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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.14 no.1 Rio de Janeiro Mar. 2009

 

ENSAIO

 

Cognição e valores: dois aspectos da educação

 

Cognition and value: two aspects of education

 

 

Rita de Cássia Ribeiro Voss

Grupo de Estudo Educação e Complexidade (EDUCOM), Universidade Braz Cubas (UBC), Mogi das Cruzes, São Paulo, Brasil
Núcleo de Estudos da Complexidade (COMPLEXUS), Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), São Paulo, São Paulo, Brasil

 

 


RESUMO

O artigo apresenta uma discussão teórica sobre cognição e valores ressaltando a relação simétrica, complementar e integrada dos aspectos estruturais e culturais da compreensão humana centrada no sujeito e em sua comunidade de vida. Do ponto de vista da antropologia do conhecimento, a preocupação é com a condição humana, isto é, com a simultaneidade dos aspectos bio-culturais presentes nos processos cognitivos que levam ao conhecimento. A proposição é que a educação assuma a recursividade dos aspectos cognitivos e valorativos na construção de estratégias de ensino-aprendizagem na escola.

Palavras-chave: cognição; valores; educação.


ABSTRACT

The article presents a theoretical discussion on cognition and values, point out the symmetrical, complementary and integrated relation of the structural and cultural aspects of the human comprehension focused on the subject and its community of life. From the point of view of anthropology of knowledge, the concern is the human condition, that is, the simultaneity of biological and cultural aspects in the cognitive processes that lead to knowledge. The proposal is that education assumes the recursivity of the aspects of cognition and values in the construction of strategies of learning and teaching at school.

Keywords: cognition; values; education.


 

 

1. Introdução

A relação entre cognição e valores na literatura pedagógica envolve duas posições. De um lado, acredita-se que a cognição refere-se ao aparato cerebral, por realizar cômputos. De outro lado, importam os valores do indivíduo, suas dimensões subjetiva, cultural e social. São duas abordagens que se excluem e muitas vezes se transformam em trincheiras que impedem a compreensão abrangente do que seja cognição. Esta polarização reflete-se na organização dos conteúdos escolares. As disciplinas propedêuticas, consideradas valorativas, são separadas daquelas as quais chamamos de exatas, pois se acredita que estas necessitam de uma formalização ausente naquelas. E, ainda, e o mais importante, a experiência do sujeito, o conhecimento adquirido, o universo de valores, são abstraídos do que se aprende na escola. Tal concepção não leva em conta que o conhecimento envolve aspectos biológicos e culturais indissociáveis.

Ao contrário da separação que coloca numa mesma grade curricular disciplinas nãocomunicantes, o que constitui o humano é justamente a simultaneidade bio-cultural no ato de conhecer. Os processos biológicos que possibilitam o cômputo, a lógica e as formalizações, dizem respeito ao aspecto operacional. Para que os operadores cognitivos possam por o pensamento em movimento precisam acionar no sujeito estados que se referem à cultura e à sua experiência, que juntos compõem o universo de escolhas. As operações cerebrais, que objetivam a cognição, em última análise, reportam-se à vida do sujeito, à comunidade onde está inserido, a um tempo e a uma sociedade. A cognição, portanto, acontece na simultaneidade de operadores e acionadores cognitivos.

As reflexões aqui apresentadas emergem da pesquisa de doutorado realizada no Grupo de Estudos da Complexidade (GRECOM) na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no período de 2003-2006, que nutriram as questões sobre a formação docente e a constituição do sujeito possibilitando a construção de hipóteses que se inserem, atualmente, nas problemáticas discutidas no grupo de pesquisa Educação e Complexidade (EDUCOM) na Universidade Braz Cubas (UBC). O projeto de pesquisa do grupo trabalha a relação simétrica, complementar e integrada dos processos estruturais de aprendizagem e de criação de valores, centrada no sujeito e em sua comunidade de vida.

