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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.12  Rio de Janeiro nov. 2007

 

Artigo Científico

 

Infância, cinema e leitura: um tripé viável

 

Childhood, cinema and reading: a possible tripod

 

 

Lovani VolmerI, II; Flávia Brocchetto RamosI, III

IUniversidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil;
IICentro Universitário Feevale, Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, Brasil;
IIIUniversidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil

 

 


Resumo

A indústria cultural assimilou o público infantil, de modo que, na atualidade, há, cada vez mais, oferta de produtos culturais voltados para a infância e, por conseguinte, uma preocupação em torno desses produtos. O presente artigo, nesse sentido, objetiva analisar, a partir de pesquisa realizada com 4 crianças, procedimentos empregados durante sessão de filme infantil - Shrek 1. Buscou-se refletir sobre os sentidos produzidos a partir do seu enredo e como percebem a desestereotipização de conceitos preestabelecidos pela sociedade vigente. Para tal, apresenta-se um breve estudo acerca da produção cultural infantil, a contextualização do filme, as observações e comentários das crianças, acompanhados da análise propriamente dita. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: ??-??.

Palavras-chave: infância; produção cultural; produção de sentidos.


Abstract

The cultural industry got the children in a way that, nowadays, it is growing the offering of cultural goods to that public and the worries about these products, as well. This article aims to analyze, from a research dare with 4 children's, the processes that happened during a children's film session - Shrek 1. We wanted to think about the senses produced from the plot, and also how the children perceive the undo of stereotyped concepts in the society today. Thus, we present a brief study about children's cultural productions, the film contextualization, the comments and observations from the kids, followed by analyzes. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: ??-??.

Keywords: childhood; cultural production; construction of meaning.


 

 

Introdução

A comunicação humana, ao longo da história, passou por muitos processos. Inicialmente, os homens comunicavam-se entre si apenas oralmente, depois veio a escrita, a cultura impressa e hoje estamos em plena cultura eletrônica. O tratamento dispensado às crianças, igualmente, passou por muitos processos e hoje, cada vez mais, há uma preocupação em torno de produtos culturais voltados para a infância.

Nesse ínterim, o presente estudo pretende analisar, a partir de observação realizada com 4 crianças, a leitura que fazem de um filme a elas dirigido - nesse caso, Shrek 1, que sentidos produzem a partir do seu enredo e como percebem a desestereotipização de conceitos preestabelecidos pela sociedade vigente. Com o intuito de elucidar tais questões, apresentar-se-á um breve estudo acerca da formação cultural da criança, a contextualização do filme, as observações e comentários das crianças, acompanhados da análise propriamente dita. Os dados discutidos no artigo nascem da análise de uma situação familiar em que 4 crianças e um familiar assistiram a um filme e, para fins de análise, seguem princípios do estudo de caso, uma modalidade de pesquisa qualitativa que vem ganhando crescente aceitação na área da educação.

 

A formação cultural da criança

A concepção de infância, tal como a conhecemos, data do final do século XVII, no início da formação da burguesia, e caracteriza a criança, em diferentes contextos históricos, como um vir-a-ser (Ketzer, 2003), ou seja, o mundo do adulto se diferencia significativamente do mundo da criança. Essa realidade, porém, nem sempre foi assim; até a Idade Média não havia nem mesmo um vocábulo específico para designá-la, era vista como um adulto menor e o esforço social consistia em integrá-la o mais rápido possível na vida adulta (Merten, 2003). A esse respeito, podemos, ainda, destacar Zilberman:

"Antes da constituição deste modelo familiar burguês, inexistia uma consideração especial para com a infância. Esta faixa etária não era percebida como um tempo diferente, nem o mundo da criança como um espaço separado. Pequenos e grandes compartilhavam dos mesmos eventos, porém, nenhum laço amoroso os aproximava. A nova valorização da infância gerou maior união familiar, mas igualmente os meios de controle do desenvolvimento intelectual da criança e a manipulação de suas emoções." (Zilberman, 1998:15)

Como podemos ver, essa nova concepção de infância não considera mais a criança como um adulto em miniatura, quando o que era útil para um adulto também o seria para a criança. A realidade do infante é diferente da do adulto, "assim como a sua mente não é a mente de um adulto em escala menor" (Vigotski, 2003: 12); é todo um processo, um modo de vida que leva a criança a passar gradativamente de uma posição subjetiva e egocêntrica para outra, mais objetiva e científica. Esse processo é definido por Piaget (1980), como períodos de desenvolvimento, que, na sua concepção, seriam quatro: período sensório-motor (0-2 anos), período pré-operacional (2-7 anos), período operacional-concreto (7-11 anos) e período de operações formais (11-15 anos).

