SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11Self-Organization, Embodied Cogniton and the Bounded Rationality PrinciplesThe orientation of disciplinary problems by means of reading and debating texts author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.11  Rio de Janeiro July 2007

 

Artigo Científico

 

Os aspectos cognitivo e afetivo da criança avaliados por meio das manifestações da função simbólica

 

The children cognitive and affective aspects evaluated through symbolic function manifestations

 

 

Maria Luisa de Lara Uzun de FreitasI; Orly Zucatto Mantovani de AssisII

IServiço de Avaliação e Intervenção Psicopedagógica (SAIP), Laboratório de Psicologia Genética (LPG), Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, São Paulo, Brasil;
IILPG, UNICAMP, Campinas, São Paulo, Brasil

 

 


Resumo

Com fundamento na teoria de Jean Piaget, assume-se aqui as condutas de representação da função simbólica como um meio de avaliação do desenvolvimento cognitivo e afetivo em atendimentos psicopedagógicos de crianças. A partir de tal perspectiva, foi realizado um estudo de caso com um participante (GIL), entre o período de maio de 2005, quando estava com 5;10 de idade e março de 2006 com 6;8 anos de idade. Os resultados obtidos revelaram a importância da metodologia proposta, visto que a criança se sentiu à vontade para se expressar por meio das condutas de representação, as quais permitiram investigar aspectos relacionados ao desenvolvimento cognitivo e afetivo.

Palavras-chave: Piaget; função simbólica; avaliação; cognição; afeto.


Abstract

Fundamented on Jean Piaget's theory, it takes the representation conducts of the symbolic function, manifested by children in pre-operatory development stage, as a means to evaluate their cognitive and affective development in psicopedagogical clinic. From such perspective, a case study was conducted with a child between May 2005, when he was 5;10 of age, and March 2006, when he was 6;8. The results obtained showed the relevance of the proposed methodology, since the child felt comfortable to express himself through representation conducts, allowing the investigation of different aspects related to the cognitive and affective development.

Keywords: Piaget; symbolic function; evaluation; cognition; affect.


 

 

Introdução

Os estudos de Piaget (1977) acerca da construção das estruturas de inteligência da criança o levaram a concluir que existe um funcionamento interno que é desencadeado a partir da interação da mesma com o mundo que a cerca. Tal funcionamento ocorre por meio da assimilação ou incorporação de um elemento exterior (objeto, acontecimento, etc.) em um esquema sensório-motor ou estrutura do sujeito e da acomodação, ou modificação, de um esquema (ou estrutura) em função das particularidades ou resistência que o objeto oferece ao ser assimilado.

Para investigar o processo de desenvolvimento da criança, Piaget (1926) desenvolveu o método clínico-crítico, o qual requer uma participação intensa do investigador, no sentido de acompanhar o desenrolar do pensamento da criança e ajustar as questões formuladas às suas ações e às suas respostas, o qual possibilita a expressão livre e pessoal das idéias dela.

Piaget (2002) explica o desenvolvimento da criança por meio dos estágios sensório-motor, pré-operatório, operatório concreto e operatório formal. Ao considerar o estágio pré-operatório, denominado por Piaget como a fase em que surgem as condutas de representação ou manifestações da função simbólica, evidenciou-se a possibilidade de se criar um cenário que as propiciasse para que fossem utilizadas como um instrumento ou um meio de avaliação e intervenção em atendimentos psicopedagógicos, apoiados no método clínico-crítico de Piaget (1926) e nos princípios de intervenção elaborados por Vinh-Bang (1990), (Freitas, 2006).

Para viabilizar as condições necessárias para a realização da pesquisa, iniciaram-se os atendimentos psicopedagógicos de crianças. Esse atendimento faz parte do Serviço de Avaliação e Intervenção Psicopedagógica - SAIP1, oferecido pelo Laboratório de Psicologia Genética (LPG) da Faculdade de Educação da UNICAMP, fundado e coordenado, desde 1982, pela Profa. Dra. Orly Zucatto Mantovani de Assis, baseado na psicologia e epistemologia genética de Jean Piaget. Os trabalhos desenvolvidos no SAIP visam ao desenvolvimento da criança em relação ao aspecto cognitivo, afetivo e social.

No atendimento psicopedagógico é proporcionado à criança um ambiente favorável para que se sinta à vontade para manifestar as condutas de representação e, dessa forma, possam ser realizadas a avaliação e intervenção. Nesse contexto, a criança conta com a liberdade de escolher aquilo que quer fazer diante do material diversificado disponível no ambiente, e, nesse sentido, não há um roteiro a ser seguido pelo investigador, o que permite que as representações da função simbólica sejam construídas espontaneamente, livres de regras e pressões, ao excluir o caráter obrigatório.

Piaget (1975) explica que a função simbólica consiste na capacidade que a criança adquire de diferenciar significantes e significados. Por meio de suas manifestações, a criança torna-se capaz de representar um significado (objeto, acontecimento) através de um significante diferenciado e apropriado para essa representação.

Dessa forma, a criança de dois a sete anos, aproximadamente, passa a contar com a possibilidade de representar as ações, as situações e os fatos da vida dela, ao manifestá-las por meio da construção da imagem mental, imitação diferida, jogo simbólico, linguagem e desenho (condutas de representação).

Ao jogar simbolicamente ou imaginar e imitar, a criança cria um mundo em que não existem sanções, coações, normas e regras, provenientes do mundo dos adultos, o que possibilita a ela transformar a realidade com o objetivo de atender as suas necessidades e desejos. Evidencia-se, assim, a importância da função simbólica como um meio que permite à criança expressar seus desejos, conflitos, etc. e adaptar-se gradativamente ao meio em que vive.

Nesse sentido, considera-se a brincadeira de criança, momento em que a mesma tem a oportunidade de representar, como uma atividade séria e necessária para o seu desenvolvimento, tanto cognitivo, já que é a partir da interação com o meio (objetos, pessoas, etc.) que a criança constrói as estruturas de inteligência, como afetivo, uma vez que, ao brincar a criança pode resolver seus conflitos e satisfazer suas necessidades. Em vista disso, criou-se um cenário oportuno para se conhecer a criança quanto a esses aspectos do desenvolvimento.

No presente trabalho, pretende-se apresentar a avaliação do desenvolvimento cognitivo e afetivo realizadas no participante da pesquisa de Freitas (2006), cujas condutas de representação, manifestadas por ele, contemplaram características relacionadas às noções de espaço, tempo e causalidade, no que diz respeito ao aspecto cognitivo e características individuais, motivação, curiosidade e criatividade, quanto ao aspecto afetivo.

 

Referencial teórico

A função simbólica segundo a teoria de Piaget

Piaget (1975), ao observar o desenvolvimento de seus três filhos (Jacqueline, Luciene e Laurent), pôde traçar a psicogênese das condutas de representação ou manifestações da função simbólica. Começou a observá-los desde o nascimento até concluir que a capacidade de conhecer as coisas que estão presentes, por meio da ação prática, vai sendo substituída, no final do estágio sensório-motor, pela capacidade de representar o que é conhecido.

A função simbólica constrói-se desde o começo da vida da criança e consiste, inicialmente, na capacidade de imitar. A evolução dessa manifestação ocorre ao longo dos dois primeiros anos de vida: primeiramente, na presença do modelo, e depois, na ausência do mesmo. A criança passa a imaginar o que faz ou o que fez, o que vê e o que viu mentalmente e, dessa forma, demonstra apoderar-se do mundo por meio da representação dele. A criança o imagina e é capaz de representá-lo através do jogo simbólico que se desenrola paralelamente ao desenvolvimento da capacidade de imitar. A criança brinca de faz-de-conta e, ao mesmo tempo, verifica-se a presença dos primeiros esquemas verbais, ou sistema de signos verbais e dos primeiros rabiscos em uma folha de papel, o que traduz, assim, as outras manifestações da função simbólica, a linguagem e o desenho.

Essas representações ocorrem em um período de transformações significativas quanto ao aspecto cognitivo da criança. A sua inteligência, que era apenas prática no estágio anterior, passa a ser dominada pelo pensamento propriamente dito, o qual sofre a influência da linguagem que, por sua vez conduz a inteligência à socialização das ações.

O pensamento da criança pré-operatória é dominado, inicialmente, pelo egocentrismo e, nesse sentido, ela assimila todos os dados da realidade ao eu, quando se inclina à satisfação e, não, à objetividade. Piaget (1996) explica que a forma extrema dessa assimilação aos desejos e aos interesses próprios é o jogo simbólico da imaginação, em que o real é transformado de acordo com as necessidades do eu.