As pesquisas colocaram o desafio de explorar as implicações resultantes da aproximação de cognição e valores, principalmente ao inserir a experiência do sujeito. Por isso recorremos à composição do problema em termos de condição humana, na perspectiva da antropologia do conhecimento, integrando as características inatas e adquiridas do homem. Adotamos, então, a recursividade como estratégia explicativa das dimensões cognitivas abordadas. A interação destas dimensões conduz a pensar sobre o papel do erro e do ruído no desenvolvimento do homem e do conhecimento. Em síntese, o artigo visa demonstrar a indissociabilidade de cultura e cognição pela via do pensamento complexo.

 

2. Cognição e valores

Nunca se estudou tanto a cognição. Nas últimas décadas, o desenvolvimento das ciências cognitivas contribuiu para os estudos das tecnologias mais simples usadas no cotidiano até as pesquisas mais complexas sobre a inteligência artificial. De fato, os estudos sobre a cognição humana, associados ao desenvolvimento da Lingüística, possibilitaram a criação das tecnologias de informação e de robotização. A cognição, nesse sentido, resume-se ao cômputo; o cérebro humano é considerado um calculador. Há uma perspectiva reducionista nesse pressuposto, pois não se leva em conta que o homem cria valores e necessidades inclusive imaginárias -, julgando o que fazer com elas. Estes são aspectos essenciais a serem considerados nos estudos sobre a cognição humana. Pierre Lévy (1998) aborda a questão ao lembrar a dimensão valorativa que envolve a tecnologia:

"Não se trata, portanto, de saber o que as máquinas podem fazer ou não, mas sim de reconhecer o que, no homem, não é da ordem do fazer. Se perdêssemos a lembrança dessa dimensão do humano, está mais do que certo que ficaria efetivamente aniquilada, pois nossa espécie, histórica e cultural, decide em parte sobre o que se torna. Assim como os que não sabem mais que estão livres acabam mesmo escravos, talvez nos tornemos processadores de informação quando tivermos esquecido quem éramos." (Lévy, 1998: 136)

Por isso, abordar a cognição como processo mental, cerebral, exclusivamente, não responde a questões vitais para a educação, que demandam processos valorativos. O acúmulo de informações, bem como a facilitação ao seu acesso, possibilita pensar o que é bom para o homem e para preservar a vida? De que forma o entendimento dos professores sobre cognição pode auxiliar os alunos a valorar, a avaliar a experiência vivida e, a compreender o próprio conhecimento humano?

O primeiro aspecto da cognição diz respeito à evolução biológica. O homo sapiens-sapiens, apesar de sua visível desvantagem física em relação ao homo neandertalensis, mostrou uma grande superioridade para sobreviver em condições adversas. O desenvolvimento do neocórtex cerebral no sapiens possibilitou o refinamento das criações de acessórios para a facilitação da vida, e, consequentemente, à sobrevivência humana em ambientes hostis. Com esta vantagem, o homem espalhou-se sobre a Terra, estabelecendo relações singulares com o meio com vistas à adaptação e, em razão disso, desenvolveu diferentes costumes e visões de mundo, cuja diversidade constitui a humanidade como a conhecemos hoje. O outro aspecto da cognição, a cultura, como universo de valores, então, emerge simultaneamente ao aparato biológico que a possibilita.

Alguns autores esclarecem como cognição e valores estão associados na espécie humana. Um deles é Tsunessaburo Makiguti (2002), que já tratava do assunto no começo do século XX. Para ele, a cognição não é tão inusitada, ainda que numa escala mais primária da vida suas operações sejam elementares. As condições neurológicas do homem, que o educador entende por cognitivas, no sentido estrito, referem-se à capacidade de todo ser vivo de diferenciar-se do seu entorno, por meio de uma auto-referência, o que permite identificar o que precisa para manter a vida. Neste sentido, a cognição diz respeito à sobrevivência, condição básica para manter a vida de forma geral. O que diferencia o homem de outras espécies é a capacidade de conceituar, de construir outra realidade, descontextualizando algo para pensá-lo por analogia e de forma abstrata na mente. A isso ele chama de cognição propriamente humana.