Na atual sociedade capitalista em que vivemos, não é equivocado afirmar que a concepção de infância está diretamente relacionada à classe social a que a criança pertence e, nesse sentido, a sua formação cultural depende também desse fator. Assim, poderíamos dizer que as crianças burguesas são instrumentalizadas para dirigir a sociedade e as crianças da classe trabalhadora formadas para o trabalho; a cultura é coisificada, tornando-se produto que serve tanto para a distinção de classes, como para a alienação e dominação das maiorias. A cultura aparece como sendo simplesmente o resultado de um processo, a herança social, o dado acabado, o objeto estático. Os produtos culturais seriam a expressão de um modo de vida determinado que, enquanto tal, se explicam e se justificam. Reduzido a produto das relações sociais, não se incluiriam no conceito de cultura nem as próprias relações sociais nem os seus determinantes (Perroti, 1990). A coisificação da cultura determina a inserção desta no mundo da produção capitalista, na qual se quantificam, secularizam, normatizam e mercantilizam os bens produzidos nas relações de trabalho humanamente significativas. Desse modo, a cultura exerce uma função domesticadora e repressiva nas sociedades divididas em classes, exercendo o papel de veiculação dos conteúdos ideológicos das classes dominantes para todas as classes sociais.

Nesse contexto, a criança assume o papel de consumidora de bens culturais impostos socialmente, pois somente assim poderá tornar-se um "ser humano evoluído", adaptado às regras da sociedade e capaz de assumir suas funções sociais. Conforme Umberto Eco (1976), criam-se "estruturas de consolação"; oferece-se à criança a possibilidade de ela viver através de produtos culturais aquilo que a expansão capitalista lhe nega no real: o roubo do espaço e o bloqueio do lúdico - tenta-se compensar o real com o simbólico. Em outras palavras, a indústria cultural, que ajuda a construir significados simbólicos, encontra-se intimamente vinculada aos ditames impostos pelas leis de mercado.

Com o advento do neoliberalismo e da globalização do capital, o mercado passou a incorporar todos os segmentos da sociedade sob a lógica do consumo, desde recém-nascidos até idosos, independente de etnia, raça, credo, classe ou gênero. O mercado observa no público infantil um consumidor potencial de mercadorias culturais e não culturais, criando, dessa forma, condições para se consolidar uma rede de comércio que atenda a demanda de consumo desse novo público. Esse mercado infantil constitui-se desde produtos tradicionais (brinquedos, livros) até a adaptação de produtos adultos e de consumo familiar. A indústria cultural assimilou o mercado infantil, que tem se expandido desde a década de 1980, para a comercialização de bens simbólicos através da segmentação dos meios de comunicação, por exemplo. Nesse sentido, os produtos culturais comercializados para este público formam uma cadeia inesgotável de produção e massificação de mercadorias. Exemplo disso são os desenhos animados explorados pela mídia, produzidos a partir de agenciamento de empresas que irão elaborar, produzir e comercializar uma infinidade de produtos timbrados com o nome dos mais novos ídolos infantis da moda. Um exemplo dessa produção cultural para crianças é o filme Shrek, com o qual a DreamWorks firma-se como produtora de filmes infantis da melhor qualidade e cujo diferencial está no uso de recursos de computação que torna os personagens, visualmente, quase reais. Eles têm movimentos e recriações de músculos, pele, ossos e cabelos.

