espiritual do seu meio. Os mitos remontam aos primitivos contadores de histórias e a seus sonhos, a pessoas que eram movidas pela emoção de suas fantasias, enfim, a pessoas que pouco se distinguiram do que se costumou chamar mais tarde de poetas e filósofos. Os contadores de histórias primitivos nunca se questionaram quanto à origem de suas fantasias. Apenas muito mais tarde começou-se a pensar a esse respeito. Já na Grécia antiga o espírito humano encontra-se suficientemente desenvolvido para supor que as histórias contadas a respeito dos deuses não eram nada mais que tradições antigas e exageradas sobre os reis do passado e seus feitos. Já naquela época eles supunham que o mito não deveria ser tomado ao pé da letra, devido aos claros disparates que continham. Por essa razão, tentaram reduzi-lo a uma fábula que fosse de compreensão geral." (Jung, 1981: 248)

Na concepção junguiana, símbolo, é a expressão de algo desconhecido, são "transformadores de energia" do acontecimento psíquico e da experiência anímica do homem. Diz Jung "Segundo entendo, o conceito de símbolo é bem diferente de um mero conceito de signo" (1971b: 443), e conclui que:

"O símbolo é sempre um produto de natureza altamente complexa, pois se compõe a partir dos dados de todas as funções psíquicas. (...), possui um lado que sede à razão, mas também um outro inacessível a ela, já que não se constitui apenas de dados de natureza racional, mas também de dados irracionais compostos a partir da pura percepção interior e exterior." (1971b: 447).

Graças ao contexto histórico-cultural em mutação, ao desenvolvimento da consciência humana e, sobretudo, ao surgimento de novos símbolos no inconsciente coletivo podem formar-se novos elementos mitológicos. Quando os arquétipos adquirem forma nos mitos, a consciência pode unir-se às raízes instintivas do inconsciente. Em outras palavras, o mito é uma afirmação coletiva involuntária, baseada em uma experiência psíquica inconsciente.

Jung propõe que o homem, seguindo suas tradições evolutivas, é um fazedor de mitos, uma vez que ele reencena dramas antigos com base em temas arquetípicos, e, valendo-se do seu amadurecimento consciente, se livra da influência compulsiva dos mesmos.

O cinema recorre aos sonhos, aos mitos, às metáforas para revelar os dramas existenciais humanos, ao mesmo tempo, que propõe a partir deste contato um diálogo cujo objetivo é a evidenciação do momento sócio-cultural com vista à transformação do homem e da história. As estrelas passaram a compor, ao lado dos heróis, uma casta de elementos com potencial de representar os deuses e os arquétipos que habitam a alma humana desejosos de reconhecimento e realização desde tempos primitivos.

"A mentalidade primitiva não inventa mitos; ela os experimenta. Os mitos são revelações originais da psique pré-consciente... Muitos destes processos inconscientes podem ser ocasionados indiretamente pela consciência, mas jamais por deliberação consciente. Outros parecem surgir espontâneamente, isto é, de uma causa consciente não discernível ou demonstrável". (1976: 156).

Deu-se nesta trajetória uma contínua transformação dos valores atribuídos, e porque não dizer "encarnados", pelas estrelas, pois ainda tidas por intérpretes, ou seja, elemento anônimo sobre o qual se depositava o conteúdo heróico de uma personagem, passa a expressar efetivamente os anseios culturais e sociológicos do homem. Portanto, o intérprete, que até então, ficava oculto à sombra da personagem, se liberta, ganha vida e representatividade como sendo uma porta voz das potencialidades humanas que se encontram latentes, porém ávidas de expressividade, na alma humana.

Com isto, o perfil do herói se vê obrigado a deixar sua representação "uniangular", para se abrir à multiplicidade de expressão; em outras palavras, ele não mais será a representação mítica da justiça, da conquista, da vingança, da força, do amor, etc. que exercem suas influências, interferem nos destinos, estando sempre resguardados numa dimensão intocável, imaculada e imortal, mas também se revelará humana e moralmente confuso, atormentado, dramático e atingível.

Quando isto passa a ocorrer, a personagem não só está investida do componente mítico, como também, do humano. Isso leva o intérprete também a vivenciar os aspectos do sagrado e do profano simultaneamente, o que acaba por se tornar uma carga afetivo-emocional muito densa tanto para o intérprete como para seus admiradores, ou fãs. Pode-se concluir que, à medida que a personagem se humaniza, o intérprete se sacraliza, e é neste momento que começa a se operar a dialética entre o ator e o papel que darão nascimento à estrela.

É importante considerar que em uma seqüência de mitos, envolvendo histórias de deuses e deusas, é apresentada uma projeção de conteúdos psíquicos. Contos míticos revelam o que ocorre quando um arquétipo constela uma consciência sem capacidade de diferenciação. Este fato demonstra que a individualidade consiste no confronto dialético da consciência com tais poderes, por vezes fatídicos, reconhecendo sua potencialidade, mas utilizando-a de forma transformadora, em Jung, transcendente.

