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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. v.14 n.3 Rio de Janeiro nov. 2009

 

ARTIGO CIENTÍFICO

 

O funcionalismo de Sellars: uma pesquisa histórica

 

The Sellars's functionalism: a historical research

 

 

Marcelo Masson Maroldi

Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, São Paulo, Brasil

 

 


RESUMO

O filósofo Wilfrid Sellars foi um dos precursores do funcionalismo contemporâneo ao conceber estados mentais como entidades teóricas identificadas com estados funcionais, concepção defendida principalmente em sua obra mais relevante, Empirismo e Filosofia da Mente,amplamente discutida nos meios acadêmicos de tradição analítica. Neste livro, Sellars apresenta sua explicação do mental, reunindo numa mesma tese eventos privados, intencionalidade, uma linguagem pública e um sistema baseado em regras definidas intersubjetivamente. Assim, este trabalho pretende mostrar em que medida este autor antecipou o projeto funcionalista, particularmente algumas ideias de Hilary Putnam, Jerry Fodor e Daniel Dennett. Para isso, começamos apresentando, na primeira parte, a proposta de Sellars nos anos 50 e, posteriormente, caracterizamos o funcionalismo da década seguinte. Finalmente, avaliamos a influência de Sellars sobre os teóricos funcionalistas citados e comentamos a abrangência e importância deste autor para a filosofia da mente e da linguagem atuais.

Palavras-chave:funcionalismo; Sellars; Putnam; Fodor; Dennett.


ABSTRACT

Philosopher Wilfrid Sellars was one of the contemporary functionalism precursors when he conceived mental states as theoretical entities identified with functional states, conception defended mainly in his most relevant work Empiricism and the Philosophy of Mind, broadly discussed on the academic context of analytical tradition. On this book, Sellars introduces his explanation of mental, gathering on the same thesis private events, intententionality , a public language and a system based on rules defined intersubjectivity Therefore, this work intends to show how much this author anticipated the functionalist project, particularly introducing, on the first part, Sellars's proposal in the 50s and, later, characterize the following decade functionalism. Finally, we evaluate Sellars's influence on the quoted theoretical functionalists e comment the range and importance of this author for the mind philosophy e current languages.

Keywords: functionalism; Sellars; Putnam; Fodor; Dennett.


 

 

Introdução

"Meu problema imediato é ver se consigo conciliar a idéia clássica de pensamentos como episódios internos, os quais não são nem comportamento público nem representação verbal e aos quais é apropriadamente feita referência por meio de termos do vocabulário da intencionalidade, com a idéia de que as categorias da intencionalidade são, no fundo, categorias semânticas pertencentes a performancesverbais públicas." (Sellars, 2008: 97)

Wilfrid Sellars (1912-89), eu sua principal obra Empirismo e Filosofia da Mente(EFM), de 1956, desenvolve uma ficção - o mito de Jones-com o objetivo de auxiliar o entendimento de alguns conceitos de filosofia da mente e da linguagem. O mito inicia a partir de uma comunidade ryleana(referência a Gilbert Ryle) cujo vocabulário é restrito a fatos observáveis e sem referências a episódios internos, sequer conhecidos por seus membros. Porém, Jones, adepto do behaviorismo, propõe explicar o comportamento dos integrantes da comunidade postulando uma teoria a partir da análise de seus episódios internos, e que permitiria concluir as mesmas coisas que as obtidas pela observação do comportamento público. Jones, então, chamou tais episódios de pensamentos, concebendo para eles termos linguísticos e passando a orientar seus colegas sobre como os descrever empregando este novo vocabulário: primeiro, relatando o comportamento internodos outros, e depois os seus próprios pensamentos:

"Logo, quando Tom, observando Dick, tem evidência comportamental que sustenta o uso da frase [...] 'Dick está pensando p' [...] Dick, usando a mesma evidência comportamental, poderia dizer [...] 'Eu estou pensando que p'. [...] O que começou como uma linguagem com um uso puramente teórico ganhou um papel de relato."(Sellars, 2008: 109-110)

Com a crítica ao mito do dado, primeira parte de EFM,eo mito de Jones, na segunda, Sellars procura negar a consciência pré-linguística1: entender o pensamento requer antes entender a linguagem. Nesse sentido, ele se opõe às teorias clássicas que afirmam que a mente atribui à linguagem um significado, ou seja, o conteúdo mental é transferido para a linguagem. Segundo Sellars, é um erro supor que a linguagem é uma tradução de pensamentos não linguísticos ou um veículo para expressá-los2. Ora, "o discurso público é a culminação de um processo que inicia com o 'discurso interno', mas não porque eles expressam pensamentos 'segundo o modelo de uso de um instrumento' (Sellars, 2008: 109). Admitir que conceitos precedam à linguagem é aceitar a existência de algum tipo de representação não verbal anterior a própria e que é sua causa, o que Sellars enfaticamente discorda. Um conceito só é conhecido quando há uma palavra que o identifica, portanto, ele não herda seu significado do pensamento e ocorre posteriormente à linguagem. Entretanto, ninguém ousa negar que um bebê sente dor,por exemplo. Porém, para Sellars, antes de identificada a uma linguagem, a dornão pode ser classificada como tal, tampouco relacionada a quaisquer outros conceitos (ou seja, uma vez que os conceitos não são compreendidos isoladamente, devem participar, como veremos, em uma redelógica conceitual).