 

O filme Shrek

O enredo

Em Shrek1, é contada a história de um ogro solitário, Shrek, que vive em um pântano distante e vê, sem mais nem menos, sua vida ser invadida por uma série de personagens de contos de fada, como três ratos cegos, o lobo de Chapeuzinho Vermelho disfarçado de vovó, três porquinhos, Pinóquio, sete anões e a Branca de Neve, fadas... Todos foram expulsos de seus lares pelo maligno Lorde Farquaad. Determinado a recuperar a tranqüilidade de antes, Shrek resolve encontrar Farquaad e com ele faz um acordo: todos os personagens poderiam retornar aos seus lares se ele e seu amigo Burro resgatassem uma bela princesa, prisioneira de um dragão, com quem Lorde pretendia se casar. O filme em questão foge, em alguns pontos, de estereótipos da sociedade; conceitos, comportamentos já estabelecidos socialmente são aqui contrapostos. Sob esse aspecto, poderíamos até considerar Shrek como um conto de fadas moderno; oferece ao espectador a possibilidade de rever conceitos. A princesa Fiona esperava que o príncipe que a encontrasse lhe recitasse um poema épico, mas Shrek apenas a põe embaixo do braço e sai correndo para fugir do dragão, sem romantismo. A Princesa Fiona, por sua vez, apesar de ainda ter certa fantasia em relação ao cavaleiro que a salvaria, também é uma mulher decidida, dá golpes para fugir dos inimigos, salta e até arrota, diferentemente das princesas apresentadas nos contos de fadas, que eram totalmente frágeis e românticas. O final, como os clássicos contos de fadas, é feliz e alerta que as diferenças entre as pessoas devem ser respeitadas: Shrek e Fiona, após passarem por muitos desafios, ficam juntos, como ogros, e são felizes para sempre. Casam-se numa bela cerimônia com a presença animada das personagens de contos de fadas que haviam invadido o pântano e, a seguir, em uma carruagem, vão para a lua-de-mel.

O esquema tradicional do conto maravilhoso, proposto por Propp (1984), em que há herói, auxiliar, antagonista e princesa, é subvertido aqui. O príncipe, nessa história, assume o papel de antagonista. O ogro Shrek, que seria o antagonista é o herói da narrativa. A princesa Fiona não segue o padrão de princesa que temos no nosso imaginário - é gorda, morena, baixa, cabelos curtos - e transforma-se em ogra. O burro, animal caracterizado pela falta de iniciativa, é o auxiliar do herói Shrek. Há uma subversão da estrutura clássica dos contos de magia apontada por Propp, já os personagens dessa narrativa moderna correspondem a outra esfera de ação.

Shrek1 sob a ótica da criança

Como as crianças lêem o filme? Que sentidos produzem a partir do enredo? Como percebem a desestereotipização de conceitos preestabelecidos pela sociedade vigente? Com o intuito de elucidar tais questões, 4 crianças - aqui identificadas por letras do alfabeto: A (3 anos), B (5 anos), C (6 anos) e D (9 anos) - assistiram ao filme. Durante a sessão houve interlocução como os sujeitos, a partir de um roteiro previamente estabelecido, focando os itens supracitados, mas com flexibilidade para valer-se das contribuições espontâneas das crianças. Cabe destacar que a pesquisadora possui grau de parentesco com as crianças, de forma que o filme foi assistido num ambiente totalmente descontraído e os sujeitos tiveram total liberdade para se manifestar. Toda a sessão foi gravada em audiotape e, posteriormente, transcrita. Destaca-se que A e C não freqüentam a escola, B está na escola desde os 4 anos e D passou para a 4ª série. O filme foi escolhido por ser considerado emancipatório e por responder as questões propostas pelo estudo.

Shrek é um exemplo de tecnologia de ponta, mas nem por isso um velho conhecido, o livro, introdutor da produção cultural para a criança e uma das primeiras manifestações baratas e acessíveis de entretenimento (Lajolo e Zilberman, 1996), foi esquecido. Em Shrek1, já nas cenas iniciais, na imaterialidade da tela, surge o livro, de capa dura e vermelha, cujas páginas escritas e ilustradas abrem-se e vão sendo viradas, acompanhadas de uma voz que diz:

"Era uma vez uma linda princesa, mas havia um terrível feitiço sobre ela, que só poderia ser quebrado pelo primeiro beijo do amor. Ela foi trancafiada num castelo, guardada por um terrível dragão que cuspia fogo. Muitos bravos cavaleiros tentaram libertá-la dessa horrível prisão, mas ninguém conseguiu. Ela esperou, sob a guarda do dragão, no quarto mais alto da torre mais alta o seu verdadeiro amor e pelo primeiro beijo de seu verdadeiro amor."