Pode-se perceber que os filmes da "década de 20" começam a mesclar atributos de deuses como, p. ex., o arquétipo do amor, a atributos humanos como o rosto feminino bem delineado. O palpável, o objetivo, passa a ser vinculado ao impalpável e subjetivo. A estrela, como que, começa a ser gerada no interior do herói ou heroína. Essa transformação paradigmática é percebida pela avidez com que o público dirige seus interesses para as vedetes. Os produtores que, até então exibiam suas logomarcas, passam a apresentar o nome da estrela como símbolo de suas produções, pois não mais está em evidencia o estático, o padrão, o socialmente estabelecido, mas sim, o dinâmico, o transformador, o socialmente experimentável.

Estas estrelas começam a ganhar um respaldo sócio-cultural tão significativos e passam a representar tanto as escolhas do público que chegam a ponto de incorporar tais anseios com atitudes de rebeldia como, p. ex., recusando-se a fazer determinados papéis ou utilizando determinados adereços ou, ainda, aceitando ou não vestir um dado figurino, realizar um tipo de cena, maquiasse de forma mais ou menos densa, até mesmo, a usar determinado penteado. Essas atitudes corroboram para evidenciar o fato de que os arquétipos coletivos começam a exercer sua influência na tela mítica do cinema e nos seus elementos de expressão.

O comportamento do inconsciente se assemelha ao do mito e possuem também uma participação consciente. Até mesmo a patologia tem seu reflexo no mito.

Outro ponto significativo do mito é o fato de que um comportamento arquetípico pode ser compreendido tanto como uma tentativa de evitar a realidade, o que limitaria sua expressão a um processo regressivo, quanto estar voltado para a reconstrução desta própria realidade a partir da elaboração de outros mitos, o que lhe confere uma natureza transcendente.

A evolução de tal processo de transformação avança a ponto de se cognominar as estrelas dando-lhes uma representatividade coletivizada. Deste modo, surgem às alcunhas de "noivinha da América", "o rebelde vingador", etc. que aliam anseios humanos, notadamente arquetípicos a elementos coletivizados, tipicamente mitológicos. O signo, ao tratar com materiais inconscientes (sonhos e fantasias) as imagens podem ser interpretadas semioticamente com os signos sintomáticos que indicam fatos conhecidos ou cognoscíveis; portanto, é a "(...) designação comum a qualquer objeto, forma ou fenômeno que remete para algo diferente de si mesmo e que é us. no lugar deste numa série de situações (...)" (Houaiss, 2001), enquanto elemento de identificação permeia e é permeado pelo símbolo como elemento de projeção. Portanto, a estrela passa a incorporar e representar esta fusão simbiótica de elementos de projeção-identificação. Deve-se salientar que identificação:

"(...) é responsável pela suposição ingênua de que a psicologia de um homem é igual à de outro, que os mesmos motivos ocorrem em toda parte, que aquilo que é agradável para mim deve ser obviamente agradável para os demais, que aquilo que acho imoral deve ser imoral também para eles e assim por diante. Ela também é responsável pelo desejo quase universal de corrigir, nos outros, aquilo que mais necessita de correção em nós mesmos." (Jung, 1976: 82).

O contínuo desenrolar de tais transformações trazem a cena representações a muito esquecidas. Começam a surgir ente os heróis imaculados e deificados, as figuras da noite, das sombras, do mistério, do conflituoso, os temas cinematográficos se voltam para os vampiros, os monstros, o terror, o trash, etc. Geralmente a vampira ou o vampiro, por exemplo, se configuram em formas belas, de uma vida social bem sucedida como condes e condessas, com papéis honrosos na sociedade, ou ainda vitimados por uma tragédia que lhes respaldam a vida solitária, mas que guardam em seu íntimo o obscuro, o beijo fatal que suga a alma humana, que extrai o sangue daqueles que por eles se deixam fascinar ou que os "convidam para entrar na sua residência" (simbolicamente, morada do ego). Este mundo dual, por vezes efêmero como a noite, se volatiliza com os primeiros raios do sol, adormece para o lado sombrio dando "novo" nascimento a figura do enobrecido e respeitável conde. Tem-se aí a conjugação do sagrado e do profano, do mítico e do arquetípico, da aspiração e da realização.

Do mesmo modo ocorre com os heróis e heroínas de capa e espada que incorporam a força, o vigor, à lealdade, a habilidade e a determinação mítica ao empunharem suas espadas ou ao cobrirem suas faces humanas com a máscara do justiceiro e vingador. Ocultando e deixando agir através de si forças místicas que traduzem aspirações coletivas da humanidade, mas que prescinde da retirada da máscara para viverem como humanos, amarem suas donzelas ou príncipes, para estarem em contato com o mundo a sua volta, para colherem as impressões da comunidade, para compreenderem e experimentarem a injustiça imposta aos cidadãos, para se imiscuírem nos palácios, castelos, templos sem exporem seu lado deificado, pois caso seja descoberto (ou revelado) o herói tem que ser sacrificado. Mais uma vez o mito se humaniza para se conservar mítico, e o humano é deificado para preservar sua sacralidade.

