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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.13 no.1 Rio de Janeiro Mar. 2008

 

Artigo Científico

 

Pesquisa em educação: a construção teórica do objeto

 

Research in education: theoretical construction of the object

 

 

Siomara Borba; Adriana Doyle Portugal; Sérgio Rafael Barbosa da Silva

Faculdade de Educação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

 

 


Resumo

O tema central do artigo, sem pretender esgotar a questão, é a produção do conhecimento científico em educação. Seu objetivo é continuar uma trajetória de interrogação sobre os pressupostos do processo de conhecimento em educação, examinando, agora, a construção teórica do objeto. Esse exame é realizado a partir da discussão, ainda inicial e provisória, de elementos da análise marxista sobre o processo de produção do conhecimento científico. A epistemologia marxista argumenta que o método científico para o conhecimento da realidade não começa, a rigor, do real em si, mas de um campo teórico definido. Esse entendimento significa uma forma totalmente contrária à forma tradicional de pensar o trajeto do conhecimento, especialmente na pesquisa em educação.

Palavras-chaves: pesquisa em educação; construção teórica do objeto; concreto de pensamento; epistemologia marxista.


Abstract

The central theme of this paper, not intended to put an end to the subject, is the production of scientific knowledge in education. Our main aim is to put forward a questioning trajectory on the foundations of the process of knowledge in education, examining, at this moment, the object's theoretical construction. This approach is performed departing from the discussion, still initial and provisory, of elements of the Marxist analysis on the process of production of scientific knowledge. The Marxist's epistemology argues that the scientific method in order to know the reality does not begins, necessarily, with the real itself, but in a defined theoretical field. This understanding is in opposition to the traditional form of thinking the course of knowledge, especially in research in education

Keywords: research in education; object's theoretical construction; concrete thought; Marxist's epistemology.


 

 

Introdução

O tema central e geral do artigo é a pesquisa em educação. Seu objetivo é continuar uma trajetória de interrogação sobre os pressupostos do processo de conhecimento, examinando, agora, o significado do objeto de conhecimento. Apesar de buscar os argumentos principais na discussão sobre o processo de produção do conhecimento, esse trabalho tem como horizonte de preocupação, sem, no entanto, pretender esgotar a questão, a pesquisa em educação. Esse exame é realizado a partir da indicação, ainda inicial e provisória, de alguns elementos presentes na análise marxista sobre o processo de produção do conhecimento científico. Os principais argumentos da epistemologia marxista compreendem, de um lado, o entendimento de que o método científico para o conhecimento da realidade não começa no real simples, ou seja, no real sensível, mas no real como concreto de pensamento, momento que a realidade aparece com todas as suas determinações históricas e, por outro lado, o entendimento que partir do real como concreto de pensamento significa conceber o objeto de conhecimento não como sendo o real empírico, mas como sendo o real concreto. Essas categorias, a rigor, vão significar uma forma totalmente contrária à forma tradicional de pensar o trajeto de conhecimento do real, especialmente no que diz respeito às preocupações metodológicas na prática da pesquisa em educação.

 

A interrogação dos pressupostos do trabalho de investigação

O processo de investigação, como toda ação humana, traz subentendidos múltiplos pressupostos - sentidos que, tomados como pontos de partida, tendem a permanecer inquestionados. Por um lado, estes pressupostos se apresentam como a própria condição de possibilidade da ação, prática ou teórica; por outro, todavia, toda reflexão permanece superficial se não se estabelece, igualmente, como crítica de suas próprias bases de sustentação. No caso específico do trabalho de pesquisa em educação, no entanto, é bastante corrente a idéia de que, não podendo ser exaustiva e radicalmente criticados, esses pressupostos que permitem a atividade de compreensão do real não devem estar sujeitos a questionamentos, ou não necessitam de explicitação. São tomados, assim, como definições acabadas, já inteiramente consolidadas, que obedecem a formulações canonicamente definidas pelo processo moderno de produção do conhecimento científico.

