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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.10  Rio de Janeiro Mar. 2007

 

Resenha

 

O uso da metodologia qualitativa na construção do conhecimento científico

 

The use of the qualitative methodology in the construction of the scientific knowledge

 

 

Maria Célia da Silva Gonçalves

Faculdade Cidade de João Pinheiro (FCJP), João Pinheiro, Minas Gerais, Brasil; Faculdade do Noroeste de Minas (FINOM), Paracatu, Minas Gerais, Brasil

 

Demo, P. (2004). Pesquisa e informação qualitativa: aportes metodológicos. 2.ed. Campinas, SP: Editora Papirus, 135p. ISBN 85-308-0624-7

 

Pedro Demo é sociólogo e Professor Titular da Universidade de Brasília (UnB), onde desenvolve pesquisas sobre a construção do conhecimento.

Esta obra é um livro básico sobre a pesquisa qualitativa, didaticamente dividido em 6 capítulos, de fácil entendimento, servindo como eixo norteador a estudiosos que desejam trabalhar com a referida modalidade de pesquisa.

Acertos categoriais é o título do primeiro capítulo, no qual Demo afirma que um dos problemas a ser enfrentado pelo pesquisador dessa metodologia é a imprecisão conceitual, começando pelo próprio conceito de qualidade. No entanto, o autor sugere pensar qualidade com "intensidade" e não com extensão, para ele o conceito de intensidade não se livra de interpretações dúbias assim como todos os outros conceitos também estão sujeitos. No entanto, aponta para profundidade, para o envolvimento, participação, ou seja, oferece uma idéia que vai além da extensão que apenas "reduz a coisas superficiais, distantes ou inertes." (p.15) Para exemplificar, o autor cita o caso de um partido político, que não pode medir a militância apenas pelos número de seus afiliados, pois esse número se refere apenas a "extensão", enquanto a militância seria a atuação cotidiana dos membros do partido, esta sim poderia ser entendida como "intensidade". No entanto, não podemos negar a importância da filiação, pos sem sócios não existe partido, mas é preciso que exista envolvimento para que este partido funcione bem.

"A essa altura, a intensidade via confundindo com a não-linearidade, a dinâmica contrária de cariz dialético, a surpresa das subjetividades e das individualidades, o caótico criativo."(p.15)

Segundo Demo, o método clássico tende a captar apenas o que é matemático, linear,e de pouca significância para a compreensão do todo que nem sempre é linear e quantifival. de

"Por conta disso tudo, não convém dicotomizar ente qualidade e quantidade e qualidade porque são apenas modos diferenciados de manifestação, funcionamento e dinâmica. A intensidade é própria de fenômenos complexos que mesclam seus componentes de modos ordenados e desordenados. São complexos não só porque estão dotados de componentes múltiplos, mas sobretudo porque são ambíguos. Complexidade é um todo múltiplo e ambíguo, marcado por dinâmicas contrárias..."(p.16)

Para o autor, o ser humano busca ordenar as coisas, por isso os métodos de investigação primam por classificar o mundo, mas acabam deturpando a realidade que tende a ser desordenada por natureza. Segundo ele o método científico prefere trabalhar com aquilo que é mais fácil de mensurar desprezando o subjetivo, o inesperado, acreditando que nas regularidades é que estão contidas as verdades.

O ideal seria reunir no método as duas possibilidades, de estudar o mensurável e o imensurável, a quantidade e a qualidade, o linear e o não linear.

"Na sociedade do conhecimento o traço mais visível é a capacidade crescente de dirigir-se com autonomia. Não cabe à tecnologia porque o conhecimento não inventa apenas a emancipação, mas igualmente a colonização. Imbecilizar os outros é a mesma qualidade, ainda que pelo avesso, da emancipação. [...] Faz parte da qualidade do ser humano ter inventado a democracia, os direitos humanos, o associativismo, a educação básica obrigatória, e assim por diante. Por isso é sempre possível dizer que a referência central da qualidade humana é a participação, pois a sociedade mais desejável, pelo menos mais suportável, é aquela em que há maior participação por parte de todos." (p.19)

Se o próprio ser humano em sua plenitude já é repleto de dualidades, o método para estuda-lo em uma dimensão mais ampla necessita estar aberto as possibilidades de entender a sua participação, o seu envolvimento, enfim a sua politicidade. "A politicidade refere-se a realidades que abrigam em si potencialidades negociáveis que fazem delas fenômenos capazes de história própria." (p.20) A politicidade, na perspectiva do autor é fazer uma história melhor, não só aumentar a quantidade de oportunidades, mas acima de tudo fazer crescer a qualidade das oportunidades.

