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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.14 no.1 Rio de Janeiro Mar. 2009

 

ENSAIO

 

Reflexões sobre palavra, sentido e memória em Freud e Saussure

 

Reflections about word, meaning and memory in Freud and Saussure

 

 

Coraci Helena do Prado

Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, São Paulo, Brasil
Universidade Federal de Goiás/Campus de Jataí (UFG/CAJ), Jataí, Goiás, Brasil

 

 


RESUMO

Este ensaio apresenta um estudo acerca de palavra, sentido e memória em Freud e Saussure. Trata-se de uma reflexão sobre as relações que tais elementos, no interior de cada corpo teórico, estabelecem entre si, com a linguagem e com a realidade externa; e ainda sobre em que aspectos e em que medida as teorias dos dois autores aproximam-se e/ou se afastam. Resulta desse estudo que são possíveis algumas aproximações entre os elementos da psicologia freudiana e os da lingüística saussuriana, concernentes à sustentação da distinção filosófica entre a palavra e a coisa, contida na noção de representação; à associação de elementos psíquicos no processo de representação, quais sejam, uma imagem acústica e um conceito ou uma imagem visual; ao pressuposto tanto de fechamento do sentido no limite da palavra quanto de abertura, seja das associações mentais, seja das representações objectuais. Mas, sobretudo, destacam-se diferenças, que dizem respeito ao tipo de relação entre os processos fisiológicos e os psíquicos: paralelos e simultâneos, na representação freudiana; independentes e em seqüência temporal, na representação saussuriana; e, principalmente, às concepções essencialmente distintas de inconsciente nos processos psíquicos de associação: um lugar psíquico onde as associações se realizam, para Freud; o modo como uma palavra suscita outras no processo, para Saussure.

Palavras-chave: linguagem; inconsciente; Freud; Saussure.


ABSTRACT

This paper presents a study regarding word, meaning and memory in Freud and Saussure. It is a reflection on the relationship that such elements, inside each theoretical basis, set among themselves, with language and the external reality. It is also focused on the extent to which the two authors' theories are close or fall apart. The results show that some nearness is possible between the Freudian Psychology and the Saussurian Linguistics, concerning the support for the philosophical distinction between the word and the thing, contained in the notion of representation; the association of psychic elements in the process of representation, that is, an acoustic image and a concept or a visual image; the assumption either of enclosure of meaning in the limit of the word or of openness, either of mental associations or of objectual representations. Nevertheless, some differences emerge, regarding the sort of relationship between the physiological and psychic processes: parallel and simultaneous, in the Freudian representation; independent and in a temporal sequence, in the Saussurian representation; and, mainly, differences concerning the essentially distinct conceptions of unconscious in the association psychic processes: a psychic place where associations are realized, according to Freud; a way in which a word evokes others in the process, according to Saussure.

Keywords: language; unconscious; Freud; Saussure.


 

 

1. Introdução

Este ensaio apresenta um estudo acerca de palavra, sentido e memória em Freud, a partir dos textos A interpretação das Afasias (1891/1979) e a Carta 52 de Freud a Fliess (apud Masson, 1986), e em Saussure, com base no Curso de Lingüística Geral (1916/2004). Trata-se de uma reflexão sobre como esses elementos da linguagem comuns aos textos, mas tomados de diferentes lugares epistemológicos e com objetivos diversos, participam da construção de cada corpo teórico, quer dizer, em que consistem e que relações estabelecem entre si, com a linguagem e com a realidade externa. Essa reflexão talvez permita, ainda, considerar em que aspectos e em que medida as teorias de Freud e de Saussure aproximam-se e/ou se afastam. Subsidiam esta leitura, leituras de Lacan, que em muitos momentos de seus Escritos e seus Seminários fundamenta suas reflexões nos textos citados (com exceção de A interpretação das Afasias), além de outros autores cujas considerações se mostrem elucidativas.

 

2. Articulações saussurianas: o signo

A reflexão proposta inicia-se com uma pontuação das formulações saussurianas, porém não sem antes atentar para os preâmbulos já bastante conhecidos sobre a edição do Curso de Lingüística Geral (1916/2004), doravante CLG, a qual resultou da reconstituição das idéias do mestre genebrino por dois de seus discípulos1, a partir das anotações de alunos de três cursos ministrados por ele na Universidade de Genebra. Essa interpretação foi tomada, por quase um século, como sendo o próprio pensamento de Saussure, e produziu efeitos de tamanha significação que a obra demarcou a fundação da ciência da língua, difundiu o método estrutural como modelo nas diversas áreas das ciências sociais e tornou-se referência obrigatória a quantos estudos da linguagem a seguiram, sejam de continuadores, opositores ou subvertores. Portanto, cumpre lembrar, em relação à obra tomada aqui como base das referências metonímicas a Saussure, a possível redução de suas idéias à interpretação de seus alunos; o apagamento das lacunas e das idéias em suspenso; bem como o descontentamento e os dilemas de Saussure com o desenvolvimento de seus cursos2.

