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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.13 no.1 Rio de Janeiro mar. 2008

 

Artigo Científico

 

Condição e representações da saúde bucal entre os sem-teto do município de Blumenau - Santa Catarina

 

Conditions and representation of oral health among homeless of Blumenau - Santa Catarina

 

 

João Luiz Gurgel Calvet da Silveira; Rafaela Stanke

Departamento de Odontologia, Universidade Regional de Blumenau (FURB), Blumenau, Santa Catarina, Brasil

 

 


Resumo

O objetivo dessa pesquisa foi descrever a condição e a representação da saúde bucal entre um grupo de 15 "moradores de rua" de Blumenau - SC. A metodologia utilizada foi entrevista não diretiva e exame de inspeção bucal. Resultados: média de 10 dentes perdidos; mais da metade com cárie ativa; todos apresentaram alterações gengivais e quase a metade necessita prótese. A maioria não percebe a doença cárie ativa e quase todos apresentam história de dor. Percebem alterações gengivais. Queixas: traumatismos por acidente ou violência, carência de higiene assistida e prótese. Definem saúde bucal como higiene, auto cuidado, ausência de doença e estética, valorizando o acolhimento. Necessidades prioritárias: emprego, alimentação, moradia e família. Maior dificuldade: falta de escova dental. Não utilizam fio dental. Saúde bucal é relacionada com saúde geral nos aspectos biológico e de higiene. Conclusão: condições bucais precárias com saúde bucal representada como acesso a tratamento, higiene e estética.

Palavras-chave: representações sociais; sem teto; saúde bucal .


Abstract

The present research aims to describe the conditions and representation of oral health among 15 homeless people in Blumenau - Santa Catarina. The used methodology was a non-directive interview and oral examination.  Results: lost in average of 10 teeth; more than half of the group in the study with active caries; all of them had gum. alterations and almost half of them needed dental prothesis. Complaints: accidental or violent trauma, lack of monitored cleaning and prothesis. It is defined that oral healt. as hygiene, self care, lack of any illness an. esthetics, valorizing the caring o. treated people. Priority needs: job, feeding, housing and family. Mayor difficulties: lack of toothbrushes. They do not use dental floss. oral health is related to general health in the biologica. hygienic aspects. Conclusion: bad oral conditions with oral health presented a. an access for treatment, hygiene and esthetics.

Keywords: social representation; homeless; oral health.


 

 

Introdução

Nesse trabalho partimos do pressuposto de que o processo saúde-doença apresenta-se como processo dialético, não sendo possível existir um estado absoluto de saúde ou de doença, sendo estes extremos partes integrantes de um mesmo processo, sob a influência dos determinantes sociais da saúde (Fonseca e Corbo, 2007). Nessa perspectiva, saúde e doença são expressões concretas das condições de vida resultantes da interação dos sujeitos com o meio social e físico em que vivem. Por ser complexo e em constante movimento exige de quem se propõe a entendê-lo e intervir sobre ele, além da abordagem biológica e técnica o conhecimento da dimensão humana e social que deu origem a esse processo e às formas de cuidado. Porém os sujeitos compreendem e explicam esse processo de formas variadas e condicionadas por fatores de ordem social.

Esse trabalho tem objetivo de descrever a condição de saúde bucal, do ponto de vista clínico da odontologia e a forma como os sujeitos, no caso moradores de rua, percebem e representam sua saúde.

O termo "representação social" não é novo e tem um longo passado na filosofia, na sociologia e na psicologia sendo, portanto, um tema de grande abrangência e aplicação em diferentes áreas do conhecimento. Tendo suas raízes epistemológicas na noção de representação coletiva de Durkheim, a representação social deve sua origem ao psicólogo francês Serge Moscovici que, no início da década de 60, em suas investigações sobre a representação social da psicanálise, buscava o significado da psicanálise a partir do senso comum. Nascida como disciplina científica, passando do domínio dos especialistas para o entendimento da população, as representações sociais (RS) como abordagem teórica buscam entender a natureza do pensamento social. (Pedra, 1997).

Identificadas como um sistema de valores, idéias e práticas, as RS apresentam dupla funcionalidade ao estabelecer uma ordem para orientar as pessoas em seu mundo material e social, podendo assim controlá-lo, e, ainda, possibilitar a comunicação entre membros de uma comunidade. Partem da idéia de que os diferentes segmento sociais produzem um código capaz de nomear e classificar os vários aspectos de seu mundo e sua história individual e social, sem ambigüidades (Moscovici, 2004).