Partindo deste entendimento, os investimentos elucidativos sobre a prática de pesquisa acabam por se restringir à escolha a ser realizada, no interior de um cardápio pronto de opções, por uma forma de conceber o sujeito, o objeto, o quadro teórico, a metodologia. Entretanto, a escolha das teorias, das definições de sujeito, dos métodos de investigação, das delimitações do objeto acaba por envolver a adoção acrítica de concepções ontológicas, gnosiológicas e epistemológicas que os acompanham e no seio das quais foram elaborados.

Desfazer a gratuidade dos sentidos das ações, dos procedimentos e dos discursos implica, assim, a exigência de elucidar os significados não-explicitados que definem, de fato, as ações, os procedimentos e os discursos.

Assim, tendo como preocupação central a discussão dos pressupostos que sustentam a ação investigativa, o objetivo principal deste trabalho é interrogar o significado de um dos elementos do processo de investigação na pesquisa em educação: o objeto de conhecimento, procurando desvelar seus pressupostos e submetendo-os à crítica. Em termos não tão imediatos, o objetivo mais amplo deste trabalho é manter vivas, no seio da discussão e prática da pesquisa em educação, questões que envolvem conceitos, argumentos e idéias que não foram e não são elaborados na reflexão pedagógica e educacional, mas que contribuem no sentido de fornecer elementos para uma compreensão crítica do ato de produção do conhecimento em educação.

 

A prática investigativa: alguns aspectos para o entendimento da prática investigativa em educação

A inquietação com a explicação científica do fenômeno educativo tem dado origem a diferentes projetos investigativos que nascem no seio de perspectivas epistemológicas distintas.

Alguns projetos investigativos partem do entendimento de que o real só passa a ter sentido quando ele se torna real de pensamento, isto é, real de razão, real submetido a todo um tratamento abstrato, conceitual. Tal perspectiva epistemológica está fundada no argumento de que os sentidos e a experiência podem conduzir ao erro, não tendo, portanto, condições de assegurar o conhecimento da realidade. Nessa lógica, que afirma a fragilidade dos sentidos para produzir informações universais sobre o real, o pensamento, entendido como racionalidade explicativa e, não como racionalidade significativa, própria do campo da filosofia, aparece como única possibilidade de dar conta da realidade, pois essa pode ser pensada como um conceito, como uma construção ideal, não no sentido de uma construção utópica, mas no sentido de uma construção da idéia que afasta a descrição das qualidades do real para falar do real em sua singularidade universal.

A possibilidade de tal argumento está no entendimento de que a razão não precisa de provas empíricas, provas da experiência para assegurar a validade explicativa do discurso sobre a vida, o mundo e o homem. A razão garante o conhecimento sobre o real, pois protege o conhecimento dos equívocos da experiência, do engano dos sentidos.

Para outras correntes investigativas, diferentemente da idéia da apreensão racional da realidade sensível, o próprio realdá o seu sentido, ele mostra o que é, sem auxílio da razão entendida como condição fundamental para a construção racional da explicação sobre o mundo real. Nessa perspectiva, a experiência é o caminho adequado para corrigir os sentidos, aperfeiçoando-os para revelar a verdade. Entende-se como fundamental a abolição dos argumentos abstratos, próprios da argumentação dedutiva. O caminho para o conhecimento do real é o trajeto indutivo, ou seja, a busca da generalização com o apoio da empiria, da experiência.

Nessa lógica, a experiência é fonte legítima para o conhecimento da verdade. A consciência cognoscente busca seus conteúdos, exclusivamente, na experiência. Todos os conceitos, incluindo os mais gerais e abstratos, procedem da experiência. A explicação do real começa ".... por percepções concretas, chegando, paulatinamente, a formar representações gerais e conceitos elaborados organicamente, a partir da experiência, não existindo completos no espírito e não se formando com total independência da experiência...". (Leite et al, 2004: 1326). A preocupação é com a apreensão das informações sobre a vida, o mundo e o próprio homem a partir do encontro com as condições objetivas da própria vida, do próprio mundo e do próprio homem. O conhecimento seguro da realidade, portanto, é garantido pelas informações produzidas no campo da experiência, com o auxílio dos sentidos.