"A politicidade aparece precisamente na capacidade de fazer, dos limites, desafios. Dito de outra maneira, a politicidade é a prova do sujeito: não somos apenas objetos de manipulação externa ou alheia, pois podemos nos fazer sujeitos de proposta própria." (p.19)

Para Demo, a politicidade deve ser o item mais perseguido em uma pesquisa qualitativa. E é esta politicidade que determinará se uma sociedade é "ética ou nazista, participativa ou ditatorial, educada ou selvagem." (p.19)

O segundo capítulo da obra tem por objetivo discutir o papel do Sujeito e Objeto, porque "talvez a face mais importante da qualidade seja 'qualidade política', indicando a noção de sujeito" (p.23). Nesse capítulo o autor faz crítica a metodologia que tendenciosamente aponta como sujeito apenas o cientista. Colocando sempre a realidade em condição de apenas objeto. Os paradigmas das ciências modernas primavam sempre por uma objetividade da realidade da realidade e a neutralidade do sujeito, se esquecendo de que esse sujeito era parte integrante da realidade. No entanto o mudo pós-moderno vai colocar em dúvidas essa crenças.

Demo alerta para a predisposição que o ser humano acalenta em estar sempre enxergando a realidade tal qual ela é. Segundo ele um dos princípios a ser desenvolvido pelo pesquisador que se utiliza da metodologia qualitativa é aceitação de que trabalha com uma realidade construída pelas regras do método.

Para exemplificar, Demo aponta sociedades que aparentemente são tranqüilas, mas quando investigadas demonstram uma série de conflitos latentes.

"Segundo, mesmo sendo a realidade algo independente de nós obviamente, a realidade que temos em mente é aquela reconstruída por nós. O mundo que nos tem como sujeitos é um mundo reconstruído também subjetivamente." (p.24)

As ciências da pós-modernidade já sabem que é necessário lidar com essa subjetividade e ter claro que a noção que é possível fazer da realidade é sempre um construto social, com data de validade sempre determinada pela historicidade do sujeito.

Em sociedades multiculturais deveria existir a preocupação em entender o outro, standpoint epistemology, ou seja, buscar pensar como o outro gostaria de ser compreendido, embora essa tentativa se esbarre na limitação de que eu não posso pensar dentro da cultura do outro, esse limite pode ser encarado como um desafio de melhor compreensão desse outro através de sua história, cultura e tempo.

No terceiro capítulo, Hermenêutica de profundidade, à la Thompson, Demo deixa claro que seu objetivo é trabalhar com a hermenêutica da profundidade sem buscar construir um tratado de metodologia da pesquisa qualitativa. Ele afirma que sua análise se assentará no pensamento de Thompson, Ricoeur entre outros pensadores que se aproximaram da tradição da teoria crítica.

Em Thompson, Demo busca a idéia de que as pesquisas clássicas reduzem todo objeto a análise formal. E como ele acredita que: "os sujeitos que constituem o 'campo-sujeito-objeto', como o próprio pesquisador, são capazes de compreender e interpretar." (p.37)

"Thompson imagina a necessidade de uma "ruptura metodológica com a hermenêutica da vida quotidiana", para que seja possível também ver para além dos contextos culturais. Todo olhar é culturalmente plantado, mas diminui se apenas conseguir ver dentro de seu contexto cultural. Não há futuro sem passado." (p.38)

Alguns patamares de análise são elencados pelo autor com o propósito de que toda interpretação vá além da doxa, ou seja, busque consturir um conhecimento que vá além da subjetividade e da simples opinião.:

  • Análise sócio-histórica - onde buscaria reconstruir as condições sociais e histórica de produção, circulação e recepção das formas simbólicas, entendendo que a história não pode ser vista apenas como o passado mas também como forma de explicação de uma sociedade.
  • Análise formal ou discursiva - tem por objetivo demarcar a complexidade estruturais dos objetos e expressões que circulam nos campos sociais.
  • Análise semiótica - preocupa com a fala no que diz respeito à sua estrutura discursiva.
  • Análise narrativa - investiga o enredo da história.
  • Análise argumentativa - busca argumentar de forma a tornar o discurso mais aceitável.