As RS inserem-se no campo da transdisciplinaridade ao explicar os fenômenos de diferentes campos do saber, a partir de fundamentos epistemológicos renovados e inusitados (Spink, 1998). Podem ser consideradas uma técnica de pesquisa ou abordagem do campo social capaz de revelar a significação, os valores, interesses e visão de mundo de diferentes segmentos da população, com grande importância na área da saúde, que apresenta uma determinação social dos processos de adoecimento e sanidade.

Sua aplicação em pesquisas na área da saúde coletiva justifica-se pela necessidade de uma melhor compreensão do processo saúde-doença, buscando a sua integralidade, ampliado para além da dimensão biomédica tradicional hegemônica, encontrada na academia e na prática das profissões da saúde, principalmente até a década de 60 no contexto da América Latina (Marsiglia, 1998; Nunes, 1998). A teoria das RS foi fortemente criticada por pesquisadores da área social, bem como entidades nacionais e internacionais da Saúde Pública, que redefiniram o campo de conhecimento na área da saúde, até então limitado pela exclusão dos determinantes sociais do processo saúde-doença, cuja complexidade aparece explicitada na definição de saúde da Constituição Brasileira:

"A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais. Os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País." (Carvalho e Santos, 1995: 55)

O processo de exclusão social pode ser compreendido como fenômeno histórico que acompanha a civilização apresentando raízes em processos políticos, econômicos e culturais, com diferentes manifestações nas sociedades contemporâneas.

No contexto atual das grandes capitais brasileiras surge, como manifestação dessa exclusão, o segmento social dos "sem-teto" ou "população de rua", expressões amplamente utilizadas pela mídia e também no meio acadêmico para designar grupos de pessoas que habitam os espaços públicos como ruas, praças ou sob pontes e viadutos, por não disporem de local fixo para domicílio, podendo apresentar-se como indivíduos ou mesmo famílias inteiras. Esse fenômeno, caracteristicamente urbano, apresenta maior visibilidade nas grandes cidades, onde a violência do cotidiano competitivo gera um grande número de excluídos, desafiando o Estado e os cidadãos a buscar soluções, muitas vezes paliativas como os albergues (Dias, 1999; Bhugra et al., 1997).

Conforme proposto por Bauer (2004) os diferentes segmentos de excluídos do contexto social e produtivo, como é o caso dos sem-teto, são produtos de um processo ideológico pensado e reproduzido pelas elites brasileiras que os representam como personagens que precisam ser reeducados, reduzidos à condição de marginais e indigentes a cargo dos serviços sociais ou de segurança pública. Ou seja, a esse segmento só restaria a filantropia ou a força repressiva, negando deliberadamente a determinação histórica e social dessa exclusão, bem como a compreensão da natureza desse processo.

Como conseqüência da crise econômica surgiram, nas últimas décadas, principalmente nas grandes cidades brasileiras, diversos movimentos sociais que visam o enfrentamento político da situação dos "sem-teto", não sendo raros os confrontos com as autoridades em situações de real conflito (Haddad, 2005; Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, 2005; Perseguição Política, 2005; Resistência Popular, 2001).

Entendendo os sujeitos como produtos e também produtores da realidade, podemos conceituar a representação social como modalidade de conhecimento prático e pragmático, capaz de explicar e fazer compreender a realidade social, material e ideativa, originadas a partir das relações sociais, configurando-se como fenômenos sociais que só podem ser compreendidos e explicados em seu contexto de produção. Desse modo, as RS associam o processo de cognição à produção de um sentido e à construção da realidade, não limitadas a meros enunciados da realidade, mas sim como teorias sociais práticas sobre objetos e temas relevantes na vida dos grupos sociais. Podem ser compreendidas como princípios organizadores de atividades cognitivas específicas, ou seja, fruto da construção coletiva do modo de pensar, que determina o modo de agir e reagir de um grupo de pessoas (Vala, 1996).

Dessa forma, a problemática dessa pesquisa pode ser apresentada na forma de temas sugestivos, ainda muito pouco abordadas pela odontologia como: Qual o significado da saúde bucal e seus determinantes para os diferentes segmentos sociais? Esses diferentes segmentos sociais representam de forma idêntica e uniforme o processo saúde-doença? As suas representações se identificam com as representações dos profissionais de saúde e das instituições do serviço de saúde e da academia? Que valores estão envolvidos? Como são percebidas e incorporadas as práticas profissionais e concepções de saúde bucal pelos sujeitos desse processo? Que outros fatores ou processos, ainda não revelados, podem ser relevantes para uma interação mais eficaz, eficiente e humanizada de promoção de saúde?