Dos dois aos seis anos, aproximadamente, Piaget alerta que, devido ao pensamento egocêntrico, a criança apresenta muita dificuldade em participar de uma conversa ou de uma discussão, de fazer um relato ou dar uma explicação, ou seja, de sair do pensamento próprio a fim de adaptar-se ao dos outros. Transita, então, entre duas formas de pensamento, um egocêntrico e outro socializado e, no meio dessa transição, necessita satisfazer seus desejos para manter seu equilíbrio afetivo e cognitivo.

Delval (1998), baseado nas idéias de Piaget, acrescenta que, com o jogo simbólico, a criança torna-se capaz de transformar as situações vividas no seu cotidiano, situações estas que são controladas pelos adultos, que estão a sua volta, por meio de normas e regras muito rígidas, as quais, muitas delas, ela não consegue compreender. Daí a necessidade de entregar-se às possibilidades que o jogo simbólico proporciona, como um meio para expressar seus desejos e conflitos para poder adaptar-se a esse mundo.

Nesse contexto, tem-se a oportunidade de compreender a criança quanto aos aspectos cognitivo e afetivo, uma vez que a atividade lúdica pode fornecer informações sobre os esquemas que organizam e integram o conhecimento da mesma em um nível representativo.

Dessa forma infere-se que as manifestações da função simbólica são um importante instrumento para avaliar as noções que a criança tem sobre o tempo, espaço e causalidade, as quais são fundamentais para que a mesma consiga representar por meio de ações, desenhos ou narrações, de maneira clara e coerente. Paralelamente, enquanto interage com o seu mundo lúdico, é possível que expresse os seus sentimentos de acordo com o estado afetivo em que se encontra.

As noções de objeto, espaço, tempo e causalidade no contexto da função simbólica

Segundo Piaget (1969), o desenvolvimento cognitivo baseia-se no conhecimento lógico-matemático, que se refere à construção de estruturas de pensamento as quais se dividem em infralógicas, que são as noções de espaço, tempo e causalidade, e lógicas que são as noções de conservação, classificação e seriação.

As estruturas infralógicas constituem-se na mesma idade e em paralelismo estreito com as operações2 lógicas, no entanto, diferenciam-se quanto ao lugar que ocupam em relação ao objeto.

As operações lógicas tratam de ajustamentos de objetos discretos, sem se ocuparem do que é interior ao objeto, ou seja, sem considerarem, como verificou Piaget (1969), as vizinhanças ou não vizinhanças espaço-temporais entre os elementos.

Em contrapartida, as estruturas infralógicas tratam das relações interiores do objeto, ou seja, se referem a quaisquer dimensões deste, pois levam em consideração vizinhanças no interior das figuras ou objetos contínuos, isto é, abrangem as relações entre o espaço, tempo e causalidade, e acompanham todo o desenvolvimento da criança.

Piaget (1996), ao descrever sobre essas noções, refere-se à construção do real pela criança, visto que o real, segundo a maneira que Ramozzi-Chiarottino (1994) a concebe, significa o mundo dos objetos e dos acontecimentos, estruturado pela criança graças à aplicação (nesse mundo) de seus esquemas de ação. É a partir da interação da criança com o meio, que a mesma se insere no espaço e no tempo e percebe as relações causais.

Segundo Piaget (1975), quanto ao desenvolvimento dessas noções, pode-se dizer que aquilo que é adquirido no plano prático pela inteligência sensório-motora, isto é, a permanência de forma e de substância dos objetos próximos, bem como a estrutura do espaço e do tempo próximos, não necessita de reaprendizagem no plano representativo, pois se encontra diretamente integrável nas representações. Entretanto, tudo o que ultrapassa o espaço e o tempo próximos e individuais exige uma nova construção, a qual reproduz, em linhas gerais, o desenrolar da construção já concluída no plano sensório-motor, no que diz respeito às estruturas próximas.

A criança pré-operatória, inicialmente, compreende as noções de espaço, tempo e causalidade sob uma ótica ainda egocêntrica, o que a faz percebê-las em função de seu eu, de suas atividades próprias.

Dessa forma, no início desse estágio, em relação ao espaço, a criança não consegue descrever a localização espacial de um objeto em relação ao outro sob o ponto de vista de ambos, mas sim, sob o seu ponto de vista.

Quanto à noção do objeto em relação ao espaço (no que concerne aos deslocamentos relativos aos corpos situados no horizonte ou aos movimentos celestes), não se encontra totalmente elaborado. O seguinte exemplo pode ilustrar o fato: trata-se de quando a criança acredita que a lua, ou a nuvem ou as estrelas as estão seguindo. Tal fato ocorre devido à criança ter dificuldade para constituir a identidade da lua enquanto um objeto que faz parte das percepções simultâneas de diferentes observadores possíveis e, ainda, por não conseguir ultrapassar a experiência imediata de seus movimentos aparentes, pois ela assimila o quadro de deslocamentos da lua e o concebe sob seu ponto de vista, centrado em sua atividade própria.

Em termos das relações causais, a mesma lei da construção do espaço e objeto se aplica. Encontra-se no início desse estágio uma criança ainda centrada em si mesma, o que a leva a conceber as relações causais somente sob o seu ponto de vista. Sob esse aspecto, as relações causais que estabelece é regida da seguinte forma: a criança considera os adultos como pessoas que existem para cuidar delas; a chuva existe para fazer as plantas crescerem; as nuvens para fazer a noite; etc.

Em relação ao tempo, ainda no início do estágio pré-operatório a criança não chega a avaliar as durações concretas, nem mesmo as velocidades, sem se referir ao simples tempo psicológico, ou seja, essas relações de duração e sucessão são baseadas na percepção imediata interna ou externa. Dessa forma, a criança age como se cada movimento tivesse o seu próprio tempo. Mais tarde a criança consegue constituir, não mais na ação, mas no pensamento, séries objetivas que unem a duração interna ao tempo físico e à história do próprio universo exterior.

A relação entre o aspecto cognitivo e afetivo no contexto da função simbólica

Segundo Piaget e Inhelder (1974), a cognição e o afeto são dois aspectos indissociáveis de uma mesma ação, e ambos seguem a mesma direção no processo de desenvolvimento. A afetividade constitui a energética da ação, ou seja, o interesse e a vontade que funcionam como reguladores da energia a qual impulsiona a conduta, e as estruturas de que a criança dispõe para agir correspondem às funções cognitivas. A partir dessa afirmação, conclui-se que o afeto é de fundamental importância na construção da inteligência, isto é, a afetividade corresponde aos sentimentos, às emoções, aos desejos e aos valores, que dão o suporte às ações.

De acordo com Piaget (1954) não existem estados puramente afetivos sem qualquer elemento cognitivo, assim como não existem comportamentos somente cognitivos sem elementos afetivos.

Ao relacionar os aspectos afetivo e cognitivo, tem-se que, na assimilação, o afeto é o interesse, a vontade em assimilar o objeto ao eu, enquanto que o aspecto cognitivo é a incorporação do objeto ao eu. Na acomodação, a afetividade está presente no interesse pelo objeto que é novo para ela e, quanto ao aspecto cognitivo, a acomodação consiste na modificação de um esquema ou estrutura da criança em função das particularidades ou resistência que o objeto oferece ao ser assimilado (Piaget, 1954).

Sob essa perspectiva, a criança se adaptará ao mundo em que ela vive quando houver um equilíbrio entre a assimilação e a acomodação (processo de equilibração) o que ocorre em relação à inteligência e a afetividade.

Para Claparède (1940), o desequilíbrio, que é o desencadeador do processo de equilibração, é gerado por uma impressão afetiva, a qual constitui a consciência de uma necessidade. Essa necessidade faz o sujeito agir e, essa ação termina quando a necessidade é satisfeita, isto é, funciona como um desencadeador da ação, uma vez que provoca uma ruptura no equilíbrio.

Piaget (1962) considera o afeto como condição necessária, mas não suficiente, para a constituição da inteligência, pois pode acelerar ou atrasar a formação das estruturas de inteligência, no entanto, não é a causa dessa formação. Nas suas palavras:

"Sentimentos de êxito ou de fracasso levam o aluno a uma facilidade ou uma inibição na aprendizagem da matemática. Porém, as estruturas das operações não são modificadas. A criança poderá errar, mas não inventará por isso novas regras de adição; ou compreenderá mais rápido que outros, mas a operação é sempre a mesma." (Piaget, 1962: 189)

Tais considerações reforçam a idéia de que a criança não é ora razão, ora emoção, como bem menciona o neurologista Damásio (1998) em sua obra "O erro de Descartes". O autor relata que o erro consiste exatamente na idéia da separação entre o corpo e a mente, o qual o contradiz, ao salientar que a emoção é essencial para a maquinaria subjacente à razão e à tomada de decisões.