Para Jung, as fantasias inconscientes como os mitos devem receber da psicologia a devida atenção, uma vez que revela aspectos inerentes a psique. Os motivos abordados durante um processo analítico são portadores de significados vitais à psique, portanto esses elementos, que emergem do inconsciente, são elementos reativos da alma humana em qualquer tempo.

O contínuo desdobramento mantém a dinâmica, preserva a força de transformação, oferece elementos ao confronto dialético, assim sendo, as estrelas passam a polarizar nas telas alguns grandes arquétipos como o atleta acrobático, a virgem inocente, o rebelde sarcástico, a vamp nobre (oriunda da mitologia nórdica) passa a ser mais sensual e a prostituta (da mitologia mediterrânea) de servil passa a tecer as teias do destino. Neste momento tem início a "década de 30". Um novo paradigma mítico expressa o destino das aspirações arquetípicas da coletividade humana.

Entre a virgem do início dos tempos e a fatal dos anos vinte, surge a mulher divina que transcende a fatalidade e a inocência para dar lugar à mulher atuante, edificadora, questionadora e conflitiva; que tem momentos luminosos, mas que chora suas angústias e desnuda sua alma frágil, mas também genial. Na mesma linha o herói masculino mitifica arquétipos do amor, o jovem inicialmente fatal e violento, se reveste de traços efeminados aliados a um olhar sensual. Estes arquétipos operam uma espécie de síntese em que o herói de agora seja ele guerreiro, aventureiro e justiceiro, renasce e se metamorfoseia como Osíris, Átis, Dionísio em herói de feitos incontáveis e sobrenaturais sem, contudo, abdicar de suas características humanas, quais sejam, um ícone que ama, chora e sofre.

A afirmação de Morin (1990: 8), como será visto abaixo, revela o quanto de sagrado está contido na estrela e como que está reage com sofrimento a este distanciamento imposto pela incorporação do mito que se manifesta arquetípicamente, diz que a passagem:

"Ao apogeu da tela corresponde o apogeu da vida mítico-real das estrelas (...). Sublimes, excêntricas, mandam construir imitações de castelos feudais, mansões em forma de templos antigos, com piscinas de mármore, estábulos, estrada de ferro particulares. Vivem muito longe, muito acima dos mortais. Consomem as suas vidas no capricho e no jogo. Amam-se e difamam-se, e seus amores confusos são tão fatais na vida como nos filmes."

A identificação do mito com a estrela e desta com as aspirações sócio-culturais de seus fãs se revela quando por ocasião da morte de um ídolo. Neste momento a multidão se comove, sofre, lamenta-se e, por vezes, suicidam-se, como ocorreu por ocasião da morte de Rodolfo Valentino (Morin, 1990). Estes astros se tornam, às vezes, tão grandes, tão míticos que o espaço cinematográfico não mais os comportam, nem, tão pouco, o mundo cotidiano dos mortais, o que os leva a uma busca tresloucada de libertação, de um espaço que não se identifica com a vida real, mas que as drogas, a loucura, a transgressão consegue, se não acolher, ao menos oferecer esta impressão de que existe um Panteon a lhes abrigar a alma em chamas. Pois sobreviventes que são do crepúsculo dos deuses, seu mistério e sua solidão permitem medir a amplitude que eles atingiram, mas que o lado humano é incapaz de suportar e, portanto, sucumbe à potencialidade mítica. Para os mortais admiradores, o que fica é a expressão arquetípica resplandecente, inesgotável e imortalizada do rosto da estrela num último beijo cinematográfico.

O que se dá com o público, se dá com as estrelas e também com os filmes que se tornam mais complexos incluindo temas mais próximos da realidade, do psicológico, do humor que perpassa as cenas da vida cotidiana. Os gêneros se alternam, a partir da década de trinta, e começam a surgir o cinema de cunho investigativo (filmes policiais), aventureiro, cômico, fantástico, romântico, documentários, etc. demonstrando a tendência mítica de integração de experiências viven-ciadas ao nível arquetípico. Em outras palavras "(...) uma evolução natural e progressiva tendia a reunir no interior de cada filme elementos inicialmente espalhados pelos gêneros especializados." (op. cit.).

O momento histórico vivenciado no período entre guerras acarreta novo paradigma. Ao experimentar o ódio em toda sua amplitude escatológica, bem como, a morte, a privação e a frustração, o sistema de equilíbrio psíquico aciona o arquétipo do otimismo que se fará representar coletivamente no mito do herói que não mais é morto, mas que encontra o "final feliz", tão culturalmente almejado. Cada vez que o filme termina com a vitória do herói guerreiro, leal, que vencendo seus obstáculos amadurece seus princípios e apaixona-se por sua terra e seu povo (psicologicamente representando a "jornada do herói") lhe é consagrado o trono (integração com o self), se casa com seu grande amor (integrando os aspectos da anima), perdoa os inimigos (resgatando e integrando a sombra) sela, assim, um ciclo conturbado através da renovação das alianças, que tanto evidencia uma identificação mítica quanto uma projeção simbólica. Morin (1990: 10) sintetiza poeticamente este período dizendo: "A maioria dos filmes ganham as cores de uma amável fantasia."