"A consciência humana é decididamente mais complexa, apesar de haver correspondência ao que percebemos como instinto no mundo não-humano. Mas, se consideramos a cognição como transferência da realidade física exterior para a realidade conceitual interior por meio da linguagem, torna-se fenômeno exclusivamente humano." (Makiguti, 2002: 85)

O autor aborda uma questão essencial para a construção do mundo humano. O aparato biológico, para produzir conhecimento, depende da linguagem e esta da relação com outros seres humanos, da aprendizagem, que para se desenvolver necessita da objetivação da consciência no jogo semântico das interações sociais. Trata-se de uma recursividade inescapável. É nesse caminho, na recursividade de sujeito/meio, que os valores se constituem num mundo de humanos, diferente das máquinas, diferente de outros animais. Cognição, valores e aprendizagem estão fortemente relacionados à contingência biocultural do homem e da vida comunitária, onde a linguagem adquire vida, possibilita criar significados e atribuir valores à realidade coletiva e à experiência individual.

Portanto, os valores são importantes para construir um mundo possível de ser habitado. Entendemos valores da mesma forma que Makiguti (2002) a concebeu, em três dimensões: material para atender às necessidades, ainda que não sejam para a mera sobrevivência; estética, para refinar e aprimorar os desejos, o pensamento, sentimento e diz respeito ao mundo subjetivo; ética, socialmente construída por meio do consenso lingüístico tácito ou explícito: as regras constituídas, costumes, os códigos morais e as leis. A isso, o educador chamou de sistema de criação de valores. O sujeito se insere nesse sistema tripartite do nascimento até a morte.

As instâncias do sistema de valores não são autônomas e nem apartadas do processo cognitivo porque o sujeito deles precisa para compor escolhas possíveis dentro do universo valorativo. Para avaliar, e avaliar bem, na interdependência dos valores do sistema makigutiano, é preciso apreender conceitualmente o objeto da avaliação. No entanto, a simples apreensão não torna humana uma operação cognitiva. O sujeito precisa enlaçar o objeto como parte da sua experiência. Ao enlaçá-lo, atribuindo-lhe um valor para a vida, ambas, a cognição, como condição do aparato neurocerebral, e a avaliação, como valoração, se constituem numa atividade humana. É por essa razão que, refletindo sobre a citação de Pierre Levy, referida anteriormente, talvez as máquinas jamais tomem o lugar do homem, a menos que elas, por algum processo ainda desconhecido, passem a avaliar. Para isso, seria preciso viver a experiência subjetiva e a realidade coletiva a um só tempo. E mais, precisaria apreender o tempo passado no presente, avaliando os resultados futuros, consciente da condição temporal. Nesse caso, se isso fosse possível, já não seriam inteligências artificiais, pois teriam que responder às mesmas indagações acerca do sentido da existência e sobre o destino humano.

Para Lévi-Strauss (1989), a cognição, como processo mental, cerebral, trabalha por analogia, classificação, seleção, correspondência, similaridades, diferenças. Essa forma de conhecer o mundo, ocorre em todos os seres humanos, em qualquer cultura, tempo e lugar. Mas, tal processo não acontece apenas de forma localizada, exclusivamente cerebral, como crêem as ciências cognitivistas (Varela et al. 2003), mas já no nível celular, em que todo o corpo é mobilizado para conhecer (Atlan, 1996). Soma-se a isto a subjetividade, que diz respeito à experiência do sujeito no mundo e também à sua inserção numa determinada cultura, num universo de valores.

Isto significa que é preciso agregar a cognição à experiência vivida pelo sujeito, embora a ciência clássica a tenha tomado como emaranhado de valores sem importância para os problemas que se empenha em responder, relegando-a ao que chamou de impressões do senso comum. Diante dos impasses da ciência em habitar o mundo, Varela (2003) conclui que a ciência nega o caráter efetivo da experiência humana e, ao fazer isso, transforma o estudo científico de nós mesmos, a cognição, num estudo carente de objeto. A ciência pode contribuir para a autocompreensão à medida que possa aliar experiência e compreensão. "A experiência e a compreensão científicas são como duas pernas sem as quais não podemos caminhar" (Varela et al., 2003: 31).