Através dessas afirmações, salienta-se que, como bem colocou Mantovani de Assis (2004), a pedagogia construtivista, apoiada na teoria piagetiana, oferece o suporte necessário para orientar o professor sobre a importância da relação entre o afeto e a cognição para o desenvolvimento da criança. No entanto, quando se trata de uma educação tradicional, Piaget (1932) ressalta que a criança é submetida a maior parte do tempo, ou à autoridade dos pais, que impõem normas e tarefas, ou à autoridade do professor, que a disciplina por outras normas e novas tarefas. Resulta daí uma moral de obediência ou de heteronomia, o qual conduz a criança ao mais rigoroso conformismo social.

Desse ponto de vista, pode-se inferir que a criança nem sempre é percebida sob o aspecto cognitivo e afetivo, portanto, necessita de um meio para, diante das tensões, coações e autoritarismo por parte dos adultos, baseados nos moldes da educação tradicional, solucionar seus conflitos, sanar sua angustia, sua tristeza, ou seja, equilibrar-se afetivamente para interagir com o mundo a sua volta, de forma a desenvolver-se cognitivamente, já que, segundo Piaget (2002):

"Bem entendido, é sempre a afetividade que constitui a mola das ações das quais resulta, a cada nova etapa, esta ascensão progressiva, pois é a afetividade que atribui valor às atividades e lhes regula a energia. Mas a afetividade não é nada sem a inteligência, que lhe fornece meios e lhe esclarece fins...Na realidade, a tendência mais profunda de toda atividade humana é a marcha para o equilíbrio. E a razão, que exprime as formas superiores deste equilíbrio, reúne nela a inteligência e a afetividade." (Piaget, 2002: 65)

 

A pesquisa

As condutas de representação ou manifestações da função simbólica assumiram o papel de mediadores para a obtenção de elementos relacionados aos aspectos cognitivo e afetivo da criança.

Objetivo

Apresentar a avaliação do desenvolvimento cognitivo (noção de espaço, tempo e causalidade) e afetivo (características individuais, motivação, criatividade e curiosidade), realizadas por meio das condutas de representação da função simbólica.

 

Metodologia

Para o processo de avaliação Freitas (2006) considerou o apoio metodológico baseado no método clínico-crítico de Piaget (1926). Segundo o autor, o investigador deve estabelecer com a criança uma interação de forma que ela possa ficar à vontade para expressar-se livremente e, dessa forma, possibilitar a sua atuação de acordo com o conteúdo que ela traz naquele momento, seja por meio de suas ações ou de suas explicações.

A utilização do método clínico-crítico baseia-se, portanto, no pressuposto de que os sujeitos têm uma estrutura de pensamento coerente, constroem representações da realidade à sua volta e a revelam ao longo da entrevista ou de suas ações.

Procedimento

O procedimento é composto de duas etapas, onde cada etapa apresenta diferentes passos:

Antes de iniciar os atendimentos psicopedagógicos:

A criança é trazida ao SAIP pelos pais; preenche-se uma ficha de identificação com os dados da criança e de seus pais; para a autorização do uso das imagens, gravação e utilização dos dados, para a realização da pesquisa, é assinado um termo de compromisso pelos pais ou responsável; o atendimento psicopedagógico é individual e realizado em sessões semanais com a duração de cinqüenta minutos cada sessão.

Atendimentos psicopedagógicos:

Adequação do ambiente de atendimento psicopedagógico, por meio de materiais diversificados3 que possam ser suficientemente solicitadores para que a criança queira interagir com eles e, com isso, manifeste as condutas de representação da função simbólica; para a avaliação, procedeu-se da seguinte maneira:

A avaliação foi realizada enquanto a criança interagia com o material diversificado e manifestava as condutas de representação. Esse procedimento foi realizado em cada atendimento.

Quanto ao aspecto cognitivo observou-se se a criança apresenta as seguintes noções:

  • Espaço: identificar as posições em que se encontram bonecos, animais, carrinhos etc.; contornar os objetos dispostos no chão com carrinhos; dispor os objetos, de acordo com a sua organização espacial; representar graficamente um itinerário simples, etc.
  • Tempo: narrar as histórias que cria respeitando uma seqüência de acontecimentos; ordenar figuras constituindo uma seqüência lógica de fatos; determinar ações que habitualmente devem ser realizadas antes de outras; determinar ações que devem ser realizadas depois de outras; utilizar conceitos como já, agora; identificar acontecimentos ocorridos ontem, hoje e amanhã; etc.
  • Relações causais: descobrir os efeitos a partir da causa; descobrir a causa a partir dos efeitos; estabelecer relações de causa e efeito entre os acontecimentos.

Quanto ao aspecto afetivo, observou-se se a criança apresenta os seguintes aspectos:

  • Características individuais: alegria; tristeza; impulsividade, agressividade, etc.
  • Motivação: iniciativa; responsabilidade; realização de atividades propostas e escolhidas por si próprio; empenho para conseguir realizar as atividades em que encontra alguma dificuldade ou renuncia facilmente ao encontrar alguma dificuldade; orgulha-se do que faz; reflete antes de tomar decisões; capacidade de perseverar numa atividade durante certo tempo; concentração em uma atividade durante certo tempo ou durante um curto espaço de tempo.
  • Curiosidade: questionadora; observa os objetos que a cercam; interessada pelas coisas que conhece.
  • Criatividade: utilização dos materiais de maneira variada; idéias novas; flexibilidade; soluciona os problemas por diferentes caminhos.

Participante

As observações que seguem foram realizadas em GIL (pseudônimo), uma criança pré-operatória do sexo masculino, que esteve em atendimento psicopedagógico entre maio de 2005, quando estava com 5 anos e 10 meses, e março de 2006, aos 6 anos e 8 meses, por apresentar comportamento agitado em sala de aula, não aceitar regras, não atender as solicitações dos pais e demonstrar falta de motivação para ir à escola.

 

Resultados da avaliação do desenvolvimento cognitivo

Como forma de ilustrar o presente trabalho serão apresentados trechos de algumas das observações que contemplam o objetivo proposto. A investigadora é identificada por M..

Espaço

Pretende-se demonstrar como GIL apresenta-se quanto à noção de espaço no plano da inteligência representativa, uma vez que se espera que já tenha construído a noção prática de espaço e demonstre sinais de noção de espaço longínquo.

De um modo geral, foi possível observar que os movimentos de GIL, na sala de atendimento, atestam sua capacidade de desviar dos obstáculos ao contornar os móveis para pegar o que lhe interessa, entretanto, algumas vezes, foi possível presenciar a seguinte situação: quando chegava para o atendimento, em um corredor, ele tinha que entrar na primeira sala à esquerda, ele o fazia, no entanto, quando saia da mesma, virava à esquerda também. Nota-se que em termos de orientação, é possível comparar esse engano de GIL, com o cometido pela filha de Piaget, Jacqueline, aos 1;11 (10)4, a qual demonstrou uma noção de espaço, quanto à orientação, ainda centrada em torno de si quando, ao estar no caminho de volta para sua casa, situa-a atrás dela. Tais fatos retratam que, sem pontos de referência, a criança não consegue estabelecer um "na frente" e um "atrás" ou "esquerda" e "direita" absolutos, o que explica o engano de GIL.

Fato parecido pode ser verificado na obs. 09. quando GIL procurava uma peça pequena de lego, entre várias que estavam espalhadas ao seu redor, e, quando lhe é sugerido que a procure do seu lado direito, demonstra não ter estabelecido com segurança a orientação espacial e pergunta qual é o lado direito. Ao apropriar-se desse ponto de referência, consegue inferir qual é o lado esquerdo:

Obs. 09. Aos 6;1 (13) GIL joga as peças de lego no chão e, as mesmas, espalham-se ao seu redor. GIL: Cadê a peça? M: Será que está do seu lado direito. GIL: Qual é o direito? M: Com que mão você escreve? GIL: Essa. Mostra-me a mão direita. M: Esse é o seu lado direito. GIL: Um pequeno azul, que legal. Onde tá a peça branca? M: Será que do seu lado esquerdo tem uma peça branca? Observou a mão direita e logo virou para o lado esquerdo para procurar a peça branca. GIL: Achei uma.

Na obs. 02. é possível verificar como GIL representa os espaços próximos entre os objetos, ao dispô-los no chão para brincar:

Obs. 02. Aos 5;10 (2). GIL pega três ursos, um rinoceronte, um leão e dois aviões e senta-se no chão com eles. M: Quantos animais você pegou? GIL: Dois ursos pretos e um marrom, um rinoceronte, avião, avião e leão. Coloca-os em fila na seguinte seqüência: avião maior, avião menor, ursos e o leão. O rinoceronte ele coloca no meio das pernas dele. GIL: Esse manda nesse e nesse e esse manda nesse e nesse. Nesta observação verifica-se que ele elabora grupos objetivos de objetos ao organizá-los quanto às relações de proximidade, separação e ordem existente entre eles. Estabeleceu, nesse caso, uma ordem hierárquica entre os objetos, segundo seu ponto de vista, pois definiu qual manda mais e qual manda menos.