Por isso, podemos compreender um conceito como uma abstração para o uso de uma palavra cujo significado é definido pela comunidade. Introduzir conceitos em termos de prática social os torna intersubjetivos, dependentes de reconhecimento público, isto é, a linguagem adquire significado por se referir às coisas do mundo (ou internas, mas definidas publicamente). Por isso, se o significado de uma palavra é seu correto uso público, ele não pode ser a significação particular do agente e sim o que outras mentesconcordariam em aceitar como tal. Como resultado, para Sellars a questão da representação interna se torna secundária: importa a função que os pensamentos irão desempenhar no "espaço lógico das razões".

Desse modo, o significado da linguagem não pode ser explicado em termos da intencionalidade do pensamento, pois é ela que explica o pensamento e seu conteúdo. Dito de outro modo: o pensamento ocorre porque há linguagem3, e mais: o pensamento tem seu significado justamente por se referir a uma linguagem.

Sendo assim, então, devemos perguntar: ora, como a linguagem pública se relaciona com o pensamento? Compreendermos a importância dessa relação é o mesmo tipo de motivação que levou Richard Rorty a afirmar, com algum exagero, que: "segundo Sellars, caso você possa explicar como as práticas sociais que denominamos 'usar linguagem' vêm a existir, você já terá esclarecido tudo o que é necessário sobre a relação entre mente e mundo" (Sellars, 2008: 18).

 

1. O funcionalismo de sellars

"Unlike Ryle, I believe that meaningful statementsare the expression of inner episodes, namely thoughts[...] Thought episodes are essentially characterized by the categories of intentionality." (Sellars e Chisholm, 1957)

Para Sellars, estados mentais existem e têm significado. Ter um conteúdo mental depende de um estado interno desempenhar uma função num processo interior (a "linguagem do pensamento"), isto é, estados mentais possuem propriedades semânticas por desempenharem papéis funcionais no espaço das razões,do mesmo modo que os termos linguísticos desempenham papéis numa linguagem pública. Ora, a intencionalidade do mental é explicada pela referência a um significado linguístico, que, por sua vez, desempenha um papel no comportamento público: o significado dos pensamentos refere-se à fala, o significado da fala, às práticas intersubjetivas. Assim, estar em um estado mental é estar em um estado privado cujo conteúdo pode ser expresso funcionalmente numa linguagem pública.

Se pensamentos dependem do papel que desempenham na "linguagem do pensamento", diremos então que têm uma classificação funcional (da mesma maneira que fazer uma declaração linguística é também classificá-la funcionalmente). Afirmar a classificação funcional de um estado mental é afirmar que ele toma parte numa relação entre inputs, transições inferenciais (cuja contraparte é linguística) e um outputcomportamental (expresso por uma ação ou uma fala). Ora, isto equivale a dizer que conceitos participam de relações causais a partir da utilização interna que lhes é dada, e a intencionalidade é especificada funcionalmente pelas relações que envolvem estímulos, movimentos lógicos e respostas.

Assim, segundo esse raciocínio, a descoberta de que estados mentais sejam tãosomente cerebrais não compromete a teoria: pensar se define como um conceito funcional, e não biológico ou metafísico. A discussão mente-corpo se torna menos importante, valorizando a compreensão de pensamentos como episódios de uma linguagem interior que se referem a algo porque desempenha um papel nas inferências em que participam. Então, se o pensamento se revela na capacidade de expressar relações proposicionais de uma linguagem interna, é insuficiente dominar o conceito linguístico sem saber utilizá-lo. É preciso ser capaz de dominar um jogo lógicoem que um conceito recebe um significado ao assumir uma posição na estrutura conceitual geral (framework). O conteúdo mental se submete às possibilidades inferenciais na rede de conceitos mentais que se referem sempre a uma linguagem, mas não significa dizer que o pensamento é uma operação direta sobre os termos linguísticos ou a própria linguagem pública internalizada. Episódios de pensamento nãosão episódios de fala eles são apenas expressos em episódios de fala (pensar não é simplesmente falar internamente, cf. Sellars e Chisholm, 1957) - e possuem sua própria forma, justificando, portanto, serem atribuídos a uma "linguagem do pensamento".

Como já ficou evidente, a linguagem pública é o modelo que Sellars procura analisar para chegar ao pensamento. A reflexão sobre como ela se constitui o leva a adotar a analogia com o jogo de xadrez, já vista em Wittgenstein (1975, 2003), para quem as palavras adquirem significado a partir do uso. Sellars desde 1949 dava sinais de aproximar a linguagem a jogos, mas a analogia linguagem-xadrez só foi elaborada a partir de 1953 com A Semantical Solution of the Mind-Body Problem, estendendo-se aos trabalhos subsequentes.

A mesma analogia se tornou posteriormente uma das favoritas do funcionalismo. Mas, que há nela que a faz tão atraente? Sabemos que o xadrez é definido por regras, o número de peças e os movimentos válidos para cada uma. Ser um bisposignifica respeitar um conjunto de regras, e só por isso podemos dizer que tais movimentos são válidos: os jogadores aceitam e reconhecem tais regras, agindo de acordo com elas. Então, se alguém move um bispo, responde a um elemento que, naquela circunstância, significa um bispopor respeitar regras daquele jogo e assumir essa função. Por isso, um bispoé uma abstração para um conjunto de movimento que um objeto pode realizar no contexto do jogo; o significadode uma peça de xadrez é a totalização das regras que ele pode cumprir para desempenhar um papel no jogo. Se uma peça se torna bispopelo fato de ser governada por certas regras num contexto, qualquer objeto que cumpra a mesma função pode ser descrito igualmente como tal. Não encontramos referências às propriedades físicas na descrição do jogo de xadrez, as regras se referem apenas a movimentos. As peças e o tabuleiro podem ser de quaisquer materiais, tamanhos e cores. O conceito do jogo não pode ser reduzido a características empíricas; o jogo se reduz tão-somente às regras. No entanto, ele precisa ser realizado emalgum suporte físico (peças e tabuleiro de madeira, pedra, a tela do computador, papel e caneta, etc.).