Neste momento, uma enorme mão (de Shrek) arranca a última página narrada e faz o seguinte comentário: "Como se isso fosse acontecer". Quando as crianças foram indagadas a respeito de isso ser possível de acontecer ou não, D disse que não poderia ser real, pois "ogros não existem", mas B contrapôs, ponderando: "Ah, mas naquela época podia existir, na época que existia Dinossauro". A ressalta que existe, pois estava na TV; C disse que não sabia. Quanto à pergunta de onde mais poderia vir a história, a princípio, se calaram, então foram indagadas se essa história poderia sair de um jornal, por exemplo. Imediatamente D disse que não; "jornal tem notícia de verdade, livro tem história". B concordou e acrescentou: "livro conta história real e não, porque tem coisa que existe e que não existe, como ogro, sereia, isso é tudo lenda". Então, a pesquisadora perguntou o que era lenda. D disse que é o que não existe e que nunca vai existir. B, que havia estudado a respeito desse assunto na Educação Infantil, exemplificou: "É tipo a sereia, ela cantava e levava os homens para o fundo do mar e devorava eles e daí cantava de novo, e o curupira e...". D concordou com o exemplo. A argumentou que poderia sair do computador e, ao ser interrogada acerca do porquê, apenas respondeu: "porque sim, como o livro do Pooh" (vale explicar que A brinca no computador com livros digitais, entre eles o do Pooh). C, mais uma vez, ficou calada. Aqui, podemos perceber a noção que essas crianças já têm acerca dos gêneros textuais, que, para Marcuschi (2003), são propiciados pelas novas tecnologias, o seu uso e suas inferências nas atividades comunicativas diárias, especialmente nas ligadas à comunicação.

À medida que o filme ia se passando, os comentários das crianças eram espontâneos e muito apegados a detalhes, tais como:

B: Oh, ele escova os dentes e a pasta de dente dele é veneno de bicho.

A: Eca, a pasta de dente não é de morango.

Cabe destacar que a criança atribui sentido às coisas a partir das suas vivências, ou seja, o sentido nasce a partir do lugar do leitor, sendo que o que é diferente do seu mundo conhecido não é bom; o conceito do que é certo ou errado, do que pode ou não tem como pressuposto o mundo vivido.

No momento em que as personagens de contos de fada invadem o pântano de Shrek, as crianças foram indagadas acerca de serem conhecidas ou não. D disse que já lera um livro do Pinóquio e outro da Branca de Neve. B foi além em sua resposta: "Ah, todos são coisas, coisas, ah, assim, de contos de fadas; a Branca de Neve, os três Ratinhos, ah, de livros. Ah, e eu acho que o Shrek já leu todas essas histórias, por isso que ele sabe quem são, ou a mãe dele, a profe contou". Indagados se ogro ia à escola, B prontamente disse que sim, pois ele sabia ler. Aí podemos perceber claramente a função social da escola na concepção dessa criança, ou seja, ensinar a ler. Além disso, cabe destacar nesse comentário, mais uma vez, a vivência da criança, que atribui a contação de histórias à mãe ou à "profe", tal qual acontece em seu cotidiano. Quando apareceu a Branca de Neve, B e D dialogaram a respeito:

D: Oh, o espelho mágico da Branca de Neve.

B: É, tem uma rainha má que pergunta: "espelho, espelho meu, existe alguém mais linda do que eu?" (ao mesmo tempo em que falava, interpretava e era imitada por A)

Alguns estudos apresentados por Caparelli (1990), acerca da fantasia e da realidade no contexto infantil, mostram que com a idade de 3 anos inicia-se o fascínio pelo movimento e as crianças já podem seguir um enredo simples, começam a distinguir as ações do seu mundo cotidiano para lentamente integrá-los no mundo imaginário. Nessa idade, a criança seleciona aquilo que quer ver e tem forte tendência a imitar aquilo que lhe desperta a atenção, o que prossegue até os 4, 5 anos, quando a criança está afirmando seu próprio eu. Em um processo de evolução contínuo, a criança percebe, aos poucos, que os filmes que vê pertencem apenas ao domínio da fantasia. Essa tarefa, no entanto, não é fácil, se levarmos em consideração que muitos adultos enfrentam dificuldades em separar a realidade da ficção quando, por exemplo, assistem a alguma novela. Constatamos que B, com 5 anos, está na fase de transição, pois ora consegue perceber que é "apenas um filme", ora diz que algo não é possível "porque não existe".