Ao construir uma torre com peças pequenas de lego, na obs. 09. aos 6;1 (13), GIL representa os deslocamentos do presidente em relação aos espaços representados por ele no interior da torre. GIL: O presidente mora aqui, se ele quiser ir na sala é aqui (aponta para o local), se ele quiser relaxar, é aqui (aponta outro local), se ele quiser comprar alguma coisa, ele desce no elevador (fala vários números).

Na obs. 16. GIL, organiza os objetos em relação ao espaço, ao considerar dois aspectos: o tamanho do animal e o quanto ele é bravo. Assim, estabelece uma relação de ordem e separação entre eles. Tal classificação demonstra o pensamento intuitivo de GIL que se prende a certos estados perceptíveis em detrimento de outros:

Obs. 16. Aos 6;2 (7) GIL coloca os bichos dentro das cercas e as ajusta de forma a acomodá-los. Separa-as em duas partes. M: Por que você fez duas cercas? GIL: É para eles não brigarem. Esse é grande então ele tem que ficar na parte grande e esse é mais pequeno então ele tem que morar na cerca pequena, esse é grande então ele tem que ficar na parte grande. O rinoceronte é gordo, um pouco grande e um pouco pequeno, mas ele é muito feroz, é tanto feroz que ninguém podia chegar perto dele, ele tem que morar sozinho.

Quando se trata de representar graficamente um itinerário simples, na obs. 11. GIL o faz em termos de suas próprias ações. Ao descrever o desenho, que ele fez, de um mapa para chegar em um pesqueiro, verifica-se que ele é capaz de ver uma coisa em relação à outra e imagina os deslocamentos até chegar ao destino. Lembra-se de onde deve partir e onde deve chegar, ainda que baseado em seu ponto de vista, uma vez que acredita que M., assim como ele, conhece os pontos de referência indicados por ele ao basear-se na sua percepção dos mesmos:

Obs. 11. Aos 6;1 (13). GIL: Você sai aqui (aponta a casa do lado esquerdo) na minha casa e vai, vai, vai até chegar aqui, aí sobe, sobe, sobe e você chega no pesqueiro.

Da mesma forma, na Figura 5.14, da obs. 23. GIL faz um desenho de uma árvore, que diz ser um mapa, caso M. queira ir na "reunião secreta" (na árvore). A sua representação refere-se a uma relação que estabeleceu entre o espaço interno do tronco e a maneira de deslocar-se por meio dele, o qual ele utilizou um elevador:

Obs. 23. Aos 6;3 (15). Enquanto desenha conta uma história. GIL: Quando chega meia noite todo mundo vai dormir, aí eu acordo e eu vou para o meu esconderijo. É uma árvore que tem uns galhos assim, ó. Mostra o desenho no papel. GIL: A gente entra sobe e o elevador sobe, sobe, sobe e aí fecha a porta e a gente chega na reunião. É uma casinha que tem na árvore.Se você quiser ir na reunião secreta, siga esse mapa.

Para representar suas histórias, foi possível verificar que GIL imprime movimentos aos seus personagens e os representa seguramente, por meio de seus próprios deslocamentos, de acordo com o cenário que cria. Tal fato pode ser exemplificado com a seguinte observação:

Obs. 12. Aos 6;1 (20). GIL pega uns aviões e ataca o leão. GIL: Iiii, sujo. Faz o avião voar e o derruba no chão. M: O que aconteceu? GIL: O avião caiu. Alerta, alerta. Pega uma nave azul. Emite sons. Faz a nave cair. Emite sons. GIL: De repente sabe quem apareceu? M: Quem? GIL: Um bicho mais feroz. Um tigre, um rinoceronte e um urso.Quero ver se eles conseguem destruir o leão. Até acabar o mundo ele é o mais forte. Será que eles vão conseguir deter o leão, o rei dos leões? Começa a bater no leão com o cano de papelão. Grita com ele. Bate na mesa e no chão com o cano de papelão. GIL: Atenção! A batalha vai chegar. Preparar suas marcas. Preparar, apontar...7,6,5,4,3,2,1 (fala através do cano) 1, 2, 3, em suas marcas. Preparar, apontar, fogo. Bate com força na mesa. Faz uma luta entre o rinoceronte e o leão. Derruba o leão. Joga os brinquedos pelo chão. Emite sons, joga os aviões longe. M: Quem vai conseguir acalmar esse leão? GIL: Você não sabe?Dois leões gêmeos vão conseguir deter ele. Todos têm medo dele. Emite um grito estridente, como se fosse o leão. Faz os outros animais se afastarem. M: Como será que esse leão vai conseguir se acalmar? GIL: Não tem jeito de se acalmar. Só morto ele se acalma. M: Será que não tem outro jeito? GIL: Só se tiver um paraíso para ele cheio de carne, muita carne. Emite o rugido do leão. GIL: Uuuaaauuu. Faz todos os bichos se afastarem. GIL: Os leões gêmeos voltam e arrancam o olho do leão e ele tá morto. Acabou.

As observações descritas revelaram que GIL apresenta uma noção de espaço compatível com a fase pré-operatória de desenvolvimento, a qual compreende o espaço próximo e demonstra indícios de noção de espaço longínquo. Dessa forma, GIL apresenta características que revelam a sua capacidade de ver uma coisa em relação à outra, de compreender as relações de proximidade, separação, ordem e continuidade existentes entre os objetos, ainda que, muitas vezes, baseado em seu ponto de vista.

Tempo

As condutas de representação de GIL demonstraram duas situações: relatos de histórias que cria por meio de uma seqüência de acontecimentos e narrações baseadas em fatos de sua vida, tanto aos que já ocorreram (memória evocativa) como aos que irão ocorrer.

Na obs. 07. GIL descreve uma seqüência de acontecimentos (antes e depois) sobre as ações do leão. Explica que para o leão comer um bicho, é necessário que ele o mate antes:

Obs. 07. GIL: Ué, o leão, ele pula nos bichos ele arranha, arranha e usa as garras dele e mata o bicho, primeiro ele mata e depois ele come.

Na obs. 08. GIL é capaz de prever uma seqüência de acontecimentos a partir de uma ação atual quando, ao brincar com a massinha, descreve que está fazendo um sorvete de água com gosto de gelo e afirma que todo mundo vai querer, porque é de graça. Pode-se pensar na possibilidade de GIL ter imaginado, de fato, esse sorvete de gelo, ao prever uma ação futura:

Obs. 08. Aos 6;1 (13). GIL pega a massinha. GIL: Olha o meu sorvete. M: Do que é o seu sorvete? GIL: É de água, tem gosto de gelo. M: E agora o que você está fazendo? GIL: Tô fazendo um boneco de sorvete e todo mundo vai querer ele. M: Por que? GIL: Porque todo o sorvete aqui nesse mundo é de graça. Não existe ainda esse sorvete, mas dá para fazer.

Ao narrar acontecimentos relacionados à sua vida, GIL demonstra sua capacidade de memória de evocação, ou séries representativas relacionadas a acontecimentos que englobam a lembrança da atividade própria, ou seja, a ação do eu entre os outros acontecimentos já ocorridos:

Na obs. 09. GIL lembra-se de situações que ocorrem na sua casa e, ao fazer uma menção ao tempo futuro, ainda o faz sem estabelecer uma relação adequada com o tempo atual, já que estava no mês de junho e dizia que:

Na minha casa eu sou empregado de todo mundo, nunca mais eu quero fazer isso. Eu só vou fazer as coisas de novo no mês de abril, no terceiro".

A obs. 10. demonstra a capacidade de evocação do tempo, quando GIL, ao manipular uma ferramenta de brinquedo igual a uma ferramenta de corte, lembra-se que nas férias foi "picado" por um siri quando estava caminhando na beira do mar:

Obs. 10. Aos 6;7 (4). GIL escolhe duas ferramentas de brinquedo. Duas chaves de corte, uma azul e outra preta. GIL: Acho que elas cortam o dedo, né? M: As de verdade eu acho que cortam, mas, e estas, o que você acha? GIL: Corta sim, é de ferro fininho então corta. Observa as ferramentas. GIL: Na praia um siri me picou, ele tem umas garras assim e ele me picou, eu não senti nada, eu tava com o pé na água. Só que quando eu sai da água eu vi a marquinha aqui ó.

Nas condutas de representação abaixo, GIL cria histórias respeitando uma seqüência de acontecimentos e narra fatos de sua vida, tanto os que já ocorreram (memória evocativa) como os que irão ocorrer:

Na obs. 01. aos 5;10 (2) pode-se verificar que GIL descreve uma seqüência de acontecimentos (antes e depois) sobre as ações do leão:

Obs. 01. GIL: Ue, o leão, ele pula nos bichos ele arranha, arranha e usa as garras dele e mata o bicho, primeiro ele mata e depois ele come.