 

Materiais e métodos

Abordagem metodológica

A utilização da metodologia qualitativa como possibilidade de investigação científica em saúde coletiva, permite um maior alcance dos determinantes sociais do processo saúde-doença e uma abordagem mais humanizada dos sujeitos envolvidos nesse processo de pesquisa (Minayo, 1997, 2000; Chizzotti, 1998).

As RS, entendidas como abordagem e ferramenta de pesquisa, são capazes de revelar dados numa perspectiva interdisciplinar, podendo ser aplicadas na área da saúde para a elucidação de questões relacionadas aos determinantes sociais do processo saúde-doença. Essa metodologia busca investigar os significados, os valores, interesses e visão de mundo de diferentes segmentos da população, podendo revelar a determinação social dos processos de adoecimento e sanidade, sendo amplamente discutida e documentada na literatura acadêmica. (Abreu et al., 2005; Guareschi e Jovchelovitch, 1995; Minayo, 1995; Moscovici, 2004; Neves, 1996; Silveira, 2001; Spink, 2003).

Fizeram parte dessa pesquisa 15 indivíduos "sem teto", sendo 12 homens e 3 mulheres, que freqüentam a instituição filantrópica CEFAC (Centro Espírita Fé, Amor e Caridade) localizado no Município de Blumenau - SC no bairro da Velha, que aceitarem participar voluntariamente da pesquisa após a leitura, explicação e assinatura do TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido). Os participantes foram agendados para as entrevistas individuais.

Foi realizado exame clínico bucal para verificar história e atividade de doença cárie (CPO-D) e doença periodontal (profundidade de sondagem de bolsas - IPV), uso de prótese e lesões bucais.

A referida instituição oferece assistência social à população necessitada, incluindo atenção odontológica, encontrando-se entre esses alguns moradores de rua.

A técnica da entrevista não diretiva parte do princípio de que o informante tem competência para comunicar suas representações a partir de informações fidedignas, relevando seus atos no contexto social e histórico a que pertence. A atitude do entrevistador deve ser de escuta ativa, intervindo discretamente para manter a narrativa dentro do objeto de interesse da pesquisa. O informante deve estar inteiramente livre e à vontade para narrar sem constrangimento seus atos, concepções e atitudes no contexto em que ocorreram. Tanto as comunicações verbais como as atitudes manifestadas por gestos, olhares, entonações e outras devem ser consideradas e registradas pelo entrevistador. Assim: "A profusão informe de dados resultante da entrevista deve ser reduzida no momento da análise" (Chizzotti, 1998).

Nessa pesquisa, a característica comum aos participantes, capaz de gerar uma identificação no grupo, é o fato de não possuírem no momento domicílio ou local fixo para residência, configurando-se como população "sem teto".

A condição de "sem teto" aparece de forma recorrente entre os integrantes do grupo e não como uma condição definitiva. Os episódios de permanência nas ruas são geralmente condicionados por alcoolismo, uso de drogas e problemas de relacionamento familiar.

Para a verificação da condição de saúde bucal foi realizado um exame de inspeção, sendo oferecido um procedimento de profilaxia bucal e orientação em saúde bucal para aqueles que concordassem em participar da pesquisa. Cabe lembrar que a abordagem para a participação no projeto não interferiu na dinâmica de agendamento do CEFAC.

Foi utilizada a técnica de análise de conteúdo (Bardin, 1977; Gomes, 1994) sobre o material transcrito das entrevistas, sendo cada entrevista considerada como um corpus de análise.

A análise de conteúdo pode ser compreendida como um conjunto de técnicas, surgidas nos EUA, no início do século XX para analisar fenômenos de comunicação de massa. Apresentava caráter meramente quantitativo até os anos 50, limitando-se a contar a freqüência do aparecimento de determinadas características nos textos analisados. Atualmente, essa técnica pode apresentar duas funções:

a) verificação de hipóteses ou questões ou;

b) descoberta do que está por trás dos conteúdos manifestados ou função hermenêutica, sendo esta segunda a principal para este estudo.