Por outro lado Morin (1990: 10) convida à reflexão quando afirma que "(...) os conteúdos míticos dos filmes são 'profanizados', regressam ao terra-a-terra". E chama a atenção para a manifestação de uma nascente manifestação arquetípica, o ideal burguês.

"Espetáculo plebeu em sua origem, o cinema se tinha apropriado dos temas do folhetim popular e do melodrama, nos quais se encontram em estado quase fantástico os arquétipos originais do imaginário: acasos providenciais, a magia do duplo (sósias, gêmeos), aventuras extraordinárias, conflitos edipianos, envolvendo padrastos e madrastas, órfãos, segredos de nascimento, inocência ultrajada, morte-sacrifício do herói. O realismo, o psicologismo, o happy end e o humor revelam precisamente a transformação burguesa deste imaginário."

Dentro desta nova concepção o objetivo tanto das estrelas quanto da estruturação técnica dos filmes têm por finalidade tornar o imaginário mais semelhante ao real, para tanto, investem maciçamente em novas técnicas de sons, imagens, cores, figurinos, roteiros, etc... com o fim último de garantir maior credibilidade frente ao público. Neste caso o arquétipo a ser vivido pelo herói deixa de ser o do "acaso salvador" ou da "possessão" exercida por forças ocultas, para se transformar em motivação de cunho mítico-psicológico. Morin (1990: 11) falando sobre o tema escreve:

"(...) a vida da alma se amplia, se enriquece, se hipertrofia mesmo, no interior da individualidade burguesa. A alma é precisamente o lugar de simbiose no qual o imaginário e real se confundem e se alimentam um do outro; o amor, fenômeno da alma que mistura de maneira mais íntima nossas projeções-identificações imaginárias e nossa vida real, ganha mais importância."

Diante de tal paradigma, dá-se uma projeção-identificação tão íntima entre o herói, a estrela e seus admiradores, ou fãs, que o que antes era exigido pelo conteúdo mítico, qual seja: o sacrifício do herói, passa a ser temido por representar o fim das expectativas, das esperanças e do amanhã, por este o motivo o fim trágico que envolvia o herói é substituído pelo glorioso. Portanto, verifica-se que o psiquismo deixa seu estado infantil, pois neste estágio o advento da morte, enquanto símbolo mítico do paraíso, da estagnação e do "não se dar a conhecer", por não ser experimentado em sua potencialidade, passa a ser integrado pela consciência mais amadurecida, que percebe no ato de viver o potencial para a reunificação com a totalidade, fim último, de todo ser humano; encontro com o self e realização do processo de individuação, para Jung; retorno ao estado primordial, para a mitologia; coniuntios, para os alquimistas; e, transubstanciação, para a eucaristia.

Uma vez que por assimilação afetiva os heróis e estrelas formam o primeiro objeto representativo das transformações, ou seja, acabam por ser "continentes" míticos dos arquétipos vivenciados pelos cidadãos, tendem a ser mediadores e modelos, capazes de combinar o excepcional e o habitual, o transcendente e o fenomenológico como se fossem faróis a sinalizar para navios ávidos de um porto seguro. "Continente" é uma conceituação cunhada por Bion (citado em Zimerman e Osório, 1997: 44)., originalmente referia-se ao papel desempenhado pela mãe de acolher e conter as necessidades e angústias do filho, para no processo de desenvolvimento da maturidade deste contribuir compreendendo, dando sentido e significado aos conteúdos infantis para proporcionar um amadurecimento no ritmo adequado à capacidade do ser em crescimento. Este papel tem três importâncias:

  1. Conter os fatores emocionais emergentes;
  2. Possibilitar aos participantes da equipe aprender a conter suas próprias emoções;
  3. Permitir o exercício das capacidades do ego (perceber, pensar, conhecer, discriminar, juízo crítico)", nominada por Bion como "função Alfa".

Ao fim ao cabo, a estrela continua a portar a insígnia do herói, pois a estrela não termina morta, porém a imortalidade evidencia a nova fragilidade a que está submetida à deusa-estrela, o que os leva a "profanarem-se", contudo sem perderem suas qualidades míticas elementares. Morin (1990: 13) assim se posiciona a esse respeito: "Do mesmo modo e pela mesma razão, os poucos grandes arquétipos cedem lugar a uma multidão de heróis-deuses de média grandeza." Esta tendência pode ser observada pelo perfil das novas estrelas onde cobrindo uma multiplicidade de expressões vê-se beleza magras e até cadavéricas sendo exaltadas, feios charmosos, galãs cínicos, etc. o que leva Morin (1990: 14) mencionar que "Os antigos arquétipos se desfazem, cedendo lugar a múltiplos subarquétipos, mais fiéis aos tipos empíricos."