De forma análoga ao xadrez, a linguagem é definida por um conjunto de expressões e um conjunto de regras para seu uso, e as palavras exercem papéis segundo regras que especificam em que casos devemos usá-las para sermos compreendidos (Sellars, 1949, 1971). As palavras ganham significados em contextos, desempenhando uma função ao tomar posição num jogo de linguagem. Por isso, devem ser consideradas holisticamente: "a living language is a system of elements which play many different types of roles, and no one of these types of role make sense apart from the other" (Sellars, 1969b: 65). Ademais, o significado não é fixo, uma mudança linguística pode implicar uma mudança conceitual. Por exemplo, se no futuro ficar provado que o que hoje chamamos menteinexiste, nosso conceito de menteprecisará ser modificado, e passaremos a empregar o novo sentido apenas na ocasião adequada, com outro papel.

Esta tese (functional role semantic) é similar a de Wittgenstein nas Investigações. Entretanto, enquanto este se limita a um funcionalismo linguístico, Sellars estende a proposta aos estados mentais, o que lhe confere uma posição realmente original, mas lhe obriga a explicar a relação entre linguagem e tais estados (a relação entre a linguagem pública e a interna), propósito do mito de Jones. Ora, já dissemos que o significado dos estados mentais é dado pelo papel funcional que desempenham no espaço lógico das razões,e assim se tornam intencionais. Isto é, o pensamento da comunidade, sob influência de Jones, adquiriu intencionalidade ("referência ou ser acerca de algo", Sellars, 2008: 97) pois "[a teoria jonesiana] transfere a esses episódios internos a aplicabilidade de categorias semânticas" (Sellars, 2008:108). Porém, o que é o pensamento?

Pensar realiza-se com elementos internos que participam funcionalmente em inferências que se referem à linguagem, por isso dão significado ao pensamento. Como há uma analogia funcional entre a linguagem pública e a interna, o significado dos estados mentais ocupa o mesmo papel que ocupam os termos linguísticos, um predicado mental corresponde funcionalmente a um predicado linguístico (palavras de idiomas distintos podem ocupar o mesmo papel; pensar depende de uma linguagem, mas não de uma em especial). Desse modo, pensar não é falar internamente, mas manipular sentenças de uma linguagem interna nomeada por Sellars de Mentalese:

"I propose that we take very seriously the view that a thought, in the sense in which thoughts occur to one, is the occurrence in the mind of sentences in the language of 'inner speech', or, as I shall call it, 'Mentalese'. These sentence events, as I have pointed out elsewhere, are not to be confused with verbal imagery." (Sellars, 1971)

Sellars sugere uma forma de expressá-la baseando-se na função dos termos na frase. Assim, em "the •dog• is a animal" e "o •cachorro• é um animal", doge cachorrosão conceitos funcionalmente equivalentes por possuírem o mesmo papel.

Se duas palavras têm o mesmo significado por ocuparem a mesma função linguística, dois estados mentais têm o mesmo conteúdo por ocuparem a mesma função no discurso interno (pensamentos idênticos são os que desempenham funções idênticas). Nesse sentido, importa considerar somente o papel funcional dos pensamentos, uma vez que a explicação do que eles realmente são é desconhecida (e mesmo que venha a ser conhecida não altera o modo como Sellars os trata). Ora, como as regras do xadrez estão restritas ao xadrez e as da linguagem restritas à linguagem, o pensamento está restrito a suas próprias regras. Contudo, tais regras não dependem da constituição dos estados mentais, afinal, são regras lógicas, o "espaço das razões" (de dar e receber razões) que permitem um comportamento considerado inteligente. Por isso, movimentos do pensamento podem ser considerados inválidos se, a partir da função que damos a eles, desrespeitamos suas regras. A validade destes movimentos depende do contexto, os estados mentais são analisados no contexto especifico governado por regras. Porém, seja na linguagem seja no pensamento, o conhecimento da regra é imprescindível:

"I shall have achieved my present purpose if I have made plausible the idea than an organism might come to play a language game-that is, to move from position to position in a system of moves and positions, and to do it 'because of the system' without having to obey rules, and hence without having to be playing a metalanguage game (and a meta-metalanguage game, and so on)." (Sellars, 1951)

De modo similar ao jogo da linguagem, o pensamento se move de posição em posição, mas sem obedecera regras. Então, "we must distinguish between action which merely conforms to a rule, and action which occurs because of a rule" (Sellars, 1949), distinção que ocupa papel central na interpretação do pensamento governado por regras (Sellars e Harman, 1970). Obedecer envolve conhecer a regra e a situação em que ela pode ser usada. Seguiruma regra pode ser feito sem a consciência da regra. Há sempre um padrão que governa a aplicação da regra, mas se ele não é conhecido a regra não é obedecida, é seguida e não se entende o papel que ela cumpre. Assim, a regra determina a função que pode desempenhar o pensamento em cada caso, ou, nas palavras de Sellars, "the short answer to the question as to how one might come to recognize the functional role of an expression is that it is the result of pattern-governed behavior" (Sellars, 1974: 423). Então, explicar um conceito a uma criança é como explicar o bispono jogo de xadrez, dar suas regras, definir seu papel. Explicar o papel que um pensamento pode assumir num jogo de razão é ensinar a pensar, e só após aprender o papel os movimentos podem ser realizados com entendimento. Obedecer a uma regra nasce de um estado cognitivo: "logical rules in the primary sense are rules of criticism" (Sellars e Harman, 1970). Por outro lado, seguir uma regra é como responder a um estímulo (o estado causal não é necessariamente consciente, como Sellars mostra na crítica do mito do dadoao fundacionismo clássico).

