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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.14 no.2 Rio de Janeiro July 2009

 

ARTIGO CIENTÍFICO

 

Percepção e trabalho na fenomenologia de Merleau-Ponty

 

Perception and work in the Merleau-Ponty's phenomenology

 

 

Gilbert Cardoso Bouyer

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo analisa, pelos métodos da análise ergonômica do trabalho e da análise do trabalho cognitivo, como as estruturas cognitivas emergem de padrões sensório-motores recorrentes na ação perceptivamente orientada. O ponto de partida nesta abordagem atuacionista é o estudo de como o trabalhador pode guiar perceptivamente sua ação em situações de trabalho. Os resultados mostraram que estas situações constantemente mudam como resultado da atividade dos trabalhadores, e que o ponto de referência para compreender a percepção não é de forma alguma um mundo predeterminado e independente da percepção do trabalhador, mas sim a estrutura sensório-motora do trabalhador - a via pela qual o sistema nervoso liga as superfícies sensorial e motora.

Palavras-chave: cognição; ação; percepção; atividade de trabalho.


ABSTRACT

This paper analyzes, by methods of ergonomic work analysis and cognitive work analysis, how cognitive structures emerge from the recurrent sensorimotor patterns in the perceptually-guided-action. The point of departure in this enactive approach is the study of how the worker can guide perceptively his action in work situations. The results showed that these situations constantly change as a result of the worker's activity, and that the reference point of understanding perception is no longer a pre-given world and a perceiver-independent world, but rather the sensorimotor structure of the worker - the way in which the nervous system links sensory and motor surfaces.

Keywords: cognition; action; perception; work activity.


 

 

1. Introdução

Este trabalho teve como principal foco os aspectos de percepção pertinentes para a Ergonomia Cognitiva, na análise da atividade de trabalho. Adotou-se o ponto de vista da fenomenologia merleau-pontyana, segundo o qual o agente percebe conforme o modelo de ação perceptivamente orientada, ao invés de partir de um ponto de vista teórico e filosófico segundo o qual o agente que percebe é um mero receptor de informações vindas do ambiente externo. Neste novo foco, centrado na Ergonomia Cognitiva, tendo como pano de fundo a fenomenologia de Merleau-Ponty, o caráter ativo do agente no processo perceptivo é essencial para a compreensão dos fenômenos perceptivos em situações de trabalho.

O ponto principal foi compreender como a Ergonomia Cognitiva pode ampliar seu escopo teórico e filosófico, e também prático, ao ter, como pano de fundo, a fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty.

Para a Ergonomia Cognitiva, os saberes sobre percepção são importantes porque as atividades de trabalho, de uma forma ou de outra, requerem dos agentes suas capacidades perceptivas (inspeção de qualidade, avaliação de um evento antes, durante e após a sua ocorrência, atividades informativas e com tecnologias da informação; atividades em sistemas automatizados; atividades que aparentemente predominam componentes de carga física do trabalho, etc).

O que é percepção no trabalho? Como o agente usa a percepção nas atividades de trabalho?

"Muitas atividades têm hoje em dia um componente cognitivo intenso e complexo. Assim, deve ser realizada uma análise precisa das atividades mentais no trabalho (percepção, identificação, decisão, memória de curta duração, programa de ação). Esta análise deve ser vinculada, não ao que os trabalhadores supostamente fazem, e sim ao que eles realmente fazem para responderem às exigências do sistema." (Wisner, 1994: 11)

Em sintonia com a Fenomenologia da Percepção (Merleau-Ponty, 1945/1999), de Maurice Merleau-Ponty, este estudo propõe investigar que na atividade de trabalho a percepção é um processo ativo. Não é um processo passivo de captação de estímulos do ambiente. É o organismo que "recorta" no seu ambiente o que será percebido. Seu comportamento é determinante em seu processo de percepção. O comportamento é a causa primeira da percepção, conforme atesta a obra Merleau-Pontyana Estrutura do Comportamento

"... a organização central das excitações pode ser ela própria concebida como um jogo de dispositivos preestabelecidos: a primeira manipulação teria como efeito apenas tornar acessível às seguintes um certo teclado no qual elas viriam se inscrever. (...) Antes de toda interpretação sistemática, a descrição dos fatos conhecidos mostra que o destino de uma excitação é determinado por sua relação com o conjunto do estado orgânico e com as excitações simultâneas ou precedentes, e que entre o organismo e seu meio as relações não são de causalidade linear, mas de causalidade circular." (Merleau-Ponty, 1942/2006: 16-17)

Para a Ergonomia Cognitiva, isso é de fundamental importância porque muitos dos sistemas que requerem a percepção dos operadores (como os sistemas automatizados para controle de processo contínuo nas indústrias) são concebidos segundo critérios baseados no pressuposto de que o operador é um agente passivo, receptor de informações, e que deveria ser eliminado do sistema. Os estudos de caso por nós realizados em diversas indústrias apontam que tal pressuposto, ao servir de base para a concepção de sistemas automatizados, acaba por gerar dificuldades para a ação do operador. Por exemplo, em algumas situações, o operador é obrigado a desviar sua atenção dos eventos relevantes do processo, para ficar acompanhando passivamente a evolução de curvas e de parâmetros que o próprio sistema deveria controlar automaticamente. Em outras situações, é obrigado a monitorar, pela atenção voluntária, as tarefas que foram atribuídas ao sistema, devido ao pressuposto de que o operador é um "resíduo da automação". De fato, tais tarefas demandam um tipo de percepção que um automatismo não é capaz de possuir e, portanto, deveriam ter sido atribuídas ao próprio operador, por envolverem um caráter de percepção ativa e voluntária (ação perceptivamente orientada). Isso tem gerado, conforme temos verificado, uma sobrecarga de trabalho cognitivo aos operadores, que pode acarretar em problemas de segurança para toda a planta industrial.

Não se pode, portanto, na ergonomia cognitiva, eliminar da percepção a sua relação existencial com o mundo. O movimento crucial na percepção é o de criar um mundo inerente à ação e intencionalmente racional. Há uma experiência no real que é preciso situar no seu mundo, colocá-la em seu espaço que é, de fato, a sua via ontológica de manifestar-se e de mostrar-se em si: um espaço de atuação, de exercício do ser em seu mundo. A concepção ergonômica de sistemas que demandam a percepção do operador deveria levar em conta tais fatos.