O mito passa a se revelar nos filmes, bem como nos heróis, a partir de sua natureza dual. É possível observar esta concepção mais ampliada ao se atentar para supressão que se faz do caráter, até então, opositor que existia entre o gângster odioso e o policial altaneiro, pois se instala uma ambigüidade tal que o policial é passível de ser corrompido, de se amesquinha enquanto o gangster adquire aspectos de lealdade, crenças e valores que preserva os seus iguais, denuncia o policial corrupto, faz acordos com a justiça; ressuscitando assim, o componente heróico trágico da mitologia clássica. Morin (1990: 16) menciona que esta fase "(...) reanima a divinização da estrela e se inscreve na grande corrente de profanação."

Ainda citando Morin (1990: 16), este faz uma bela explanação sobre o erotismo: "O erotismo, que é a atração sexual que se espalha por todas as partes do corpo humano - fixando-se sobretudo nos rostos, nas roupas, etc. -, é também o imaginário "mítico" que toca o domínio da sexualidade". Donde se encontra a razão das estrelas estarem cada vez mais erotizadas, o que se contrapõe as virginais heroínas de então. Percebe-se que a evolução se deu de forma difusa, pois não atingiu um ou outro segmento, mas a estrutura como um todo, os paradigmas, as formas, as expressões, as imagens, etc., pois ocorreu uma valorização do realismo, da multiplicidade, da sexualidade por meio do erotismo, dos perfis e assim por diante.

Os filmes musicados enlevam os espectadores devolvendo à musicalidade mitológica às concepções arquetípicas. O canto de um universo repleto de amores e desencontros, paixão sem limites, angústias resignadas e traições perdoadas oferecem uma oportunidade de experimentar as diversidades de sentimentos humanos e as estrelas com talento para cantar, mais uma vez, incorporam aquele elemento que, supostamente, é capaz de sobreviver a este tormento de emoções conflitivas; e, ainda assim, brilhar nos palcos e nos filmes com o glamour que só os deuses.possuem.

Por fim, na "década de 60" (incluindo os dias atuais) a constante exposição das estrelas como mitos, situadas entre o homem e os deuses, protagonistas de expressões arquetípicas dos anseios humanos, vivendo tão próximo do mundo fenomenológico, porém tendo a alma tão próxima ao celestial, traz em si um grande perigo. Por não conseguirem dar conta da divinização que lhes foi, como que, "imposta", quando falham, ou se mostram humanas, frágeis e conturbadas, são refutadas por seus adoradores e quando isso ocorre um arquétipo vingativo e furioso constela uma consciência empobrecida de simbolização e o que era cinematograficamente trágico se torna factualmente desastroso. Deste modo, estrelas são perseguidas, mutiladas e assassinadas.

Jung chama a atenção para o cuidado que se deve ter no sentido de não se esvaziar a expressão de um mito transformando-o em um signo; mas, de procurar compreendê-lo a partir de uma perspectiva simbólica, ou seja, dinâmica, pois se assim for o mito passa a ser um "ativador" de possibilidades. Bem como, não incorrer no risco de tomar o mito na sua forma literal. Este risco tem por causa o fato de muitos deles serem análogos a determinados aspectos da experiência fenomenológica, pois caso isso ocorra poderá advir daí um processo que Jung (1971b: 417) denominou de "inflação" do ego, processo no qual a personalidade é parcialmente ou totalmente desassimilada, com conseqüências danosas ao equilíbrio psíquico. A invasão facilita a adaptação ao mundo exterior, porém, com o desenvolvimento da personalidade torna-se um empecilho ao desenvolvimento individual,

"A identificação pode ser benéfica, na medida em que o indivíduo não pode seguir seu próprio caminho. Quando, porém, uma oportunidade melhor se apresenta, a identificação mostra seu caráter mórbido, tornando-se um impedimento tão grande quanto antes fora um auxílio e um apoio inconscientes. Seu efeito passa a ser dissociativo, cindindo o indivíduo em duas personalidades mutuamente desconhecidas." (Jung, 1971b: 417)

Um exemplo de identificação benéfica voltada para a construção da própria jornada (caminho) heróica, se dá no início dos anos 60, precisamente em 1963, quando é lançado na TV norte americana um seriado que passa a ser conhecido como "a maior experiência de 30 anos jamais empreendida" (Hanley, 1998), conhecido como Jornada nas Estrelas - Star Trek. Entre os motivos que levaram a série a ter tantos seguidores encontra-se a complexidade dos dilemas morais, também o modo como evoluiu permitindo a manipulação de novos problemas que puseram à prova a força, a coragem, a inteligência, a integridade moral e filosófica, a natureza e o tratamento apropriado das formas de vida (humana, humanóide e artificial), os "dados insuficientes": com que avalia-se as questões relativas aos direitos, as implicações inerentes aos teletransportes, as "diretrizes" sob as quais se submete a tripulação, além de outros tantos universos "ficcionais", e porque não dizer míticos, uma vez que há o enfrentamento de monstros, alienígenas, batalhas com formas de vida desconhecida; tudo isso é proporcionado pelas viagens inter-planetárias e pela tripulação da nave estelar: U.S.S. Enterprise.