Na obs. 03. aos 5;10 (9), GIL narra uma seqüência de acontecimentos lógicos, como estar doente e precisar de um hospital e um médico:

Obs. 03. "Quando o chefe tá doente ele precisa de um hospital e aí vem à doutora."

Verifica-se o mesmo na obs. 21, quando GIL, aos 6;3 (1), diz que tem que ter uma ambulância para carregar as pessoas doentes:

Obs. 21: Tem que ser os homens ruins, que eles vão explodir. Tem que ter ambulância para carregar as pessoas doentes.

Na obs. 12. GIL, aos 6;1 (20), representa uma seqüência de acontecimentos, entre os quais, refere-se a ações futuras como:

Obs. 12. "Até acabar o mundo ele é o mais forte. Será que eles vão conseguir deter o leão, o rei dos leões?" Em um certo momento, GIL, ainda na mesma observação, faz uma contagem regressiva e, em seguida uma progressiva: "Preparar, apontar...7,6,5,4,3,2,1 (fala através do cano) 1, 2, 3, em suas marcas. Preparar, apontar, fogo."

Na obs. 19. GIL utiliza os termos "rápido" e "dois minutos", ao representar uma série de acontecimentos:

Obs. 19. Aos 6;2 (28). GIL: Faltam dois minutos para o trem chegar. Ele faz assim (demonstra a rapidez dos macacos). M: Nossa ele é muito rápido mesmo. GIL:Ele tava irado demais. M: O que é irado? GIL: É que ele salvou um salvou outro, tão rápido, tão rápido, os outros animais ficaram doidos de tão rápido que eles eram.

Na obs 31. GIL, ao prever acontecimentos, como chegar na adolescência, refere-se a um tempo que não condiz com a realidade, entretanto, na obs. 33 faz o mesmo, mas indica um tempo distante realista:

Obs. 31. Aos 6;8 (4). GIL: Daqui a cem mil anos eu vou acampar porque eu vou ser adolescente, eu vou ter dinheiro, só que eu tenho medo de me perder e encontrar a anaconda.

Obs. 33. Aos 6;8 (18). GIL: Primo é forte musculoso e bonito. Eu tenho uma prima que é adolescente. M: O que é adolescente. GIL: É um cara grande, musculoso, forte bonito e lindo. M: Você também vai ser adolescente? GIL: Daqui uns dez anos. Meu primo tá na segunda série.

Em suma, verifica-se que GIL demonstra uma noção de tempo condizente com o estágio em que se encontra. Consegue narrar as histórias que cria por meio de uma seqüência lógica de acontecimentos, lembra-se de fatos relacionados à sua vida e os narra demonstrando sua capacidade de evocar o passado e prever acontecimentos futuros.

Relações causais

Entre a forma de pensamento pré-conceitual, que engendra o animismo e o artificialismo e a do pensamento operatório, que chega a uma causalidade por composição espaço-temporal, estende-se uma fase de pensamento intuitivo que conserva o caráter imagístico do primeiro e anuncia o segundo por suas articulações sucessivas.

A causalidade, no plano do pensamento intuitivo, é direcionada por um egocentrismo inicial que atribui a qualquer coisa à vontade, a força e a consciência de desempenhar seu papel.

Na obs. 01 verifica-se que GIL estabelece uma relação causal em três momentos: um deles refere-se ao leão que, para comer o bicho, tem que matá-lo; outra se refere ao fato do urso, que se torna furioso quando é do tamanho do armário; e, ao ser furioso, se o leão o irrita, ele o mata:

Obs. 01. Aos 5;10 (2). GIL: É um leão.Uuuaaaa. M: O que você acha do leão? GIL: Ele come. M: Ele come? O que ele come? GIL: Ué, o leão, ele pula nos bichos ele arranha, arranha e usa as garras dele e mata o bicho, primeiro ele mata e depois ele come. M: Por que ele faz isso? GIL: Porque ele é forte. M: Ele é forte? GIL: Ó, o leão, ah... os animais que matam o leão é....deixa eu falar...é exatamente o que mata o leão é o urso furioso. M: Por que? GIL: Quando o urso é do tamanho desse armário, do tamanho desse armário (abre os braços para representar o tamanho), quando ele é grande, desse tamanho aí o urso tá furioso. O leão irrita o urso e o urso mata o leão. Quando ele é desse tamanho do armário, daí o leão irrita o urso, o urso atira uma pedra aí ele morde, arranca um pedaço do leão e o leão morre e aí o urso mata o leão.

Apesar de, nessa fase de desenvolvimento, predominar uma noção de relação causal baseada em uma espécie de evolução viva atribuída às coisas, já se constituem explicações por identificação da substância, verificadas em GIL quando explica, na obs. 12., que se o leão é carnívoro e a galinha tem carne, então o leão come a galinha:

Obs. 12. Aos 6;1 (20). GIL: Dentes afiados né? uuuaaaauuu. O leão come galinha? M: O que você acha? GIL: Ele é carnívoro, come carne. A galinha tem carne? M: Tem. GIL: Então ela come galinha.

Ao mesmo tempo em que concebe uma relação causal como a descrita acima, na obs. 15. GIL, aos 6;2 (7), narra suas ações orientadas ainda pelo animismo, ao dotar de vida os carrinhos, quando se refere a eles como: "o amarelo vai ganhar"; "os carrinhos bateram e morreram todos"; "o carrinho ganhou o troféu e a medalha" e "o carrinho verde é do mal e o amarelo é do bem".

Na obs. 19. GIL, aos 6;2 (28), é questionado por M. quanto aos acontecimentos ocorridos no zoológico que criou. Coloca os animais na linha do trem e quando M. lhe pergunta o que pode acontecer com os mesmos ao estarem lá, GIL explica: M: O que você acha que pode acontecer com eles aí na linha do trem? GIL: O trem pode passar e cortar eles em mil pedaços. M: Mas isso vai acontecer? GIL: Isso não vai acontecer. Eles não ficam presos. Uuaa uuaa uuaa uuaa. M: Nesse zoológico os animais podem ficar soltos? GIL: É um zôo na selva, o zôo 66789. Esses animais podem ficar soltos porque eles são alegres. M: Eles ficam soltos por que eles são alegres? GIL:Eles não machucam um ao outro. M: Mas e se as pessoas forem passear nesse zoológico? GIL: Nem as pessoas eles machucam. Eles são muito alegres e as pessoas podem passear que eles nem vêem às pessoas de tão alegres que eles são.

GIL, aos 6;7 (11) na obs. 29., estabelece relações causais ao basear-se em seu ponto de vista de que quanto mais nervoso, mais rápido se resolve as coisas: GIL: Quanto mais nervoso a pessoa tá, mais rápido ela resolve as coisas. Ela fica mais acelerada e mais rápido aí ela mata o ladrão mais rápido.

Os relatos das observações descritas acima demonstram que GIL apresenta uma noção de causalidade compatível com o estágio de desenvolvimento que se encontra.

 

Resultados da avaliação do desenvolvimento afetivo

Nesta seção serão apresentados os resultados da avaliação do desenvolvimento afetivo quanto às características individuais, motivação, curiosidade e criatividade.

Características individuais

Esse relato apresenta as características individuais de GIL, que foram observadas nos atendimentos psicopedagógicos enquanto o mesmo, ao interagir com os materiais diversificados, manifestava as condutas de representação.

Assim, as observações foram direcionadas no sentido de se investigar as condutas de GIL quanto à alegria, tristeza, impulsividade e agressividade.

De um modo geral, pode-se considerar que GIL é uma criança alegre e demonstra isso em todos os atendimentos, ao chegar sorridente e ao expressar-se de maneira afetiva.

GIL demonstra um maior interesse pelos animais, principalmente o rinoceronte, o leão e o urso e, por meio deles manifesta a maior parte de suas condutas de representação. Muitas delas são direcionadas por uma certa impulsividade ou uma excitação que lhe conduzia muitas vezes a momentos de pura agressividade.

Tal fato pode ser verificado em várias observações, no entanto, como forma de exemplificar, pode-se verificar a obs 2. quando GIL representa uma briga entre os animais e os aviões e a luta é vencida pelo rinoceronte, que ele define como sendo "o maior nervoso que ninguém viu":

Obs. 02. Aos 5;10 (2). GIL: Os ursos tentam matar os aviões e não conseguem. Os três ursos e o leão são mortos pelos aviões. O rinoceronte consegue destruir os aviões. Esse estava na casa dele (o rinoceronte) ele é o mais bravo. Ele é o maior nervoso que ninguém viu. Ele foi e ....acaba com os aviões, o rinoceronte ganha a luta.