Pode-se inferir, pois, em relação ao Saussure que nos é dado a conhecer no CLG, que é em nome da cientificidade, ou, em termos lacanianos, por um deslizamento para o discurso do senhor, que ele opera recortes na linguagem, que, "multiforme e heteróclita; o cavaleiro de diferentes domínios", não se deixa classificar, e toma apenas "uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente", como objeto da lingüística: a língua, "um todo por si e um princípio de classificação" (Saussure, 1916/2004: 17). Saussure entende que qualquer fenômeno lingüístico apresenta um princípio geral válido para qualquer ponto de vista: o fato de apresentar perpetuamente duas faces correspondentes e inseparáveis, das quais uma não vale senão pela outra. Tal princípio, implicado na noção mesma de signo lingüístico, uma coisa dupla, constituída da união de dois termos, resulta na definição do signo como unidade da língua, e da língua como norma para toda e qualquer manifestação de linguagem. Além disso, os dois termos do signo são caracterizados, na formulação saussuriana, como sendo ambos psíquicos e unidos em nosso cérebro por um vínculo de associação, o que explicita que se trata da união não de uma coisa e uma palavra, mas de um conceito e uma imagem acústica. Tal definição de signo sustenta, portanto, um ponto de vista acerca da relação da língua com as coisas do mundo: a língua não é uma nomenclatura para as coisas; ela não supõe idéias feitas, preexistentes às palavras, mas consiste numa representação das coisas.

Para distinguir e realçar os elementos psíquicos constitutivos do signo, Saussure propõe utilizar o termo signo para designar a unidade total e substituir conceito por significado e imagem acústica por significante, pois esses termos assinalariam, segundo ele, a oposição que tanto os separa entre si quanto em relação ao total de que fazem parte. Por outro lado, propõe trabalhar sobre a palavra, tendo em vista que não se pode captar diretamente o signo e também que, mesmo "sem recobrir exatamente a definição da unidade lingüística, [as palavras] dão dela uma idéia pelo menos aproximada, que tem a vantagem de ser concreta" (Saussure, 1916/2004: 81). A imagem acústica, por sua vez, trata-se não do som material, da coisa puramente física, mas da impressão (empreinte) psíquica desse som ou da representação que nossos sentidos nos dão dele. Quanto ao conceito, ele se divide entre a significação e o valor do signo, entre os quais há uma distinção "delicada": a significação é a contraparte da imagem auditiva nos limites da palavra, quando se a considera como um domínio fechado existente por si próprio; já o valor, ele se caracteriza por, de um lado, constituir um elemento da significação, do qual ela depende, mas, de outro lado, ser a contraparte da relação de um signo com os outros signos da língua, constituindo a língua como um sistema solidário, em que o valor de um termo resulta unicamente da presença simultânea de outros. Em suma, o valor do signo diz respeito ao sistema lingüístico: uma série de diferenças de sons combinados com uma série de diferenças de idéias, cuja confrontação engendra um sistema de valores; tal sistema é que constitui o vínculo efetivo entre os elementos fônicos e psíquicos no interior de cada signo.

Com base nessa noção de valor, que Saussure reconhece como o aspecto paradoxal da questão, pode-se propor a existência de graus distintos de significação, conforme o signo seja tomado em si mesmo, como termo positivo, ou por seu valor diferencial no sistema da língua. No primeiro caso, o signo carrega um sentido intrínseco e absoluto e tem uma função representativa, visto que a associação da imagem acústica com o conceito "pode, em certa medida, ser exata e dar uma idéia da realidade" (Saussure, 1916/2004: 136). Por outro lado, tomado por seu valor em relação aos outros signos do sistema da língua, o signo tem seu sentido relativizado por sua função estrutural, visto que depende do que está fora, ao seu redor. Portanto, somente se o signo é tomado em sua totalidade, tem-se uma coisa positiva em sua ordem, ou seja, uma palavra com sentido; caso contrário, "quer se considere o significado, quer o significante, a língua não comporta nem idéias nem sons preexistentes ao sistema lingüístico, mas somente diferenças conceituais e diferenças fônicas resultantes deste sistema" (Saussure, 1916/2004: 136). Tais diferenças e relações, segundo Saussure, desenvolvem-se em duas ordens, que correspondem a duas formas de nossa atividade mental: a combinação, que diz respeito às relações baseadas no caráter linear da língua, ou seja, as relações que os termos estabelecem entre si in praesentia, em virtude de seu encadeamento no discurso; e a associação, que se refere ao processo pelo qual, fora do discurso, as palavras se associam in absentia, na memória, constituindo séries mnemônicas virtuais, quer dizer, grupos organizados por relações diversas, conforme o que as palavras têm em comum. Tal é o princípio pelo qual, constituindo as famílias de palavras em número indefinido e ordem indeterminada, uma palavra faz "surgir inconscientemente no espírito uma porção de outras palavras" (Saussure, 1916/2004: 143).

Para não deixar dúvidas quanto ao tipo de vínculo que há entre os elementos constitutivos do signo, quer sejam a idéia e os sons, o conceito e a imagem acústica, ou ainda o significante e o significado, como se queira, Saussure (1916/2004: 130-31) constrói metáforas, como a de uma nebulosa: "tomado em si, o pensamento é como uma nebulosa onde nada está necessariamente delimitado. Não existem idéias preestabelecidas, e nada é distinto antes do aparecimento da língua"; a de vagas (uma série de divisões formadas pela decomposição de uma capa de água em contato com o ar, caso mude a pressão atmosférica): "são essas ondulações que darão uma idéia da união e, por assim dizer, do acoplamento do pensamento com a matéria fônica"; a de uma folha de papel, em que "o pensamento é o anverso e o som o verso; não se pode cortar um lado sem cortar, ao mesmo tempo, o outro". O conjunto dessas imagens demonstra a constituição das unidades da língua como articulus, entendido como a fixação de uma idéia num som, de forma que um som se torne o signo de uma idéia, sendo que nesse processo o papel da língua é o de intermediária entre essas "duas massas amorfas". Segundo Saussure (1916/2004: 130, grifos do autor), "esta combinação produz uma forma, não uma substância", e nesse terreno trabalha a lingüística. Por outro lado, uma separação entre som e pensamento só seria possível "por uma abstração cujo resultado seria fazer Psicologia pura".