Continuando a conversa sobre a Branca de Neve...

D: A rainha era má porque queria matar a Branca de Neve.

B: É, ela quer ser a mais bela de todas e quer que todos se apaixonem por ela.

Aqui, a presença das personagens de contos de fadas só foi percebida pelas crianças, porque a leitura desses contos fora feita e/ou contada/ouvida anteriormente ao filme, caso contrário não se perceberiam essa intertextualidade. Assim, a leitura, de uma ou outra forma, faz parte do mundo dessas crianças. Destaca-se que C convive num ambiente totalmente adverso; não recebe estímulos acerca de leituras ou um acompanhamento mais direto no que diz respeito à sua educação; seus conhecimentos advêm da famosa babá eletrônica, ou seja, ela apenas recebe, de forma passiva, aquilo que a TV veicula, o que reflete nas suas contribuições, que são poucas. Apesar de ser mais velha que B, cognitivamente, está aquém. Aí, podemos perceber o quanto o desenvolvimento humano dá-se de fora para dentro; a aprendizagem promove o desenvolvimento, somos o resultado da interação com o meio (Vigotski, 2003). Em outro texto, esse mesmo estudioso afirma que "a atividade criadora da imaginação se encontra em relação direta com a riqueza e a variedade da experiência acumulada pelo homem, porque esta experiência é o material com o qual constrói seus edifícios de fantasia" (Vigotski, 1996:17).

Quando indagadas sobre quem é do mal no filme, responderam:

D: Odragão, os guardas e o Lorde Farquaad são do mal.

B: É sim, eles querem matar o ogro, o Lorde quer casar com a princesa.

D: Eu torço pro Shrek, porque ele é do bem.

B: É sim "D", ele é do bem porque briga com os do mal e quem é do mal é amigo dos do mal, então ele é do bem.

A e C não se pronunciaram. Cabe destacar que A falou pouco durante a exibição de todo o filme; passou a maior parte do tempo dançando, conforme a trilha sonora.

Interrogadas a respeito da beleza de Shrek e Fiona, B e D consideraram o ogro bonito por ser do bem; A disse que era feio, porque não usava roupa direito e "andá pelado é feio"; já C disse que ele era feio, porque era ogro e ogro é feio. Nesse comentário da criança, podemos perceber certo determinismo, ou seja, as coisas já são preestabelecidas; o estereótipo do que é certo e errado, do que é feio e bonito, conforme os padrões impostos pela sociedade. Quanto à Fiona, B disse que, como "ogra", ela era mais bonita, porque daí ela não era tão magrinha, "muito magrinha é feio, daí tem aquela doença (referiu-se à anorexia e bulimia), muito gorda também, como eu, aí tá bom". As outras três apenas concordaram. Aqui podemos perceber a leitura de mundo feita por essas crianças, além do quanto assuntos tratados pela mídia fazem parte do seu cotidiano, especialmente tomando como referência o comentário de B, que também mostra certo egocentrismo, ou seja, "eu" sou padrão, "se for como eu está bom".

Assistindo às façanhas de Shrek e Fiona, quando estes estavam dirigindo-se ao castelo de Lorde Farquaad, as crianças acompanhavam entusiasmadas a melodia da trilha sonora e perguntavam-se, por vezes, como tal coisa era possível. B, inclusive, disse que pediria para seu pai fazer um churrasco de ratos, pois parecia gostoso.

Quando aparece o castelo de Lorde Farquaad, D imediatamente disse: "Parece grande, mas não é, porque o Lorde é anão, mas é príncipe". Indagada se anão não poderia ser príncipe, B disse: "Se a princesa for (anã), claro que sim, senão não pode; não combina". Esse comentário demonstra o quanto uma criança de 5 anos já tem alguns preconceitos vigentes na sociedade bem explícitos. Possivelmente, o motivo de comentar que "não combina" deve-se ao fato de, no geral, casais serem formados por homem e mulher, de estatura mais os menos similar. Os outros sujeitos não responderam o questionamento, mas concordaram (C e D) com a resposta de B. A divertia-se, imitando algumas falas e rindo.