 

3. Inato e adquirido

Um segundo problema sobre cognição e valores diz respeito às aptidões humanas inatas e adquiridas. Norbert Wiener (1993), ao comparar a complexidade da organização cerebral humana com a capacidade cerebral de outros animais, verifica que a codificação e transmissão de informações no homem, através da permuta de códigos que geram novas informações, são extraordinárias. Inserindo a aprendizagem na constituição do humano, o autor considera que essa capacidade inata é apenas provável e só pode ser desenvolvida plenamente no convívio com outros seres humanos. A sociedade tem um papel crucial para o desenvolvimento das possibilidades biológicas da espécie.

Humberto Maturana e Francisco Varela (2001) falam também de tal potencialidade, ao discutir o caso de duas meninas indianas descobertas em 1922 vivendo com uma família de lobos, na Índia. Ao serem criadas por esses animais, adquiriram comportamentos da espécie; como se moverem de quatro e comerem carne crua. A escola lupina não só forjou comportamentos lupinos como também alterou a própria possibilidade de constituírem-se plenamente humanas. Após terem sido descobertas, as meninas aprenderam a andarem eretas. Uma delas, porém, não agüentou a nova forma de vida e morreu. A outra menina jamais seria completamente humana, recorrendo, de quando em quando, aos antigos hábitos adquiridos com a família-lobo.

É importante notar, com esse exemplo, que o bipedismo, os comportamentos e atitudes adquiridos são potenciais que se realizam ou não, na presença ou ausência da aprendizagem. Ser bípede é, ao mesmo tempo, natural à espécie e aprendido coletivamente. Para realizar o destino humano, simultaneamente natural e cultural, tais características tidas naturais na verdade são naturalizadas, uma vez que são aprendidas, isto é, adquiridas. Pode-se inferir, então, que a autoconsciência também é uma possibilidade que se realiza coletivamente? Não posso ter consciência de mim sem que haja a transmissão da experiência humana? Uma resposta possível para tais questões parece repousar nos mecanismos de projeção e identificação dos processos cognitivos, que se revelam ao mesmo tempo individuais e coletivos.

Por isso apontamos a importância da comunidade de vida na formação humana, onde as estruturas bio-culturais são incorporadas, sem que se pense, isto é, não há nisso, uma intencionalidade como na escola. Através dos códigos sociais constituídos pela aprendizagem e mediados pela linguagem aprendemos a ser humanos. Não precisamos saber como acontece o andar bípede para andarmos ou não precisamos saber nada sobre estrutura lingüística, para falarmos. Os valores acionam as operações cognitivas que ocorrem no nível bio-psicológico do homem. Um exemplo interessante é o que acontece no aprendizado de uma língua estrangeira. Uma criança aprende a língua mãe de maneira naturalizada. Desde muito cedo, aprende a falar a língua comunitariamente usada, na família e nas relações mais próximas, ou com os programas infantis de televisão. Nesse sentido, não é preciso nada além dos estímulos afetivos e das necessidades que compõem o universo infantil. Mesmo que um dos pais fale outra língua, o convívio e as necessidades de comunicação a tornam bilíngüe. Já o adulto ou adolescente para aprender outra língua, recorrerá a uma escola que de maneira intencional tenta por diversas estratégias, simular os ambientes culturais em que essa aprendizagem se dá de maneira naturalizada. Alda Araújo (2008) constata que as estratégias de ensino e aprendizagem que recorrem à simulação inserindo os valores do cotidiano possibilitam um ganho em termos cognitivos, pois consolidam o aprendizado da língua estrangeira. Reforçando esta constatação, Adriana Pacífico (2008) observa que os jogos eletrônicos, por comporem tanto os aspectos lúdico, referente ao do universo de valores como também os operacionais lógicos contribuem para a apreensão inconsciente da estrutura lingüística. Em ambos os casos a simulação é um meio para que haja identificação e projeção da experiência, importante para que se realize esta "naturalização" da língua estrangeira.