No trabalho dos operadores, o fenômeno do sentir não ocorre desprendido de suas vias psíquicas (afetivas) e motoras. Não se trata, portanto, de uma recepção passiva de um sinal ou de uma qualidade, como se o ser vivo representasse o mundo exterior ou fosse uma projeção passiva deste mundo objetivo. Portanto, comporta, o sentir, muito mais que os processos fisiológicos podem descrever, visto que não se restringe à transmissão de sinais vindos deste mundo representado e objetivo da periferia ocupada por receptores até os centros nervosos. O método de análise que busca compreender a verdade da percepção incide, precisamente, num retorno à experiência vivida muito além do mundo objetivo. É neste que se dá a compreensão dos limites do mundo objetivo, da verdadeira aparência que o agente constrói a seu respeito, a forma peculiar como são tratados os aspectos do mundo na interioridade estrutural do agente. É sob esses aspectos que a Ergonomia Cognitiva deve efetuar sua ação de compreensão e de transformação do trabalho. Portanto, a concepção ergonômica de sistemas que demandam a percepção não pode se basear em pressupostos puramente objetivos e nem na pressuposição da existência de um mundo objetivo pronto para ser passivamente captado pelo operador.

 

2. Desenvolvimento

O conhecimento aprofundado do fenômeno perceptivo em atividade de trabalho envolve a análise de todo um "campo" no qual ele se manifesta. A percepção ocorre sempre em meio a outras variáveis que a tornam possível. Não existe um dado perceptível isolado de um agente de percepção. Incluir o agente no mundo de percepção é mudar a orientação de uma visão convencional, que tende a tomar o mundo como um conjunto de dados prontos para serem recebidos e processados por um agente universal. Os dados são re-criados pelo agente conforme o seu mundo de atuação ou enação: enação, aqui, significa que o acoplamento do agente ao seu mundo perceptivo é responsável pela forma como ele percebe e age. O acoplamento é um processo pelo qual agente e mundo são mutuamente especificados, numa noção de co-determinação. Logo, significa "enação" o fato de que sujeito e objeto (mundo) não podem ser compreendidos isoladamente um do outro, e sim como codependentes ou co-determinados. Isso elimina qualquer dualismo mente-corpo ou sujeitoobjeto no entendimento dos fenômenos da cognição, propondo uma compreensão dos fenômenos perceptivos como resultantes da ação incorporada do sujeito em seu mundo circundante (Varela et al., 1993). O agente é sempre singular em sua percepção.

Significa dizer que uma qualidade do mundo abriga, em síntese, significações dadas por uma experiência efetiva, arregimentadas por todo um saber do corpo em atividade. Não há um "puro sentir", um "puro perceber", mas sim algo percebido e algo sentido por alguém que o percebeu e o sentiu de forma "nx" dentre "n" possibilidades afetadas por uma dada atividade de trabalho.

A percepção deixou de ser um fato fisiológico. A fisiologia não consegue esgotar toda a significação (que o fenômeno perceptivo oculta. Ela não pode ser tomada como uma instância de objetividade superior visto que sua objetividade mascara o real fenômeno que somente se apreende no exercício do ser em seu mundo. A descrição de um trajeto anatômico que conduz um estímulo de um receptor até um certo registrador, fisiologicamente identificados, caracterizados e analisados, não resolve o problema da percepção, das distinções de percepção, das "coisas" que estão "à mão" e que não são percebidas..., as distinções de interpretação, significação e sentido para um mesmo objeto ou "sinal" disparados pelo trabalho.

Merleau Ponty avalia que o senso comum sempre acreditou que, uma vez posto um mundo objetivo diante de um sujeito, este, com seus órgãos dos sentidos, recebe as mensagens que dali são fornecidas para serem conduzidas, fisiologicamente, a algum lugar, decifradas e depois reproduzidas em símbolos. Haveria, portanto, uma correspondência pontual entre estímulo e percepção. Ora, são os próprios fatos que demonstram a não verificação desta hipótese. Por exemplo (dentre muitos disponíveis na literatura multidisciplinar que trata do assunto), uma superfície colorida (um dado objetivo...) permanece sendo percebida do mesmo modo quando, num experimento controlado, são promovidas modificações no alaranjado, no vermelho e até mesmo quando não há cor. Os limiares cromáticos das diferentes regiões da retina não conseguem traduzir as modificações objetivamente produzidas na placa. São casos em que o fenômeno não adere ao estímulo. O "sensível" não mais pode ser tomado como resultado objetivo de um estímulo exterior causal. Por quê? Isso ocorre porque, em outros casos, respostas obtidas para repetidas estimulações idênticas podem ser altamente variáveis. O nível de atenção consciente do agente, o grau de concentração obtido por certo ponto do campo visual, o nível de vigilância aplicada em determinado aspecto do "dado", a motivação desenvolvida antes da realização do experimento, o grau de expectação e até a fala interior afetam o dado.

Há casos nos quais as lesões não-corticais conduzem a uma re-elaboração da sensibilidade ao quente, frio, pressão, etc. Algumas situações mostram, também, que quando o sistema lesado recebe um excitante mais extenso, outras sensações específicas reaparecem. Há, portanto, uma colaboração entre estímulos distintos em um ponto não específico do espaço de percepção e uma interação, ao menos parcial, entre o sistema sensorial e o sistema motor, o que contradiz a hipótese da recepção e transmissão passiva de sinais e mensagens de um mundo objetivo.

Não pode haver caracterização da percepção puramente fisiológica porque o próprio fato fisiológico é determinado por leis biológicas e psicológicas. Funções psíquicas elementares e funções psíquicas superiores não se distinguem por estarem umas mais ligadas às estruturas fisiológicas do corpo, conforme se professava antigamente. Essas duas funções se cruzam, visto que o fato mais elementar dado no corpo já possui em si um sentido e a função superior, por outro lado, só se realiza mediante a ocorrência de funções elementares que a anexam ao mundo incorporado do agente.