Do que se pontuou até agora do construto saussuriano, algumas questões já se colocam: o que há antes dessas massas amorfas, ou seja, de que se constitui essa nebulosa do pensamento tomado em si, que, embora não contendo idéias preestabelecidas, tem um em si? O que há aí que, de modo misterioso, é forçado a precisar-se ao se decompor, como vagas? Essas questões remetem a Freud, mais especificamente à leitura que Lacan (1988: 180) faz do texto freudiano, a qual entende uma afirmação de que "é preciso sempre supor uma organização anterior, pelo menos parcial, de linguagem, para que a memória e a historicização possam funcionar. (...) É preciso já ter o material significante para fazer significar seja o que for".

Por sua vez, Lacan (1988: 174) conclui que se trata de um "significante primordial" dentro de um "primeiro corpo de significante", em cujo interior "Freud supõe se constituir o mundo da realidade, como já pontuado, já estruturado em termos significantes". Porém o significante dado primitivamente "ele não é nada enquanto o sujeito não o faz entrar em sua história" (Lacan, 1988: 180), e isso, segundo Lacan afirma em outra ocasião (1985a: 46), simplesmente porque não há realidade pré-discursiva; a coletividade, "os homens, as mulheres e as crianças, não são mais do que significantes". Daí se pode inferir que, antes daquela união da matéria plástica com o pensamento caótico, ou seja, antes do signo saussuriano, há algo, o significante, que é linguagem e carrega algo de real, mas que também é nada, até que entre na história do sujeito, quer dizer, até que se torne algo do simbólico. Enfim, trata-se de supor, nos termos de Pommier (2005: 11), uma "'realidade' habitada pela subjetividade", e um real além dela. Esse aparte antecipa o que será tratado mais adiante e coloca, já, o fundamento da subversão que Lacan opera no signo saussuriano com a inversão de seu esquema representativo, que passa a indicar a prevalência do significante sobre o significado, e a inclusão da barra resistente à significação. Tal subversão se apóia na convicção de fracasso em sustentar a questão da natureza da linguagem "enquanto não nos tivermos livrado da ilusão de que o significante atende à função de representar o significado" (Lacan, 1998: 501). E isso Lacan lê em Freud, embora atribua à lingüística a introdução da dimensão significante.

Em relação à lingüística, Lacan (1985a: 42) a acusa de introduzir na fala uma dissociação que não se justifica, pois funda a distinção do significante e do significado no que lhe parece (a Lacan) espontâneo, visto que "quando falamos, isso significa, isso comporta o significado e, ainda mais, até certo ponto isso só se suporta pela função de significação". A essa distinção, Lacan contrapõe que "distinguir a dimensão do significante só ganha relevo ao se colocar que o que vocês entendem, no sentido auditivo do termo, não tem nenhuma relação com o que isso significa". Dessa forma, esse autor inscreve a noção de escrita como aquilo que não é para ser compreendido e, portanto, não é, de forma alguma, o significado do que se ouve do significante: "o significado não tem nada a ver com os ouvidos, mas somente com a leitura, com a leitura do que se ouve de significante. O significado não é aquilo que se ouve. O que se ouve é significante. O significado é efeito de significante" (Lacan, 1985a: 47).

Por outro lado, Lacan (1998) considera que Freud, na formulação do aparelho psíquico, exposto na Carta 52 e retomado em Além do princípio do prazer e A Interpretação dos sonhos, descreve todo o jogo da aproximação da representação com o significante primitivo. Pode-se então deduzir que nesse ponto é que Freud ultrapassa a "psicologia pura" e inicia uma metapsicologia, ao entrar nos domínios da linguagem e indiciar o inconsciente nesse "jogo" da representação, embora seja mesmo uma psicologia que Freud se propõe construir quando, ainda neurologista, percebe que as perturbações da linguagem não se explicam pelo recurso à anatomia ou à fisiologia do cérebro e propõe estudá-las sob o ponto de vista psicológico. Contudo, desde o início, tratava-se de uma "nova" psicologia, como Freud mesmo avalia na Carta 52 (apud Masson, 1986: 209): "Se eu pudesse fornecer uma explicação completa das características da percepção e dos três registros, teria descrito uma nova psicologia". O que de fato se vê nascer aí é uma teoria em que linguagem e inconsciente se implicam numa relação constitutiva - que Lacan mais tarde leria como a estrutura de linguagem do inconsciente e Saussure ignoraria -, na qual com certeza não há uma simples separação entre som e pensamento, mas uma complexificação tanto da associação quanto da constituição de cada um dos elementos da linguagem.

 

3. Articulações freudianas: o aparelho de linguagem

Desde o texto sobre as afasias, Freud já sugeria existir algo de inconsciente no mecanismo da linguagem. Nesse texto, Freud concebe um "aparelho de linguagem" ("de" e não "para a" linguagem, posto que não a constitui, mas é constituído por ela ) no interior do qual a palavra, unidade da função de linguagem, é entendida como "uma complexa representação que se apresenta composta de elementos acústicos, visuais e cinestésicos" (Freud, 1891/1979: 67). Esses elementos, associados entre si, constituem as imagens mnêmicas, que dão origem às representações. Porém a complexidade do processo de representação não diz respeito apenas à pluralidade de elementos sensíveis à percepção, mas principalmente ao fato de que esse processo, tal como concebido por Freud, é composto de dois campos associativos: o da representação-objeto e o da representação-palavra.