É interessante, também, destacar a percepção das crianças sobre aquilo que não foi dito, como dados provenientes do cenário, que o olhar permite compreender. Aqui cabe salientar a importância da visualidade; não é preciso falar, basta mostrar; a imagem tem significados próprios, independente do texto que ela acompanha (Camargo, 2003). O autor faz referência à imagem num livro, mas caberia muito bem também para a imagem no filme:

B: O Shrek olha assim, porque ele tá apaixonado.

D: É sim, ele faz essa cara porque gosta da princesa. Ele acha que não pode casar com ela porque ele é ogro, mas pode sim. Porque não importa, se é branco ou preto, pode ficar junto, também se é separado; ela ama ele.

Cabe salientar que os pais dessa criança são separados, o que, mais uma vez, permite-nos perceber que a leitura é feita a partir dos elementos do contexto do sujeito.

B: Ela pode, mas eu nunca li uma história que uma princesa casou com um lenhador, um trabalhador, um ogro. Se ela virar ogra, ela pode.

Nesse comentário, fica claro, mais uma vez, que ela percebeu a subversão, mas como não é algo com que se depare todos os dias, vê com estranhamento. Vale chamar a atenção, ainda, para o seu conceito de leitura, ou seja, ler vai além das palavras; as imagens também são lidas.

D: Ah, mas o que adianta se casar com uma pessoa bonita, se ela vai trair.

B: É, mas é outra espécie: ogro com ogro, gente com gente. Pato também não casa com peixe só porque nada. Ah, e o Lorde é mais ou menos bonito. Bonito porque é príncipe; feio porque é do mal.

Aí, deparamo-nos com certo determinismo, ou seja, as pessoas, por exemplo, são feias ou bonitas de acordo com a sua função social e o comportamento que têm na sociedade, mas, por outro lado, a beleza não é vista como algo fútil, uma vez que a pessoa também é valorizada pela sua subjetividade.

As crianças percebem não apenas o que é dito, mas o que é mostrado visualmente no filme, de modo que o estado emocional das personagens é foco de observação e de comentário:

A: Olha, a Fiona tá triste.

D: É, é porque ela ama o Shrek.

B: Ela não pode casar com o Lorde, ela não gosta dele. Meu pai casou com a minha mãe porque gosta dela.

C: Olha, o dragão não tá brabo porque é o amor do burro.

B: Ah, mas não pode, é outra espécie. Ah, mas é só um filme, né?!?

D: É, daí pode.

Essa constatação de B faz lembrar Iser (1996), para quem o texto ficcional contém muitos fragmentos identificáveis da realidade, que, através da seleção, são retirados tanto do contexto sociocultural quanto da literatura prévia ao texto. Assim, retorna ao texto ficcional uma realidade de todo reconhecível, posta, entretanto, sob o signo do fingimento. Com isso, se revela uma conseqüência importante do desnudamento da ficção; pelo reconhecimento do fingir, todo o mundo organizado no texto literário transforma-se em um como se. O como se significa que o mundo representado não é propriamente mundo, mas que, por efeito de um determinado fim, deve ser representado como se fosse. Nesse sentido, como se pode ser denominado de imaginário porque os atos de fingir se relacionam com o imaginário. O mundo relacionado no texto não se refere a si mesmo e, por seu caráter remissivo, representa algo diverso de si próprio; o mundo concebido é apenas um mundo possível, de um lado se diferenciando daqueles mundos de cujo material foi feito e, de outro, oferece uma marcação para uma realidade a ser imaginada. Lembrando Lajolo e Zilberman (1996), que fazem referência aos tipos de leitor, podemos perceber aí um espectador capaz de estabelecer a necessária distância entre o visto e o vivido.

Ao final do filme, o livro aberto no início fecha-se e o narrador conclui: "E viveram felizes para sempre", retomando o final dos contos de fadas. Nesse momento, D comenta: "A história começa e termina com o livro. O livro se fechou, porque no início abriu. Ao invés de ler, a gente viu o filme".

Então, foi perguntado às crianças se haviam gostado desse final e, pelas respostas, é possível perceber que B e D conseguiram estabelecer relação entre o desfecho do filme e o seu enredo, essas crianças inseriram o texto na moldura do livro; enquanto A e C apegaram-se apenas às cenas finais, desconectadas da abertura e do fechamento do filme; ativeram-se apenas à história contada, não percebendo o modo como se dá a conhecer.