A ideia de um mundo exterior em si não se sustenta, assim como a ideia correlata de um corpo como receptor, transmissor e emissor de mensagens. O mundo sensível não é simploriamente apreendido com os sentidos, uma vez que isso não se resume a mecanismos instrumentais que converteriam o aparelho sensorial a uma espécie de aparelho condutor, pois até em sua periferia os dados fisiológicos se ajustam a relações centrais, mais complexas, do fenômeno de percepção. Faz-se necessário retornar à própria experiência do agente para se definir o que lá ocorre. Neste retorno, ocorre, pelo conhecimento do fenômeno, um natural abandono da ideia de representação do mundo, pouco clara e apoiada no pensamento orientado aos objetos exteriores; pensamento pretensioso por uma objetivação do organismo humano como um sistema físico imerso em estímulos passíveis de descrições em propriedades físico-químicas. Em seu lugar surge uma ciência objetiva da própria subjetividade.

 

3. Metodologia

Foram empregados os métodos e técnicas da análise ergonômica do trabalho - AET (Wisner, 1987, 1994) e da "cognitive work analysis" - CWA (Vicente, 1999), conforme descritos a seguir os seus significados e conteúdos.

Seguindo a metodologia da CWA, descrita a seguir, foram cinco as etapas ou momentos de uma atividade analisadas na presente pesquisa, em suas componentes cognitivas, conforme a CWA:

a) Estágio do trabalho e das informações (hierarquia de abstração ("Abstraction Hierarchy", AH ou "abstraction-decomposition space")), por exemplo, qual informação pode e deve ser medida e como pode ser organizada - "Porque" ("Why"), "o que" ("What"), "como" ("How") (Vicente, 1999:163-180));
b) Estágio do "Controle das Tarefas" (metas a alcançar, procedimentos a usar e quais informações são relevantes para dadas classes particulares de situações; definição de tarefas; formulação de procedimentos);
c) Estágio das Estratégias para Ação (Mecanismos usuais de diagnóstico e controle das situações de trabalho ("process flow"); Análises das tomadas de decisão; Análise da planificação da ação).

Destaca-se, neste trabalho, o emprego dos métodos da Análise Ergonômica do Trabalho - AET, que consiste em compreender o trabalho por meio de observações sistemáticas acompanhadas de entrevistas no momento em que ocorre a ação observada. Na metodologia da Análise Ergonômica do Trabalho - A.E.T., em seu aprofundamento (empírico) nas verbalizações dos operadores, torna-se intensamente fértil o procedimento de "autoconfrontação" (Wisner, 1987), no qual se oferece aos operadores as imagens do seu comportamento e faz-se a entrevista sobre os dados concretos aí registrados. Imagine-se que não se pudesse adentrar nas falas dos trabalhadores e confrontar aquilo que dizem com as particularidades de cada situação estudada, de cada contexto específico. A construção do conhecimento em Ergonomia estaria, então, seriamente limitada neste caso. Com os métodos de entrevista e de análise das verbalizações fornecidos pela A.E.T., é possível, no entanto, objetivar dados, fatos, saberes e conhecimentos dantes reclusos na parte não visível do comportamento dos trabalhadores. Longe das verbalizações e das possibilidades de investigação minuciosa de seus conteúdos, a ergonomia converter-se-ia numa disciplina fundamentalmente positivista e objetivista, a sacrificar a autenticidade dos dados do discurso dos operadores e, por sua vez, as noções de verdade e verdadeiro em ciência.

No presente trabalho, foi necessário explorar mais ainda o discurso dos operadores, ao nível de suas experiências vividas em atividade de trabalho. As experiências vividas no trabalho são aquelas que não descartam as componentes mais subjetivas da ação, como os aspectos psíquicos, as sensações e as percepções. Essas componentes interagem e afetam as componentes cognitivas e, conseqüentemente, os resultados da ação (desempenho, eficiência). Em suma, os métodos e técnicas de verbalizações da A.E.T. foram re-adaptados, tornando-se uma espécie de análise das verbalizações fornecidas sobre o que era vivido em situações nas quais os próprios atores (operadores, trabalhadores) julgavam ter marcado a sua história no controle do processo contínuo. Obviamente, a expressão "ter marcado" remete os métodos da pesquisa ao campo das subjetividades dos operadores, ou ao terreno daquilo que, em suas consciências, constituem dados passíveis de objetivação embora sejam, ainda, dados subjetivos da experiência consciente ou os "qualia"-"aspecto qualitativo dos estados conscientes" (Searle, 1997/1998). O nome escolhido para o resultado metodológico dessa readaptação das técnicas de verbalização foi "análise do mundo vivido no trabalho".

De acordo com a Análise Ergonômica do Trabalho/AET (Wisner, 1987, 1994), o discurso dos trabalhadores a respeito da atividade de trabalho deve ser mediado pelos traços objetivos da própria atividade. Sendo uma grande parte da atividade regulada de forma subconsciente, a observação exterior e sistemática das ações visíveis não possibilita, exclusivamente, um acesso à consciência dos trabalhadores e às suas estratégias mentais. Assim, a AET veio a contribuir de modo a fornecer um contorno mais nítido e objetivo para as verbalizações dos operadores, aprofundadas na investigação do mundo vivido no trabalho ou "le monde commun" (Rabardel e Pastré, 2005) pelos métodos também familiares à psicossociologia do trabalho de Enriquez (1995).

Para adentrar neste "mundo vivido no trabalho", adotamos, portanto, as técnicas da Psicossociologia (Enriquez, 1995), as quais permitem dar espaço amplo ao discurso dos trabalhadores, ao serem empregadas nas sessões realizadas com pequenos grupos de dois ou três operadores, simultaneamente entrevistados.

O discurso, até certo grau livre, mediado pelo entrevistador e com condições de contorno fornecidas tanto pelas situações do trabalho quanto pelas vivências no trabalho (nos mesmos moldes das entrevistas de natureza psicossociológica), muitas vezes foi regredindo a momentos pretéritos, às vezes longinquamente situados na história de cada operador, em sua atividade. Pode-se, então, dizer que, por permitir elucidar melhor o objeto investigado, via estes resgates de situações vivenciadas no tempo pretérito da trajetória histórica (na atividade de trabalho) de cada trabalhador, o método da história de vida (Becker, 1997) não se desprendeu, e não se isolou, do discurso ora propiciado pelas entrevistas situadas no domínio da psicossociologia / mundo vivido no trabalho. Significa, portanto, que numa primeira fase, o discurso psicossociológico e o discurso de história de vida caminharam integrados um ao outro.