Assim, no funcionamento desse aparelho de linguagem, o que dá sentido à palavra (pelo menos quando se consideram os substantivos) é sua ligação, por meio da imagem acústica, com a representação-objeto. Esta, por sua vez, concebida no caminho da filosofia3, também não é uma simples imagem da coisa, mas um complexo constituído de associações visuais, tácteis, acústicas etc., enfim, um leque de impressões sensoriais que a qualificam como um complexo aberto. Desse complexo aberto, contudo, resulta uma unidade pela associação com a representação-palavra, por intermédio da associação visual. Já a representação-palavra é qualificada como "um complexo fechado de representações (...) algo de fechado embora susceptível de ampliação" (Freud, 1891/1979: 71-72), que é representado pela imagem acústica. Como se observa, a ligação entre os dois campos associativos - da palavra e do objeto - não ocorre a partir de todos os elementos que neles estão associados, pois cada campo é representado, respectivamente, pela imagem acústica e pela imagem visual. Não obstante, a idéia de rede associativa está aí colocada.

Quanto à natureza da representação, Freud afirma que ela não é a projeção direta no córtex de um estímulo externo, mas um complexo processo que "está privado destas relações diretas com a periferia do corpo" (Freud, 1891/1979: 66). Segundo o autor, o córtex cerebral contém a periferia do corpo da mesma maneira que "um poema contém o alfabeto, isto é, num arranjo completamente diferente servindo a outros propósitos, em variadas associações dos elementos individuais, dos quais alguns podem ser representados várias vezes, outros não" (Freud, 1891/1953: 53)4.

 

4. Contrapontos

Freud reconhece uma relação entre os processos fisiológicos e os psíquicos relativos ao campo da linguagem, porém observa que essa relação não é de causalidade; ao contrário, trata-se de processos paralelos e simultâneos ("a dependent concomitant"). São paralelos porque sensação (percepção) e associação designam "duas diferentes perspectivas do mesmo processo" (Freud, 1891/1979: 57), uma fisiológica e outra psíquica, respectivamente; além disso, são indivisíveis; não se pode ter uma sensação sem que haja uma associação simultânea. Enfim, a hipótese de Freud é de que a região cortical da linguagem é um articulado tecido cortical, como uma rede, dentro da qual as associações e as transmissões procedem de forma muito complexa.

Esse complexo processo associativo foi analisado e descrito por Freud em relação a cada uma das atividades da linguagem (falar, aprender uma segunda língua, ler, soletrar, escrever). Os processos da fala e da compreensão da palavra ouvida, por exemplo, são descritos por ele da forma transcrita abaixo:

"Aprendemos a falar na medida em que associamos uma 'imagem acústica da palavra' com uma 'sensação ao nível de inervação da palavra'. Quando falamos, chegamos à posse de uma 'representação motora da linguagem' (sensações centrípetas dos órgãos da linguagem) de tal modo que a 'palavra' é para nós duplamente determinada a nível motor. (...) Além disso, após o falar obtemos uma 'imagem acústica' da palavra pronunciada." (Freud, 1891/1979: 67, grifos do autor)

"Provavelmente não devemos representar-nos a compreensão da palavra no caso de estímulo periférico como uma simples prossecução dos elementos acústicos aos da associação objectual; pelo contrário, parece que na audição acompanhada pela compreensão de um discurso a atividade de associação verbal é estimulada ao mesmo tempo a partir de elementos acústicos." (Freud, 1891/1979: 84)

Como Freud, Saussure refere-se a processos psíquicos e fisiológicos quando descreve o modo como se dá a associação entre o conceito e a imagem acústica; porém, para o lingüista, trata-se de processos isolados, em que um fenômeno inteiramente psíquico é seguido de um processo fisiológico na produção da fala, como denotam as expressões temporais depois, em seguida constantes de sua exposição. Já na recepção ocorre o inverso, conforme se observa no circuito de fala transcrito abaixo:

"Suponhamos, então, duas pessoas, A e B, que conversam. O ponto de partida do circuito da fala se situaria no cérebro de uma delas, por exemplo A, onde os fatos de consciência, a que chamaremos conceitos, se acham associados às representações dos signos lingüísticos ou imagens acústicas que servem para exprimi-los. Suponhamos que um dado conceito suscite no cérebro uma imagem acústica correspondente: é um fenômeno inteiramente psíquico seguido, por sua vez, de um processo fisiológico:o cérebro transmite aos órgãos da fonação um impulso correlativo da imagem; depois, as ondas sonoras se propagam da boca de A até o ouvido de B: processo puramente físico. Em seguida, o circuito se prolonga em B numa ordem inversa: do ouvido ao cérebro, transmissão fisiológica da imagem acústica; no cérebro, associação psíquica dessa imagem com o conceito correspondente." (Saussure, 1916/2004: 19, grifos do autor)

Em suma, do que foi até agora pontuado, podem-se perceber algumas aproximações entre a palavra da psicologia freudiana e a da lingüística saussuriana. Há, em ambos os casos, a sustentação da distinção filosófica entre a palavra e a coisa, sendo que a palavra comporta o pensamento da coisa, é sua representação. Da mesma forma, em ambas as noções de representação há a associação de elementos psíquicos: uma imagem acústica, de um lado, e, de outro, um conceito ou uma imagem visual. E ainda, ambas prevêem tanto um fechamento do sentido no limite da palavra quanto uma abertura, seja das associações mentais, seja das representações objectuais. Por outro lado, também se apresentam diferenças, como a que diz respeito ao tipo de relação entre os processos fisiológicos e os psíquicos: paralelos e simultâneos, na representação freudiana; independentes e em seqüência temporal, na representação saussuriana; e, principalmente, a que concerne à natureza da associação: complexa na primeira, constituindo uma rede associativa; simples na segunda, ocorrendo "inconscientemente no espírito", tanto na união dos elementos do signo quanto na ligação de uma palavra com outras palavras de uma série mnemônica virtual.