Na semana seguinte, na obs. 07. GIL, assim que chega na sala de atendimento, mostra sinais de sua impulsividade ou excitação ao emitir gritos fininhos ininterruptamente enquanto pega o rinoceronte e planeja a cena de sua história. As suas palavras demonstram seu estado afetivo:

Obs. 07. Aos 5;11 (13). GIL: O rinoceronte tá roubando a chave. M: Por que? GIL: Porque ele é malvado. Movimenta os brinquedos emitindo sons estridentes. Brinca com o cano de papelão, coloca-o na mesa. Pega a casinha e coloca o rinoceronte dentro e fecha a porta. M: Por que o rinoceronte está dentro da casa? GIL: Vou prender ele aqui dentro. M: Por que ele está preso aí dentro? GIL: É claro que é porque ele é malvado. Pega vasinhos de plantas, desencaixa a folhagem dos mesmos e os coloca para o rinoceronte jogando-os pela chaminé da casa. M: O que você está fazendo? GIL: Ele não come capim? M: O que você acha? GIL: Ele come mato. Usa o cano de papelão para jogar os vasinhos através dele. GIL: Vou jogar na cabeça do rinoceronte. Ele desmaiou. Ele é um besta e um idiota, eu dei um coro na cabeça dele. Repete várias vezes a mesma frase.

Na obs. 08. GIL, ao não ser atendido por M. em sua solicitação, lembra de acontecimentos em sua casa que o chateiam. Conta sobre eles demonstrando sua raiva e chateação a respeito do fato:

Obs. 08. Aos 5;11 (20). GIL escolhe a massinha para brincar. Começa a amassá-la com força. Parece estar irritado. GIL: Amassa para mim. (fala de forma imperativa). M: Será que você pode amassar sozinho? GIL: Lá na minha casa eu faço as coisas só que sempre eles pedem para eu fazer as coisas para o meu irmão, sempre, sempre. M: Quem pede? GIL: Meu pai e minha mãe. Quando eu não quero fazer para ele, eles me batem. Na minha casa eu sou empregado de todo mundo, nunca mais eu quero fazer isso. Eu só vou fazer as coisas de novo no mês de abril, no terceiro.

A obs. 12. demonstra claramente a impulsividade de GIL quando ele agride o leão em um primeiro momento e depois joga os brinquedos no chão:

Obs. 12. Aos 6;1 (20). GIL pega uns aviões e ataca o leão. GIL: Iiii, sujo. Faz o avião voar e o derruba no chão. M: O que aconteceu? GIL: O avião caiu. Alerta, alerta. Pega uma nave azul. Emite sons. Faz a nave cair. Emite sons. GIL: De repente sabe quem apareceu? M: Quem? GIL: Um bicho mais feroz. Um tigre, um rinoceronte e um urso.Quero ver se eles conseguem destruir o leão. Até acabar o mundo ele é o mais forte. Será que eles vão conseguir deter o leão, o rei dos leões? Começa a bater no leão com o cano de papelão. Grita com ele. Bate na mesa e no chão com o cano de papelão. GIL: Atenção! A batalha vai chegar. Preparar suas marcas. Preparar, apontar...7,6,5,4,3,2,1 (fala através do cano) 1, 2, 3, em suas marcas. Preparar, apontar, fogo. Bate com força na mesa. Faz uma luta entre o rinoceronte e o leão. Derruba o leão. Joga os brinquedos pelo chão. Emite sons, joga os aviões longe.

Embora as cenas de luta entre os animais seja mais comum, na obs. 19 GIL representa um zoológico na selva onde todos os animais são muito alegres e, por causa dessa alegria, um não machuca o outro:

Obs. 19. Aos 6;2 (28). Eu vou montar o zoológico. Emite sons de animais: GIL: uuaa uuaa uuaa uuaa...Organiza o zôo a seu modo. GIL: Aqui é o deserto onde passa a linha do trem. Todos os animais eram contentes. Faz a linha do trem e coloca os animais sobre ela. M: O que você acha que pode acontecer com eles aí na linha do trem? GIL: O trem pode passar e cortar eles em mil pedaços. M: Mas isso vai acontecer? GIL: Isso não vai acontecer. Eles não ficam presos. Uuaa uuaa uuaa uuaa. M: Nesse zoológico os animais podem ficar soltos? GIL: É um zôo na selva, o zôo 66789. Esses animais podem ficar soltos porque eles são alegres. M: Eles ficam soltos por que eles são alegres? GIL:Eles não machucam um ao outro. M: Mas e se as pessoas forem passear nesse zoológico? GIL: Nem as pessoas eles machucam. Eles são muito alegres e as pessoas podem passear que eles nem vêem às pessoas de tão alegres que eles são.

Na obs. 29. GIL, aos 6;7 (11), demonstra a idéia que tem a respeito da pessoa nervosa. Acredita que ser nervoso é sinônimo de ser rápido para resolver as coisas.

Obs. 29. Aos 6;7 (11). GIL: Quanto mais nervoso a pessoa tá, mais rápido ela resolve as coisas. Ela fica mais acelerada e mais rápido aí ela mata o ladrão mais rápido.

Entretanto, na obs. 31. GIL sabe que para conseguir fazer as coisas é preciso ter calma:

Obs. 31. Aos 6;8 (4). GIL: Quando as coisas dão certo pra mim, fica tudo bem, e quando não dá certo, meu pai vem conversar comigo e eu fico irritado. Eu quebrei a lanterna do meu pai e aí eu fico meio feliz, meio triste e meio arteiro. Se eu fico calmo as coisas dão certo. Enquanto fala tenta fazer cesta. GIL: Olha, eu fiz uma cesta, deu certo porque eu tava calmo.

A partir dessas observações, verifica-se que GIL, por meio de suas representações, demonstra atitudes mais impulsivas, no entanto, percebe-se que paralelamente algumas atitudes mais amenas começam a surgir até que, finalmente, a última observação demonstra que GIL compreende que para conseguir fazer as coisas é preciso ter calma.

 

Motivação

GIL é uma criança que não se contenta em observar as coisas, sente necessidade de agir e verifica-se que tem muita energia para tal. Nota-se que ele se sente atraído por novidades, e, nesse sentido, as caixas de materiais diversificados serviram-lhe como um meio para manifestar suas condutas de representação. A partir dessas condutas, várias características relacionadas à motivação puderam ser observadas.

GIL apresenta iniciativa quando chega ao atendimento e imediatamente inicia suas atividades sem que M. solicite. Demonstra ser responsável em relação aos objetos que utiliza, pois sabe preservá-los. Quanto a guardá-los, inicialmente não realizava essa tarefa, mas, aos poucos, essa atitude passou a fazer parte de seu repertório.

Um bom exemplo de motivação pode ser encontrado na obs. 19. quando GIL, aos 6;2 (28), empenha-se para conseguir guardar todas as peças de um zoológico na caixa e fechá-la. Tal atividade exigiu dele reflexão e capacidade de perseverar numa atividade por certo tempo, mesmo ao encontrar dificuldade, pois as peças da caixa não podiam ser guardadas aleatoriamente, o que o fez colocá-las e retirá-las da caixa por diversas vezes.

Um outro exemplo que demonstra a motivação de GIL pode ser encontrado na obs. 09. quando escolhe o pote de peças de lego para brincar. Montar uma torre com peças pequenas de lego (GIL: É a torre mais alta onde o presidente mora.) é uma tarefa que exige reflexão, empenho e concentração, uma vez que é preciso dispor as peças de modo que a estrutura possa se equilibrar no chão e é necessário achar as peças certas entre várias outras.

