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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.14 no.1 Rio de Janeiro Mar. 2009

 

RESENHA

 

Entre o texto e sua pluralidade, o mediador

 

 

Flávia Brocchetto Ramos

Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade de Caxias do Sul (PPGEd/UCS), Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil

 

 

Obra resenhada: Paiva, A.; Martins, A.M.; Paulino, G. e Versiani, Z. (Org.). Leituras literárias: discursos transitivos. Belo Horizonte: CEALE; Autêntica, 2005.

Por que as leituras literárias propiciam discursos transitivos? Para ter mais dados sobre essa questão, aconselho a leitura da sexta publicação conjunta do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE), Leituras literárias: discursos transitivos. O CEALE é um centro de estudos da Faculdade de Educação, da Universidade Federal de Minas Gerais, registrado no CNPq e com pesquisas representativas sobre educação e linguagem. A obra objeto desta resenha é uma publicação organizada por Aparecida Paiva, Aracy Martins, Graça Paulino e Zélia Versiani, professoras e pesquisadoras do Centro, atuando em docência -graduação e pós-graduação - e em pesquisa. Foi publicada em 2005, pela editora Autêntica, de Belo Horizonte, a qual já editou outros estudos oriundos de pesquisas da FaE/UFMG. Essas publicações estão inseridas na linha editorial Literatura e Educação, sinalizando que a literatura é um texto com muitas singularidades e que sua leitura deve considerar tais aspectos.

O texto, sem a figura do leitor, do ponto de vista da leitura, não existe, e a leitura é uma ação que acontece através da interação entre ambos. Texto e leitor dialogam e, nessa conversa, nessa intimidade, se contam, se revelam, se significam. Ler é, pois, um ato potencializador pelos desdobramentos que pode gerar ao leitor. Ainda na década de 60, Jauss (1994)destacava que a literatura passa a existir quando é lida, isto é, quando o horizonte do texto conversa com o horizonte do público. Uma obra guardada não é literatura. Passa a ser, quando é lida, ou seja, é entendida, é sentida. Há livros que deixam de ser significativos e, consequentemente, não são mais lidos. Essas questões permeiam os artigos que constituem a publicação do CEALE, assim como discussões que apontam a literatura como um discurso plural.

Os autores dos artigos afirmam, em especial, Magda Soares, que a leitura é uma ação transitiva. Lê-se o quê? O ler está relacionado a um determinado texto. Em se tratando de literatura -conto, romance, poesia - a ação de ler é diferente se o material for o conto ou o romance, mesmo que ambos pertençam ao gênero narrativo. Edgar A. Poe, por exemplo, nos ensina que a leitura do conto deve ocorrer numa sentada, não pode ser interrompida, para não comprometer o efeito inerente à natureza desse gênero literário. Agora, se estamos lendo um romance, interrompemos a leitura muitas, ou ao menos, algumas vezes. A dramaticidade no romance não é condensada, pelo contrário, a ação tende a se diluir no enredo. Ao ler a narrativa longa, seguimos a sequência apresentada, não pulamos páginas, não começamos pelo meio. No livro de poesia, podemos não respeitar a ordem de apresentação dos textos, a qual pode não ser rígida como a prosa. Mesmo dentro do gênero, há alterações no modo de produzir e, consequentemente, de ler.

As discussões propostas em Leituras literárias: discursos transitivos têm um cunho pedagógico. A leitura literária, ou melhor, as leituras literárias -já que há peculiaridades na composição e na significação de cada um dos gêneros literários -são pensadas no contexto educacional. O livro é formado por nove capítulos que, na verdade, podem ser mais, pois a apresentação, "Leituras literárias: discursos transitivos", escrita por Aracy Martins e Zélia Versiani, e a introdução, "Ler, verbo transitivo", de Magda Soares, podem ser considerados dois capítulos, em virtude do viés reflexivo que contêm. Os capítulos têm enfoques particulares e complementares e estão organizados em três blocos: Literatura e Educação; Mediações em Espaços de Leitura; e Literatura, História, Memória, Formação de Leitores.

O primeiro bloco, Literatura e Educação, é constituído por dois artigos, "Poesia e indiferença", de Haquira Osakabe e "Algumas especificidades da leitura literária", de Graça Paulino. No texto de Osakabe, é destacado que, como a poesia produz no leitor uma percepção nova sobre a realidade, a leitura desse gênero é uma experiência renovada, deveria estar presente nas ações escolares. A autora conclui "nada mais fecundo que ela [a poesia] para embasar o exercício crítico e a perspectiva transformadora." (p. 54).

Graça Paulino focaliza um tema que lhe é caro: a existência de uma especificidade para a leitura literária. Retoma as reflexões de Magda Soares sobre a leitura e sua transitividade, predominantemente de textos informativos, avaliada em pesquisas como as realizadas pelo PISA. Na sequência, apóia-se em contribuições da Teoria Literária para pensar a leitura da literatura e, para fomentar a discussão, busca subsídios de Wolfgang Iser. Problematiza a separação de habilidades cognitivas, afetivas, estéticas e sociais, presentes na leitura, pois todas estão presentes nesse ato. O ato de ler abrange e desenvolve "habilidades complexas e competências sociais de seus leitores" (p. 61).

A segunda parte do livro, "Mediação em espaços de leitura", segue os fundamentos destacados: ler é uma ação transitiva e dependente da natureza do texto e do repertório do leitor. Esse bloco é constituído por vozes brasileiras, portuguesas e francesas.