Esse último ponto é essencial ao propósito desta reflexão, ou seja, o fato de Saussure pressupor um lugar no cérebro onde os fatos de consciência, ou os conceitos, acham-se já associados às representações dos signos lingüísticos ou imagens acústicas, prontos para serem suscitados no momento da fala. Quer dizer, para o lingüista, haveria um lugar virtual no cérebro onde as palavras, como unidades lingüísticas concretas, representantes do signo em sua totalidade, acumular-se-iam e facultariam o sentido ao sujeito falante. Essa questão, a ser analisada na etapa seguinte, que discute o terceiro elemento deste estudo, a memória, marca mais explicitamente a natureza dos processos da representação freudiana e, conseqüentemente, acentua o afastamento entre as noções de palavra e de sentido construídas em cada teoria.

Várias passagens do CLG, como as transcritas a seguir, além das já mencionadas, supõem uma concepção de memória, embora Saussure não a tenha abordado especificamente:

"Se pudéssemos abarcar a totalidade das imagens verbais armazenadas em todos os indivíduos, atingiríamos o liame social que constitui a língua. Trata-se de um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro ou, mais exatamente, nos cérebros dum conjunto de indivíduos, pois a língua não está completa em nenhum." (Saussure, 1916/2004: 21, grifos meus)

"É ouvindo os outros que aprendemos a língua materna; ela se deposita em nosso cérebro somente após inúmeras experiências. (...) A língua existe na coletividade sob a forma duma soma de sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos exemplares, todos idênticos, fossem repartidos entre os indivíduos." (Saussure, 1916/2004: 27, grifos meus)

"Nossa memória tem de reserva todos os tipos de sintagmas mais ou menos complexos, de qualquer espécie ou extensão que possam ser, e no momento de empregá-los, fazemos intervir os grupos associativos para fixar nossa escolha." (Saussure, 1916/2004: 150-151, grifos meus)

Como mostram os destaques nos excertos, a memória, no texto saussuriano, significa "armazenagem" ou "depósito" no cérebro não só de imagens verbais, que constituem um dicionário, mas também de um sistema gramatical, que inclui todos os tipos de sintagmas; enfim, trata-se de um "tesouro virtual". A origem desse material virtual, segundo o lingüista, é o meio social; o conteúdo, o conjunto de convenções adotadas pelo corpo social; e o meio, a fala dos indivíduos. Tal concepção de memória lingüística autoriza Saussure a assegurar que todos os indivíduos unidos pela linguagem reproduzem aproximadamente os mesmos signos unidos aos mesmos conceitos. Esse pressuposto revela a confusão em tomar virtual como sinônimo de psíquico e, ao mesmo tempo, oposto a real, o que se infere a partir da explicação de Pommier (2005: 98) de que o real não se opõe ao virtual; "o virtual é um real passado ou um real ainda não atualizado. O virtual se opõe, em todo caso, ao atual, quer dizer, a aquilo que resulta do ato de percepção".

De modo distinto, a concepção de memória de Freud, que contém "alguma coisa de inacessível à experiência", segundo avalia Lacan (1988: 176), constrói-se justamente sobre essa distinção entre virtual e atual e sobre esse caráter de atualidade da percepção. Sua hipótese é de que as imagens mnêmicas constituem-se na complexa associação entre a representação-objeto e a representação-palavra. Essa associação, que de forma alguma é quiescente, mas tem a natureza de um processo, deixa no córtex, ao final, apenas uma "possibilidade da recordação" (Freud, 1891/1979, p. 57), designada de imagens mnêmicas. Dessa forma, Freud afirma (apesar da dúvida retórica) que a recordação não corresponde ao acesso pela consciência a uma "imagem mnésica latente"; ao contrário, a possibilidade de recordação consiste em que a cada vez que esse estado do córtex for novamente excitado, todo o processo seja novamente desencadeado, em processos de superassociação.

A noção de superassociação implica, pois, a de repetição, porém esta se refere à atualização do processo, não a algo fixo e latente, e isso simplesmente porque, na repetição, "não se encontra jamais o mesmo objeto" (Lacan, 1988: 174). Acerca do mecanismo da repetição, Lacan (2003: 79) afirma que "ela está aí para fazer surgir, para lembrar, para fazer insistir alguma coisa que não é nada mais, em sua essência, do que um significante". Nisso consiste a essência da repetição, fundamental para as formulações freudianas da dinâmica psíquica da representação, as quais, surgidas num momento de contestação às concepções neurológicas tradicionais da época, podem estender-se a Saussure, uma vez que tal dinâmica, não sendo superposição mas re-petição de processos associativos, inviabiliza tanto a hipótese de memória como soma de sinais idênticos depositados em cada cérebro, como também a de associação como fixação de uma escolha dentre os sinais disponibilizados. Conseqüentemente, a noção de superassociação desfaz qualquer possibilidade de que os indivíduos unidos pela linguagem reproduzam aproximadamente os mesmos signos unidos aos mesmos conceitos, visto que os processos associativos, além de serem sempre redescobertas da realidade, são singulares e imprevisíveis, ocorrendo de maneira diversa em cada sujeito. Por fim, o mesmo conceito exclui também a hipótese de que a aprendizagem da língua materna ocorra pela sobreposição de experiências no cérebro, pois é sempre como um processo de superassociação que deve ser pensada a aprendizagem de cada uma das funções da linguagem, como a fala, a leitura, a compreensão, a escrita, a língua dos outros.