Procurou-se, nos métodos da A.E.T., manter o verbo no presente e remeter o sujeito ao seu próprio comportamento, de acordo com aquilo que fora observado. Questões do tipo "o que você está fazendo na..."; "como você soube que..."; "quando é que você auxilia ... o que fez você decidir por esta intervenção..." etc, foram largamente empregadas, conforme métodos propostos por Wisner (1987, 1994). O contexto impera nesta fase. A objetividade, a reconstituição minuciosa das situações de trabalho, as observações sistemáticas juntam-se e buscam conduzir as falas ou o discurso, culminando em momentos graves de confrontação daquilo que se diz com aquilo que se observa e que se tem, concretamente, numa situação real contextualizada.

 

4. Dados e resultados

4.1. O caso da fábrica de peças e carrocerias: ação e percepção na produção discreta

A atividade de inspeção de qualidade numa fábrica de peças para automóveis envolve um intenso trabalho cognitivo: O trabalho de percepção. Verifica-se, nas situações reais, que existe uma estreita relação entre percepção e ação nos processos de trabalho.

O processo de produção da fábrica consiste em moldar, por processos físicos (prensagem, funilaria, estamparia), chapas de aço e convertê-las em peças tais como páralamas, pára-choques, carrocerias, etc.

A parte mais crítica do processo de produção é precisamente a parte de inspeção, que depende de habilidades humanas de percepção de pequenos indícios de defeitos ou desvios de qualidade. Esta parte envolve reconhecer desde os problemas com a matéria prima, como arranhões das chapas e oxidação até defeitos de deformação ocasionados pelo próprio processo físico de moldagem das peças, como uma protuberância no metal causada por um simples pelo de luva que permanece sobre a chapa durante a prensagem.

São vários os pontos da peça que devem ser observados e nos quais devem ser percebidos sinais de anomalia: bicos, furações, textura do material, aspecto físico do metal, amassados, arranhões, etc. O que torna complexo a atividade ainda mais é o fato de o ritmo normal de produção ser de 300 peças por hora. Nas análises com operadores e supervisores, ficou evidente a seguinte questão: Por que um operador novato não consegue ser eficaz na inspeção de qualidade num ritmo de 300 peças por hora e um operador perito consegue, com facilidade, realizar todo o trabalho cognitivo relacionado à percepção e ação perceptivamente orientada? Por que ao imobilizar o operador, num novo projeto de posto de trabalho, suas capacidades perceptivas foram severamente alteradas?

 

Figura 1

 

Para o observador, o trabalho de inspeção é somente manual. O observador não consegue visualizar o trabalho cognitivo de perceber os sinais de falhas, defeitos e desvios de qualidade que é exercido pela cognição do operador. A tarefa, que aparenta ser simples, engloba a complexidade do trabalho cognitivo que pressupõe funções abstratas e situadas, numa hierarquia de etapas cognitivas da atividade de inspeção, na qual o ato de avaliar e julgar uma anomalia insere-se no nível mais elevado de abstração, o qual envolve as razões e motivos e o sentido da ação conferido pelo operador. Ou, conforme afirma Pachoud (2000), trata-se da intencionalidade da percepção e, mais ainda, o caráter teleológico do ato de perceber (Pachoud, 2000).

As provas que demonstram a complexidade da atividade de percepção são várias: Um operador novato não consegue executar a tarefa num ritmo de 300 peças por hora; quando da substituição de um operador por outro que não estava ainda adaptado à atividade, o processo para.

O que antes era realizado por um operador, encarregado de perceber todas as falhas em todas as partes da peça, foi posteriormente dividido em quatro tarefas: Inspeção de bicos; inspeção das furações; inspeção de falhas na estampagem; inspeção de oxidação e textura do material. O fato da tarefa ter sido dividida em quatro partes demonstra, em parte, o grau de complexidade da atividade de perceber. Perceber não é algo simples, mas sim algo complexo que envolve a noção de ação perceptivamente orientada. É o sujeito que age e que ativamente se oferece ao fenômeno de perceber que, efetivamente, percebe os defeitos num ritmo de produção de 300 peças por hora. Além disso, trata-se de um sujeito capaz, no sentido que o dão Rabardel e Pastré (2005): um sujeito que já possui uma competência incorporada, dotado que está dos esquemas incorporados necessários à ação eficaz.

Que lugar no processo de inspeção de peças ocupa este operador que deve perceber os sinais de qualidade neste complexo trabalho cognitivo? A questão das competências do sujeito capaz (Rabardel e Pastré, 2005) é confrontada pelo trabalho e no trabalho de percepção de indícios de falha. Isso coloca a demanda de compreender o que o operador vivencia no seu trabalho cognitivo e o que ele faz neste seu mundo fechado, a exemplo do que é discutido por Hubault (2002). Ou seja, emerge aqui a questão do sentido que o trabalho de percepção tem para o operador e para a empresa.

Neste contexto, a Ergonomia vai buscar compreender a ação do operador. A atividade aqui propõe uma criação, uma solução face ao que é visto ou percebido por quem age e não por quem, meramente, observa o trabalho. Em outras palavras, no trabalho real, os compromissos entre a competência cognitiva-perceptiva-atuacionista do operador e a qualidade do processo não são visíveis. O comportamento expressa a parte manifesta do trabalho, mas não esgota a realidade perceptiva que, por sua natureza, escapa do observador e geralmente não é coberta pela análise da atividade (Hubault, 2002). É somente na sua face descritiva e concreta que a atividade se confunde com o comportamento, o que é absolutamente impossível no caso da atividade perceptiva.