A aprendizagem se vale simultaneamente dos operadores (dimensão biológica) e dos acionadores (dimensão cultural, valorativa) cognitivos fundados numa configuração neurológica e neuro-imaginal, que empurram a espécie para a convivência coletiva. Se, por um lado, o biológico leva à realização da espécie em contato com a sociedade, é só nela que o homem pode viver a aventura do conhecimento. É na codificação e decodificação, da infinidade de arranjos de signos do repertório intelectual, que reside a liberdade de avaliação que parece estar fundada na plasticidade e flexibilidade do cérebro humano, embora a elas não se limite, já que a novidade do homem emergiu de possibilidades da espécie de primeiro existir consciente de si; quase como milagre.

 

4. O papel do erro e do ruído

Também há algo importante há considerar no modelo pedagógico que defendemos; o papel do erro, do acaso, do ruído, já que estamos a falar de experiência e de valores. O etólogo Boris Cyrulnik (2000) pesquisou o papel organizador do delírio e, a partir dele, pôde entender a condição biológica do homem e a influência do universo de informações no que diz respeito à percepção subjetiva do mundo exterior, resultando numa simbiose que aciona modelos de cognição e avaliação da realidade. Para Cyrulnik, a constituição biológica e física do sujeito, o seu meio familiar e social, e a disposição da personalidade formam um repertório para traduzir e representar a realidade. Ao repertório já conhecido vão se juntando novos elementos, reorganizando-o numa nova ordem que enriquece a compreensão da realidade. Nesse sentido, desfaz-se a fronteira entre sujeito e mundo exterior, se é que se pode falar em fronteiras. Também se esvaecem as tentativas de enclausurar o homem em apenas uma de suas dimensões, sejam elas biológicas ou sociológicas. O autor afirma:

"As condições humanas e naturais estão presentes coordenando-se numa interação incessante em que cada dimensão modifica a outra. Essa interação necessita de modelos de avaliação da realidade. O modelo escolhido dá um sentido àquilo que se observou e acrescenta uma tonalidade lógica ou delirante ao mesmo fato." (Cyrulnick, 2000: 49)

Essa percepção do mundo passa por uma seleção neurosensorial. Em tal seleção, opera-se a interpretação das informações dentro de um repertório de desejos, conhecimentos e atitudes mentais, influenciados também pela cultura, pela personalidade e pela linguagem: "À dimensão inevitavelmente orgânica do espírito acrescenta-se outra dimensão supra-orgânica que não só permite à matéria cerebral fazer funcionar o psiquismo, mas também receber impressões do meio ambiente" (Cyrulnick, 2000: 49).

A atividade hipercomplexa do cérebro humano, responsável pelos referidos processos em que uma "simples observação torna-se um trabalho prodigioso de criação neuroimaginária" (Cyrulnick, 2000: 66), mostra as possibilidades do espírito humano, sua imanência e transcendência. As instâncias bio-sócio-culturais partilham e coabitam uma mesma unidade complexa de construção do conhecimento. Ao entrar em contato com novas informações, sejam elas de caráter biológico, como as mutações genéticas, ou as doenças; ocasionadas por acontecimentos inesperados como a morte de alguém; ou ainda, por um arrebatamento amoroso, por exemplo; o cérebro opera no sentido de reorganização cognitiva capaz de dar não só coerência ao que se vê e se sente, como também um salto qualitativo em termos de compreensão valendo-se dos dados da experiência conhecida.

Conseqüentemente, o acontecimento, o desvio da ordem, o ruído, tem peso importante para a espécie humana. A constituição do cérebro humano, triúnico, reptílico, mamífero e racional, segundo Edgar Morin (2002), é composto por competências que se comunicam para tratar desde sentimentos mais primitivos até interpretações racionais refinadas dos fenômenos observados. Essa constituição cerebral desenvolvida no curso da evolução humana mostra uma aptidão para avançar para níveis cada vez mais complexos de elaboração cognitiva. Mas não é apenas isso. A comunicação entre as competências não estaria sugerindo que uma instância pode funcionar como um ruído para a outra? A instância emocional, em contato com a instância racional na compreensão do fenômeno não seria um fator de desorganização inicial para recompor a realidade numa nova ordem avaliativa da experiência? Daí é possível afirmar que a característica principal da espécie é o inacabamento (Morin, 2002). A hipótese aqui enunciada diz respeito à comunicação dessas instâncias capazes de gerar novas ordens a partir da desordem, sempre acionadas no sentido de avaliar a realidade para lhe conferir significados.