Os episódios sempre se iniciam com o capitão da nave dizendo:

"O espaço, a fronteira final. Estas são as viagens da nave estelar Enterprise, em sua missão de cinco anos para explorar novos mundos, pesquisar novas vidas, novas civilizações, audaciosamente indo aonde nenhum homem jamais esteve."

Esta emblemática epígrafe deixa claro os objetivos, a filosofia e a busca mítica e heróica dos propósitos desta Jornada. Conforme Wilkinson (2000), o herói sempre parte numa viagem cheia de perigos, vivendo inúmeras aventuras ao longo de sua jornada. Muitas vezes indo a busca de algo valioso como o "Tosão de ouro" ou o "Santo Graal"; outras vezes, experimenta viagens cheias de perigo e infortúnio, enfrentando monstros terríveis, chegando até mesmo, nos confins deste espaço à uma fronteira final, o inferno, como ocorreu com Gilgamesh e Héracles.

Estas aventuras sempre foram contadas por líderes tribais como forma de perpetuar a tradição heróica, registrar a natureza humana e descortinar um universo de novas possibilidades psíquicas a serem exploradas, portanto, audaciosamente indo aonde nenhum homem jamais esteve.

Ao pretendente a herói, cabe mostrar-se corajoso, forte, inteligente, arguto, o que o leva a conhecer seus potenciais, suas possibilidades, sua capacidade de metamorfosear-se para se adaptar, ludibriar e "parir" novas gerações a partir de si mesmo. Esta habilidade em "transformar-se" dá ao herói a capacidade de executar façanhas espantosas aponto de produzirem efeitos decisivos e transformadores na vida dos humanos (Wilkinson, 2000); os heróis fundam tribos, cidades, matam monstros, superam as necessidades da vida, ensinam habilidade, ou seja, se dedicam e se aventuram em explorar novos mundos, pesquisar novas vidas, novas civilizações, o que cria a possibilidade e abre caminho ao contínuo processo de individuação, no entender junguiano.

O ícone desta "epopéia interestelar" é James Tiberius Kirk - O Capitão, que chegou a se tornar Almirante (posto máximo da carreira militar, ou heróica), seguindo a trajetória reservada aos grandes heróis como Ulisses, Odisseu, Perseu, etc. É um sobrevivente de Tasos IV, colônia terrestre invadida pelos Godos, perde seus parentes de forma trágica vitimados por parasitas neurais. É educado na academia da Frota Estelar, onde é considerado um cadete promissor; sendo o primeiro aluno a conseguir aprovação no teste Kobayashi Maru (utilizando-se de um subterfúgio inusitado) num misto de criatividade e fraude. Admirado por sua coragem e determinação alcança postos cada vez mais altos até tornar-se capitão da nave estelar Enterprise.

Conhecido por seu senso de humor extremado e seu ar de Don Juan, o que para Jung evidencia um psiquismo ainda fragilizado pela constelação da "Grande mãe", decorrentes da hipertrofia do materno representados pela figuras míticas de Deméter e Ártemis, ou ainda, dos excessos amorosos de Hera e Afrodite, que tecendo fios destrutivos, enovela o herói em uma teia que o impede de integrar os aspectos masculinos mantendo-o atado ao "universo do sagrado"; mas que traz em seu íntimo a força vivificadora do Destino, que pode ser representada por Dioniso, que serpenteando por entre os labirintos da psique, malogra tamanha mesquinhez e impulsiona o herói à aventura profana que lhe abrirá as portas da maturidade tornando o signo heróico um símbolo coletivo.

Ao considerar-se o perfil do heróico capitão a partir da perspectiva proposta por Wilkinson (2000), observa-se que este herói moderno mantém característica que fazem do herói um ícone mítico, pois espera-se que o herói guerreiro seja um valoroso líder militar na hora do combate, protegendo seu povo e vencendo os inimigos, como o que ocorre com Enéias, que, tendo derrotado seu inimigo Turno, une os povos do norte da Itália. Kirk protege sua nave, sua tripulação e tem por objetivo garantir as alianças formadas pela Federação Unida dos Planetas conforme "diretrizes" quinta e décima primeira, respectivamente, da Frota Estelar:

"Um oficial tem que fazer tudo a seu alcance para proteger a Federação dos planetas Unidos, seus membros, seus representantes e a Frota Estelar, com exceção se isso violar as Diretrizes primeira, segunda ou terceira."

"Um oficial da Federação deve respeitar todos os tratados feitos pela Federação. Assim como ajudar quando requisitado pelo terceiro no tratado."

Portanto, tanto Enéias quanto Kirk tornam-se símbolos para seu povo, e anos depois, estes comandantes são lembrados às novas gerações por seus feitos.

