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Ciências & Cognição

versión On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.15 no.2 Rio de Janeiro ago. 2010

 

Artigo Científico

 

Unitarismo pluralista, uma proposta integradora para estudar os mecanismos da memória humana

 

Pluralistic unitarism, an integrating proposal to study the mechanisms of human memory

 

 

Ronie Alexsandro Teles da SilveiraI; Piotr TrzesniakII; Lilian Milnitsky SteinIII

IUniversidade Federal do Recôncavo da Bahia, Campus Cruz das Almas, Cruz das Almas, Bahia, Brasil;
IIUniversidade Federal de Itajubá, Itajubá, Minas Gerais, Brasil;
IIIPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

 

 


Resumo

A classificação dos diferentes mecanismos de memória é uma exigência para o desenvolvimento de uma ciência da memória humana. Sem ela, as iniciativas científicas não possuem uma visão integrada do seu objeto de estudo e a eficácia das investigações, realizadas isoladamente, tende a diminuir. Nesse artigo avaliamos as duas principais propostas existentes sobre os mecanismos de memória (o unitarismo e o pluralismo) a partir de sua viabilidade epistemológica. O unitarismo não se constituiu historicamente como uma linha promissora de investigação. Por outro lado, o pluralismo se mostrou frutífero para a expansão dos estudos sobre a memória. Apesar disso, defendemos a necessidade de seguir uma terceira via, que aproveita as virtudes de ambas as correntes e contorna suas limitações. © Cien. Cogn. 2010; Vol. 15 (2): 042-054.

Palavras-chave: mecanismos de memória; ciência da memória; memória humana; epistemologia; perspectiva neurocognitiva.


Abstract

A classification of the different mechanisms of memory is a necessary step for the development of a science of human memory. Without it, the scientific initiatives do not possess an integrated vision of its object of study, which tends to reduce the efficacy of the inquiries carried out isolatedly. In this article, we evaluate the two main proposals about the mechanisms of memory (unitarism and pluralism) from its epistemological feasibility. Historically, unitarism does not constitute a promising line of inquiry, while pluralism showed to be fruitful for the expansion of memory studies. Despite that, we defend the need to follow a third road, which takes advantage of the virtues of both ways of approach, being at the same time able to avoid their limitations. © Cien. Cogn. 2010; Vol. 15 (2): 042-054.

Keywords: mechanisms of memory; memory science; human memory; epistemology; neurocognitive prospective.


 

 

Introdução

A discussão sobre a existência e a classificação de diferentes mecanismos de memória é importante na medida em que se configura como uma etapa necessária para orientar a pesquisa relativa à memória na Psicologia (Tulving, 1986). Não há ciência sem uma classificação (Osada, 1972; Averill, 1994), porque esta é indispensável para propor, ensaiar e consolidar um referencial de conceitos e de variáveis inerentes a qualquer esquema teórico. A par disso, uma classificação constitui a delimitação do objeto de estudo de uma área do conhecimento e é, por decorrência, uma parte de sua própria definição. Assim, os problemas ligados à maneira de se abordarem os mecanismos de memória impactam diretamente a constituição de uma ciência pertinente.

Uma classificação dos mecanismos de memória pode, então, ser capaz de fornecer uma descrição (embora limitada) da mente humana (Roediger et al., 1990), constituindo-se num passo inicial rumo à identificação de uma arquitetura cognitiva e neurológica da capacidade da memória no ser humano e nos sistemas físicos e biológicos em geral.

A definição dessa arquitetura virá a ser, também, extremamente útil para estabelecer, a cada momento epistemológico, que tipo de investigação deve ser conduzido nos diversos estudos sobre a memória humana. Somente uma visualização abrangente possibilita integrar fenômenos de domínios de pesquisa específicos, permitindo (Osada, 1972; Harré, 2002; Silveira et al., 2007):

  • decidir se uma determinada pesquisa empírica - por exemplo, sobre o mecanismo mnemônico semântico - é a abordagem mais promissora para, relativamente ao esforço envolvido, maximizar a ampliação do conhecimento mais geral sobre a memória humana;
  • definir que parte desse conhecimento geral o particular mecanismo constitui.

Entendemos que tanto a proliferação excessiva de propostas de mecanismos de memória (Roediger et al., 1999) quanto a confusão reinante quando cotejamos as diversas classificações vigentes (Kim e Baxter, 2001), embora se constituam em uma etapa inerente à construção da ciência (Osada, 1972; Silveira et al., 2007; Trzesniak, 2009), são resultados indesejáveis de uma indefinição com relação à arquitetura básica da memória humana. De fato, nos parece que uma dificuldade presente na investigação atual relativa à memória é a ausência de uma visão panorâmica integrada que possibilite ao pesquisador saber que parte do trabalho ele está realizando e como seus resultados se conectam a outras tantas pesquisas em andamento. Assim, embora os resultados das pesquisas pareçam muito promissores, não se consegue conectá-los em um arcabouço teórico comum, capaz de dar um sentido a cada parte dentro do todo.