Para Cyrulnik (2000), o homem é cem por cento natureza e cem por cento cultura. As duas dimensões interagem e são mutuamente influenciadas. A constituição do sujeito se condensa na contingência de um corpo poroso, capaz de circunstanciar de forma singular as trocas de informação com o meio. Este, associado às determinações biológicas, exerce influência sobre o indivíduo de forma positiva ou negativa. A argumentação do etólogo sobre a cognição e o papel da cultura no sistema makigutiano de criação de valores humanos sugerem que é possível transformar uma experiência negativa em fonte de aquisição de conhecimento, em formação do sujeito, dado o caráter dinâmico das transformações do universo intelectual que ocorrem em função de fatos novos, elementos modificadores do repertório constituído, como as dificuldades enfrentadas pelo sujeito ao longo da vida que, ao serem bem trabalhadas interiormente, converteram-se em vantagens compreensivas.

 

5. Tradição e cognição

Estas discussões nos auxiliam a compreender como a cognição e a experiência, mediadas pelos valores, se relacionam e podem contribuir para pensar em estratégias de ensino e aprendizagem na escola. O conhecimento de primeira mão, o da experiência, está carregado de valores, vivenciados no seio da comunidade mais imediata, a família, a vizinhança, com os amigos; nas experimentações, sejam elas de ordem afetiva, artística, ou para aprender operar uma máquina usando a estratégia de erros e acertos - como fazem os adolescentes ao aprender a manusear um computador -; na dinâmica da cultura, nas linguagens verbais e não-verbais. O conhecimento de segunda mão é adquirido na escola, onde se dá o ato intencional de ensinar e aprender algo. A educação ocidental guarda os princípios de ensino e aprendizagem de forma metodológica, sistemática e geral, transmitida formal e abstratamente, ainda que se valha do laboratório, pois este é um artifício que visa mostrar por analogia a leis que regem um fenômeno na natureza. A distinção é importante, já que necessitamos precisar estas duas características do conhecimento humano. O problema não está na distinção, mas na separação de fato, das formas de conhecer o mundo que acontecem amalgamadas, segundo uma estrutura biocultural humana universal. A separação é, então, arbitrária.

Paulo Freire (1970) observa que a educação considera a experiência vivida como um véu que encobre a verdade. Nesse sentido, esta concepção se distanciaria de uma compreensão mais integral do homem, quando se trata de formação humana, considerando o sujeito dentro de uma comunidade, cultural e historicamente determinado. Ampliando-se um pouco a compreensão do problema, o desenvolvimento do pensamento ocidental deu ao pensamento científico a única autoridade para validar a compreensão do mundo e da vida. Cabe a ciência, e somente ela, desvelar e fazer reluzir as descobertas e leis, sem maculá-las. O universo de valores, as relações sensíveis do sujeito com o mundo não são conhecimento propriamente dito já que dizem respeito à observação colada à realidade, avessa à abstração, atenta à pureza do pensamento regido por sistemas explicativos e seus procedimentos de abordagem dos fenômenos que deseja compreender. Seus resultados, por isso, acredita-se serem neutros, ainda que a tecnologia que dela deriva possibilitasse a construção de um mundo jamais sonhado pelos nossos antepassados em termos de facilitação da vida e, ao mesmo tempo, também possibilitasse a destruição do mundo e da espécie, pela guerra e pelo esgotamento dos recursos naturais. Tais resultados têm implicações éticas, já que estamos a falar de escolhas, de um posicionamento do sujeito no mundo.

É por isso que recorremos às comunidades tradicionais. Embora aprendamos a pensar nos moldes da ciência clássica, a tradição tem muito a dizer sobre a cognição em geral e a humana em particular. A compreensão do mundo em tais comunidades acontece, de um lado, pela observação e, de outro, por um tipo de conhecimento que emerge da intimidade do homem com o seu meio, integrado a um ecossistema.