Wilkinson (2000) menciona que quase todo herói tem um caráter inequívoco, sendo totalmente honrado, sempre corajoso; no entanto alguns possuíam personalidade complexa. Kirk é um herói complexo, pois assim como Arjuna (O homem no estado evolutivo), herói hindu, este um exímio arqueiro, aquele um notório estrategista de guerra espacial e acreditam na eficácia da diplomacia. Kirk segue as "diretrizes" primeira, segunda e terceira da Frota Estelar, o que em algumas situações o coloca frente a um conflito moral, tipicamente heróico.

"É proibido a todas as naves e membros da Frota Estelar interferir com o desenvolvimento normal de uma cultura ou sociedade. Essa diretiva é mais importantes do que a proteção das naves ou membros da Frota Estelar. Perdas são toleradas caso forem necessárias para a observação dessa diretiva."

"Um oficial da Frota Estelar tem que fazer tudo a seu alcance para proteger formas de vida inteligente, mesmo se sua tripulação estiver em perigo. Uma atividade ou inatividade que provoque dano à outra forma de vida será considerada a mesma violação da segunda diretriz."

"Em nenhuma circunstância, mesmo que para a proteção da vida da tripulação, um oficial da Frota Estelar tem o direito de machucar ou praticar dano a uma forma de vida inteligente, a exceção é permitida se for para preservar a diretriz primeira."

Como herói diplomático, Kirk incorpora o aspecto do herói ardiloso, ou seja, aquele que é capaz de transformar as perspectivas, de gerar empatia, de criar estabilidade a partir do ardil, da retórica, de ensinar as habilidades essenciais à vida. Wilkinson (2000) afirma que este tipo de herói tem um papel vital na mitologia das culturas da América do Norte, África e Ilhas do Pacífico. Este herói usa do humor para pregar peças no inimigo e como já foi dito esta é uma característica inata do capitão Kirk. No entanto, este herói ora se mostra amigo manipulando a situação para que seus princípios sejam beneficiados, ora se mostra enganador, o que lhe garante, p. ex., vencer uma batalha, que já poderia ser considerada perdida, ao mudar sua forma (estratégia) de combate fazendo crer ao inimigo que iria se render, engana o líder Romulano levando-o a tomar uma decisão equivocada de "baixar a guarda"; assim como ocorre com o Coiote, herói ardiloso da cultura norte americana estendendo-se até o México, que muda de forma para enganar seus oponentes.

Outra característica heróica do Kirk é o fato de estar sempre buscando seu próprio caminho à medida que desobedece a ordens diretas como de hábito. Observa-se com esta atitude o componente transgressor do herói que se coloca frontalmente de encontro à "diretriz" quarta: "Um oficial tem que executar toda ordem de seu superior, exceto se estas violarem as Diretrizes primeira, segunda ou terceira". Porém, sempre leva a Enterprise e sua tripulação a enfrentar os problemas e os perigos de forma confiante e entusiástica, e, com conseqüente êxito.

Seus melhores amigos são Spock e McCoy.

Sobre S'chn T'gai Spock pode-se dizer que é um meio humano, uma vez que é filho de um vulcano e uma terrestre. É possuidor de uma mente extremamente analítica. Recebeu sua educação diretamente de um vulcano, treinado em lógica, computação e controle das emoções. É devotado à ciência e guiado pela lógica, base filosófica de seu povo. Fisicamente é mais vulcano que terrestre, possuidor de uma extraordinária força física e resistência à dor. Possui capacidade telepática e capacidade de imobilizar as pessoas utilizando apenas o toque de suas mãos, "toque vulcano". Como propõe Campbell (1988), o herói precisa ter um "auxílio sobrenatural" e pelas diversas qualidades sobre-humanas elencadas acima, conclui-se que, o primeiro oficial, Spock é o elemento representacional deste aspecto sobrenatural ou sobre-humano. Simbolicamente, traz em si características de um semi-deus, dos mundos terreno e celeste, pois é filho do céu (planeta Vulcano) com a terra; é um humanóide com elementos psíquicos divinos, representa a consciência, a mais pura expressão do logos a serviço do capitão Kirk. É, portanto, o elemento mágico que ladeia, guia e permeia o herói Kirk em sua jornada de autoonhecimento.

Leonard H. McCoy, o oficial médico-chefe da Enterprise, é apegado as tradições, arredio à tecnologia - o que reflete suas convicções humanistas e românticas - mesmo assim, mostra-se um exímio conhecedor em sua área de atuação, manipulando aparelhos sofisticados com destreza e competência É amigo pessoal e conselheiro do Kirk. Famoso por seus constantes desentendimentos com Spock. Não é afeito as disciplinas e protocolos militares, o que revela sua natureza extrovertida, passional e idealista; notadamente guiado pelas emoções, mesclando momentos de docilidade com comportamentos irascíveis. É o que melhor representa o lado inconsciente e instintivo do capitão. Portanto, McCoy é o outro elemento mágico, o auterego do KirK, neste caso comparado a Krishna (o homem-Deus, o homem superior): o conselheiro, a suprema personificação da divindade, expõe a Kirk os aspectos inerentes à natureza humana e suas relações com a alma, que procura livrar o herói Arjuna da inquietude e da perplexidade em que se encontra, na iminência de uma luta contra seus próprios parentes; para Kirk, representa o conflito para lidar com novas civilizações e a luta para descobrir-se de forma audaciosa enquanto criador de sua própria aventura heróica.