Assim, a consciência (ou não) da regra é refletida em ações de dois tipos: ought-to-bee ough-to-do, respectivamente. As primeiras indicam comoos agentes devem fazer (implicam uma razão), enquanto as demais o queos agentes devem fazer. Adultos possuem conceitos e sabem aplicá-los, ensinando às crianças as normas em que se deve usá-los (cf. Sellars, 1969a). Ora, regras ought-to-beemergem do discurso interno, contudo, não prescrevem necessariamente uma ação, mas o fato que o agente está em um estado específico consciente dos conceitos envolvidos nessa circunstância, ou seja, ought-to-bereferem-se a episódios intencionais de pensamento. Um pensamento qualquer significa que-Pporque alguém pensa que-P(o pensamento que-Pé uma "mental assertion" que-P,um estado cognitivo). Porém, cumpre observar a distinção entre uma crença e um pensamento: ter o pensamento que-Pé um estar em um estado mental consciente de que se está nesse estado, mas não necessariamente acreditar que-P. A crença que-Pé um estágio posterior a pensar que-Pe pode ou não ser considerado pelo agente (Sellars, 1953, 2008; Sellars e Chisholm, 1957).

Aprender a reconhecer regras envolve compreender as entradas (padrões de respostas a estímulos que não são performances mentais), e as saídas (resposta verbal ou comportamental), ou seja, a capacidade de reconhecer estímulos como de certo tipo e de responder a eles. Porém, pensar exige movimentos internos, transições inferenciais (intralinguistic moves) que não violam princípios lógicos e são realizados no "espaço das razões (ocorrem em padrões ought-to-be, executadas por quem possui uma linguagem e delibera em cima dela). Estes movimentos devem respeitar a lógica, o pensamento deve evitar movimentos que a contradiga: uma regra não especifica o que deve ser feito, mas o que não pode ser feito, o comportamento que viola a regra (Sellars, 1949). É assim que a norma se torna a expressão da racionalidade, o comportamento inteligente é aquele que acompanha e compreende as regras. Nas palavras do próprio autor:

"[...] there towers a superstructure of more or less developed systems of rule-regulated symbol activity which constitutes man's intellectual vision. [..] Such symbol activity may well be characterized as free - by which, of course, I do not mean uncaused- in contrast to the behavior that is learned as a dog learns to sit up, or a white rat to run a maze. [...] A structure of rule-regulated symbol activity, which as such is free, constitutes a man's understanding of this world, the world in which he lives, its history and future, the laws according to which it operates, by meshing in with his tied behavior, his learned habits of response to his environment. To say that man is a rational animal, is to say that man is a creature not of habits, but of rules." (Sellars, 1949)

Aprender uma linguagem é aprender a obedecer a regras, mas não porque o padrão obriga a seguir regras, mas porque o padrão é reforçado na comunidade. Aprende-se a seguir regras ao mesmo tempo em que se aprende uma linguagem; aprende-se a pensar ao mesmo tempo em que se aprende uma linguagem. "A habilidade de ter pensamentos é adquirida no processo de aquisição da fala pública e que somente depois que a fala pública estiver bem estabelecida, pode a 'fala interna' ocorrer sem a culminação explícita" (Sellars, 2008: 109). Sobre isso, comenta Robert Brandom: "Uma vez que se tenha aprendido simultaneamente a falar e pensar [...] o pensamento muitas vezes precede a fala na ordem da causação" (Sellars, 2008: 171). Nota-se, assim, a profunda relação entre o comportamento, linguagem e pensamento:

"Some functional relationships are purely intra-linguistic (syntactical) and are correlated with the formation and transformation rules. Others concern language as a response to sensory stimulation by environmental objects [...] Still others concern the connection of practical thinking with behavior. All these dimensions of functioning recur at the metalinguistic level in the language in which we respond to verbal behavior, draw inferences about verbal behavior, and engage in practical thinking about verbal behavior." (Sellars, 1971)

A conexão entre pensamento e comportamento linguístico que o expressa - o behaviorismo verbal- é a posição defendida por Sellars até seus últimos trabalhos, sempre procurando mostrar que o comportamento verbal não apenas expressaa atividade conceitual, ele éa própria atividade de pensamento. Vejamos:

"[de acordo com a teoria jonesiana], a verdadeira causa do comportamento inteligente não habitual é a 'fala interna'. Logo, mesmo quando uma pessoa faminta diz publicamente 'Aqui está um objeto comestível' e começa a comê-lo, a verdadeira causa - teórica - de seu comer, dada sua fome, não é a enunciação pública, porém uma 'enunciação interna dessa frase.'" (Sellars, 2008: 107-108)

Para Sellars, o behaviorismo verbal é um modelo simples que auxilia na compreensão das características do pensamento, sobretudo as relacionadas à percepção, inferência e ação (Sellars, 1969a, 1971). Expressões linguísticas têm significado por desempenharem papeis na prática pública, respondendo a um estado mental com uma expressão linguística ou ação correspondente. "The thought that 2 plus 2 = 4 ocurred to Jones becomes, in the Verbal Behaviorism model, Jones said (or had a short-term proximate disposition to say) '2 plus 2 = 4'" (Sellars, 1971). Dessa forma, episódios mentais são intencionais por expressarem papéis num comportamento governado por um padrão ought-to-bedirecionado à linguagem pública. Escreve Sellars a Chisholm:

"[...] that a certain mode of behavior, B, can correctly be said to express the thought thatp, only if Bis the translationin his 'language' of the sentence in our language, call it S, represented by 'p'. This implies that B plays a role in his behavioral economy which parallels that of S in ours." (Sellars e Chisholm, 1957)