Certamente, essa disputa encontra uma alternativa epistemológica, que busca conciliar os dois caminhos - o da razão e o da experiência - ao argumentar que a experiência e a razão são condições centrais no processo de conhecimento da realidade. Para essa perspectiva, o sujeito cognoscente é portador de duas faculdades fundamentais: a sensibilidade e o entendimento, os sentidos e a razão. Afirmar essas duas dimensões como fundamentais para o conhecimento do real é dar lugar à razão e aos sentidos no processo de conhecimento da realidade. No entanto, apesar do esforço dessa perspectiva epistemológica, ela não significa o fim desse confronto entre concepções empirista e racionalista de conhecimento. Na prática investigativa contemporânea,

"... a origem do conhecimento da verdade ainda divide cientistas e filósofos. Esta divisão, certamente, decorre de formas diferentes e contraditórias de entendimento do mundo relativas a perspectivas ontológicas e antropológicas distintas e que atingem todas as dimensões da ação humana." (Leite et al, 2004: 1328)

Mas, além das concepções epistemológicas, e mais determinantes que as definições epistemológicas, estão a história da relação dos homens entre si e a história da relação dos homens com o mundo. Considerar essa história é condição necessária para o entendimento não só do significado da ciência bem como do processo de produção do conhecimento. No entanto, esta relação não é linear. Buscar essa linearidade impede a compreensão do processo em sua dinâmica intrínseca e extrínseca. Assim, para o entendimento da atividade epistemológica, considerar a historicidade da existência humana é fundamental, mas, de forma nenhuma, os fatos históricos são capazes de por si mesmos, elucidar o significado do trabalho de conhecimento do real.

Buscando, então, alguns elementos do contexto epistemológico, elementos capazes de indicar, ainda que de forma muito geral, o significado epistemológico do conhecimento científico, é preciso tratar de um tema recorrente: a Modernidade.

O tempo da Modernidade significou um momento novo para a sociedade, alterando radical e indiscutivelmente, toda a sua dinâmica, estrutura e rotina. No que diz respeito à dimensão humana do pensamento, a Modernidade foi um momento de concretização da ruptura com o modelo existente de conceber o mundo, a sociedade e o humano, ou seja, foi um tempo de negação da forma como a realidade era concebida, subvertendo a idéia dualista que afirmava o lugar da realidade, de um lado e o lugar da transcendência, do pensamento, da razão, de outro lado. Tal subversão, a rigor, significou colocar o homem e o divino na mesma posição no processo de entendimento e de afirmação do mundo. O humano passou a decifrar "os segredos da natureza" (Cassirer, 1994: 72). Tal pretensão foi negada pela tradição religiosa já que o dogma religioso da verdade em Deus estava ameaçado. Embora, para os cientistas o mundo ainda fosse uma manifestação da divindade, o seu entendimento passava a exigir uma razão esclarecedora, matematizante, universal, que logicamente se opunha ao discurso da revelação, retirando-lhe o monopólio da autoridade do saber, a responsabilidade total pelo conhecimento humano. E, mais do que isso, a razão estabeleceu-se como crítica da revelação, linguagem composta em palavras sujeitas a ambigüidades e a variadas interpretações (Cassirer, 1994).

Na Modernidade, então, a verdade abandona o terreno da revelação para situar-se no próprio mundo; e, mais grave ainda, a verdade passa a ser objeto de disputa humana, embate travado não mais na submissão à autoridade religiosa, mas empreendido através de uma criação mais autônoma na esfera da linguagem matemática e da experiência. As formas de compreensão do humano, por sua vez, foram buscar suas orientações gnosiológicas, epistemológicas e metodológicas nesse novo processo de entendimento do que é a natureza. Tornado sujeito do conhecimento, sujeito genial, conquistador de sua independência, o homem passou a ser, ele próprio, criativo e explorador. Nessa perspectiva, deu-se a construção da consciência de que, com as armas do método e do rigor matemático, tudo estaria ao alcance do homem, definitivamente feito sujeito de razão - sujeito de sua razão. E, nessa lógica, o próprio homem foi tornado objeto da razão, de uma razão metódica, matemática, empírica.