D: Sim, porque o bem venceu o mal.

B: É, o mal tem que perder, e o Shrek amava a Fiona e a Fiona amava o Shrek, então ela não podia casar com outro só porque era rei.

A: Ah, eu gostei porque o burro fala, é legal.

C: Eu gostei, porque a música é legal.

O julgamento que possibilita o gostar ou não de um objeto artístico nessa etapa da vida ainda está ligado a aspectos isolados como um detalhe, a atuação de um personagem, a um fragmento da ação.

 

Tecendo algumas considerações

Shrek coloca os heróis numa posição de autonomia em relação a uma instância superior e dominadora, por isso, poderíamos considerá-lo como um exemplo de filme emancipatório. Além disso, subverte padrões de integração social tradicionalmente consagrados, uma vez que não é preciso, por exemplo, ser belo para ser rei ou rainha ou ser feliz; Fiona ama Shrek como ele realmente é e vice-versa. É importante destacar que essa desesteriotipização, como averiguado nos comentários dos sujeitos dessa pesquisa, é perceptível pelas crianças, o que lhes permite tomar contato com padrões diferentes daqueles que a sociedade lhes impõe a cada dia, especialmente por intermédio da mídia, e questioná-los, não simplesmente e passivamente aceitá-los.

O filme permite discutir os valores emergentes na sociedade, principalmente no que diz respeito às relações de dependência e sujeição que se estabelecem entre os indivíduos, bem como do quanto somos "produto" do meio em que estamos inseridos. Nesse sentido, podemos ler a sociedade e os seus valores sendo questionados; o rei, por exemplo, não era aclamado pelo povo, mas as placas indicavam a reação que as pessoas deveriam ter diante do que estava sendo dito ou acontecendo, deixando a falsa impressão de o poderoso estar agradando. A própria reação de Fiona ao ser resgatada - esperava um comportamento-padrão, digno de um rei - também remete-nos à sociedade burguesa e seus valores, cabendo aos cidadãos, burgueses ou não, terem esse determinado comportamento como pré-requisito para serem aceitos ou não nessa sociedade. A própria instituição casamento nessa classe social é questionada, quando o burro diz que "casamento de gente famosa não dura" - o casamento de Fiona, a princípio era arranjado com o Lorde Farquaad. Todos esses elementos possibilitam à criança um olhar peculiar acerca dos valores da sociedade na qual estão inseridas.

Cabe destacar, ainda, que a questão central que move esse estudo é como a criança lê o filme. A partir desse foco, expôs-se um grupo de 4 sujeitos ao filme Shrek e, frente à situação, podemos afirmar que: o fato de o pesquisador conhecer as crianças gerou um clima de descontração, permitindo aos expectadores falar sobre o visto e o vivido; parte dos sujeitos reconhece a presença do livro na abertura e fechamento do filme, associando-o ao ato de ouvir histórias; a significação do texto dá-se a partir das vivências dos infantes, já revelando posturas preconceituosas; e, por último, na discussão do visto, as posições de cada sujeito vão sendo negociadas.

Na atualidade, é possível depararmo-nos com uma oferta cada vez maior de produção cultural direcionada ao público infantil, acompanhada, cada vez mais, de inovações tecnológicas. Os filmes, nesse sentido, podem ser uma ferramenta útil para o (auto)conhecimento das crianças e sua inserção no mundo. É importante, porém, cada vez mais, orientar as crianças para ver filmes que ampliem esse olhar, esse conhecer. Para ler, seja o livro, seja o filme - ambos objetos artísticos - o interlocutor deveria pôr em ação seu imaginário, participando na figuração do universo proposto como um co-autor, identificando-se com os seres fictícios.

 

Referências Bibliográficas

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Notas

L. Volmer
Endereço para correspondência: Rua Gessé Ávila de Souza, 490, Bairro Independênia, São Leopoldo, RS 93020-290.
Telefone: 0XX(51) 3588-7352.
E-mail para correspondência: lovaniv@feevale.br.

F.B. Ramos
E-mail para correspondência: ramos.fb@gmail.com.