A história de aquisições de habilidades, história de instrumentalização da atividade e de formação de um sujeito capaz, condensa-se no campo de atuação, no corpo fenomenal do sujeito que age, e manifesta-se numa ínfima fração de tempo que pode determinar o aceite ou o descarte de uma peça. Trata-se de uma parcela complexa de um trabalho que ocorre numa temporalidade repleta de "contraintes" temporais. Uma manifestação de competência comprimida numa duração que não pode ser mensurada como pontos distintos no tempo, mas apenas na continuidade do processo que naturalmente deveria ser repleto de descontinuidades e rupturas e que, se assim não se apresenta, é precisamente por conta da ação deste sujeito capaz em sua duração peculiar da competência histórica (atuacionista). Esta última, num pequeno espaço de tempo material e concreto medido pelo relógio, deixa funcionar uma outra duração extensa, corporificada e adquirida ao longo de anos de atuação na atividade cognitiva.

O operador que está a agir atua em um fluxo que conduz seus atos de trabalho e o confere uma visão de conjunto ou transparency (Varela, 2000: 299) capaz de propiciar a percepção de sutis defeitos de fabricação que podem ser desde aqueles relacionados à matéria prima até outros provenientes do processo de conformação física das chapas metálicas. Isso pode ser explicado por uma rede sensório-motora que anexa o operador ao ato que transcorre e faz com que o próprio ato adquira um status de antecedente ao instrumento que virá a ser constituído em sua execução futura.

Se a ergonomia avançou num complexo terreno ao colocar o homem em atividade como seu objeto de estudo, é necessário arcar com este desafio de complexidade: O homem torna o trabalho da ergonomia mais denso demais e trata-se de uma arrancada irreversível rumo ao estudo do real de trabalho que recua ante as tentativas de simbolização. O trabalho de percepção é um exemplo claro disso. Para consolidar-se como ciência, faz-se necessário retornar ao homem pelos caminhos das ciências que a ele remontam.

A complexidade da tarefa, de perceber a qualidade visualmente, é possível de ser avaliada pelo trabalho de pesquisa em ergonomia, segundo os métodos de ação ergonômica da AET. Uma atividade de trabalho envolve interfaces entre três dimensões descritas a seguir: natureza, cultura e consciência. A primeira diz respeito aos aspectos biológicos, fisiológicos e ao estado interno do organismo que percebe. A cultura remonta aos padrões mentais adquiridos e aos esquemas de ação incorporados assimilados ao longo da história de contato com a atividade de trabalho peculiar. O domínio da consciência refere-se à cristalização histórica e à intencionalidade do agente atuante. A complexidade deste trabalho não está na peça que é examinada, mas no sujeito que age e na sua interação com o mundo circundante (Leplat, 2004: 59). O instrumento e a atividade instrumental, neste trabalho, são atribuições do sujeito como bem demonstrado por Rabardel e Pastré (2005) na noção de catacrése. No caso de uma peça a ser inspecionada, isso fica claro na medida em que uma mesma peça pode ser vista de forma diferente por diferentes sujeitos o que comprova que um mesmo artefato pode se constituir em instrumentos diferentes para sujeitos diferentes ou pode, dependendo do estado interno do sujeito (variável), constituir-se em diferentes instrumentos para este mesmo sujeito.

A atividade dirigida, neste caso, é social, mas é também pessoal na sua ligação ao sujeito consigo mesmo e ao objeto de trabalho. Percebe-se que o sentido da situação revigora a ação sem qualquer modificação real no universo material do sujeito.

No mundo de atuação do sujeito, temos o operador-agente atuante em sua clausura de percepção configurada por seu domínio de atuação. Aí se vivencia, concretamente, um nível de experiência em dois domínios distintos e singulares: o cognitivo e o psíquico. O primeiro remete aos saberes que tocam a produção e que não são compartilhados exceto por quem se situa no mesmo domínio ou mundo comum do agente. O segundo diz respeito às vivências de dor e prazer no trabalho, que permanecem sem uma decodificação em símbolos acessíveis ao entendimento e à compreensão do observador.

Entre o real da pura experiência anteriormente descrito e o real do trabalho, há uma lacuna que somente o método científico amparado pela fenomenologia pode preencher. Cá fora, há o real do trabalho, com suas configurações de mundo objetivo acessíveis, também até certo grau de visibilidade, ao observador.

Verifica-se que a experiência no trabalho de percepção é irredutível a uma abordagem proposicional, formal e simbólica. O que surge na percepção das peças como uma possível elaboração em estruturas formais da experiência são, de fato, formalizações de categorias e relações ontologicamente constituídas por padrões/ esquemas incorporados de ação, tanto no domínio psíquico quanto no domínio cognitivo.

A história e a cultura da percepção desempenham um papel determinante na competência do sujeito em plena atividade de trabalho. O comportamento coletivo dos neurônios envolvidos na percepção de um defeito se modifica com a experiência no tempo. Os mapas incorporados obtidos fazem lembrar as cartas topográficas nas quais são representadas as elevações das montanhas e vales. Com a experiência, obtém-se, para um mesmo defeito da peça, um mesmo mapa a cada vez que ela é observada pelo agente atuante. Isso permite concluir que a percepção requer uma atividade global do córtex sensório-motor e o mapa não permanece constante de um defeito para o outro. O agrupamento de neurônios é um arquivo de associações passadas de importância fundamental e de outro lado, um fator indispensável para desencadear uma atividade coletiva e de conjunto dos neurônios corticais.

A descoberta de que o ganho e a resposta aumentam com a experiência e com a história de atuação viola a ideia da representação cartesiana, visto que a dinâmica da percepção demonstra que o cérebro, antes de uma entidade passiva, busca e age de forma a orientar a percepção de um dado defeito na peça.

A estabilidade da organização cerebral não é mais a base para uma correta elaboração da informação sensorial ou para o planejamento e execução de estratégias motoras. O processo de tornar-se um sujeito capaz envolve tanto o domínio celular e tecidual do sistema nervoso quanto os eventos da experiência do sujeito (ontogênese). Todas as funções cerebrais podem ser modificadas pela experiência, o que indica modificação e renovação ininterruptas ao longo da atuação no processo de trabalho. O sujeito se torna um agente de percepção eficaz ou sujeito capaz porque a alteração do fluxo normal de informações (evento) sensoriais pode modificar a estrutura anatômico-fisiológica do cérebro.