Nesse contexto de valorização do humano, de afirmação da razão no processo de conhecimento do mundo, discussão que ficou centrada no homem em si, como uma categoria independente, absoluta, universal, o Marxismo introduziu, de forma definitiva, a categoria da historicidade. A história das relações que os homens estabelecem entre si e das relações que os homens estabelecem com a natureza passou a explicar o mundo, a sociedade e o homem. O sujeito não é a consciência individual de um real desenraizado, que aparece como fenômeno de consciência, mas é definido pela materialidade das relações econômicas que o determinam e à sua existência social. A perspectiva marxista faz do sujeito do conhecimento um sujeito histórico, dotado de uma consciência histórica que é engendrada e determinada pelas relações sociais materializadas na luta de classes.

Considerando, particularmente, a prática da investigação científica em educação como está sendo realizada atualmente reacendeu, ainda que não explícita ou intencionalmente, o debate entre empirismo e racionalismo no campo do conhecimento em educação. A retomada do debate sobre a origem da verdade, verdade entendida como empreendimento construído, provisório, relativo e possível para se falar da vida, do mundo e de si, torna-se presente na reflexão sobre o processo de produção do conhecimento em educação na medida em que o projeto atual de investigação em educação tem valorizado a vivência das experiências pedagógicas como discurso científico sobre a prática educativa.

A insatisfação com os resultados das pesquisas que valorizam a experiência do concreto, a construção subjetiva do real, a vivência privada, singular, isolada como discurso sobre a realidade, leva a questionar a natureza do fazer investigativo em educação. Uma das alternativas que se apresenta como capaz de contribuir no trajeto de construção de uma nova perspectiva na pesquisa em educação é definir o trabalho investigativo, a pesquisa em educação como ação de conhecimento. Entender a pesquisa em educação como ação de conhecimento é partir de um pressuposto epistemológico diferente do tradicional. A rigor é buscar uma discussão alternativa sobre o processo de produção do conhecimento desenvolvido na prática de pesquisa em educação. Elementos para essa discussão alternativa encontramos, particularmente, na discussão sobre o método científico em Marx.

 

A questão do método científico em Marx.

A epistemologia marxista foi apresentada, em linhas gerais e não como uma preocupação central, por Karl Marx, na parte 3 do manuscrito conhecido como Introdução de 1857. Pela quase ausência de textos propriamente metodológicos, a Introdução de 1857 tornou-se um texto crucial para a compreensão da metodologia marxiana: a freqüente alusão ao texto justifica-se, principalmente, por nela estar contida "a mais extensa e a única exposição sistemática sobre a questão do método, na imensa literatura marxiana" (Gorender, 1982: XI).

Como indica Gorender (1982: XI-XIII), a Introdução de 1857 contém três principais temas: o primeiro diz respeito ao objeto científico, e consiste nas definições acerca do objeto próprio da ciência marxiana, no sentido de sua superação em relação ao tratamento do objeto dado pelos economistas anteriores a Marx; o segundo tema "aborda o aspecto propriamente epistemológico da metodologia" (idem: XII) e o terceiro tema trata da organização expositiva, ou seja, "da ordem em que devem ser expostas as categorias para que formem um sistema explicativo estruturado" (idem: XIII).Vejamos, então, alguns elementos do texto que consolidam a perspectiva metodológica de Marx, de acordo com a leitura que se pretende aqui. O ítem 3 da Introdução de 1857 - intitulado Die Methode der Politischen Ökonomie ("O método da Economia Política") - começa assim:

"Ao considerar a economia política de um dado país, começamos por sua população, sua divisão em classes, distribuída em cidade, campo e mar; os diversos ramos da produção, a exportação e a importação, a produção anual e o consumo anual, os preços das mercadorias, etc.

É que parece correto começar pelo real e pelo concreto, pela pressuposição efetivamente real e, assim, em Economia, por exemplo, pela população: fundamento e sujeito do ato todo da produção social (die Grundlage und das Subjekt des ganzen gesellschaftlichen Produktionsakts). A uma consideração mais precisa, porém, isto se revela falso. A população, por exemplo, se omito as classes que a constituem, é uma mera abstração. ...