Por isso, animais e humanos se diferenciam pela capacidade de comportamento normativo consciente, uma vez que os últimos são capazes de saber a regra correta para cada ocasião e fazer uso funcional e lógico de conceitos: "roughly, to be a being capable of conceptual activity, is to be a being which acts, which recognizes norms and standards and engage in practical reasoning" (Sellars, 1969b:218). Ora, Sellars (1961) nega que animais que não possuem linguagem possam ter conceitos; podem ter um sistema representacional, mas, sem uma linguagem que permita manipulação lógica, têm, no máximo, associações. Um conceito só é conceito se puder desempenhar um papel numa inferência, o que os animais não conseguem fazer. Podemos afirmar que uma regra só é regra se está voltada para uma ação livre, uma escolha. Um padrão de obediência é apenas uma generalização. Isto equivale a dizer que o comportamento humano é de um nível mais alto do que meramente a obediência a generalizações, como o dos animais (que "aprendem" as palavras sem considerá-las num sistema regulado por regras, sem considerá-las funcionalmente, portanto. Cf. Sellars, 1949)4.

Assim, vemos que o "funcionalismo" de Sellars é introduzido como uma explicação do significado dos termos em inferências da linguagem interna e sua relação com o comportamento verbal. Como escreveu (Sellars, 1975), ele tentou limitar o impacto da evolução das microfísicaàs questões relacionadas a o que é uma pessoa?,por isso sua formulação pode resistir aos avanços da neurociência por postular papéis funcionais desconsiderando o que efetivamente são estados mentais (definidos desde o princípio como entidades teóricas com funções a cumprir). Ora, concebida desse modo Sellars não exclui filosofias materialistas. Embora trate funcionalmente de estados mentais sem reduzí-los a fatos empíricos, isso, de fato, pouco importa:

"O fato de que eles [pensamentos] não são introduzidos como entidades fisiológicas não exclui a possibilidade de que, em um estágio metodológico posterior, eles, por assim dizer, 'resultem' ser isso. Logo, há muitos que diriam que já é razoável supor que esses pensamentosdevem ser 'identificados' como eventos complexos no córtex cerebral funcionando como uma máquina de calcular. Jones, claro, ignora isso completamente." (Sellars, 2008: 108, grifo meu)

Ademais, não é necessário recorrer a posições metafísicas:

"O que devemos supor que Jones desenvolveu é o germe de uma teoria que permite muitos diferentes desenvolvimentos. Nós não precisamos sujeitá-la a nenhuma das mais sofisticadas formas que assume nas mãos de filósofos clássicos. Logo, à teoria não precisa ser dada uma forma socrática ou cartesiana, de acordo com a qual essa 'fala interna' é a atividade de uma substância separada." (Sellars, 2008: 107)

E por isso Rorty pode afirmar:

"Sellars mostrou como é possível oferecer uma explicação não-reducionista de 'evento mental' evitando, não obstante, como Wittgenstein, a figura do olho da mente enquanto testemunha de eventos em uma espécie de teatro interno imaterial." (Sellars, 2008: 19; cf. também Rorty, 1988: 40-41)

Concebida dessa maneira, a filosofia da mente de Sellars é complexa, pois combina uma perspectiva funcional que reconhece a intencionalidade dos estados mentais a partir de uma consciência linguística. Porém, sentir dorindepende da linguagem e do que dorseja, isto é, saber o que ela é não é uma condição causal necessária para senti-la (cf. Rorty, 1988, cap. 4). Como consequência, não é necessário defini-la para caracterizá-la desde que se tenham mecanismos para identificá-la como tal, o que é feito funcionalmente5. O mito de Jonesmostrou como "coisas que são similares em suas propriedades observáveis diferem em suas propriedades causais, e coisas que são similares em suas propriedades causais diferem em suas propriedades observáveis" (Sellars, 2008: 101), um grande passo em direção a uma abordagem funcionalista da mente.

 

2. O funcionalismo da década de 60

"Sellars's influence has been ubiquitous but almost subliminal (if one judges by the paucity of citations to Sellars among functionalists). It is clear that Putnam, Harman, and Lycan [...] have been quite directly influenced by Sellars." (Dennett, 1990: 341) Sellars escreveu EFMpouco depois da publicação de dois trabalhos importantes, O conceito de mente,de Ryle, em 1949, e as Investigações Filosóficas,de Wittgenstein, logo depois, em 1953. Nesse período, as perspectivas para a questão mente-corpo resumiam-se a duas alternativas: de um lado, um dualismo enfraquecido, embora ainda presente na filosofia e em outras áreas (como nas primeiras gerações de neurocientistas, Bennett e Hacker, 2003), e, de outro, um materialismo limitado a uma novíssima teoria da identidade. A estas tendências principais podemos adicionar uma terceira, o behaviorismo, que tentava enfrentar e resistir às pesadas objeções dos mais diversos setores contrários a ele. Diante dessa carência de opções surgiu nos anos 60 a proposta funcionalista, que, entre seus objetivos, visava atacar a teoria da identidade de Place (1956) e Smart (1959) e se posicionar contra o behaviorismo.