Verifica-se que GIL, na maioria de suas histórias, independentemente de seu conteúdo, conduzia-as por meio de uma seqüência de acontecimentos que indicavam uma necessidade em chegar ao fim. Pode-se inferir que essas atitudes são impulsionadas pela motivação, sem a qual não haveria como explicá-las. Como exemplos, tal fato pode ser verificado nas seguintes observações:

Obs. 16. Aos 6;2 (7). GIL faz uma jaula. GIL: Que bicho você tem pavor desses (mostra o rinoceronte, o tigre e o leão)? M: Acho que todos esses bichos são perigosos. GIL: E disso você tem pavor, é um ganso, ele morde, ele é bravo. Você tem pavor dele, só que esse é bonzinho, ele não vai fazer nada. E esse você tem pavor (mostra três ursos)? M: esses também são perigosos, o que você acha? GIL: Da pavor. Coloca os bichos dentro das cercas e as ajusta de forma a acomodar os bichos. Separa-as em duas partes. M: Por que você fez duas cercas? GIL: É para eles não brigarem. Esse é grande então ele tem que ficar na parte grande e esse é mais pequeno então ele tem que morar na cerca pequena, esse é grande então ele tem que ficar na parte grande. O rinoceronte é gordo, um pouco grande e um pouco pequeno, mas ele é muito feroz, é tanto feroz que ninguém podia chegar perto dele, ele tem que morar sozinho. Coloca dois ursos pretos menores juntos e o leão, o tigre e o urso maiores juntos. GIL: Já sei, o rinoceronte é tão bravo que ele batia na jaula até ela quebrar. Agora tá tudo certo aqui. GIL: O leão pula? M: O que você acha? GIL: O leão pula muito alto? M: O que você acha? GIL: Ele pula muito alto, pulou na jaula do rinoceronte, só que ele é muito bravo então o leão voltou para a sua jaula. Um dia o rinoceronte estava tão bravo, tão bravo que ele destruiu todas as jaulas. M: E o que aconteceu? GIL: Todos os bichos estavam libertados. É que o rinoceronte queria ser libertado. Ele queria fazer uma luta com eles. Fica parado e pensa. GIL: Sabe quem ia ganhar? M: Quem? GIL: O leão, não, todo mundo ia ver o sucesso do urso. M: Mas então quem ia ganhar? GIL: O leão ia ganhar, mas o urso ia lutar primeiro com o rinoceronte, mas ele ia morrer. Emite o som da luta. GIL: O rinoceronte matou o urso, furou o olho do urso e o urso morreu. M: E agora? GIL: Os dois ursos pretos foram juntos. Próximos, diz o rinoceronte. Eu sou o primeiro. Faz uma luta entre o urso preto e o rinoceronte GIL: Ele fura o olho do urso e mata ele. O outro urso vem, morreu.Vem o tigre, tigre da garra de ferro. Ele quase ia matar o rinoceronte, mas ele é que matou o tigre. Sabe como chama esse leão? M: Como? GIL: O leão da garra de ferro. De dia ele podia ver mais ainda e de noite ele podia ver muito mais ainda. Ele cortou o espeto do rinoceronte e mordeu ele e ele morreu. M: O que é espeto do rinoceronte? GIL: Isso aqui ó. Mostra o chifre do rinoceronte. GIL: Acabei.

Obs. 26. Aos 6;4 (19). GIL escolhe os animais para brincar. GIL: Eu quero brincar de briga de bichos. Eu não sabia que tinha tantas cercas.Rinoceronte contra o urso. Os animais que são selvagens vão torcer para o rinoceronte e os animais que não são selvagens vão torcer para o urso. Monta o cenário com os animais, de um lado os selvagens e do outro os não selvagens.GIL: Aqui é o rei leão, o mais forte de todos. M: Por que ele é mais forte? GIL: Porque ele é o mais forte, mais poderoso mais rapidoso. M: O que é rapidoso? GIL: É rapidez de rápido. M: Que animal é esse? GIL: Esse é o veado. Coloca-o ao lado dos animais selvagens. M: O veado é um animal selvagem? GIL: Ele é selvagem, mas ele é bonzinho. Sabe qual vai ganhar? M: Qual? GIL: É o urso. Ele escala? M: O que você acha? GIL: Não sei. E o rinoceronte escala? M: O que você acha? GIL: Acho que não. Sabe qual é o urso mais poderoso? M: Qual? GIL: O urso do gelo. O rinoceronte é metade gelo e metade fogo. Pode mudar de lugar pode ser fogo na frente e gelo atrás ou fogo atrás e gelo na frente. O urso panda ele tem uma pele preta e quando o olho dele fica preto ninguém consegue ver ele. E ele tem uma garra de metal que solta uma corda para ele prender em outro lugar e para ele passar para outro lugar. O rinoceronte vai ganhar. M: Você não falou que o urso ia ganhar? GIL: Mas é o rinoceronte. M: Por que? GIL: Porque ele tem um chifre que tem um poder dele. O poder do chifre é que ela é de metal e o metal vai no urso e ele vira gelo. Esses todos animais, o rinoceronte já matou eles estão mortos. M: Quantos sobraram? Conta-os. GIL: Sobraram oito. Um, dois, três e já, agora o vencedor será...quem ganhar vai ganhar Um...quatro, três, dois, um. Começa a luta. O rinoceronte e o urso brigam. O juiz leão diz: Cinco, quatro, três o urso bate no leão. O rinoceronte matou o urso, o rinoceronte venceu.

Curiosidade

GIL é uma criança curiosa, pois logo que chega na sala de atendimento, percebe-se que a primeira coisa que faz é observar os brinquedos para ver se há alguma novidade. Quando a encontra, manipula o objeto e questiona sobre ele, quando sente necessidade.

A obs. 19. retrata a curiosidade de GIL quando, logo ao chegar na sala de atendimento, vai direto ao encontro da caixa que contém peças de zoológico. Abre a caixa para ver o que tem dentro e, ao não perceber do que se trata, questiona sobre o conteúdo:

Obs. 19. Aos 6;2 (28). M. traz para o atendimento uma caixa com peças de zoológico e a coloca com os brinquedos. GIL interessa-se pela caixa, abre-a e retira as peças. M: Você sabe o que é isso? GIL: Uma família de dinossauros. M: Será? Vamos ver. GIL: O que é? M: É um zoológico. Você sabe o que é um zoológico? GIL: É onde tem animais. Eu pensei que era uma escada. Eu vou montar o zoológico.

Na obs. 28. M. acrescenta brinquedos novos e GIL, aos 6;7 (4), percebe-os tão logo entra na sala de atendimento. Entre eles, escolhe duas ferramentas de plástico para brincar, as quais observa, manipula e questiona sobre as características delas:

Obs. 28. "GIL: Acho que elas cortam o dedo, né? M: As de verdade eu acho que sim, mas e essas o que você acha? GIL: Corta sim, é de ferro fininho então corta".

Na obs. 30. GIL, aos 6;7 (11), questiona se tem animais novos e na obs. 31. M. acrescenta uma cesta de basquete aos brinquedos e GIL, aos 6;8 (4), identifica-a, ao escolher para brincar. Na obs. 33. a curiosidade de GIL, aos 6;8 (18), leva-o a questionar se M. tem primos, uma vez que desejava compartilhar suas idéias a esse respeito.

Obs. 33. Aos 6;8 (18). GIL: Quantos primos você tem? M: Não sei dizer, tenho vários. E você? GIL: Eu tenho cem primos. Tem alguns primos que eu não conheço. Desde a barriga da minha mãe eu imaginei que eu queria ter muitos primos. Primo é forte musculoso e bonito. Eu tenho uma prima que é adolescente. M: O que é adolescente. GIL: É um cara grande, musculoso, forte bonito e lindo. M: Você também vai ser adolescente? GIL: Daqui uns dez anos. Meu primo tá na segunda série.

Criatividade

Embora a maioria das representações de GIL demonstre um conteúdo parecido, é possível verificar que em todas elas ele foi criativo em relação a idéias e à utilização de materiais diversificados. É possível verificar tal fato nas observações que serão descritas abaixo.

Na obs. 05. GIL, aos 5;11 (6), escolhe uma placa de isopor que lhe inspira idéias em relação ao seu uso na brincadeira:

Obs. 05. GIL: O isopor é o lugar onde os animais vão matar um ao outro para comer. Depois serve de base para colocar os animais e, por último, serve como um locar para guardar os carrinhos nos compartimentos.

Obs. 07. GIL, aos 5;11 (13), desencaixa as plantinhas dos vasinhos para servir de comida para o rinoceronte, utiliza-as como "mato". Mais tarde, pega um cano de papelão e usa-o para mirar a chaminé da casa e a cabeça do rinoceronte, para atingi-lo com os vasinhos que jogava através do cano.

Na obs. 10. GIL, aos 6;1 (13), representa sua imaginação ao moldar um boneco que diz ser um sorvete de água com gosto de gelo.

As cercas que fazem parte da caixa do zoológico são utilizadas por GIL aos 6;2 (28), na obs. 19, de duas maneiras diferentes. Utiliza-as como trilho da linha do trem e como escada:

Obs. 19. GIL: Aqui é o deserto onde passa a linha do trem; GIL: Vou montar uma escadinha.

Na obs. 22. GIL, aos 6;3 (15), utiliza um tecido grande para enrolar-se e representar uma cena de guerra que estava criando:

Obs. 22. GIL: Você me enrola aqui?

GIL, aos 6;8 (25), utiliza novamente os canos de papelão na obs. 38. para fazer uma luneta:

GIL: É minha luneta, eu tô espionão tudo, vou me esconder e ninguém vai me ver.

Na obs. 39. GIL, aos 6;8 (25), interessa-se pela estola amarela, ao usá-la para fazer uma juba de leão:

Obs. 39. GIL: Uuuaaauuu eu sou um leão mais forte da selva.

 

Conclusões finais

Os estudos realizados a partir da teoria construtivista de Piaget, acerca do desenvolvimento da criança, fundamentaram a realização deste trabalho. Piaget (2002) explica a passagem do estágio sensório-motor para o pré-operatório baseado, principalmente, em seus estudos sobre a psicogênese das condutas de representação da função simbólica.