...Se começasse pela população, haveria de início uma representação (Vorstellung) caótica do todo, e só através de determinação mais precisa (durch nähere Bestimmung), eu chegaria analiticamente (analytisch), cada vez mais, a conceitos (Begriffe) mais simples. Partindo do concreto representado (von dem vorgestellten Konkreten), chegaria a abstratos sempre mais tênues, até alcançar por fim as determinações mais simples (die einfachsten Bestimmumgen)." (Marx (1857/1997): 07, grifos e parênteses do tradutor)

O primeiro método apresentado por Marx é aquele que tem como pressuposto - e como garantia de objetividade - começar pelo real. Como o objeto da Economia é a produção, este método supõe que, começar pela população - sujeito da produção - é começar pelo real. Marx aponta, em primeiro lugar, para o erro desta concepção metodológica. Partir da população como se fosse partir do real é, na verdade, partir de uma suposição de que a população representa a base sólida, concreta, sobre o qual o processo de conhecimento deveria se iniciar. Mas, para Marx, a população só começa a ganhar sentido teórico quando a análise vai chegando às suas determinações. A população, pressuposta inicialmente como o real, dado, concreto e efetivo - o imediatamente apreensível - constitui-se como um ponto de partida cuja concretude é falsa, pois constitui-se como uma mera abstração se, nela, não estiverem contidas as suas determinações, ou seja, os conceitos mais simples. Logo, a população parece ser uma base sólida, concreta e real, de onde deve partir o conhecimento. Mas isto é falso, pois a concretude da população só começa a ser apreendida a partir do processo de análise, processo este fundamentalmente teórico. Os conceitos e as relações gerais e abstratas a que se chega pela análise é que constroem a concretude da população, pois, sem os conceitos que constituem as determinações da população, ela continuaria a ser uma abstração vazia, uma representação caótica. Por isto Cardoso diz que, para Marx, "fundar-se no real - supostamente uma base sólida - como garantia de objetividade é fundar-se numa base vazia de sentido, perdendo, portanto, tal garantia" (Cardoso, 1990: 21). A concretude, aqui, não é da ordem do real, e sim da ordem do teórico: é o trabalho teórico que constrói a concretude do real, que substitui a abstração vazia por múltiplas determinações construídas pelo trabalho teórico. Mas é preciso fazer, agora, algumas considerações mais precisas sobre o método proposto por Marx - e que ele identifica como o método cientificamente correto - para que não sejam confundidas a análise da economia clássica e a proposta do próprio Marx. Marx, após apontar o erro da pressuposição do ponto de partida na construção do objeto de conhecimento científico, conforme dito acima, afirma o seguinte:

"Dali, a viagem recomeçaria pelo caminho de volta, até que reencontrasse finalmente a população, não já como a representação caótica de um todo (eines Ganzen) e sim, como uma rica totalidade de muitas determinações e relações (als bei einer reichen Totalität von vielen Bestimmungen und Beziehungen). O primeiro caminho é aquele que a Economia percorreu em sua gênese histórica. Exemplo: os economistas do século XVII que, sempre começam por um todo vivo (mit dem lebendigen Ganzen) - população, nação, Estado, vários estados, etc. - mas, sempre terminam por algumas relações gerais, abstratas, determinantes (einige bestimmende abstrakte, allgemeine Beziehungen) - divisão do trabalho, dinheiro, valor, etc. - que eles descobriram por análise. Tão logo esses aspectos individuais isolados (diese einzelnen Momente) achavam-se mais ou menos abstraídos e fixados, os sistemas econômicos começavam a elevar-se (aufsteigen), a partir dos elementos simples, - o trabalho, a divisão do trabalho, as necessidades (Bedürfnis), o valor de troca -, até o Estado, o intercâmbio entre as nações e o mercado mundial. É manifesto que este último caminho é o método cientificamente correto. O concreto é concreto por ser uma concentração (Zusammenfassung: concentração, síntese) de muitas determinações, logo, uma unidade do múltiplo. Eis a razão por que aparece no pensamento (im Denken) como processo de concentração (síntese), como um resultado, e não como um ponto de partida,..." (Marx, 1857 /1997): 09, parênteses e grifos em negrito do tradutor, grifos em itálico nossos)

Para Marx, se o real tem uma ordem, ela não está dada; por outro lado, a busca do conhecimento desta ordem - a das determinações que estruturam o real - consiste num caminho que não é uma via informada diretamente pelo real e, também, não é um conhecimento produzido a partir do contato direto com o real. Em outras palavras, para a produção teórica das determinações da realidade social - cuja existência é uma suposição inicial do trabalho científico de Marx - não se parte de uma análise procedente do real; ao contrário, parte-se, como diz Cardoso, "dos conceitos mais simples que essa análise, já disponível - senão ela não poderia ser criticada - conseguiu alcançar no seu final" (1990: 23). Assim, este "método cientificamente correto" (Marx, 1857/1997: 09) é aquele que começa "pelo trabalho crítico sobre as categorias gerais elaboradas pela análise empírica" (Cardoso, 1990: 23).