Como vimos, Sellars desenvolveu na década de 50 uma teoria em que estados mentais são tomados como entidades teóricas que desempenham papéis funcionais, mas em nenhum momento deu-lhe o nome funcionalismo. Somente na década seguinte o funcionalismo recebeu a formulação que o popularizou, especialmente através da primeira fase da obra de Hilary Putnam (posteriormente ele abandonou o funcionalismo) e de Jerry Fodor, embora tenha também assumido outras caracterizações. Porém, algumas das ideias adotadas por Putnam e Fodor já haviam sido concebidas antes. Ora, além do próprio Sellars, são considerados antecedentes Aristóteles, citado por Putnam (1975) com uma interpretação funcionalista6, Hobbes, que combinou uma visão "computacional" da mente com elementos funcionais e a tendência atual de considerar funcionalista a obra de Kant7 (em sua Autobiographical Reflections,de 1975, Sellars reconhece este último como grande influência. Para Brook (2003), Sellars foi o primeiro a ler Kant como um "proto-funcionalista"). Todavia, a divisão mais comum distingue o funcionalismo em três orientações, a saber:

"Functionalism has three distinct sources. First, Putnam and Fodor saw mental states in terms of an empirical computational theory of the mind. Second, Smart's 'topic neutral' analyses led Armstrong and Lewis to a functionalist analysis of mental concepts. Third, Wittgenstein's idea of meaning as use led to a version of functionalism as a theory of meaning, further developed by Sellars and later Harman." (Block, 1980)

Todas as tendências, porém, tenham elas quaisquer particularidades, assumem que a condição para um sistema estar em um estado independe das características internas do sistema; depende, sim, dele desempenhar uma função. Relógios não são definidos em termos de seu material, organização interna ou cor: ser um relógio é ter uma propriedade funcional - a de medir o tempo - em virtude de desempenhar um papel. Assim, estar em um estado funcional é possuir propriedades entendidas no contexto de relações causais, isto é, satisfazer um papel é responder um inputcom um outputespecífico (sem desconsiderar as interações entre estados). No caso de estados mentais, as propriedades são funcionais a partir do papel que desempenham no sistema cognitivo, a partir de estímulos (input), interação com outros estados mentais e respostas (output)8.

Por isso, não é difícil compreender porque o programa funcionalista se tornou atraente, uma vez que explica como entidades distintas fisicamente podem possuir os mesmos conteúdos. Não é necessário (nem suficiente) estar em um estado físico específico para estar em um estado funcional, o que permite aceitar que tal estado seja instanciado em outros sistemas apenas funcionalmente análogos. Ora, o funcionalismo não é uma teoria type-type, pois reduz os tipos mentais a tipos funcionais, não necessariamente cerebrais. Assim, é uma teoria type-token,um estado funcional passa a ser visto como um tipo particular multiplamente realizável9. Isto é, o funcionalismo concede a um estado qualquer um tokenrelacionando um estímulo a uma resposta, e as propriedades internas deste estado são irrelevantes. Portanto, sistemas que ocupem o mesmo papel estarão no mesmo estado.

É importante ressaltar que o advento do funcionalismo coincidiu com o sucesso do computacionalismo a partir dos anos 50, e naturalmente desenvolveu-se a analogia hardwarecérebro e software-mente. Se o computador de Babbagee a máquina de Turingconseguem realizar as mesmas tarefas, podemos afirmar que computar - manipular símbolos de acordo com regras - independe do suporte material, ou seja, não é físico (não ocorrem por causa de elementos materiais). Como consequência, dizemos que estes processos são apenas instanciadosem objetos físicos segundo múltiplas possibilidades (realizabilidade múltipla). Ora, essa tese, somada ao reconhecimento de que objetos distintos podem ter propósitos comuns, conduziu àquilo que Dennett (2006: 18) chamou "segunda onda do fisicalismo", permitindo a Hilary Putnam desenvolver nos anos 60 o conceito de função adaptado ao da máquina de Turing10 e considerar o cérebro o suporte físico para realização da mente. Assim, o funcionalismo de Putnam considera estados mentais não como cerebrais, mas estados funcionais realizados por estados cerebrais (as propriedades mentais não são idênticas a estados cerebrais). Estar em um estado de dorpode se realizar em humanos e animais etc., afinal, sentir doré estar em um estado específico que cumpre uma função definida independente da constituição física de quem a realiza. Ora, se dois sistemas têm uma correspondência funcional entre seus estados podem desempenhar a mesma função (Putnam, 1975), isto é, são funcionalmente isomorfos. Sobre o surgimento do funcionalismo da máquina de Turing, Putnam comentou:

"I was in the habit of explaining the idea of a 'Turing machine' in my mathematical logic courses in those days. [...] The state of a Turing machine -one may call such states computationalstates -is identified by its role in certain computational processes, independentlyof how it is physically realized. [...] I began to apply images suggested by the theory of computation to the philosophy of mind, and in a lecture delivered in 1960. I suggested a hypothesis that was to become influential under the name functionalism: that the mental states of a human being are computational states of the brain. To understand them [...] it is necessary to abstract from the details of neurology." (Bender e Schorske, 1998: 198-199)

Contudo, como identificamos estados funcionais pelo comportamento (cremos que um cachorro está num estado de dor se uiva após ser atropelado, ainda que ignoremos seu estado cerebral; sobre isso, Dennett diria, então, que nossa predição do comportamento animal é intencional, cf. Dennett, 2006: 41), o funcionalismo muitas vezes é confundido com o behaviorismo (para Block, 1980: 268: "functionalism can be seen as a new incarnation of behaviorism"). Entretanto, segundo Putnam, há comportamentos de dorque podem ser especificados sem a palavra "dor", o que sugere ser mais adequado relacionar dora um estado funcional do que comportamental, ou seja, estados mentais devem ser definidos por seu papel funcional entreo inputeo output.Assim, inúmeros organismos podem realizar um estado de dor, sendo impossível definir o que é dor; é mais fácil definir o que é estar em dor. Nesse sentido, a proposta funcional é apropriada porque se abstêm de explicar o físico como causa do estado funcional, por exemplo, minimizando a explicação de como as estruturas cerebrais (nervosas) causam um estado como dor. Ora, essa abordagem compreende estados mentais de maneira mais ampla, abrangendo sistemas totalmente distintos da composição bioquímica do cérebro humano. Por isso, estados mentais não podem ser estados cerebrais, senão, dornão poderia ser atribuída a animais que não possuam o mesmo cérebro que os humanos. Ao contrário, o funcionalismo permite que outros organismos em estados físicos diferentes possam estar nos mesmos estados funcionais, como o de dor, seja cachorro, homem, máquina, alienígena:

"In contrast, we can specify the functional state with which we propose to identify pain, at least roughly, without using the notion of pain. Namely, the functional state we have in mind is the state of receiving sensory inputs which play a certain role in the Functional Organization of the organism. This role is characterized, at least partially, by the fact that the sense organs responsible for the inputs in question are organs whose function is to detect damage to the body, or dangerous extremes of temperature, pressure, etc., and by the fact that the 'inputs' themselves, whatever their physical realization, represent a condition that the organism assigns a high disvalue to." (Putnam, 1975: 438)

Também na década de 60, Jerry Fodor (de modo paralelo e independente de Putnam) adotou uma postura funcionalista apoiada na ideia de que estados funcionais são gerados a partir de manipulação representacional (simbólica). Segundo esta perspectiva, estados internos são representacionais, com conteúdos manipuláveis a partir de regras formais de computar (segundo Fodor, negar a representação é negar a manipulação simbólica e consequentemente a própria mente; Fodor defende o cognitivismo em sua formulação mais clássica: estados mentais são proposições que podem ser compreendidas a partir de regras. Se estas proposições são símbolos, pensar é manipular símbolos de acordo com uma linguagem formal). Considerar a manipulação de símbolos internos como uma "linguagem do pensamento" é uma similaridade entre Sellars e Fodor11, guardada distinções, como reconhece o próprio Fodor (1990).

Todavia, o funcionalismo, embora tenha claramente um esboço em Sellars, como mostramos, parece ter tido um desenvolvimento com Putnam e Fodor sem qualquer influência sellariana. Como exemplo, nota-se o fato de que nos anos 60 - época de formulação do funcionalismo -nenhum destes dois autores cita Sellars em seus trabalhos, que só vieram a ser por eles conhecidos posteriormente: "Putnam, however, told me he 'arrived at functionalism quite naturally, being at the time both a philosopher and a recursion theorist' (personal correspondence)" (Piccinini, 2003: 224). E mais adiante: "Fodor told me he learned about Sellars and Harman's theory of thought only after writing his 1975 book (personal correspondence)" (Piccinini, 2003: 227).

Por fim, comentemos brevemente a proposta de Dennett, uma versão de funcionalismo com conteúdo intencional, a ideia de que nossos estados mentais são apenas conceitos teóricos que usamos para entendermos o comportamento humano, tese que contém bastante proximidade com Sellars. De um sistema intencional"prediz-se o comportamento [...] atribuindo ao sistema à posse de determinada informação, e pressupondo que ele é regido por determinados objetivos, e então elaborando a ação mais razoável e apropriada como base nessas atribuições e pressuposições" (Dennett, 2006: 37). Entretanto, a formulação de Dennett não parece ter sido inicialmente influenciada por Sellars. Em Content and consciousness, de 1969, Sellars também não é citado, e a principal influência de Dennett parece ter sido Putnam. Como escreve Piccinini (2003), Dennett leu EFMapenas depois que já tinha escrito Contente, na época, acreditou não tê-lo compreendido bem, não tendo a obra grande efeito sobre ele na ocasião:

"I'd read all of Putnam's consciousness papers (to date), and was definitely influenced strongly by Putnam. One of Sellars' students, Peter Woodruff, was a colleague of mine at UC Irvine, and it was he who showed me how my work was consonant with, and no doubt somewhat inspired by, Sellars. But that was after he read C&C [Content and consciousness]. I thereupon sent Sellars one of the first copies of C&C, and he wrote back enthusiastically [...] I would think that my sketchy functionalist theory of meaning was more influenced by Putnam's 'Minds and Machines' paper [Putnam 1960] than anything I'd read in Sellars while at Oxford, but I can't be sure. I have sometimes discovered tell-tale underlinings in my copy of a book years later and recognized that I had been influenced by an author and utterly forgotten it (Dennett, personal correspondence)." (apudPiccinini 2003: 231)

Desse modo, a conclusão é que há verdadeiramente pouca evidência que Putnam, Fodor ou Dennett desenvolveram as primeirasversões de seus trabalhos apoiados em Sellars. Putnam e Fodor, por exemplo, são tão independentes de Sellars que o foco é diferente, inclusive, e o problema da intencionalidade fica restrito ao segundo plano. Putnam e Fodor não parecem ter compreendido EFMcomo uma teoria funcionalista do conteúdo mental, embora seja claro que Sellars adota essa postura. Se o funcionalismo de Putnam e Fodor nos anos 60 não considera essa discussão sobre a intencionalidade como Sellars o fez, apenas Dennett parece ter caminhado nessa direção, a seu modo. No entanto, mesmo que as evidências indiquem que Putnam e Fodor não foram inicialmente inspirados por Sellars - havendo apenas indícios mínimos dessa influência - é relevante o legado desse autor para a filosofia da mente, não apenas entre os autores supracitados, mas uma importância verificada em declarações como as seguintes:

"By the early 1960s, Putnam knew Sellars's paper (personal correspondence), and later named it 'one of the most important papers on [its] topic in recent decades.'" (Piccinini, 2004: 384, citando correspondência pessoal com Putnam)

Dennett:

"Thus was contemporary functionalismin the philosophy of mind born, and the varieties of functionalism we have subsequently seen are in one way or another enabled, and directly or indirectly inspired, by what was left open in Sellars's initial proposal - though this has not been widely acknowledged." (Dennett,1990: 341)

Ou Rorty:

"O tratamento de Sellars da distinção entre mente e corpo foi adotado por muitos filósofos da mente nas décadas subsequentes. É possível que ele tenha sido o primeiro filósofo a insistir que devemos ver a 'mente' como uma espécie de entificação da linguagem." (Sellars, 2008: 18)

 

3. Conclusão

"Almost no one cites Sellars, while reinventing his wheels with gratifying regularity." (Dennett, 1990: 349)

Sellars elabora uma proposta complexa para a relação entre estados mentais e mundo exterior que passa pela aquisição de uma linguagem pública. O significado das palavras é seu uso aceito num discurso público, o que diferencia uma palavra da outra é seu papel funcional. Analogamente, o significado dos pensamentos é dado pela função desempenhada no espaço lógico das razõese que cujo significado é dado pela referência à linguagem pública.

Assim, para pensar é preciso antes conhecer uma linguagem comunitária. É de forapara dentroque o pensamento se constrói, e Sellars reúne na mesma tese uma linguagem pública essencialmente intersubjetiva, eventos privados e um comportamento baseado em regras. O resultado se assemelha a uma concepção funcionalista de estados mentais combinada com conteúdos intencionais, posição que foi, segundo o próprio autor "an attempt to give a naturalistic interpretation of the intentionality of conceptual acts" (Sellars, 1969b), ou, nas palavras de um admirador confesso, Rorty (Sellars, 2008: 17): "explica por que podemos ser naturalistas sem que sejamos behavioristas."

Contudo, não é correto dizer que Sellars desenvolveu o funcionalismo, sua proposta de estados funcionais é apenas parte de uma solução maior por ele proposta. Também é inadequado afirmar que as raízes dessa teoria encontram-se nele, afinal, como vimos, a influência de Sellars não pode ser considerada decisiva para as primeiras formulações oficiaisdo funcionalismo, embora certamente contribuísse para os desenvolvimentos subsequentes; porém, não há dúvidas que, a seu modo, ele antecipa Putnam, Fodor e alguns outros funcionalistas. Além disso, algumas das questões formuladas por Sellars tornaram-se fundamentais na filosofia da mente e da linguagem, e seu nome é comumente reverenciado por tais contribuições, embora, como acredita Dennett, menos do que seu mérito justificaria.

 

4. Referências bibliográficas

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Submetido em 21/09/2009
Aceito em 19/11/2009

 

Notas

(1) Atualmente, esta é uma tese bastante discutida entre os teóricos da mente e da linguagem. O idealismo linguístico de Sellars tem como opositores inúmeros neurocientistas, como G.M. Edelman, G. Tononi, A. Damásio, R. Penrose, entre muitos outros, que não consideram a linguagem necessária para o pensamento (incluindo o próprio Fodor, que admite a anterioridade do pensamento frente à linguagem). Para uma análise detalhada, cf. Bennett e Hacker (2003).
(2) Cf. especialmente a introdução e os capítulos 4 e 5 de Hobbes, T. (1974). Leviatã(Monteiro, J. P. G.e Silva, M. B. M. N., Trads.). São Paulo: Abril. Col. Os Pensadores. (Original publicado em 1651).
(3) Nada impede que alguém crie para si uma linguagem própria, porém, não sendo intersubjetiva não poderia servir como justificação perante os outros membros da comunidade que não a compartilhassem com o inventor dessa nova linguagem.
(4) Assim, vemos que o pensamento é dependente da linguagem. Esta, porém, exerce o papel de símbolos que substituem funcionalmente o comportamento observado. Todavia, Sellars admite que esta talvez não seja a única maneira (um surdo-mudo de nascença pode ter algum tipo de comportamento inteligente, embora incompleto, cf. Sellars e Chisholm, 1957), isto é, deve existir uma de "linguagem do pensamento" que não é espelhamento da linguagem pública e é usada por animais e surdos-mudos, por exemplo, mas Sellars pouco comenta a respeito.
(5) A linguagem não muda o que um homem ou um animal sente, porém, permite ao primeiro justificar publicamente seu estado, a partir da aceitação das regras intersubjetivas da comunidade. Cf. especialmente Sellars (2008).
(6) Cf. capítulo 14 (Philosophy and our mental life).
(7) Cf. Kant, I. (1989). Crítica da Razão Pura(Morujão, A. F. e Santos, M. P., Trads.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. (Original publicado em 1787) e também Brook, A. (1994). Kant and the Mind.Cambridge: Cambridge University Press. Ver também Meerbote, R. (1990). Kant's Functionalism. Em: Smith, J.-C. (Ed.). Historical Foundations of Cognitive Science(pp. 161-187). Dordrecht: Kluwer Academic.
(8) Essa caracterização funcionalista é compatível com o dualismo.
(9) Essa caracterização funcionalista é compatível com o materialismo não reducionista.
(10) Dennett (2006:18) sobre o funcionalismo da máquina de Turing: "Para todo predicado mental 'M' há algum predicado 'F' exprimível em alguma linguagem que seja fisicamente neutra, mas cunhado para especificar funções e relações funcionais".
(11) Para uma breve comparação entre Sellars e Fodor, cf. Dennett (1990: 345ss). Segundo Dennett, Fodor não é muito distinto de Sellars.

M.M. Maroldié Graduado em Ciências da Computação, pela Universidade de São Paulo (USP), e em Filosofia, pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). E-mail: marcelomaroldi@yahoo.com.br.

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