Apesar de não ser nada fácil construir uma arquitetura desse tipo, é necessário ao menos estabelecer uma perspectiva epistemológica que permita torná-la possível em um futuro próximo. É nesse sentido que esse artigo analisa as alternativas epistemológicas mais importantes ligadas, à discussão sobre os mecanismos de memória, e faz a proposta de unificá-las em uma nova perspectiva, que concilia seus aspectos cientificamente mais vantajosos.

Nosso primeiro objetivo é apresentar o desenvolvimento da discussão acerca da existência de diversos mecanismos de memória por meio das sucessivas formulações de Tulving e colaboradores (Schacter et al., 1999; Sherry e Schacter, 1987; Tulving, 1985a, 1985b, 1986, 1999; Tulving e Schacter, 1990, 1994). Com isso, pretendemos identificar os postulados fundamentais que se mantêm invariantes ao longo daquilo que consideramos ser uma primeira teoria explícita acerca dos diferentes mecanismos de memória - e que denominamos de perspectiva pluralista.

O segundo objetivo é considerar os postulados da teoria de Tulving e colaboradores à luz de maneiras alternativas de se descreverem os diferentes mecanismos de memória. Isso envolverá a posição de Roediger e colaboradores (Kolers e Roediger, 1984; Roediger et al., 1990; Roediger et al., 1999; Roediger et al., 2002), além de Kolers (1975), Moscovitch (1992, 1994), Kim e Baxter (2001), Poldrack e Packard (2003), Poldrack e colaboradores (2001), Kosslyn (1999) e Gaffan (2002).

O último objetivo, mas não o menos relevante, consiste em analisar se existem limitações ligadas à maneira como o pluralismo propõe a agenda para a pesquisa sobre a memória humana e sua classificação. Está incluído aqui, portanto, uma avaliação das implicações pluralistas com relação à constituição de uma ciência da memória.

 

Critérios de classificação

A existência de diferentes mecanismos de memória, seu número e seus respectivos processos neurais correlacionados têm sido objetos de uma discussão explícita na Psicologia Cognitiva, principalmente após a publicação de um artigo de Tulving (1985a) a esse respeito. Até antes disso, porém, ao distinguir as memórias semântica e episódica, o próprio Tulving (1972) já havia implicitamente apontado para a existência de dois mecanismos sem, entretanto, problematizar tal contexto diretamente.

Na perspectiva de Tulving (1985a), identificar um mecanismo de memória consiste em indicar algum tipo de especificidade sobre o pano de fundo de capacidade mnemônica humana geral. Assim, fazer referência a mecanismos de memória implica subdividir esta última em partes físicas ou funcionais mais específicas do que quando ela é referida como uma entidade única. No que tange à constituição de um conhecimento acerca da memória - o que denominamos de ciência da memória - a definição de tais mecanismos implica a possibilidade de se obterem objetos de estudo menos genéricos do que 'a memória' enquanto uma totalidade indiferenciada.

Para Tulving (1985a), a especificidade de um suposto mecanismo de memória pode estar ligada tanto aos aspectos cognitivos e comportamentais, quanto aos substratos neurológicos respectivamente correspondentes; pode, também, envolver ambos os aspectos de maneira simultânea. Assim, por exemplo, a distinção entre os mecanismos de curto e de longo prazo, de acordo com Schwartz e Reisberg (1991) ou Baddeley (1999), diz respeito somente a aspectos cognitivos da memória. Isso fica evidente quando observamos que a característica relevante, para esses autores, está ligada ao lapso de tempo que determinada informação fica disponível para recuperação. Trata-se, portanto, da tentativa de estabelecer diferentes mecanismos de memória a partir de aspectos cognitivos.

Já a distinção entre a função dos mecanismos hipocampais e não-hipocampais de memória de Kim e Baxter (2001) ou Moscovitch (1992) está diretamente ligada à especificidade do substrato neurológico do cérebro envolvido. Com efeito, nesse caso, a diferenciação entre os mecanismos de memória ocorre em função da região cerebral responsável pelo processamento mnemônico.

Nesses dois exemplos, fica evidente a diferença entre as estratégias cognitiva e neurológica de separar mecanismos de memória. A noção de mecanismo utilizada por Tulving (1985a) não pretende se aliar nem a uma nem a outra. Ela é mais ampla e pretende englobar tanto o aspecto cognitivo quanto o neurológico como se verá adiante.

 

A hierarquia evolutiva de Tulving

Em mais de uma ocasião, Tulving (1985a, 1985b, 1986, 1999) propôs não apenas a existência de distintos mecanismos de memória, como também a de uma hierarquia evolutiva entre eles. Essa hierarquia está apresentada sinteticamente no quadro 1. A memória procedural é a única que pode funcionar de maneira completamente independente das demais. A memória semântica depende da procedural, mas pode operar sem a memória episódica a qual, por sua vez, depende tanto da procedural quanto da semântica. Na prática, isso significa afirmar que cada mecanismo menos avançado é, na verdade, um requisito para os mecanismos que lhe são superiores, já que a existência de cada mecanismo mais avançado depende da existência dos de nível inferior. A hierarquia denota, ainda, que o mecanismo "mais avançado" dos três, a memória episódica, é também o último a aparecer do ponto de vista da evolução natural.