  • Fases gerais da análise de conteúdo:
  • 1ª fase: pré-análise que consiste na organização do material transcrito, definindo unidades de contexto, separação dos trechos significativos e categorização. Registram-se as impressões sobre a mensagem;

    2ª fase: exploração com várias releituras do material com objetivo de aprofundar a análise;

    3ª fase: tratamento dos resultados através da quantificação das categorias encontradas, interpretação qualitativa buscando revelar os conteúdos subjacentes ao que está sendo manifestado na narrativa como: ideologias, tendências e manifestações do contexto dos sujeitos.

  • Como etapas concretas da análise de conteúdo destacamos:
  • 1ª etapa: determinar unidades de registro que são elementos obtidos através da decomposição do conjunto de mensagem e pode ser: uma palavra, uma frase, uma oração ou um tema surgido da mensagem;

    2ª etapa: determinar as unidades de contexto, considerando os aspectos comuns ao grupo que são relevantes para a condição estudada, no caso o fato de serem moradores de rua e sua percepção frente ao processo de saúde-doença bucal;

    3ª etapa: elaboração de categorias que são conceitos agregadores das unidades, capazes de agrupar elementos, idéias e expressões.

  • Como categoria geral para esta pesquisa temos:
  • As representações sociais da população de rua sobre saúde-doença bucal.

  • Como categorias específicas propostas previamente à análise apresentamos:
  • a) Conceito auto-percebido de saúde e doença bucal;

    b) Relações entre saúde bucal e saúde geral e outros aspectos relacionados;

    c) Importância ou significação da saúde bucal no contexto do grupo;

    d) Barreiras ou dificuldades apontadas para se atingir um estado de saúde bucal;

    e) Noções de direito e cidadania relacionados à saúde;

    f) Expectativas com a assistência em saúde bucal.

    Essas categorias propostas previamente serviram como temas orientadores das entrevistas, sendo aspectos relevantes para o planejamento de ações de saúde direcionados à população desse estudo e apresentando coerência com os objetivos propostos. Outras categorias específicas não relacionadas previamente surgiram após a coleta das narrativas.

     

    Resultados e discussão

    A média de idade entre os participantes foi de 40 anos, sendo que a mais nova com 19 e o mais velho com 71 anos.

    A condição de saúde bucal encontrada pode ser considerada precária, com manifestação de doença ativa ou seqüelas reveladas por: média do CPOD (dentes cariados, perdidos ou obturados) entre os moradores de rua foi de 16,3, valor considerado alto, pois significa que a metade da dentição já foi afetada pela doença cárie. Especificamente a média dos cariados foi 2,6; a média dos perdidos 10 e a média dos obturados 4,6. O que revela uma grande mutilação da cavidade bucal.

    A maioria dos examinados (77,7%) apresentou mancha branca, ou seja, apresentam atividade de cárie.

    Todos que possuíam dentes presentes na boca apresentaram bolsa periodontal. Sendo a profundidade de sondagem média na região de incisivos inferiores de 8,3mm. E 100% dos indivíduos apresentavam sangramento gengival. Ou seja, todos que foram examinados apresentam doença ou alterações gengivais.

    O índice de placa visível foi de 85% entre os que participaram do exame clínico bucal para verificar placa visível. Sendo que 20% dos examinados apresentaram um índice de placa de 100%, revelando um estado precário de higiene bucal. Não obstante a condição encontrada, nas entrevistas a higiene bucal aparece como um valor revelado entre os integrantes da pesquisa.

    Em relação ao uso de prótese 45% usam algum tipo de prótese (total ou removível).

    As lesões bucais percebidas foram a hiperplasia no palato devido à prótese mal adaptada e tuberosidade fibrosa.

    Quando interrogados sobre o tempo em que moram na rua a média foi de 9 anos e 8 meses; sendo o menor período encontrado foi de 3 meses e o maior 28 anos na rua, com pequenos intervalos de retorno ao lar. Outra característica encontrada foi o fato de que a condição de morador de rua é intercorrente, ou seja, há períodos em que os moradores retornam ao âmbito familiar, mas com freqüência acabam voltando para a rua por problemas de relacionamento, alcoolismo e uso de drogas, conforme os relatos.

    Em sua maioria se definem como operários da indústria têxtil ou da construção civil (46%). Ainda aparecem como ocupações: servente de pedreiro (28,57%), modelo (7%), pintor (7%), motorista (7%), agricultor (7%).