Nesse período, a inteligência da criança constitui-se de pensamentos que passam a ser representados por meio da linguagem (signos coletivos), dos símbolos individuais (imitação diferida, imagem mental e jogo simbólico) e do desenho, que são as manifestações ou condutas de representação da função simbólica. Por meio delas, a criança tem a possibilidade de criar um mundo de faz-de-conta, na medida de seus desejos, como forma de atender as suas necessidades.

Evidenciou-se, dessa forma, a possibilidade de assumir as condutas de representação da função simbólica como um meio de avaliação e intervenção em atendimentos psicopedagógicos (Freitas, 2006). O presente trabalho teve como objetivo, apresentar a avaliação do desenvolvimento cognitivo e afetivo de GIL.

Nesse sentido, por meio das condutas de representação, foi possível verificar que GIL organizou suas ações e narrações mediante a noção que ele tem de espaço, tempo e causalidade, o qual possibilitou avaliá-las.

Em relação às noções de espaço e tempo próximos, adquiridos por GIL no plano da inteligência prática, foi possível identificar em todas as observações analisadas e, quanto às noções de espaço e tempo longínquos, que exige uma nova construção no plano da representação, verificou-se que GIL começou a percebê-los. Tal fato sugere que o mesmo consegue estabelecer relações entre o espaço e tempo inseridos no universo.

Quanto às relações causais, dentre as observações transcritas, foi possível identificar duas situações: quando GIL atribui vida aos objetos, como na obs. 13. e quando demonstra a capacidade de estabelecer relações de causa e efeito baseados em uma certa lógica, como nas observações 11. e 12.

Tais resultados indicam que GIL possui noções de espaço, tempo e causalidade condizentes com o seu estágio de desenvolvimento.

Em relação à avaliação do desenvolvimento afetivo, as observações das condutas de representação manifestadas por GIL demonstraram que o mesmo utilizou, principalmente, os animais para representar seu estado afetivo (leão, urso e rinoceronte). Ao traçar um paralelo entre o fato de GIL promover lutas entre tais animais (caracterizados por ele como fortes, poderosos, nervosos, irritados), quando sempre um ganha e, o fato dos pais5 o caracterizarem como temperamental e nervoso, supõe-se que GIL, por meio das manifestações da função simbólica, expressou-se livremente quanto a esses sentimentos.

Pôde-se notar que o mesmo, ao representar momentos de sua vida, relacionados tanto a situações agradáveis como desagradáveis, extravasou seus sentimentos e, ao mesmo tempo, demonstrou sua motivação, curiosidade e criatividade.

Diante da importância das manifestações ou condutas de representação da função simbólica e dos resultados obtidos, sugerem-se contribuições importantes que podem ser consideradas por pais e educadores interessados no desenvolvimento da criança, tais como: oferecer à criança um ambiente rico em materiais diversificados, sem que para isso haja um custo que o inviabilize, já que os materiais não estruturados como caixas, potes plásticos, canos de papelão, fitas coloridas, papel e lápis de cor podem ser de grande valia para a criança criar e representar; possibilitar à criança um tempo apropriado para manifestar-se a partir do material disponível, já que a brincadeira é uma atividade lúdica séria e requer respeito, visto que a criança enquanto brinca elabora seus conflitos e satisfaz seus desejos e necessidades e, ao mesmo tempo, enquanto joga simbolicamente, imagina, imita e narra as histórias que cria, situa-se no espaço, no tempo e estabelece relações causais, o que lhe permite assimilar o universo de forma cada vez mais objetiva; ao invés de oferecer soluções prontas para qualquer problema da criança, deve-se procurar questioná-la sobre suas ações e narrações como forma de favorecer o desencadeamento do processo de equilibração cognitiva e o desenvolvimento afetivo. À medida que a criança é levada a refletir sobre o que faz e o que sente, formula respostas, resolve seus conflitos, isto é, desencadeia-se uma importante construção cognitiva e afetiva.

 

Referências bibliográficas

Claparède, É. (1940). A educação funcional. Trad. por J.B. Damasco Penna. 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional. (Original publicado em 1931).

Damásio, A. (1998). O erro de Descartes. Lisboa : Publicações Europa América.         [ Links ]

Delval, J. (1998). Crescer e Pensar: a construção do conhecimento na escola. Trad. por Beatriz A. Neves. Porto Alegre: Artes Médicas. 241p.

Freitas, M.L.L.U. (2006). A Função Simbólica Como Um Meio Para Avaliação e Intervenção em Atendimentos Psicopedagógicos: Um Estudo de Caso. Dissertação de Mestrado. Campinas. Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. 238p.

Mantovani de Assis, O. Z. e Assis, M. (Org.) (2004). PROEPRE: prática pedagógica. 3ª.edição. Campinas, SP: Graf. FE; LPG.         [ Links ]

Piaget, J. (1926). A Representação do Mundo na Criança. Trad. por Rubens Fiúza. Rio de Janeiro: Record. 318p.

Piaget, J. (1932). O julgamento moral na criança. Trad. por Elzon Leonardon. São Paulo: Editora Mestre Jou. 304 p.

Piaget, J. (1954). 'Lês relations entre l'aflectivité et l'intelligence dans lê développement mental de l'enfant'. Bulletin de Psychologie (Paris), vol. VII, núm. 3-4, pp. 143-150, num. 9-10, pp. 522-535, num. 12, pp. 69-701. Trad. do francês por Silvia Pasternac.

Piaget, J. (1962). 'La Relación del Afecto con la Inteligencia en el Desarrollo Mental del Nino'. The Bulletin of Menninger Clinical, vol. 26, pp. 129-137. Trad. por Jorge Zavaleta.

Piaget, J. (1969). Tratado de Psicologia Experimental: A inteligência. Trad. por Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Forense, volume VII.

Piaget, J. (1975). A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação. Trad. por Álvaro Cabral e Christiano M. Oiticica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar; Brasília: INL. 370 p.

Piaget, J. (1977). O Desenvolvimento do Pensamento. Equilibração das Estruturas Cognitivas. Trad. do francês por Álvaro de Figueiredo. Lisboa: Publicações Dom Quixote. 227 p.

Piaget, J. (1996). A construção do real na criança. Trad. por Álvaro Cabral, 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores. 392p.

Piaget, J. (2002). Seis estudos de psicologia. 24ª ed. Rio de Janeiro: Florence, 2002, 136p.         [ Links ]

Piaget, J. e Inhelder, B. (1974). A psicologia da criança. Trad. por Octávio M. Capajo. São Paulo: Diefel.

Ramozzi-Chiarottino, Z. (1994). Em busca do sentido da obra de Jean Piaget. 1ª ed. São Paulo: Ática. 128p.         [ Links ]

Vinh-Bang, (1990). 'A Interveção Pedagógica'. In: Archives de Psychologie, Hommage à Pierre Gréco. Vol. 58. Trad. por Carmen C. Scriptori e Lia L. Zaia. Genève: Editions Médecine et Hygiène.

 

Notas

M.L.L.U. de Freitas
E-mail para correspondência: mluisafreitas@uol.com.br.

(1) SAIP é formado por cinco pedagogas e uma psicóloga, integrantes e pesquisadoras do LPG.

(2) Segundo Piaget (1969), operações são ações interiorizadas (reunir, dissociar, ordenar, etc.) que se podem desenrolar nos seus dois sentidos (reversibilidade) e são sempre estruturadas em sistemas de conjunto, sendo derivadas das estruturas precedentes. Essas operações surgem no estágio operatório concreto, por volta dos sete, oito anos, quando a criança admite a existência de invariantes, ou seja, quando ela concebe a ação transformante como reversível, o que leva à construção de uma estrutura operatória de conjunto, do tipo "agrupamento". O agrupamento provém de uma organização do sistema, que abrange uma operação direta (transformação), sua inversa (retorno) e a operação idêntica (transformação nula).

(3) O material diversificado foi apresentado por meio de caixas cujo conteúdo de cada uma era diferenciado. Caixa 1: casinha, carrinhos, bonecos, caminhão de madeira, etc; Caixa 2: animais e cercas; Caixa 3: papel branco, cartolina, papel dobradura, etc; Caixa 4: livros de histórias; Caixa 5: fantoches, máscaras, estola de pelo amarelo, etc. Caixa 6: material não estruturado; Caixa 7: bloquinhos do tipo lego, formas geométricas de encaixar, etc.; Caixa 8: bonequinhos (família) e móveis de casa.

(4) 1;11 (10) refere-se à 1 ano, 11 meses e 10 dias.

(5) Essas Informações foram trazidas pelos pais de GIL em entrevista de anamnese realizadas em Freitas (2006).

Creative Commons License