O entendimento desta questão - a do método proposto por Marx - é crucial para a problemática que se quer demonstrar aqui. Deve-se ao trabalho de Miriam Limoeiro Cardoso (1990) a possibilidade desta leitura da Introdução de 1857. Trata-se de um reconhecimento, por parte de Marx, já no século XIX - em que predominavam, segundo Cardoso (1990), as perspectivas empíricas nas pesquisas científicas -, de que o objeto inicial do trabalho científico não é o real propriamente dito; diferentemente das interpretações dominantes na Filosofia da Educação, a concepção de relação que se estabelece no "método cientificamente correto" é a de uma relação entre o sujeito de conhecimento (histórico e teórico) e o conhecimento já disponível, uma relação de negação e crítica que, face à precariedade do conhecimento anterior, produz-se um novo conhecimento. A concretude do real é produzida no campo teórico - com a construção das determinações - e, assim, tanto o objeto de que se parte, quanto aquele que é produzido são construídos pelo trabalho teórico. Porém - e este ponto é realmente crucial - estas determinações não são construídas a partir de uma relação com o próprio real: são construídas a partir de uma crítica teórica do conhecimento anterior.

Há, então, dois caminhos constitutivos do "método cientificamente correto" - e não um único caminho: o primeiro constitui o trabalho de crítica do conhecimento anterior, do conhecimento acumulado e já disponível socialmente. Este trabalho de crítica do conhecimento anterior foi exatamente o gigantesco e rigoroso trabalho realizado por Marx ao empreender a crítica da economia clássica e sem o qual a teorização sobre o modo de produção capitalista seria impossível. Esta é a via em que se caminha do abstrato (as categorias da economia clássica) ao abstrato e em que são reconstruídas as categorias econômicas, a partir da crítica. Este foi, portanto, um trabalho enorme e um esforço teórico gigantesco empreendido por Marx, que passa a se constituir como ponto de partida, então, para a construção de sua teoria sobre a produção capitalista. O segundo caminho do "método cientificamente correto" consiste na própria teorização do objeto, ou seja, consiste na produção teórica do modo de produção capitalista, a partir da reconstrução crítica das categorias econômicas realizada no primeiro momento. Assim, o ponto de partida do segundo método - o "método cientificamente correto" - não é o ponto de chegada do primeiro método, pois, além de ser abstrato, é um abstrato reconstruído criticamente a partir do primeiro abstrato. Em outras palavras, as categorias às quais chegou a Economia Política clássica precisaram ser reconstruídas criticamente e, somente a partir desta crítica, foi possível a produção teórica nova, a produção científica de Marx. Portanto, o ponto de partida para a produção teórica nova é este abstrato já criticado pelo autor - e não o real. Sobre isto, assim diz Cardoso:

"Portanto, o conhecimento científico do real começa com a produção crítica das suas determinações, produção que se processa ao nível do teórico, ao nível das categorias. Por ser crítica de uma produção teórica anterior, tal produção só pode ser alcançada quando já existe um desenvolvimento teórico razoável disponível. É daí que o método para produzir esse conhecimento "se eleva do abstrato ao concreto."" (Cardoso, 1990: 32)