A infra-estrutura subjacente a essa distinção estrutural entre os três mecanismos de memória de Tulving envolve os seguintes elementos em ordem decrescente de complexidade: (i) a memória considerada na sua totalidade (o complexo da memória como um todo); (ii) os mecanismos particulares de memória (indicados na segunda coluna do quadro 1), e (iii) os componentes operacionais.

 

Escala evolutiva

Tipo dememória

Funções

Menos avançado

Procedural

Capacidade de estabelecer conexões entre estímulos, respostas e habilidades de como fazer coisas

Semântica

Capacidade de representar estados do mundo não presentes na percepção (modelos mentais do mundo)

Mais avançado

Episódica

Capacidade de aquisição e retenção de conhecimento sobre eventos pessoalmente experimentados e sua relação temporal em um tempo subjetivo (habilidade de se deslocar mentalmente no tempo)

Quadro 1 - A hierarquia evolutiva dos mecanismos de memória de Tulving.

 

A capacidade mnemônica humana geral, portanto, é vista em termos de subunidades ou componentes, os mecanismos de memória, cuja identificação significa refutar a compreensão da memória como uma unidade indiferenciada ou como um único grande sistema (Alba e Hasher, 1983). Já os componentes operacionais são os elementos cerebrais e seus correlatos cognitivos e comportamentais que compõem cada mecanismo (Tulving, 1985a).

Note que os componentes operacionais não se resumem somente ao aspecto biológico - eles também possuem propriedades cognitivas e não devem ser entendidos como a base cerebral da memória. Portanto, os três elementos arquitetônicos de Tulving não equivalem a uma tese sobre as relações entre fenômenos cerebrais, de um lado, e os seus correlatos mentais, de outro. Voltaremos à questão da relação da neurocognição com a cognição adiante.

Não é possível estabelecer uma relação simples entre os componentes operacionais e os mecanismos de memória. Com efeito, os primeiros podem ser exclusivos de um dado mecanismo, ou estarem presentes em todos eles ou em apenas alguns (Tulving, 1985a). Isso significa que não há uma correspondência biunívoca entre os componentes operacionais e os mecanismos de memória - ainda que ela possa existir em alguns casos. Assim, eventuais explicações exaustivas do funcionamento específico de cada mecanismo parecem se tornar difíceis, na medida em que o número e a função de cada componente operacional pode variar grandemente com relação a algumas das tarefas mnemônicas específicas.

A multifuncionalidade dos componentes operacionais poderia dificultar o estudo da memória humana sob uma abordagem pluralista, pelo fato de acarretar dificuldades para a obtenção de dados conclusivos sobre uma distinção precisa entre os diversos mecanismos envolvidos. Porém, como Tulving (1986) deixou claro, com relação à distinção entre memória semântica e episódica, tais dificuldades estão ligadas à demonstração de fato sobre a separação de dois mecanismos de memória, e não inviabilizam que se postule, para efeitos de classificação, uma distinção entre eles.

Fica evidente que a estratégia de Tulving para propor uma arquitetura dos mecanismos de memória não se baseia exclusivamente na retórica empírica na medida em que, para ele, há um valor heurístico importante na mera proposição da classificação. Esse valor se mostra na medida em que é a classificação que orienta as pesquisas a serem realizadas dentro de um panorama mais geral sobre os estudos relativos à memória humana. Assim, a crítica de McKoon e colaboradores (1986) sobre a fragilidade das evidências experimentais relativas a uma efetiva distinção entre a memória semântica e a memória episódica não enfrenta nenhuma discordância do próprio Tulving. Isso, desde que tal crítica seja tomada como a constatação do estado inconclusivo da evidência empírica em favor dessa distinção e não como indicativo da sua impossibilidade lógica. Em outras palavras, Tulving (1986) está de acordo com essa crítica, na medida em que ela é entendida como a indicação de uma tarefa científica (empírica) a ser ainda realizada e não como a apresentação de um obstáculo intransponível à distinção lógica entre os mecanismos de memória.

Ainda que Tulving tenha proposto claramente uma hierarquia evolutiva dividida nos três mecanismos de memória (quadro 1), ele acreditava que essa distinção poderia ser provisória. Assim, ele indicou que uma proposta melhor seria afirmar que há pelo menos três mecanismos, mas que provavelmente esse número seria maior (Tulving, 1985a). Mais tarde, ele afirmaria que o termo múltiplos, na expressão múltiplos mecanismos de memória, significa um número desconhecido, provavelmente maior que quatro (Tulving, 1999). Nessa linha de pensamento, Schacter e colaboradores (1999) fizeram referência a cinco mecanismos principais. Adequadamente, ao denominar seu artigo Memory systems of 1999, reconhecem tratar-se não de um conhecimento consolidado, mas de uma visão compatível com o momento epistemológico pertinente vigente na época.