Na Carta 52, Freud (apud Masson, 1986) apresenta em esquema seu aparelho de memória, o qual, compreendendo todo o mecanismo psíquico, demonstra que consciência e memória se excluem mutuamente e que a memória não é simples, mas constitui-se de forma muito complexa, ao longo de diversas vezes. Essa complexidade diz respeito ao rearranjo ou reescrição dos traços mnêmicos em três diferentes registros, de acordo com cada nova circunstância e conforme os neurônios que os veiculam. Assim, segundo o esquema freudiano, entre as instâncias da percepção e da consciência encontram-se tanto os registros inconscientes, que incluem o de indicação da percepção dos traços e o das lembranças conceituais, quanto o registro pré-consciente, ligado à representação-palavra. Esses registros, segundo Freud, representam conquistas psíquicas de fases sucessivas, em cujas fronteiras deve ocorrer a tradução dos traços mnêmicos, pois cada fase de excitação só se esgota e só é inibida pela transcrição posterior; logo, se esta transcrição falta, prevalecem as leis do período psíquico precedente. Em síntese, analogamente a um "bloco mágico"5, o aparelho de memória é constituído por dois sistemas: um sistema perceptivo que recebe as impressões, mas não retém traços, e um sistema mnêmico que os retém. Logo, uma percepção não significa uma atribuição de sentido imediata, pois não apenas não há sentido consciente anterior ao processo inconsciente, como também não há memória fixa, onde os sentidos pudessem ser armazenados e acessados a cada novo estímulo. O que há são traços rearranjados, reescritos, cifrados e decifrados nas instâncias inconscientes, para só então a palavra ser disponibilizada como signo na pré-consciência e poder ser resgatada com sentido pela consciência.

Quer dizer, os registros inconscientes representam o processo necessário para que o objeto percebido chegue à consciência, e isso só ocorre passando pelo simbólico; como observa Lacan (1973: 48), "para que isso passe para a memória, é preciso primeiro que seja apagado na percepção, e reciprocamente". De outro modo, se uma percepção permanece no campo da coisa, quer dizer, se a coisa retorna ao sujeito sem palavra, resta uma possibilidade alucinatória, que provoca não um sentido, mas uma sideração. Segundo Lacan (1985: 141), foi esse problema da relação da alucinação com a realidade que levou Freud a formular o aparelho de memória, pois era necessário contrapor à concepção do aparelho psíquico como "mera placa sensível", na qual uma excitação reativaria sempre uma mesma série de experiências e produziria sempre uma mesma imagem, um "teste da realidade", que "supõe uma comparação da alucinação com algo que seja recebido na experiência e conservado na memória do aparelho". Outra coisa é o recalque, que, segundo Freud, ocorre por uma falha na tradução; ou seja, como o campo simbólico é furado e não recobre tudo, nem tudo que é percebido chega à consciência. Assim, no inconsciente restam os desejos que "não se extinguem jamais, porque aqueles que se extinguem [tornam-se conscientes], por definição não se fala mais deles" (Lacan, 1988: 176). Os desejos que restam são os que causam desprazer e, por isso, são re-calcados; porém, "continuam a circular na memória e (que) fazem com que, em nome do princípio do prazer, o ser humano recomece indefinidamente as mesmas experiências dolorosas".

 

5. A relação entre linguagem, real e inconsciente

Retomando a discussão da representação pelo caminho indicado por Lacan, coloca-se então em causa o que há antes do signo lingüístico: de onde vêm e/ou de que se constituem as massas amorfas, que, por sua vez, constituem as unidades verbais e os sentidos das palavras em seus domínios ou complexos. A essa questão, o aparelho psíquico freudiano, como também seus efeitos em Lacan, fornece uma possibilidade de resposta: há escrita, letra, significante. Lacan (1973) define que significante é o verdadeiro nome dos signos de percepção, creditando a Freud a formulação da noção de sincronia significante, quando este, cinquenta anos antes dos lingüistas, postula a simultaneidade de constituição dos signos de percepção. E é da escrita que se dá o nascimento do significante como parte daquilo de que ele é signo; nas palavras de Lacan (2003: 101): "alguma coisa está ali para ser lida, lida com a linguagem quando ainda não há escrita. E é pela inversão dessa relação, e dessa relação de leitura do signo, que pode nascer em seguida a escrita". Em Lituraterre (1971: 118), Lacan afirma: a escrita, a letra é no real, e o significante, no simbólico. Quer dizer, o significante não é nada enquanto não entra na história do sujeito, e essa entrada, como o aparelho de memória freudiano mostra, dá-se com a leitura do escrito ou a transliteração, na expressão de Allouch (1995), ou seja, uma leitura regida não pelo sentido ou pelo som, mas pela letra. Logo, embora as noções de letra e escrita sejam elaborações lacanianas, a existência de alguma coisa da ordem da escrita na linguagem e, por conseguinte, sem relação com a consciência, foi sugerida desde o princípio por Freud. Como observa Moraes (no prelo), Freud usa, em sua caracterização de memória, "todo um vocabulário que é da ordem da escrita. Ele toma a impressão [Eindruck] do mundo exterior como uma escrita [Niederschrift] e posterior reescrição [Umschrift] do signo [Zeichen] em traço mnêmico [Erinnerungsspur]".