Apesar da afirmação acerca da anterioridade do real e de sua independência face ao seu conhecimento, o real, aqui, aparece como pressuposição - e não como objeto da ciência marxiana. Para Marx, o real coloca-se como pressuposto: há uma certeza teórica de sua existência e concretude e, por isso - e somente neste sentido - ele é o "ponto de partida efetivo" (Marx, 1857 /1997: 14). Por isto, o "método cientificamente correto" tem este real como pressuposição, embora o conhecimento deste real não proceda deste mesmo real. Para concluir, podemos afirmar que, por um lado, "o pensamento não é a gênese do real, nem o real é a gênese do pensamento. Mas se pode, e se deve, afirmar que o real sempre antecede ao teórico, que o teórico é um teórico sobre um real" (Cardoso,1990: 31); mas que, por outro lado, a produção do real no pensamento não advém de uma relação entre sujeito e real: provém de uma nova construção a partir de uma construção anterior - que se nega ou que se alarga. Como esclarece Cardoso, a respeito da revolução teórica de Marx:

"Nesse momento é que o conhecimento se apresenta decididamente como uma relação. Relação pela qual se transforma e que funda todo o progresso da ciência: relação de precariedade com o seu próprio objeto.

Não é toda construção de conhecimento que se faz por esta relação de precariedade, mas apenas a construção das grandes transformações do conhecimento científico, nos limites do poder explicativo de um esquema teórico, no estabelecimento de uma teoria marcada pelo novo. Há todo um processo de lenta acumulação e extensão teórica até que uma relação de precariedade seja capaz de romper com o conhecimento anterior." (Cardoso, 1978: 29)

A afirmação de Cardoso acerca da condição teórico-histórica para o alcance da produção científica marxiana - e, portanto, para a realização deste "método cientificamente correto" - é fundamental: a autora nos mostra que, não somente Marx reconhecia que a sua produção teórica só foi possível mediante a existência de uma produção anterior - a já disponibilizada pela Economia Política clássica - como reconhecia que seu objeto inicial é resultado da crítica e reconstrução desta produção anterior. Ou seja, o "método cientificamente correto" - de elevar-se do abstrato ao concreto - só pôde ser realizado a partir de um certo contexto histórico e científico. Este método, então, não pode ser pensado independente da conjuntura científica e social da qual emerge, ou seja, não pode ser pensado abstraído das determinações teóricas e históricas de onde partiu, através das quais pôde se realizar.

 

Conclusão

Ao continuar a trajetória de interrogação sobre os pressupostos do processo de produção do conhecimento em educação, foi apresentada uma alternativa epistemológica que se apresenta como um instrumento capaz de contribuir no trajeto de construção de uma nova perspectiva teórica na pesquisa em educação. O campo teórico-metodológico que tem como fundamento a epistemologia marxista permite-nos identificar alguns limites no tratamento da questão do objeto de conhecimento, quando circunscritos ao campo do empirismo e do racionalismo tal qual apresentados neste artigo. O fundamento da concepção marxiana de método científico e de seu objeto permite a superação dos dilemas comuns existentes nas concepções epistemológicas da Modernidade, possibilitando a compreensão do objeto científico como um real histórico, social e teórico, cujas determinações não podem ser apreendidas numa relação direta e informada pelo real empírico. A compreensão de Marx acerca do objeto de conhecimento que constitui o ponto de partida de sua construção teórica, entendido como sendo o conhecimento produzido pela Economia Política anterior, que consiste nas categorias mais simples aos quais aquela ciência pôde chegar, nos indica um horizonte fundamental para o tratamento do objeto de conhecimento em pesquisa educacional: o de que o conhecimento acerca da realidade consiste numa construção teórica e histórica em busca da compreensão das determinações também históricas da realidade, que não são informadas diretamente pela mesma. A questão da historicidade do real e da necessidade da construção teórica do objeto de conhecimento na pesquisa em educação são elementos centrais para uma reflexão epistemológica contrária à forma tradicional de pensar o trajeto do conhecimento, especialmente no campo educacional. A discussão inicial apresentada neste artigo sobre a questão do método científico em Marx nos indica a importância de buscar elementos em uma discussão mais aprofundada sobre o significado do trabalho teórico na perspectiva marxista, e demonstra a necessidade da problematização dos pressupostos teórico-metodológicos na produção de conhecimento em educação.

 

Referências Bibliográficas

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Notas

G.C. Bouyer
E-mail para correspondência: gilbertcb@uol.com.br

 

Agradecimentos

O presente trabalho foi apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), através de auxílio financeiro (Edital Universal, 2004).