Assim, não parece razoável considerar literalmente a hierarquia evolutiva de Tulving na sua formulação em três ou quatro diferentes mecanismos de memória - já que ele mesmo parece tê-la como incompleta ou, pelos menos, sujeita a retificações futuras. Isso evidencia como o projeto de uma classificação geral é extremamente difícil e requer aperfeiçoamentos permanentes (Osada, 1972; Trzesniak, 2009.). Entretanto, o que mais nos interessa aqui é observar o que essa estratégia de classificação nos ensina sobre a questão dos mecanismos de memória, independentemente de uma de suas formulações específicas.

Em primeiro lugar, parece que Tulving visava principalmente combater a noção unitarista sobre a memória humana. Para ele, a manutenção do postulado de que a memória é a memória - princípio que sintetiza o que denominamos de unitarismo - impede o progresso do conhecimento científico nessa área (Tulving, 1985a). Em termos mais gerais, isto significa que os progressos subseqüentes no conhecimento sobre a memória têm de ser operacionalizados através de uma análise mais minuciosa, que conduza à identificação de suas subunidades específicas, e não por meio de tentativas de se lidar com a idéia de uma totalidade indistinta. A posição pluralista de Tulving torna-se ainda mais perceptível e converte-se em um princípio geral se observamos que ele também defende a utilização dessa mesma estratégia de análise dos submecanismos do estudo da consciência (Tulving, 1985b). Em suma, nessa perspectiva, a idéia diretiva básica de uma ciência da memória é o procedimento analítico de separar para entender.

A perspectiva pluralista de Tulving e associados combate, portanto, os modelos de memória que afirmam que o processamento mnemônico é serial e que não há diferenças substantivas entre suas instâncias de processamento (Alba e Hasher, 1983). Por outro lado, ela se alia a todo empreendimento que defende algum tipo de distinção no processamento mnemônico e que é denominado de teorias do processo múltiplo (Brainerd e Reyna, 2005), sejam tais processos paralelos ou não.

Outro aspecto marcante da proposta de classificação de Tulving (1985a) é a noção de um arranjo hierárquico baseado na evolução dos mecanismos de memória, ou seja, os mecanismos propostos se apresentam estruturados segundo um critério de aparecimento evolutivo. Dessa maneira, novos mecanismos que venham eventualmente a ser incluídos no futuro, deverão integrar-se nessa mesma moldura hierárquica (Sherry e Schacter, 1987). Isso nos permite considerar que a noção de hierarquia é uma característica fixa na posição epistemológica de Tulving e colaboradores, independentemente de quantos sejam exatamente os mecanismos propostos em uma de suas classificações específicas. Nesse sentido, a proposta de Tulving e colaboradores aproxima-se salutarmente de uma taxionomia, que a epistemologia de Taketani-Osada (Osada, 1972; Trzesniak, 2009) estipula como etapa indispensável na evolução/construção de um ramo do conhecimento.

O pluralismo de Tulving, portanto, vem propor uma estratégia de dois pontos para a constituição de uma ciência da memória. Eles são os seguintes: (i) o entendimento da memória humana é favorecido pela análise dos seus mecanismos específicos e pela identificação de suas subdivisões; e (ii) os mecanismos de memória se organizam em relações de dependência hierárquica.

A discussão subseqüente, nesse texto, estará concentrada na aceitabilidade das implicações dessa proposta de Tulving e associados e de seu impacto na agenda de uma ciência da memória.

 

Mecanismos de memória e monismo sem anomalias

Uma das supostas confusões terminológicas que Tulving (1999) identifica e pretende evitar é aquela ligada à questão do número de mecanismos de memória (a perspectiva unitarista versus a perspectiva pluralista) com a discussão que, segundo ele, opõe a noção de processo à noção de sistema. Essa discussão é importante por tratar de um dos temas seguramente mais sensíveis para uma ciência da memória e para a Psicologia: as relações entre a mente e o cérebro. Ela diz respeito a duas perspectivas distintas de entender a memória humana.

Uma dessas perspectivas é a cognitiva que visa a estudar os mecanismos subjacentes presentes nas diferentes tarefas de memória - portanto, os processos nelas envolvidos. A preocupação fundamental dessa visão é epistemológica, já que ela pretende identificar como funcionam os mecanismos de memória. A outra perspectiva é a neurocognitiva, que visa compreender a organização e o funcionamento das estruturas envolvidas no fenômeno da memória. Como ela busca identificar a base cerebral implicada na memória, seu foco principal é ontológico (Tulving, 1999) -, volta-se, portanto, à base neurológica.