As pesquisas sobre as estratégias cognitivas nas comunidades ligadas à tradição conduzem a uma reflexão nesse sentido (Almeida, 2000), se considerarmos como elas conhecem o mundo quando observam, por exemplo, como os animais interagem com o meio. Em função de princípios difusos e complexos, os saberes da tradição partem de uma observação minuciosa do comportamento dos animais, das plantas e dos fenômenos da natureza para construir um saber simbiótico capaz de dialogar com o mundo sensível da experiência. A cognição guarda, portanto, princípios elementares de organização em todos os seres vivos.

Compreender, uma característica humana, não está relacionado apenas à emergência da consciência, nem tão-somente à autoconsciência, mas ao autoconhecimento, o que permite proceder a uma separação do mundo, um entre mim e o mundo, intencional, como consciência de algo, ao apreender um fato. Ao se agir no mundo, atribui-se ao objeto apreendido um valor de falsidade ou verdade e/ou outro valor de ordem emocional, bom ou ruim. A maior ou menor realização humana depende da intimidade com que se interrelacionam os dois lados da compreensão, cognição e avaliação da experiência, inseridos numa cultura, num sujeito em constante e incessante processo de conhecimento e autoconhecimento.

Ainda em relação às pesquisas sobre cognição e tradição, Sérgio Moraes (2005) conta como duas populações tradicionais na Amazônia e outra próxima à Lagoa do Piató, interior do Rio Grande do Norte, manipulam o espaço em função de sua principal atividade, a pesca. Os saberes da pesca envolvem questões míticas, geográficas, biológicas, sociais e políticas. O exercício da pesca e as estratégias cognitivas para desenvolvê-la recorrem à observação e à experimentação -que Lévi-Strauss (1989) chamou de pensamento selvagem, no sentido de ser não domesticado -, em simbiose com a experiência imediata. Compreender a pesca nas comunidades estudadas por Moraes é também compreender sua política. As relações estratégicas das pessoas com o meio garantem a sobrevivência da comunidade, em harmonia com o ecossistema no qual está inserida. Os problemas políticos, da mesma forma, envolvem saberes sobre o meio, para que a atividade pesqueira e a comunidade possam sobreviver, mesmo diante da escassez.

É interessante notar que a política nessas localidades pode ser melhor entendida como organização e reorganização da vida, à medida que a comunidade é levada a encarar um problema e buscar possíveis soluções dentro de um sistema em que homem e mundo precisam ser considerados. Não pode haver uma tal assimetria que cause danos a um dos lados, no que diz respeito à natureza e à cultura. Essa busca de simetria é sempre delicada, precisa ser tratada com a sabedoria que vem da experiência local e, nesse sentido, do conhecimento contextualizado, cujo porta-voz é a pessoa mais velha, mais hábil para ler os sinais do meio.

Um dos aspectos a salientar nessas comunidades são as estratégias construídas em função do meio (natural e social) e não apenas em função dos resultados (os fins), que é a pesca. Por não isolar os termos, a lógica da tradição é complexa. Nenhum de seus componentes pode ser desligado do todo, colocando-o em risco. Nesse sistema, o elemento mítico parece contribuir como discurso valorativo, informando as condições éticas em que a prática deve ser estabelecida. Em contato com os saberes institucionalizados, essa matemática da tradição dá a conhecer uma lógica interativa e simbiótica com o mundo dos homens e o mundo da natureza. A propósito desses saberes que incorporam experiência e que se dirigem para uma pragmática, Vergani (2003) destaca, ao observar a cultura dos Tshokwe:

"Entre os Tshokwe, o recurso a estruturas geométricas era hábil e competentemente orientado para atividades visando diferentes objetivos pedagógicos. Assim, por exemplo, a construção no solo de vários tipos de formas labirínticas para desenvolver a consciência espacial e mental dos mais novos era, freqüentemente, inspirada pelos trajetos percorridos por pássaros aquáticos no interior do seu pantanoso habitat, considerados modelos de maestria a adquirir sobre o território (ou meio) ambiente. Outra fonte de inspiração era o traçado do cemitério da aldeia ou os elaborados rumos seguidos pelo caçador que devia seguir a presa e ao mesmo tempo dela se esconder. Estimulantes também os difíceis acessos aos lugares sagrados da floresta onde certos rituais eram celebrados ou aonde eram pronunciadas as sentenças que puniam aqueles que fossem culpados de atividades nocivas. A imaginação estética corria ainda sobre as frondosas copas das árvores, a graciosidade dos animais, as insígnias de realeza, os diferentes ciclos etários da vida ou a complementaridade soberana do homem e da mulher." (Vergani, 2003: 87)

Os saberes da tradição dizem respeito à observação do entorno e ao modo pelo qual se constroem significações encarnadas, eco-lógicas que inserem o indivíduo no meio e na cultura aos quais pertence de forma simétrica. Essas significações não podem ser desprezadas. É necessário frisar que não se trata de defender uma volta à comunidade tradicional. Estamos atados ao conhecimento científico, ao longo da história do desenvolvimento humano. A ciência procura compreender a vida pela via do conhecimento objetivo, desenvolvendo e aprimorando os processos operatórios cognitivos para se extrair princípios capazes de explicar os seus mistérios, como verdade lógico-racional. É por causa desses processos que é possível à ciência orientar as escolhas a fim de avaliá-las racionalmente. Tais processos possibilitam ainda distinguir as várias instâncias dentro do sistema de valores em que a escolha deve ser feita. O problema está em separar o mundo, em validar apenas aquilo que o discurso hegemônico da ciência atribui como verdade. As pré-concepções que separam a vida do que se aprende na escola concebem teorias para tão-somente desenvolver os processos cognitivos. Neste sentido, o produto do intelecto da própria vida, como se fossem dissociáveis.

Os estudos que associam a cognição aos valores do sujeito demonstram o que há em comum na comunidade tradicional e na escola ocidental. Os meios que usamos para ensinar e aprender são melhores utilizados à medida que realizam a integração de operadores e acionadores cognitivos na aprendizagem. No entanto, a tradição nos diz que os dois aspectos da cognição humana acontecem simultaneamente. O que fazemos na academia e na ciência é distinguir tais aspectos da cognição para melhor compreendê-lo. Mas isto não significa que há uma receita para elaborar estratégias de aprendizagem. A elaboração de estratégias depende do universo cultural da comunidade de aprendizagem. Ao professor cabe a tarefa de compreender os princípios para reger as estratégias.

 

6. Considerações finais

As escolhas implicam em aderir a valores positivos ou negativos, dependendo dos imprintings da experiência individual e cultural, mediadas pela aprendizagem. Tudo depende da configuração das mediações entre o sujeito e o mundo. O conhecimento adquirido pelo indivíduo é experimentado de maneira única e singular, dentro das possibilidades da espécie e das inter-relações subjetivas que formam a sociedade e seu meio mais próxima, a comunidade de vida. É essa configuração que mostra os caminhos possíveis do desenvolvimento humano. Escolher uma via significa que tantas outras foram preteridas.

É possível, então, construir estratégias de ensino-aprendizagem que levem à compreensão da importância da contingência do sujeito para o conhecimento, constituído pelo tripé homem-espécie-sociedade. Pode-se afirmar que educar, no sentido de formar um ser humano para a vida e para o mundo, é assumir a condição do homem e do conhecimento; que as escolhas são afetadas pelas instâncias bio-culturais da cognição humana.

 

7. Referências bibliográficas

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Submetido em 21/10/2008
Aceito em 24/03/2009

 

 

R.C.R. Voss é Graduada em Ciências Sociais (PUC-SP), Mestre em Ciências Sociais (Universidade Federal do Rio Grande do Norte, UFRN), Doutora em Educação (UFRN), Pósdoutoranda (PUC-SP). Atua como Professora Titular no Mestrado em Semiótica, Tecnologias de Informação e Educação (UBC). Endereço para correspondência Av. Frederico Straube, 600, casa 06, Mogi das Cruzes, SP 08790-310, Brasil. E-mail para correspondência: riberita@gmail.com.

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