    Apresentam baixo grau de instrução. Sendo que 54% apresentam o ensino básico (até a quarta série), 26% ensino fundamental e 20% o ensino médio.

    Para sobreviver 45% trabalham com reciclagem, 20% pedem esmola, 14% alegam ser serventes de pedreiro, 14% fazem serviços gerais e 7% trabalham com artesanato.

    Com relação à auto-percepção da doença cárie 73% relatam que já tiveram cárie, embora apresentem atividade de doença; 20% acham que estão com cárie e 7% acham que nunca tiveram, embora apresentem seqüelas da doença.

    Quando interrogados sobre dor 86% revelaram que já tiveram; 7% relataram dor no momento e 7% nunca tiveram episódios de dor de dente ou na cavidade bucal. A história de dor é muito comum, sendo que 93%, quase a totalidade, já teve ou apresenta dor de dente, adotando medidas extremas como tentativa de extração do dente por conta própria com o uso de alicate, faca ou outro meio.

    Para uma melhor ilustração dos dados colhidos passaremos a transcrever as falas dos sujeitos dessa pesquisa a partir de pseudônimos:

    Madaleno relatou: "Estava alcoolizado e com muita dor, então peguei um fio de nylon e arranquei o dente".

    Nos relatos sobre a doença periodontal 80% afirmam ter sangramento gengival e 46% perceberam seus dentes moles. A maioria percebe alterações gengivais como sangramento, condizente com a condição precária encontrada no exame bucal.

    Quando questionados sobre outras queixas bucais 26% relataram acidente/trauma, 20% mencionaram a dificuldade de higiene, 14% necessidade de prótese e 7% halitose. Outras queixas mais comuns são traumatismo por acidente ou violência, além de necessidades de higiene assistida e prótese.

    Florzinha afirma em sua entrevista: "Ganhei uma porrada do meu ex-marido e fiquei sem os dentes (incisivos laterais superiores)".

    Perguntados sobre o que poderia melhorar a saúde bucal relatam com freqüência a reabilitação protética, porém associada a cuidados de higiene assistida por dentista. A necessidade referida de prótese equivale a 45%, higiene assistida a 33% e 17% relatam a necessidade de acesso a tratamento.

    A higiene e o auto-cuidado, a despeito das limitações cotidianas impostas por sua condição de moradores de rua, são valores referidos por 53%, saúde como ausência de doença por 26%, relacionamento com as pessoas 20%.

    Representam ainda a valorização dos relacionamentos no âmbito social e afetivo, conforme a fala abaixo:

    Relata Florzinha: "Não é porque sou moradora de rua, que preciso andar suja. Gosto de andar limpinha. Tenho que cuidar porque sou mulher".

    Neste relato observamos o conceito de saúde relacionado ao gênero. Como é mulher acredita que deve cuidar da higiene e da aparência. E revela também a vaidade feminina.

    Sobre a importância da saúde bucal atribuem novamente a relevância para um melhor relacionamento, a partir da valorização da estética e da higiene. Higiene e relacionamento aparecem em 33% das entrevistas, estética 26%, funcionalidade e condição sistêmica 20%. Galo revela: "Saúde bucal é importante para sorrir e para beijar as mulheres".

    Sobre as prioridades de vida, frente às suas necessidades cotidianas, relatam antes da saúde o trabalho e alimentação, seguida de moradia e família, sendo necessidades prementes. Aparecem como necessidades: o trabalho, a alimentação, a moradia e a família, a saúde geral, resolver quadro de dor, ter documentos e estudo.

    Como expectativas no momento do atendimento pelo dentista, são freqüentes os relatos por um atendimento acolhedor e humanizado, porém geralmente recaindo nas necessidades por prótese, sendo atendimento acolhedor e não traumático 62% e reabilitação protética 30%. Muitos relatam experiências de medo e atitudes inadequadas por dentistas no passado, conforme Model nos revelou: "Espero que o dentista não me derrube e deixe pior do que estou". Inferindo que deseja que o dentista seja acolhedor e que não a recrimine por seu estado de saúde bucal precário.

    Quando perguntamos quais as dificuldades para ter saúde bucal são relatadas limitações para o auto-cuidado mostrando o cotidiano e a realidade da rua.