Na Psicologia contemporânea há um forte avanço dos estudos de caráter neurológico, fortalecidos pelo sucesso das técnicas de neuroimagem na identificação das estruturas cerebrais responsáveis pelo funcionamento da memória (Roediger, 1997; Ducrocq, 1999). Ainda que seja discutível o significado exato dos resultados gerados por essas técnicas (Kosslyn, 1999), sua crescente utilização tem fortalecido o que parece ser uma encruzilhada no estudo da memória. Nessa encruzilhada se opõem as preocupações epistemológicas e processuais da Psicologia Cognitiva com os avanços ontológicos da Neuropsicologia.

A posição de Tulving (1999), seguindo seu conceito de sistema, é defender um caráter complementar, e não um conflito, entre o enfoque neuropsicológico e o cognitivo. Pelo contrário, para ele, tal conflito é um falso problema, já que aceitar o primeiro não implica excluir este último. No que diz respeito à memória, portanto, a neuropsicologia não é incompatível com a Psicologia Cognitiva.

Esta tese da complementaridade de Tulving envolve a eliminação da anomalia existente entre as descrições da perspectiva neurobiológica e o conhecimento psicológico da perspectiva cognitiva. Trata-se, portanto, de um monismo sem anomalias - por contraste com o monismo anômalo de Davidson (1980). A anomalia aqui faz referência ao fato de que eventos psicológicos não podem ser descritos com as mesmas variáveis que são utilizadas para descrever os eventos cerebrais, indicando que há uma diferença entre as explicações físicas e químicas do funcionamento do cérebro e as explicações das funções mentais. Em outras palavras, o monismo anômalo afirma que não existem leis psico-físicas. Trata-se, portanto, de uma questão delicada, ligada às relações entre o corpo e a mente, que não poderemos discutir exaustivamente aqui. Deter-nos-emos somente na tese da complementaridade de Tulving.

Observe-se mais que a tese complementaridade de Tulving é uma incursão em uma discussão iniciada por Descartes (1979) ao fundar uma tradição de pensar a mente como uma entidade diversa do corpo. Com efeito, a separação cartesiana entre a res cogitans e a res extensa produziu uma maneira de pensar o corpo e a mente que impregnou os estudos subseqüentes em várias áreas do conhecimento. Isso se torna mais claro quando notamos que, ainda hoje, o pensamento dualista de Descartes é objeto de crítica oriunda de estudos que envolvem as relações entre os aspectos neurológicos e cognitivos do ser humano (Damásio, 2003).

Ainda através da complementaridade, Tulving postula um monismo sem anomalias entre a mente e o corpo, entendendo que a perspectiva neurológica compreenderia a cognitiva. Em outras palavras, ele defende a negação da anomalia e a manutenção do monismo - se tomarmos como base a idéia do monismo anômalo de Davidson (1980) a que fizemos referência anteriormente. Isso significa que os eventos cognitivos ou processuais da mente poderiam ser reduzidos a eventos cerebrais - mas esse reducionismo não equivale à tese da correspondência biunívoca cérebro/mente (Tulving, 1999; comunicação pessoal a um dos autores).

O que chama a atenção na posição adotada por Tulving é o fato de ele haver suprimido da discussão sobre os mecanismos de memória qualquer conotação mais enfática em termos da relação entre a mente e o corpo. Isso não significa que suas teses não tenham tais implicações. Elas as têm, inclusive devido à própria noção de complementaridade. Porém, ele não pretende onerar sua posição pluralista com relação aos mecanismos de memória com uma tese filosófica e polêmica sobre um monismo sem anomalias - certamente alguma modalidade de "reducionismo suave". Assim, ao distinguir a disputa entre neurocognição e cognição daquela entre unidade e pluralidade dos mecanismos de memória, Tulving elide o problema da relação cérebro/mente para efeito do tratamento pluralista que oferece para a questão dos mecanismos de memória. Em outras palavras, a estratégia de Tulving (1999) consiste em simplesmente separar as duas questões e eliminar, àcoûp de force, a dificuldade da relação cérebro/mente, por meio da noção de complementaridade/paralelismo, para deter-se com mais cuidado na tese da pluralidade. Portanto, o que parece ocupar o primeiro plano, na perspectiva de Tulving, é somente o caráter unitário ou plural da memória e não as questões relativas à relação dos aspectos neuropsicológicos com os cognitivos. Como se pode perceber, embora a estratégia não seja uma solução para o problema, Tulving lança mão dela para afastá-lo - provavelmente tendo em conta sua preocupação mais imediata com a pesquisa empírica sobre os mecanismos de memória. De qualquer modo, não fica claro o que viria a ser essa modalidade de reducionismo suave que ele defende.

 

O modelo pluralista para a memória

O que leva Tulving, Schacter e Sherry (Sherry e Schacter, 1987; Tulving e Schacter, 1990) a enfatizarem a necessidade de se estudar a memória a partir de uma perspectiva pluralista é o fato de que, segundo eles, não parece haver princípios científicos universais que sejam válidos para a memória em geral. Então, parece ser um requisito essencial para o desenvolvimento do conhecimento da memória que se identifiquem os mecanismos, a fim de que princípios particulares de operação possam ser descritos. Trata-se, em suma, de reconhecer que não há um conjunto de princípios ou leis que possam ser apreendidos por uma ciência unitarista da memória. Essa idéia é o correlato epistemológico do postulado ontológico segundo o qual não há uma memória. Aqui, pode-se notar como a definição de um objeto de investigação atinge diretamente a constituição de sua ciência correspondente.