As reflexões vindas de Portugal são de Maria de Lourdes Dionísio e de António Branco. Em "Literatura, leitura e escola. Uma hipótese de trabalho para a construção de um leitor cosmopolita", Dionísio pensa a formação de um leitor cosmopolita e destaca que um projeto de formação desse leitor depende da visão social e histórica que se tem de homem. Defende um projeto de leitura que instrumentalize os sujeitos para interagir "eficaz e criticamente" com os "múltiplos eventos textuais e discursivos". Para tanto, ressalta o caráter humanizador da literatura e assegura que um projeto de leitura deve priorizar o indivíduo e não a leitura ou o livro. O artigo de António Branco "Da 'leitura literária escolar' à 'leitura escolar de/da literatura': poder e participação" é aquele texto que todo professor de literatura deveria ler, para se pensar como docente dessa área do conhecimento. O pesquisador propõe a reflexão por meio da dicotomia: leitura literária x leitura de/da literatura; leitor profissional x leitor amador. Discorre sobre a leitura da literatura como um exercício de incertezas, ao afirmar que o saber produzido pela leitura da literatura é provisório. É da natureza da literatura a plurissignificação, mas muitas vezes esse traço peculiar é esquecido em prol de uma significação superior a outras tecidas por leitores amadores. Como contribuir para o letramento literário com tal postura?

Do Brasil, ouvimos a voz de Aparecida Paiva e Francisca Maciel, que escrevem "Discursos da paixão: a leitura literária no processo de formação do professor das séries iniciais" e de Egon Rangel, com o artigo "Literatura e livro didático no ensino médio: caminhos e ciladas na formação do leitor". O primeiro texto relaciona leitura, literatura e a atuação do professor dos anos iniciais, na perspectiva do letramento e, na sequência, descreve o projeto "Discursos da paixão", realizado na UFMG, no curso de Pedagogia, que consiste, simplificando, em convidar leitores para conversar com acadêmicos desse curso sobre sua paixão de ler. O artigo discute, portanto, o processo de mediação docente, a partir de depoimentos de leitores de diversas áreas do conhecimento. Rangel, coordenador de processos de avaliação de livros didáticos do PNLD, insiste no estudo do manual didático. Neste artigo, discorre sobre alguns princípios e critérios empregados na avaliação da proposta pedagógica para o ensino de Literatura em livros didáticos de português e defende que o estudante tem o direito de experienciar a literatura com a liberdade que é intrínseca a esse texto.

Anne-Marie Chartier fala a partir do seu entorno, a França. No artigo "Que leitores queremos formar com a literatura infanto-juvenil?" alerta sobre peculiaridades da literatura infanto-juvenil que está sendo produzida e sobre as formas de mediação. Questiona, por exemplo, se as finalidades do gênero são as mesmas quando é utilizada no espaço privado da família ou no público da escola. Ressalta que essas leituras contribuem para a formação da personalidade, da inteligência, o caráter e não apenas para consumir impressos ou compradores de livros. Entre outros pontos levantados nesse texto, destacamos que a autora aponta que "a virtude dos livros é a de mudar, pela ficção, nosso olhar sobre a realidade." (p. 144)

No último bloco do livro, Literatura, história, memória, formação de leitores, encontramos as professoras Regina Zilberman e Ivete Walty.

A pesquisadora gaúcha, em "Memória entre oralidade e escrita", recupera o conceito de memória em vários autores e estabelece uma reflexão sobre o lugar da memória na oralidade e na escrita. A memória aparece como fundamental na narrativa e, a partir de Walter Benjamin, discute essa faculdade como condição do narrador e, por extensão, do leitor. A autora concebe a narrativa como "espaço em que a memória se manifesta" e acrescenta que a mudança do oral para o escrito é mais do que uma alteração do suporte, mas implica que a forma não seja mais alterada, ignorando, portanto, as subjetividades advindas da oralidade.

Walty analisa seu percurso de leitora a partir de um tipo especifico de livro: a antologia. A pesquisadora focaliza o caráter formativo das seleções. Em "'É de menino que se torce o pepino': antologia e formação do leitor", a pesquisadora destaca a obra Coração infantil, de Vicente de Peixoto.

A sexta obra do CEALE, publicada pela Coleção Literatura e Educação, contribui para repensar o papel da leitura da literatura na formação do cidadão. Cada um dos capítulos ressalta um aspecto do tema. Sempre numa linguagem clara e acessível ao estudante de licenciatura, ao professor de séries iniciais, ao professor de Língua Portuguesa e de Literatura, em diferentes níveis, ao bibliotecário. Sabemos que, de um modo geral, há uma indefinição quanto à presença da Literatura na escola, quanto ao modo como ela se efetiva na vida das pessoas. Obras como as que o CEALE tem publicado e como Leituras literárias: discursos transitivos buscam de fato fazer o trânsito entre o livro literário, sua leitura e a significação do texto pelo leitor iniciante que ainda precisa do apoio do um leitor mais experiente que o introduza no universo simbólico da literatura. A obra contribui para que esses leitores mais experientes possam repensar velhas práticas de leitura e criar outras, de acordo com as inquietações do leitor jovem e a preocupação de humanizar a sociedade contemporânea.

 

Referência bibliográfica

JAUSS, H.R. (1994). A história da literatura como provocação a teoria literária. São Paulo: Ática.         [ Links ]

 

 

F.B. Ramos é Mestre e Doutor em Letras (Pontifícia universidade Católica - Rio Grande do Sul). Atua como Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação (UCS). Endereço para correspondência Rua Antonio Xavier da Luz, 710, Caxias do Sul, RS 95070-040. E-mail para correspondência: ramos.fb@gmail.com.

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