Parece claro, assim, que a condição necessária para que o significante possa vir a significar é a entrada do sujeito no simbólico, enquanto sujeito tomado pela linguagem; e isso desfaz qualquer hipótese de anterioridade seja do sujeito, seja do conhecimento do real. E, conforme observa Julien (1993: 101), leitor de Lacan, "é apenas pela letra que a relação do simbólico com o real pode finalmente ser apresentada". Portanto, em resposta à questão colocada acima, chega-se ao entendimento de que o antes da linguagem é uma escrita em que o inconsciente se escreve, ou seja, cifra seu real. Por outro lado, infere-se daí que o sujeito não está no sentido, mas, ao contrário, está onde este falta, na falha do simbólico, no não-sentido, uma vez que o trabalho do inconsciente é justamente cifrar nesse ponto de falta do simbólico, do gozo recalcado, o sujeito desejante. Esta falta se escreve com a letra, que responde pelo real como impossível, diz Julien, que explica, na mesma obra: o trabalho de cifrar do inconsciente faz-se em três tempos: a leitura de uma escrita anterior, feita de traços, rasura, signos, marcas do objeto - do real - que, quando lidas com linguagem (fonetizadas), se tornam letras, as quais, por sua vez, apagam o objeto e fazem litoral entre o real e o simbólico. O que daí resulta, desse processo inconsciente em três tempos, é o significante: "A letra é o que, do significante barra-o de todo significado pré-estabelecido" (Julien, 1993: 106). Já Pommier (1993: 3) analisa que é a letra, como suporte do significante, que denota o recalcamento: "'qualquer coisa' que foi recalcada traça / escreve / sulca [se fraie] uma via sob uma forma literal que se escuta no que se diz (como no lapso), que se mostra (como no sonho), ou que se escreve no corpo (como o sintoma)".

Além disso, a concepção dinâmica da memória freudiana permite que se depreenda a diferença entre língua e linguagem, de forma relacionada à divisão do sujeito, na medida em que ao mesmo tempo em que a língua é o lugar da apresentação das intenções, do querer dizer, das certezas do Eu, também é o lugar da possibilidade de que se manifestem elementos da linguagem inconsciente, "daquilo que fala no Eu sem seu consentimento", como observa Moraes (no prelo). Cumpre observar, pois, que a separação entre língua e linguagem, como Saussure quis fazer, não existe de fato, mas é tão-somente um efeito do discurso analítico, pois é na língua que se apresentam os fatos de linguagem; ou seja, nas palavras de Lacan (1985a: 47), "cada um em seu lugar, isto só funciona dentro do discurso".

Para ilustrar esse efeito do discurso analítico, primeiro, do lugar da lingüística, tomase uma passagem do CLG (1916/2004: 145-146), inserida em nota de rodapé, em que o fenômeno lingüístico "Les musiciens produisent les sons et les grainitiers les vendent"6 é citado como exemplo de casos raros ou anormais de associações, "pois o espírito descarta naturalmente as associações capazes de perturbarem a inteligência do discurso". Contudo, continua a nota, é provada a existência dessas associações "por uma categoria de jogos de palavras que se funda em confusões absurdas que podem resultar do homônimo puro e simples". Tal como analisa Milner (1987: 73), o alvo da representação saussuriana é a verdade, que pressupõe um "todo" que a língua pudesse abarcar; quer dizer, a adequação de uma associação consistiria em que as seqüências de língua tivessem valor de verdade: "todo X que entraria com um elemento de língua em tal relação tomaria figura de verdade". Não obstante, segundo Milner, o "não-todo" não cessa de se inscrever na "alíngua" (lalangue)7, caracterizando-a como uma proibição cujo campo é a proferição, esta entendida, pois, como o ponto onde a língua e a linguagem se confrontam. Decorre daí o esforço e os subterfúgios da lingüística para recobrir o excesso da alíngua, como "a invenção de símbolos de duplo sentido, anotando, recobrindo e [porém] atestando, ao mesmo tempo, a presença de pontos de desfalecimento" (Milner, 1987: 73). Assim, explica Milner, tomando-se uma seqüência qualquer de língua, "basta que um sujeito de desejo aí faça signo em um ponto, para que, ao mesmo tempo, tudo bascule: a possibilidade de cálculo sintático cessa, a representação gramatical cede e os elementos articulados viram significantes" (Milner, 1987: 64).

Portanto, nesse lugar de confronto entre língua e linguagem, onde a alíngua nomeia o não-todo, inscreve-se uma outra ordem, onde se situa o discurso psicanalítico. Deste lugar, Moraes (no prelo) analisa que homônimos e parônimos constituem manifestações de linguagem em que a associação ocorre no processo primário do funcionamento psíquico, um modo de funcionamento do aparelho submetido ao princípio de prazer a que Freud chama trabalho do sonho, nas manifestações da fala na histeria. Em tais manifestações, que, via de regra, são desdenhadas pelo pensamento consciente, segundo Moraes, evidencia-se um jogo de intenções que, desconhecidas pelo sujeito, revelam um descompasso entre o que o sujeito quer dizer e o que é dito. Tomada nessa direção, a homonímia presente no fenômeno transcrito acima poderia representar não uma associação anormal, fundada em confusões absurdas, mas uma "ponte de algo da linguagem para a língua", ainda nas palavras de Moraes.