Isso conduz à noção de que a constituição de uma ciência da memória não poderá ser pensada ao largo da estratégia de se identificarem diferentes mecanismos constitutivos. Será justamente o estudo desses últimos que permitirá ter um modelo representativo, completo e eficaz, da memória.

A idéia unitarista, que defende que a memória pode ser explicada por um único conjunto de princípios gerais ou leis (Alba e Hasher, 1983, Sherry e Schacter, 1987), corresponde a uma tentativa de reduzir a diversidade dos mecanismos de memória a uma unidade indistinta e disforme, e deve ser evitada. Tulving, desde suas formulações mais antigas (Tulving, 1985a) até as mais recentes (Tulving, 1999), manifesta uma preocupação reiterada de combater à visão unitarista sobre os mecanismos de memória. Para ele, o unitarismo não pode conduzir a uma melhor compreensão da memória humana e não contribui para o desenvolvimento de uma ciência a esse respeito.

A crítica de Tulving e Schacter (1990) aos teóricos do processo (a que nos referimos no primeiro parágrafo da seção 4) segue o mesmo raciocínio. Os autores afirmam que tais teóricos julgam erradamente que podem explicar os resultados experimentais sem postular diferentes mecanismos de memória. Observe que essa crítica identifica o pensamento de tais teóricos do processo com uma perspectiva unitarista de definir a memória, identificação que parece ser inspirada pelo fato de que, segundo Tulving e Schacter, uma compreensão processual da memória esmaece a distinção que precisa ser feita entre os mecanismos de memória. Isto é, uma perspectiva processual conduziria à idéia de que somente a totalidade da memória pode ser um autêntico objeto de conhecimento e que, portanto, a análise dos mecanismos individuais seria um equívoco. Em outras palavras, os teóricos do processo terminariam por sacrificar as partes em favor do todo.

A questão que nos parece fundamental é saber se a perspectiva unitarista é mesmo incompatível com a visão múltipla dos mecanismos de memória. Se essas duas perspectivas forem incompatíveis de fato, então as críticas de Tulving e Schacter (1990) parecerão adequadas por conduzirem à única alternativa para a constituição de uma ciência da memória. Mas se for possível conciliar a idéia de tratar simultaneamente a unidade da memória com a pluralidade de seus mecanismos como objetos de uma ciência da memória, as críticas de Tulving e associados parecerão limitar-se somente a confrontarem as teses unitaristas clássicas.

Estamos denominando de teses unitaristas clássicas aquelas que defendem a manutenção da unidade da memória como um princípio de parcimônia derivado da navalha de Occam (Tulving, 1999; Spade, 1999). Nesse espírito, não se deveria fazer proliferar entidades e conceitos, como os vários mecanismos de memória, por uma questão de simplicidade. Para o unitarismo clássico, a compreensão da memória como composta por vários mecanismos é simplesmente desnecessária porque não traz nenhum ganho real em termos de conhecimento. Por tudo o que se discutiu e apresentou até este ponto, a visão unitarista para o estudo da memória humana parece excessivamente simplista para revelar-se sustentável.

 

Pluralismo e unitarismo-pluralista

Resumindo a posição de Tulving, Schacter e Sherry (Sherry e Schacter, 1987; Tulving e Schacter, 1990), evidenciaremos sua tese principal. A questão que nos parece central é delinear um objeto de estudo a ser investigado por uma ciência da memória. Para isso, é necessário desfazer-se da posição unitarista e adotar um ponto de vista pluralista. O pluralismo conduz, no plano epistemológico, à busca por lógicas específicas do funcionamento de cada mecanismo de memória e nega a existência de um conjunto necessário e suficiente para descrever a memória como um todo. Logo, essa perspectiva enfatiza a diversidade e a fragmentação do seu objeto de estudo.

Entretanto, até que ponto a diversidade e a fragmentação decorrentes da análise de um objeto como a memória são desejáveis? Isto é, essa estratégia pode ser levada a termo indefinidamente sem que conseqüências científicas danosas apareçam? O que estamos questionando é até quando a ênfase na pluralidade pode ser promissora para uma ciência da memória.

Em um levantamento sem pretensão de ser exaustivo, Roediger e colaboradores (1999) indicaram o evento cerebral da potenciação de longo prazo, o sistema imunológico e o aparelho reprodutor feminino como mecanismos de memória não-declarativos - portanto, incluindo-os entre os possíveis objetos de estudo de uma ciência da memória. Para eles, se novos mecanismos forem acrescentados para explicar cada dissociação encontrada em testes de memória, muitos outros mecanismos ainda teriam que ser acrescentados para completar uma lista completa (cf. Kolers e Roediger, 1984).