Sobre a interpretação/reinterpretação:

"Thompson aposta sobretudo nessa fase, considerando as anteriores, no fundo com preparação. Na metodologia clássica, a segunda fase constitui o cerne metodológico, e muitas vezes único, levada pela crença na objetividade e neutralidade,ao passo que a tentativa de interpretar representa sempre um tipo de negociação também subjetiva. [...]Uma cautela é não deixar de lado as fases anteriores, porque no mínimo circunstância a interpretação, emprestando-lhe referências mais tratáveis em termos clássicos. Uma segunda cautela é armar um tipo aberto de discussão , que permita da melhor maneira possível o debate, evitando esoterismos ou subjetivismos particulares.[...] Thompson chama a tenção para o processo de reinterpretação, tendo em vista que o mundo simbólico já é um campo pré-interpretado.[...] Na reinterpretação, as características estruturais internas típicas da segunda fase também são levadas em consideração, permitindo um vôo muito mais alto, para além de circunstâncias sócio-históricas de sua gestação crítica.[...] Uma reconstrução crítica , primeiro, não se contenta em expor, descrever, apresentar as falas ou discursos. Segundo não contenta também em desvelar sua ossatura estrutural.Terceiro, parte para descobrir relações ocultas, vazios e silêncios, titubeios e aclamações, frases forte e fracas, presenças tímidas e avassaladoras, bem como as ausências. Quarto, persegue a dinâmica do fenômeno, mantendo, na contraluz da padronização sistemática, o que parece não linear, criativo, surpreendente, até mesmo individual. Trata-se, num primeiro momento, de desconstruir a expressão simbólica , para ver o que estaria querendo dizer apesar do que diz,[...] Num segundo momento, trata-se de reconstruir o fenômeno de acordo com a ótica do interprete , dando-lhe nova roupagem, por vezes muito divergente da original." (pp.42-43)

Enfim o autor afirma que é preciso saber buscar aquilo que não se enxerga com tanta facilidade, aquilo que teima por se esconder, por se dissimular nos discurso. E para tal se faz necessário uma grande percepção critica capaz de valorizar o mundo simbólico e o seu questionamento.

O quarto capítulo da obra se ocupa das Avaliações qualitativas. Segundo Demo a avaliação qualitativa tem sido muito requisitada para averiguar o desempenho educacional. O autor ainda ressalta o quanto é importante adequar aos objetivos da avaliação de desempenho qualitativos. Nesse caso Demo se limita à avaliação de desempenho de aprendizagem e afirma que é necessário saber de que maneira o aluno aprende de verdade. Para ele aprendizagem tem que ser fenômeno reconstrutivo político, implicando num destaque ao papel do professor enquanto fator de ordem externa.

Sua hipótese de trabalho é que uma aprendizagem verdadeiramente qualitativa deve ser constituída de reconstrução de conhecimento e não apenas de mera reprodução instrucionista. Essa aprendizagem deve buscar combater a pobreza política do aluno, mostrando-lhe que ele é capaz de construir sua própria história individual e coletiva, deixando claro que apreender é ser livre e autônomo.

Para o autor uma alternativa para a avaliação qualitativa, deveria pautar por:

  • Saber pensar;
  • Questionamento reconstrutivo;
  • Mudança comportamental;
  • Envolvimento emocional;
  • Qualidade do professorado.

O autor ainda ressalta a necessidade das avaliações externa, embora entenda que elas são de caráter autoritário. Segundo ele essas avaliações conseguem captar pontos crucias que os atores envolvidos não são capazes ou não querem enxergar permitido, portanto, um melhor controle da produção científica.

O quinto capítulo intitulado Exercícios simulados de dinâmicas qualitativas trata-se de um capitulo técnico onde o autor busca simular exercícios de análise hermenêutica, Demo busca demonstrar como contextualizar, ler nas entrelinhas, captar o que está dito nos discursos sem necessariamente ter sido falado.

O sexto e último capítulo se ocupa dos Desafios Metodológico, Demo deixa claro ser a generalização , um dos principais desafios impostos pela pesquisa qualitativa .Por mais que uma investigação seja intensa e profunda ela jamais poderá estabelecer regras gerais. Outro limite encontrado na pesquisa qualitativa seria a subjetividade, mas o autor lembra que a história é constituída de fenômenos únicos que não se repetem, portanto todo fenômeno é novo e nada está fora da história. O uso da pesquisa qualitativa quer apenas realçar essa complexidade do fazer ciência, mas consciente de que toda dinâmica também revela as suas formas.

Por fim o autor conclui que trabalhar com pesquisa qualitativa não é tão simplista como se costuma acreditar. Tornando uma metodologia arriscada e bastante exigente para o investigador. Certamente que um dos primeiros passos para a realização de um bom trabalho utilizando essa metodologia, perpassa pela desmistificação de que a pesquisa qualitativa pode ser feita por qualquer um, sem grandes preocupações com o método. É necessário que o pesquisador esteja atento a necessidade de uma constante crítica e autocrítica de seu trabalho.

 

 

Notas

M.C.S. Gonçalves
E-mail para correspondência: mceliasg@yahoo.com.br.