Assim, o campo da psicanálise torna possível que fenômenos de linguagem como o lapso, o chiste, o sonho, cujos instrumentos de manifestação na língua são a homonímia, a homofonia, a negação, as interrupções, as pausas etc., compreendam não confusões absurdas, mas uma outra ordem de produção de sentidos, completamente estranha à consciência do sujeito. Enfim, quando se olha desse outro lugar, o que há de sentido na língua não passa de possibilidades; afinal, como mostra o aparelho de memória de Freud, sentido e consciência resultam de um complexo processo inconsciente de inscrição, reescrição e transliteração, e não são garantidos. Por tudo isso, conclui-se que, em vez de se procurar por um sentido nos fenômenos lingüísticos, resta reconhecer neles tão-somente uma possibilidade de manifestação de algo que não é para ser compreendido, mas apenas lido como escrito, tendo em vista que "é pelo fato de os significantes se embutirem, se comporem, se engavetarem (...) que se produz algo que, como significado, pode parecer enigmático" (Lacan, 1985a: 51).

 

6. Considerações finais

Finalmente, o que se pode dizer acerca de uma relação possível entre palavra, sentido e memória, consoante com a proposta inicial, é que nenhum desses elementos da linguagem existe por si, independentemente, mas, ao contrário, há entre eles uma implicação mútua. A memória corresponde, por um lado, ao aparelho de linguagem, pois constitui os processos associativos das representações; por outro lado, ao aparelho psíquico, constituído por esses mesmos processos. Assim, a memória responde tanto pela relação da linguagem - da palavra e do sentido - com o real, como pela entrada do sujeito na linguagem. Em suma, antes da consciência, instância do sentido e do ser, há, necessariamente, uma instância do não-sentido e do sujeito, isto é, o inconsciente. É de fundamental importância ressaltar, contudo, que essas instâncias se referem não a um tempo cronológico ou a um espaço físico, mas a lugares psíquicos e a tempos lógicos. Enfim, uma vez que "o inconsciente não é uma espécie que defina na realidade psíquica o círculo daquilo que não tem o atributo (ou a virtude) da consciência" (Lacan, 1998a: 844), o inconsciente da representação freudiana, um lugar psíquico onde as associações se realizam, é essencialmente distinto do inconsciente da representação saussuriana, o modo como uma palavra suscita outras no processo. Tal é, pois, o princípio da impossibilidade de aproximação entre as duas perspectivas teóricas; isto é, o fato de que palavra, sentido e memória são coisas distintas para Freud e Saussure, do mesmo modo que as formas substantiva e adjetiva de inconsciente o são.

 

7. Referências bibliográficas

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Submetido em 27/09/2008
Revisado em 15/12/2008
Aceito em 12/01/2009

 

Notas

(1) Reconstrução elaborada por Charles Bally e Albert Sechehaye.
(2) No Prefácio à edição brasileira, Isaac Nicolau Salum cita De Mauro (Corso), que, por sua vez, cita L. Gautier (Les sources manuscrites), a quem Saussure teria confessado seu descontentamento e seus dilemas com o desenvolvimento da matéria que ensinava, não apenas pela limitação imposta pela necessidade de obedecer a um programa e pela própria limitação da compreensão de seus alunos, como também por não sentir como definitivas suas idéias. A recente publicação de Escritos de Lingüística Geral, em 1996, na França, organizado e editado por Rudolf Engler e Simon Bouquet, a partir dos manuscritos de Saussure guardados pela família, permite entrever algo dos anseios do fundador da lingüística moderna e sugere que Saussure vai além do Curso de Lingüística Geral.
(3) Freud cita Stuart Mill (Logik, I, cap. III, e An examination of Sir William Hamilton's philosophy), para caracterizar a representação objectual.
(4) Tradução para o português de Maria Rita Salzano Moraes (inédito).
(5) O bloco mágico é um objeto contemporâneo de Freud usado para se escrever ou desenhar, constituído de uma prancha de resina ou cera sob uma folha fina e transparente, sendo que aquilo que se escrevia ou desenhava sobre a folha desaparecia, ao se levantá-la; assim, a folha ficava sempre livre para receber novas impressões. Porém, as impressões sobre a folha deixavam marcas na resina, sob ela, que apreciam sob uma luz adequada.
(6) "Os músicos produzem as notas e os perdulários as gastam".
(7) Para Lacan, "a linguagem, sem dúvida, é feita de alíngua [lalangue]. É uma elocubração de saber sobre alíngua. Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer com alíngua. E o que se sabe fazer com alíngua ultrapassa de muito o de que podemos dar conta a título de linguagem" (Lacan, 1985a: 190).

Prado, C.H é Graduada em Comunicação Social/Relações Públicas (UFG) e em Letras (UFG), Especialista em Educação Brasileira (UFG), Mestre em Lingüística (UFU) e Doutoranda em Lingüística Aplicada (UNICAMP/IEL). Atua como Professora Titular (UFG/CAJ). Endereço para correspondência Rua Tiradentes, 1587, Setor Samuel Grahan. Jataí, GO 75804-067. E-mail para correspondência: chprado06@yahoo.com.br.

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