Desse modo, podemos perceber a dificuldade em proceder a um levantamento completo de todos os mecanismos de memória humana por meio de uma análise radical, isto é, uma análise capaz de identificar todos eles. E sem uma classificação exaustiva do complexo da memória, ficamos sem a possibilidade de obter aquela arquitetura geral, tão importante para constituir uma ciência a esse respeito.

O que parece ocorrer, nesse caso, é que a pluralidade gerada pela análise fragmenta a tal ponto o objeto que termina por estilhaçar também a própria ciência que lhe diz respeito. Mantida a perspectiva da pluralidade e da análise radical, teríamos não uma ciência da memória e sim várias - talvez tantas quantos fossem os mecanismos de memória identificáveis segundo suas regras de funcionamento específicas.

A perspectiva da pluralidade parece oferecer, então, o risco de duas dificuldades: (i) acabarmos por ter o conhecimento relativo à memória fragmentado em várias pequenas ciências, relativas a mecanismos específicos, e (ii) terminarmos com uma ciência da memória declaradamente incompleta e sem a desejável arquitetura integrada (já que a análise radical não parece ter limites claros).

A primeira possibilidade consiste mais em um aspecto não desejável do que propriamente em uma dificuldade para a perspectiva da pluralidade. Se for essa a necessidade gerada pelo estudo da memória - que existam várias ciências - então deveríamos aceitá-la e fragmentar o conhecimento em várias instâncias separadas. Aqui, perderíamos a unidade epistemológica por conseqüência da perda de unidade ontológica do objeto de estudo. Teríamos plurais - memórias e ciências da memória.

Já com respeito à segunda, trata-se da impossibilidade de constituir uma classificação que ordene a pesquisa empírica sobre a memória. Logo, trata-se de um fracasso no sentido de se obter uma visão panorâmica para essa ciência. Isso, por si só, constitui-se em um duro revés para a perspectiva pluralista, na medida em que torna impossível aquela desejável arquitetura básica relativa aos mecanismos de memória.

Há, porém, uma dificuldade ainda mais séria oriunda da perspectiva pluralista. Kim e Baxter (2001) a indicam quando afirmam que, embora a ênfase nos mecanismos de memória individuais tenha se mostrado útil, está se tornando claro que esses mecanismos estão em interação. E que, portanto, uma descrição completa da memória requer a compreensão dessas interações.

A necessidade de introduzir a questão das relações entre os vários mecanismos de memória também é defendida por outros autores como Poldrack e Packard (2003). Há evidências indicando que algumas interações efetivamente existentes entre os mecanismos de memória são de caráter competitivo e não complementar (Poldrack et al., 2001). Roediger, Gallo e Geraci (2002) postulam, na perspectiva dos teóricos do processo, que a dissecação dos processos cognitivos em faculdades separadas só pode ser obtida se negligenciamos "a riqueza da vida mental" - enfatizando a necessidade de haver prudência nos procedimentos de separação analítica. Kolers e Roediger (1984) defendem a noção interacionista, segundo a qual o que deve ser objeto de estudo não são as dissociações e sim as relações existentes entre os processos cognitivos. Já há algum tempo, Kolers (1975) criticou as teorias da percepção e da memória que, em geral, propõem organizações hierárquicas da informação - como a de Tulving que se encontra expressa no quadro 1 - pelo seu reducionismo esquemático. No mesmo sentido, Moscovitch (1992, 1994) enfatiza a importância das relações entre módulos e mecanismos centrais no seu modelo de memória de componentes interativos.

Baseado na plasticidade e na multifuncionalidade cerebral, Gaffan (2002) chega ao extremo de propor a inexistência dos mecanismos de memória. Entretanto, embora inspirada em uma noção pluralista, essa última é uma posição que nos parece desembocar no que denominamos acima de unitarismo. De qualquer modo, os fenômenos da interatividade, da plasticidade e da multifuncionalidade parecem indicar uma evidente limitação da perspectiva pluralista: eles implicam, em alguma medida, um efeito relacional que precisa ser considerado por uma ciência da memória.

Porém, se as relações entre os vários mecanismos tiverem que ser incorporadas como parte relevante do nosso conhecimento sobre a memória, então o quadro teórico geral se altera profundamente. Com efeito, se é necessário uma ciência que trate da relação entre os vários mecanismos, teremos algo como uma metaciência da memória. E isso significa incluir uma tarefa na agenda epistemológica para a qual certamente a posição pluralista não está preparada - já que, como vimos, seu objetivo se restringe a apreender as leis que regem cada sistema individualmente.

De fato, pode-se notar que a perspectiva pluralista não está habilitada para dar conta do problema da interação entre diferentes mecanismos de memória devido à ênfase na diversidade - grandemente motivada pela sua necessidade de criticar o unitarismo clássico e insistir na tese da fragmentação. Essa limitação fica evidente se compreendemos o trabalho da neuropsicologia cognitiva como a identificação dos componentes da memória e a indicação da maneira como eles interagem (Moscovitch, 1992, 1994). A partir dessa definição, podemos perceber que quando a visão pluralista produz a identificação dos componentes, ela simultaneamente faz emperrar a realização da segunda parte do trabalho voltada para o estudo da interação. Seu projeto claramente desvincula a primeira ação da segunda.