    A maior dificuldade é com a escova dental. Consideram escova um material caro, porém relevante e quando ganham acabam perdendo na rua. Só utilizam dentifrícios esporadicamente. Apontam também a dificuldade de acesso a água tratada. Alguns usam água do rio Itajaí Açu para realizar sua higiene.

    Formigão relata: "Pego escova da reciclagem, mas os tubos de pasta de dente quando encontro estão vazios."

    Madaleno disse: "Nós trincheiros não temos local para fazer a higiene". Esse ato de reaproveitar escovas utilizadas encontradas na "reciclagem", aqui entendida como lixo descartado e sem tratamento, revela a imposição da necessidade de se reproduzir uma higiene bucal condicionada, representada como um valor, sem avaliar os riscos impostos por essa condição.

    Coruja relata a dificuldade de acesso ao SUS por não ter endereço fixo. "Vou ao dentista não tem vaga porque não tenho residência fixa, que é exigido para ser atendido".

    A condição de morador de rua contraria o princípio da universalidade, como princípio doutrinário do SUS e preceito constitucional que garante a todo cidadão o direito ao acesso aos serviços de saúde em condições de igualdade conforme as suas necessidades. Dessa forma, a saúde é um direito de todas as pessoas e cabe ao Estado assegurar este direito. Neste sentido, o acesso às ações e serviços deve ser garantido independente de sexo, raça, renda ocupação, ou outras características sociais ou pessoais. Porém a condição dos "sem teto" pode constituir-se em mais um fator de exclusão na assistência à saúde bucal.

    No que se refere às práticas cotidianas para ter uma boa saúde bucal, observamos que o uso do fio dental é raro, sendo substituído por palito, palha da vassoura, pedaço de plástico. Geralmente lavam a boca e só escovam quando têm acesso em algumas instituições filantrópicas, porém com baixa freqüência. Alguns escovam uma vez por semana outros uma vez por mês.

    Quando perguntamos se a saúde bucal pode interferir na saúde sistêmica revelam um entendimento limitado aos aspectos biológicos como infecção e higiene. Alguns relatam que as bactérias são disseminadas pela boca ou reduzem a saúde bucal à higiene.

    Sobre o medo do atendimento odontológico a maioria relata não ter medo do dentista embora convivam com situações de dor e desconforto e 40% afirmam ter medo do dentista. Assim, embora a maioria não revele ter "medo de dentista", aparecem relatos de traumas por episódios de dor durante o tratamento e mal trato pelo profissional, sendo mais comum o medo de broca ou motor, de sutura e de extrações sem necessidade.

    Segundo Florzinha: "Parece que entra na sala do dentista e não sai mais. Precisei tirar um dente quando tive dor devido à cárie, precisava arrancar, tava inflamado e a anestesia não pegou, e ainda depois tive hemorragia e senti muita dor."

    Relato de Galo: "Tinha medo quando criança, dentistas eram cavalos".

    Coruja revela: "A última vez que fui ao dentista ele me tratou muito mal".

    De forma geral os relatos revelam um entendimento do conceito de saúde bucal limitado à higiene e dependente da atuação "curativa" do profissional. Essas são representações muito recorrentes do senso comum, determinadas por necessidades prementes e sentidas, porém distanciadas do conceito ampliado de saúde como condição de vida. Dessa forma a saúde ou a doença aparecem de forma despolitizada, desconectado do princípio de cidadania, incapaz de relacionar que a condição social, marcada pela exclusão, configura-se como fator determinante desse processo.

    Com freqüência os entrevistados valorizam quase exclusivamente a atuação do profissional sobre a doença instalada, numa postura assistencialista e passiva frente aos determinantes do processo saúde-doenaça reduzidos a sua dimensão biomédica.

     

    Conclusão

    A condição de saúde bucal encontrada entre os integrantes do grupo é precária, percebendo-se uma aceitação ou naturalização dessa condição condizente com a situação de exclusão social.

    As representações da saúde bucal entre os "sem teto" revelam elementos comuns reproduzidos em nossa sociedade, como a concepção de saúde limitada ao acesso a tratamento, higiene e estética, distanciada dos conceitos de integralidade e cidadania.

     

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    Notas

    J.L.G.C. da Silveira
    Endereço pra correspondência: FURB, Campus III, Rua São Paulo 2171, Itoupava Seca, Blumenau, SC 89030000.
    E-mail para correspondência: jlgurgel@furb.br.

    R. Stanke
    E-mail para correspondência: rafastanke@terra.com.br.