 

5. Discussão acerca dos resultados à luz da fenomenologia de Merleau-Ponty

5.1. As noções de organização e forma (Merleau-Ponty, 1942/2006) e suas relações com a percepção

Os estudos precedentes atestaram que há uma organização autóctone do campo sensorial humano, e as condições exteriores, objetiváveis, ao invés de a determinarem, apenas criam suas condições de possibilidade. Veremos em que sentido a causalidade da física não se aplica à percepção humana. A estrutura desta não depende de variáveis físicas mas de outras biológicas, como o próprio sentido biológico da situação, escapando, portanto, do recorte instrumental das análises físico-matemáticas. Há outra inteligibilidade possível neste mundo de um agente que percebe em atividade de trabalho.

Segundo a abordagem fenomenológica de Merleau-Ponty, haveria ainda, portanto, um domínio pré-objetivo da percepção, necessário à sua compreensão. Quer dizer, o mundo percebido está aderido ao seu contexto vinculado à compreensão dos fenômenos de percepção. Sem a percepção do todo não é possível a observação de semelhanças, que sequer estariam no mesmo mundo do agente e não existiriam para ele. É na percepção como apreensão global de um conjunto que se torna possível uma atitude analítica do agente, que não discrimina, de maneira indiferente, dados do seu conjunto contextualizado e integrado. A percepção não se constrói apenas pelas coisas, mas antes pelos intervalos que existem entre elas, no fluido contextual que estes intervalos abrigam. O pano-de-fundo é mais relevante que a figura no processo de perceber a própria figura, e as leis da física vão sempre tratar, indiferenciadamente, das dimensões da figura isoladamente, num processo em que o conjunto como um todo é que deve ser analisado cientificamente. Os espaços vazios, as lacunas, neste processo, são tão ou mais significativos que a figura em si.

Na percepção, a consciência presente não se desdobra por um mecanismo de associação, visto que os dados sensíveis são complementados ou reorganizados por uma projeção de sentido do agente que percebe. A fisionomia dos dados, por exemplo, afeta aquilo que se percebe. A forma, como os dados se oferecem ao agente, afeta o quadro de percepção e de reconhecimento de experiências anteriores.

É no próprio processo que são reorganizados os dados, formatados e tornados dotados de sentido dentro de uma aleatoriedade aparente captada pelo observador. A forma já está pronta na intencionalidade do agente, e isso deve ser considerado pelas análises que tendem a focalizar apenas o dado objetivo em si. O principal trabalho é justamente este menos percebido: de conferir forma e sentido à experiência presente, imediata, em atos intencionais e internos dos agentes. Estes atos funcionam por meio dessas unidades de significação espacial (auto-referentes, auto-organizadas, autóctones), que prescrevem quais aspectos do dado que a coordenação perceptiva autóctone do agente deve reter, e quais devem ser negligenciados no processo de percepção.

Explicitando melhor, a percepção diz respeito à atribuição de sentido a um conjunto de dados, em sua integralidade enquanto conjunto operando em um certo contexto. O empirismo tende a desviar a atenção da ciência daquilo que é essencial. Os fatos, por menores e mais insignificantes que possam parecer, trazem, amarrados em si, toda uma longa trajetória histórica de sua edificação. Haja vista, sob esta ótica, os aspectos de cultura e de contornos sociais específicos. Assim, um chute de um jogador de futebol, em uma partida, com duração de frações de segundos, comporta análises de várias horas por parte de cronistas, comentaristas, intelectuais, jornalistas, sociólogos, artistas, etc. Estes enxergam neste "pequeno grande fato" os traços da arte do esporte, da estética do futebol, da beleza de uma jogada, ou da sua raridade, da habilidade do jogador, da sua competência e, enfim, da sua percepção. Qualquer que seja a referência, a jogada carrega, também, um componente histórico-cultural (aquela habilidade foi fomentada num dado contexto cultural ao longo de uma história) e um componente de habilidade encarnada (de alguma forma, instrumentos cognitivos e fisiológicos, no corpo do jogador, foram desenvolvidos e, no exato momento do chute, foram ativados por condições "n" de contorno da situação e seu contexto). Principalmente, o próprio chute é fruto da percepção de um objeto "bola" numa certa posição do espaço, e da percepção do próprio corpo que neste mundo interage, enquadrando todos os dados num conjunto (forma) que faz sentido e que resulta num gol.

A mera descrição físico-química ou fisiológica da jogada não preenche todo o seu repertório de análises possíveis sob a perspectiva fenomenal da percepção do jogador. Aquela jogada é um produto histórico e a percepção também, abrigando, em seu interior, no fenômeno em si, um sentido pré-objetivo que as análises objetivistas não podem esgotar. Como nos diz Merleau-Ponty:

"O campo não lhe é dado, mas está presente para ele como o termo imanente de suas intenções práticas; ele e o jogador são um só corpo e o jogador sente, por exemplo, a direção do gol tão imediatamente quanto a vertical e a horizontal de seu próprio corpo. Não bastaria dizer que a consciência habita esse meio. Ela nada mais é, nesse momento, que a dialética do meio e da ação. Cada manobra realizada pelo jogador modifica o aspecto do campo e traça novas linhas de força nas quais a ação, por sua vez, se desenrola e se realiza alterando de novo o campo fenomênic." (Merleau-Ponty, 2006: 263)

O não-compartilhável da percepção de um agente apreende-se por uma fração de tempo, num detalhe que a consciência pode não abarcar e que as análises objetivistas podem descartar como supérfluo. É nele que se encontra a essência daquilo que ora se busca conhecer. O que não se desenrola visivelmente no espaço de atuação objetivo corre no espaço invisível da interioridade em uma atividade de trabalho, em suas coordenadas psíquicas e cognitivas. A introspecção do próprio agente é um meio de revelar aquilo que ali dentro se passa, e não deixa de ser fonte de dados tão valiosos quanto uma observação objetiva de um fenômeno físico. Há necessidade de se fazer, pelo método, corresponder as percepções interiores, em seu mundo restrito de experiências do agente, a signos exteriores que podem ser associados pela consciência.