Vamos reconsiderar agora aqueles dois princípios do pluralismo de Tulving e associados, já anteriormente mencionados: (i) conhecer a memória humana é analisá-la nos seus mecanismos específicos e identificar suas subdivisões; e (ii) os mecanismos de memória se organizam em relações de dependência hierárquica. Parece claro que não há como conciliar, a partir da proposta de Tulving e associados, o procedimento epistemológico de separação e de análise e a noção de uma ordem hierárquica dos mecanismos de memória com a idéia de interação entre eles. As relações possíveis em uma hierarquia são apenas relações verticais de inclusão e exclusão. As noções de interação, colaboração e competição exigem, por sua vez, relações horizontais - não passíveis de inclusão no esquema conceitual hierárquico do pluralismo.

Acreditamos que a necessidade de introduzir na ciência da memória a questão da interação entre diferentes mecanismos cria as condições para uma nova utilização do princípio unitarista. Porém, essa nova utilização não consiste em uma negação do pluralismo e sim em promover uma unificação com a pluralidade em função do princípio da interação. Estamos denominando essa nova utilização do unitarismo de unitarismo-pluralista, para evidenciar as limitações do pluralismo puro.

Isso não significa a tentativa de promover uma posição teórica que oscile entre o unitarismo clássico e o pluralismo e sim proceder a unificação dos submecanismos específicos de memória, ao mesmo tempo em que se compreendem suas interações (Kim e Baxter, 2001; Moscovitch, 1992, 1994; Roediger et al., 1999). Em outras palavras, trata-se de postular que sequer a identificação de um mecanismo de memória pode ser feita sem o estudo de suas respectivas relações com os demais - ou seja, não há unitarismo sem pluralismo e vice-versa. Só dessa relação poderá sair uma classificação promissora para a ciência da memória. Logo, torna-se necessária aquela metaciência a que fizemos referência acima e que seria responsável por reunificar a fragmentação gerada pela atuação do princípio pluralista. É a ela que estamos denominando de unitarismo pluralista.

 

Conclusão

A epistemologia de Taketani-Osada (Osada, 1992; Trzesniak, 2009) propõe uma agenda para a construção do conhecimento que passa, sucessivamente, por: (i) acúmulo de estudos descritivos de um fenômeno; (ii) a análise destes estudos; (iii) sua decomposição em elementos mais simples; (iv) a formulação dos conceitos pertinentes; (v) a organização de taxionomias e, bem mais adiante, (vi) uma síntese de modelos e interações. A identificação da etapa em que uma área do conhecimento se encontra - o seu momento epistemológico - permite definir o tipo de atuação científica que tende a maximizar o avanço do conhecimento relativamente ao esforço respectivamente investido. Acreditamos que a proposta do unitarismo-pluralista ora apresentada alinha-se estreitamente com essa visão epistemológica.

A proposição de uma perspectiva unitarista-pluralista indica que a ciência derivada do pluralismo de Tulving e associados não está habilitada, conceitualmente, para lidar com a questão da relação entre os mecanismos de memória que ela mesma gera. Com efeito, para compreender a relação entre os diversos mecanismos, sejam eles quais forem, é necessário reintroduzir na ciência da memória o princípio do unitarismo, porém de tal forma que se preserve a multiplicidade gerada pelo pluralismo.

Portanto, fica evidente a limitação do pluralismo, na versão que apresentamos, com relação à sua capacidade para gerar uma ciência da memória a partir da introdução do problema das relações entre os mecanismos. Entretanto, é preciso fazer justiça ao pluralismo. Sem a fragmentação introduzida por ele, não haveria o que unificar e os estudos de interação não seriam possíveis. Como posição crítica com relação ao unitarismo, o pluralismo possui méritos inegáveis: ele produziu aquilo que agora deve ser reunido em uma nova unidade sintética.

Na proposta de substituir o princípio pluralista de separar para entender por outro, que afirma que é necessário reunificar para entender melhor, não devemos esquecer que a reunificação somente pode ocorrer depois da fragmentação. Assim, a pauta de uma ciência da memória unitarista-pluralista não parece poder deixar de lado a compreensão das relações entre os vários mecanismos de memória - algo que parece constituir, na verdade, um conhecimento mais apropriado acerca deles.

 

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Notas

R.A.T. da Silveira
Endereço para correspondência: Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Campus Cruz das Almas, Centro, Cruz das Almas, BA 44380-000, Brasil.
E-mail para correspondência: roniesilveira@yahoo.com.br.

P. Trzesniak
E-mail para correspondência: piotreze@gmail.com. L.M. Stein - E-mail para correspondência lilian@pucrs.br.

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