Deste modo, tem-se a formação de um triângulo de conflitos emocionais, pois na verdade Kirk é o equilíbrio entre "o lógico" Spock e o "emocional" McCoy.

Ainda citando Campbell (1988), o herói precisa de um "chamado" e de um "casamento". Em Jornada nas Estrelas este chamado é feito pela Frota Estelar que o incumbe de capitanear a Enterprise nos seus objetivos de pesquisa e manutenção da paz. É importante observar que em várias ocasiões é citado o fato do capitão Kirk já ter um grande compromisso em sua vida, a Enterpreise. Este fato fornece elementos para duas abordagens: primeira, a Enterpreise é a materialização do compromisso, do chamado ao qual Kirk deve-se entregar de corpo e alma; e, segunda, conforme inúmeras vezes é citado durante os diversos episódios, tanto por tripulantes como por alienígenas que passam a conhecê-lo, não se furtam em afirmar, que Kirk é um homem que não irá se vincular a outra mulher pelo fato de já ser casa... com a Enterprise; pois esta é considerada a "princesa", o símbolo da Frota Estelar que ficou famosa em toda galáxia, que tendo à bordo 430 pessoas, sendo 43 oficiais e 387 tripulantes, possui um terço dos seus membros do sexo feminino, o que para os anos sessenta representava uma mudança de paradigma para a concepção social e, principalmente, militar (até então, tipicamente masculina). Em outras palavras o arquétipo feminino, ou anima, demonstrava estar se aproximando mais facilmente do processo de integração da consciência.

Portanto, pode-se concluir que, segundo Ions (1999), os heróis são indivíduos excepcionais cujas obras trazem algum benefício à humanidade; além disso, as personagens heróicas podem dever seus poderes sobre-humanos a alguma conexão divina, a algum fator mágico, a habilidade de falar com outros seres, de assumir outras formas (ou seja, transformarem-se, ou ainda, adaptarem-se), podem utilizar a fraude, a lei, não obstante, sua sabedoria pode dar-lhes o papel de mestre, de líderes, de legisladores legando à humanidade as normas sociais, as artes, e os ofícios da civilização. É deste modo que o herói mostra ao homem, em busca do "Conhecimento", como deve agir para continuar audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve.

O mito, portanto, deve ser entendido como uma leitura metafórica de uma realidade que precisa ser apreendida pela consciência e precisa estar a serviço desta e não o contrário. Portanto, o mito pode ser entendido como uma imagem não pessoal que provê um espaço psíquico para a expressão individual.

 

Referências Bibliográficas

Campbell, J. (1988). O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

Hanley, R. (1998). A metafísica de jornada nas estrelas - Star Trek. São Paulo: Makron Books.         [ Links ]

Houaiss (2001). Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0. 1 CD-ROM. Rio de Janeiro: Editora Objetiva.         [ Links ]

Ions, V. (1999). História ilustrada da mitologia. São Paulo: Editora Manole.         [ Links ]

Jung, C.G. (1971a). Símbolos da transformação. CW 5. Petrópolis: Editora Vozes.         [ Links ]

Jung, C.G. (1971b). Tipos psicológicos. CW 6. Petrópolis: Editora Vozes.         [ Links ]

Jung, C.G. (1971c). A natureza da psique. CW 8ii. Petrópolis: Editora Vozes.         [ Links ]

Jung, C.G. (1971d). Civilização em transição. CW 10iii. Petrópolis: Editora Vozes.         [ Links ]

Jung, C.G. (1971e). A prática da psico-terapia. CW 16i. Petrópolis: Editora Vozes.         [ Links ]

Jung, C.G. (1976). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. CW 9i. Petrópolis: Editora Vozes.         [ Links ]

Jung, C.G. (1981). A vida simbólica. Petrópolis: Editora Vozes. CW 18i.

Morin, E. (1990). As estrelas - mitos sedução no cinema. Rio de Janeiro: Editora José Olympio.         [ Links ]

Zimerman, D.E. e Osório, L.C. (1997). Como Trabalhamos em Equipes. Porto Alegre: Editora Artes Médicas.         [ Links ]

Wilkinson, P.(2000). O livro ilustrado da mitologia. São Paulo: Publifolha.         [ Links ]

 

Notas

M. Aranha é Médico pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Especialista em Neurociência e Saúde Mental pelo Instituto de Neurociências y Salud Mental da Universidade da Catalunya. Atua como Pesquisador do Núcleo de Psicologia e Comportamento do ICC. E-mail para contato: mauricioaranha@uol.com.br.