A percepção não pode ser empobrecida por um viés objetivista que a converteria em uma pura operação de conhecimento instrumental exteriorizado e indiferente ao agente. Não pode ser convertida em anotações de qualidades distintas da própria organização psíquica e cognitiva da mente que percebe o mundo.

5.2. A consciência na percepção e a ação de perceber na atividade de trabalho

Quando se diz que a percepção no trabalho envolve todo um "campo" de análise mais amplo que o próprio fato em si, significa dizer que os dados assim o demonstram de diversas maneiras que não podem ser negligenciadas em favor de uma maior objetividade reducionista do próprio fenômeno. A própria atenção do agente é uma variável que afeta o fenômeno de percepção e não apenas os sinais emitidos por uma fonte. O juízo internalizado ou os "esquemas relacionais" (Clot, 1999: 168), já armazenados pelo sujeito, também afetam o que vai ser percebido e o sentido que sobre isso será elaborado. A atenção mesma, em si, tem como primeira operação a criação de um campo (perceptivo, mental) que ampara a consciência, para que ela não se perca, no processo perceptivo. Um distanciamento do objeto, uma visão mais global de sua posição, de sua situação, acompanhados de um sentimento próprio do corpo e de sua localização no espaço, fazem com que exista a atenção e a percepção. Há, em cada caso específico, um preparo espacial da mente (Berthoz, 1997: 203), um uso de uma liberdade de situação, a re-criação de si em um contexto dado como modo de estar atento e perceber o que se faz necessário para trabalhar com eficiência.

Alguns doentes percebem cores que não correspondem a qualquer uma das cores do espectro. A percepção das cores, antes da captação física de faixas de um espectro correspondentes a comprimentos de onda específicos, implica numa modificação da estrutura da consciência, uma reformulação da experiência em si mesmo, uma re-elaboração de algo a princípio dado. A atenção do agente implica em realizar uma articulação nova nos dados, dentro de um horizonte mais amplo; ver os dados como regiões de um mundo em que a sua estrutura original assegura a identidade do objeto.

A ação diferenciada da consciência sobre o mundo é justamente a de fazer emergir, pela atenção, fenômenos até então imperceptíveis, responsáveis por devolver uma unidade ao próprio objeto, em um novo recorte. O ato de atenção se liga a atos anteriores e permite à consciência a elaboração desta "síntese transitória", uma constituição intencional do novo objeto que recorta aquilo que aparecia, ao agente, apenas como um pano de fundo ou um horizonte indistinguível. É necessário entender que não é o objeto que desperta a atenção, mas é a atenção que aciona o objeto, que o reconstrói e o coloca em sua função. O objeto depende da atenção e é para ela o seu motivo e não sua causa. A atenção vincula-se originariamente ao ato consciente, e consiste numa transição do indeterminado ao determinado, como retomada, como ressurgimento, como apropriação de um novo sentido. O mundo só é possível enquanto mundo concreto porque já se encontra implicado na consciência mais rudimentar, e a consciência que se liga às coisas ressurge para as coisas do mundo numa história de ação de partes umas sobre as outras: O todo apreendido é função da consciência.

Nas situações em que o objeto ou sinal (estímulo) permanece o mesmo enquanto a percepção do mesmo varia, os pontos de vista objetivista, empirista e representacionista se veem em dificuldade para explicar essas variações de percepção do agente. Se os estímulos permanecem constantes, e a percepção é variável, isso demonstra que esta é função das modificações estruturais do agente em si, incluindo modificações em sua interpretação; a concepção do agente sobre o estímulo modifica a percepção; a aparência, as características, as propriedades percebidas do objeto adquirem forma e sentido sob a ação do agente.

A estrutura do agente diz respeito a uma espécie de instância reguladora do fenômeno perceptivo que está para a percepção assim como a sintaxe está para a língua. Ela é que desencadeia um resultado ao processo, cujos dados não antecedem à solução. A criação de um sentido com os dados é que consiste na essência do processo, visto que não se resume ao descortinar de um sentido a eles imanente, mas, antes, a criação mesma de um sentido para eles.

Merleau-Ponty problematiza o fato de que a consciência não possui a propriedade de abarcar toda a determinação de seus objetos. Na realidade, a consciência não apreende toda a sua lógica de vivências ou uma significação imanente do mundo que não é clara para si mesma. Ela, de fato, tateia a experiência e constrói o seu mundo com base naquilo que nele lhe é acessível. Merleau-Ponty mostra que a consciência, no processo de percepção, orienta-se por uma espécie de razão operante, que existe em ação, em efetivo exercício do ser sobre o seu mundo. Esta não se circunscreve a nenhum fenômeno isolado, circunscrito, mas trabalha por uma propriedade de junção, de ligação entre fenômenos e fatos, à medida que se realiza.

O campo de atuação não se traduz somente por um mundo interior, num estado de consciência ou como um fato psíquico. Mais que um pedaço do real encontrado na interioridade, é aquele espaço não-localizável, não objetivo e transcendente ao espaço físico que, por fim, se desenvolvem as ações, o usos dos instrumentos, as articulações no campo da linguagem e o manuseio simbólico num domínio abstrato. Estes, em seu conjunto de acontecimentos criadores de uma ontologia própria a este espaço do agente em sua atuação, constituem o potencial do qual partem os fenômenos (cognitivos, perceptivos) que a ciência objetiva dificilmente conseguiria explicar satisfatoriamente.

A visão objetivista nunca tem sob seu domínio todo o campo de observação. Toda visão é parcial e limitada e o todo, conforme visto e percebido por alguém, somente é visível e perceptível por este alguém que atua com seu corpo, com sua mente, em uma atividade de trabalho específica, e cria ao redor de si um campo que transcende o campo de registros objetivos de natureza física.

É preciso coragem para sustentar que a análise de um campo que se estende para um domínio transcendental não visível, não tangível e não observável, na atividade de trabalho, por métodos objetivos de análise (como os métodos da análise ergonômica do trabalho - AET) pode ser tão ou mais científica que qualquer análise convencional de registro e coleta de dados. Os dados, no caso de uma análise atuacionaista (Varela et al., 1993) são aqueles que passaram pelo crivo da vivência e da própria experiência singular de cada agente em sua atividade de trabalho específica; agente vivo e atuante em seu campo.

Ao falar da existência de um campo que transcende a ação, a reflexão torna-se uma criação que não tem sob seu controle todos os fenômenos do objeto e seu mundo. Antes, a reflexão envolve uma visão parcial, limitada, conforme o ser que se efetiva pela consciência calcada no mundo (incorporada), ou seja, como ele se mostra. Significa que a perspectiva particular, segundo a qual o sujeito conhece o mundo, é avaliada respeitando-se esta particularidade.

Longe de um cogito universal, a reflexão se dá, assim, por um cogito moldado por instrumentos culturais, pela educação, por vivências passadas, pela história.

Nesse aspecto, ver um objeto, percebê-lo, é destacá-lo de seu fundo; é colocá-lo como figura destacada de um arcabouço maior que a abarca. Para perceber um objeto, o sujeito deve nele mergulhar, apreendendo-o em seu horizonte interior, fazendo com que a estrutura objetohorizonte, ou a perspectiva, não atrapalhe esta comunhão com o objeto, o seu desvelar.

Cada ato de trabalho em uma atividade de trabalho guarda um encontro que se verifica na união de um sujeito com seu mundo percebido. Caso se observe um ato atentamente, verifica-se que dele surgem, emanam, aspectos até então não percebidos. O ato abriga, em si, um "que" de eternidade, de profundidade, de algo maior que permanece encerrado no intercâmbio do agente com sua atividade.

O ato de trabalho mostra-se apenas em uma face, e o que dela o observador retém só pode ser confrontado com suas próprias visões precedentes ou com os pontos de vista de outros por intermédio do tempo e da linguagem. Por isso, a síntese que o observador efetua somente pode ser precisa na circunvizinhança (campo) do objeto.

Sob o ato de trabalho, irão incidir perspectivas distintas, coexistentes, que convidam a uma melhor compreensão tanto do sujeito quanto do objeto. O objeto é apreendido, de fato, na experiência, que revela algo do ser.

Objeto e sujeito escapam das análises do real porque entre eles emergem fenômenos que só podem ser apreendidos no seu campo de inter-relações. O que ocorre no acoplamento do sujeito com a tarefa somente se mostra neste campo fluido, abstrato, que transcende tanto a materialidade objetiva do objeto quanto (e principalmente) a materialidade objetiva do sujeito.

 

6. Considerações finais: ontologia da ação e da percepção no trabalho

Pelo presente estudo foi possível constatar que "Atuar" é estar disponível a ações que demandam o engajamento de tudo aquilo que se adquiriu, em si, ao longo da história de mudanças estruturais e de reconfiguração da ontogenia individual em função das necessidades postas pelo trabalho.

As habilidades emergem quando o sujeito permanece aberto às influências do campo no qual atua; campo por natureza prático que absorve o corpo como veículo do ser no mundo: O corpo é, para o sujeito, sua forma de aliar-se ao meio de trabalho, envolver-se em ações que o colocam em funcionamento e ativam, nele, funções que extrapolam e transcendem a própria materialidade do corpo objetivamente situado no mundo: funções localizadas em seu campo de atuação.

O fenômeno perceptivo na atividade de trabalho envolve um entrelaçamento de fatos fisiológicos (localizáveis no espaço físico) e fatos psíquicos (difusos, sem localização espacial precisa). Processos objetivos (influxos nervosos), situados que estão no campo ou no domínio estrutural do sujeito ("em si"), juntamente com comportamentos cognitivos (como um consentimento ou uma recusa em realizar um ato no trabalho; a tomada de consciência dos elementos segmentados em uma dada situação; as lembranças de situações pretéritas já experimentadas e até mesmo a emoção a elas associada), enfim, o campo do "para si", unemse para tornar complexo o processo que, seguramente, extrapolou, em muito, o terreno objetivo da fisiologia clássica.

Há um intercruzamento das funções biológicas com as funções inerentemente humanas e outras humanamente adquiridas pelo corpo que é solicitado, agitado, mobilizado, fustigado, marcado pelo trabalho e pelo tempo. Esse entrecruzamento cria condições para que o potencial de ação surja; para que seja possível trabalhar e usar de si mesmo (Schwartz, 1998: 118) em situações de trabalho. O corpo, então, lança-se ao mundo do trabalho. O ato que se vê no corpo que se movimenta guarda a fusão entre a carne que sofre e aprende no trabalho e a mente que adquire novas disposições, em sua ontogenia, para ação eficaz. O presente, o exato momento do ato presente, numa atividade de trabalho, abriga a experiência do tempo, experiência dotada de estrutura temporal, em que cada instante do agora abre um extenso horizonte do passado e predispõe as formas de ações futuras, abarcando a quase totalidade do tempo possível.

É a capacidade de reativar, em si mesmo, para além da experiência imediata, aquilo que a história registrou no corpo, que produz efeitos de competência numa ação pautada pela "expertise". Para o perito, não está dado apenas o que é imediatamente dado, porque o perito já possui esquemas desenvolvidos em sua história de atuação concreta na atividade de trabalho, e já não precisa recorrer a regras e conhecimentos explícitos, valendo-se predominantemente de seu saber tácito (incorporado) que lhe permite agir com eficácia. Ou seja, apresenta-se, aqui, no instante de colocar a si em ação num fragmento de tempo quase instantâneo, toda a história passada, despejada abruptamente na fração temporal do presente que requer um ato eficaz e infalível. Competência é história concentrada, num ponto específico, de uma dispersão de possibilidades de ação no espaço objetivo do ambiente de trabalho; é todo o passado focalizado e projetado num ponto situado na dimensão do presente.

 

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Submetido em 27/01/2009
Revisado em 13/07/2009
Aceito em 17/07/2009

 

 

G.C. Bouyer é Doutor em Engenharia de Produção (Universidade de São Paulo, USP), Mestre em Engenharia de Produção (Ergonomia e Organização do Trabalho, Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG) e Graduação em Engenharia Química (UFMG). Atua como Professor Adjunto (UFOP). E-mail para correspondência: gilbertcb@uol.com.br.

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