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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.15 no.2 Rio de Janeiro Aug. 2010

 

Ensaio

 

Problemas matemáticos e modelos mentais de resolução: possibilidade de reflexão e aprendizagem

 

Mathematical problems and mental models of resolution: reflexive possibilities and learning

 

 

Guilherme Santinho Jacobik

Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Grupo HIFEM, Campinas, São Paulo, Brasil

 

 


Resumo

Este ensaio busca fomentar um olhar mais detalhado e profundo sobre a utilização dos problemas matemáticos como recurso didático em oposição aos exercícios tradicionalmente propostos, principalmente nas séries iniciais do ensino fundamental. Defende a concepção de que o uso de problemas é decorrência de um olhar investigativo do professor e não mera técnica e que, para tal, é preciso elaborá-lo de forma consciente de forma a propor verdadeiro desafio intelectual aos alunos e aos próprios professores. © Cien. Cogn. 2010; Vol. 15 (2): 173-183.

Palavras-chave: matemática; problemas; ensino-aprendizagem; estratégias; campos conceituais.


Abstract

This essay seeks to promote a more detailed and deepened look on the utilization of mathematical problems as a daily didactic resource as opposed to the traditionally proposed exercises, mainly in the initial grades of Primary School. It supports the conception that the usage of problems is a result of an investigative look of the teacher and not only simple technique and, for that, it is necessary to elaborate it consciently in a way to propose a real intellectual challenge to students and teachers themselves. © Cien. Cogn. 2010; Vol. 15 (2): 173-183.

Keywords: mathematics; problems, teaching-learning, strategies, conceptual fields.


 

A utilização de problemas matemáticos em oposição aos exercícios mecânicos vem-se tornando algo comum, principalmente no ensino fundamental. Neste ensaio, busca-se demonstrar que recorrer a esse recurso é uma grande oportunidade para ampliar as estratégias de resolução do aluno e reforçar a noção de que a Matemática, como ciência, é instrumento de desenvolvimento da autonomia investigativa. Também busca-se defender o termo "problema" como oportunidade de reflexão e desafio motivador da atividade participante.

Em primeiro lugar, façamos a devida explicitação entre os termos Situação-problema e Problema-matemático. Nem toda situação-problema pertence ao campo de estudo da Matemática e nem todo problema matemático (tradicionalmente proposto) representa uma situação-problema.

Uma situação-problema é um conjunto de relações que leva o aluno/sujeito a exercitar a sua atividade mental, aqui descrita como a capacidade de inter-relacionar o aprendido (previa e externamente à escola ou na escola) e buscar resolução para situações novas.

Muito se tem dito a cerca da validade em se fazer uso de problemas matemáticos como forma de contextualizar situações e trazer a vivência do aluno para a escola. Se, por um lado, a contextualização dos conhecimentos ajuda o aluno a estabelecer vinculações com sua vivência cotidiana e, dessa forma torna-a mais significativa, por outro, é importante também promover situações em que a descontextualização provoque no aluno a necessidade de observar regularidades inerentes às situações propostas podendo transferi-las a novas situações e contextos. A noção de significatividade dos conceitos aprendidos aqui se encontra na capacidade de que os mesmos possam ser aplicados em situações diferenciadas daquelas que lhe deram origem.

Coloca-se em pauta, neste ensaio, buscando uma análise crítica e propositiva, os usos "escolarizados" dos problemas matemáticos como tradicionalmente vêm sendo aplicados e a pretensiosidade do discurso do uso do contexto real do aluno em todas as situações que envolvam problemas. Acreditamos que é preciso encontrar um meio termo.

Uma atividade que apenas exercita a capacidade de memória não é necessariamente uma situação-problema, é o que se percebe, recorrendo rapidamente ao histórico do ensino de Matemática tradicional ou analisando alguns livros didáticos em uso nas nossas escolas. Neles, em geral, há uma divisão em três tempos:

  • Há a descrição conceitual sobre o conteúdo que será trabalhado. Exemplo: Fração é a medida das partes de um todo.
  • São apresentados modelos sobre o conteúdo abordado. Exemplo: Um bolo (1/1), se repartido em quatro, cada parte é igual a um quarto (1/4).
  • O aluno precisa resolver uma lista de exercícios e "problemas" que pedem a aplicação do conteúdo apreendido, em geral nos moldes da pura averiguação.

A situação-problema aqui abordada refere-se àquela que extrapola o limite do imediatamente aprendido e obriga o aluno a se mobilizar, valendo-se dos recursos da memória, da busca em fontes diversas (anotações, cartazes, instrumentos que auxiliem o cálculo, etc.). Em suma, pode-se dizer que a situação-problema é aquela que proporciona desafios ao aluno.

Sabe-se que o estabelecimento de conexões contribui para a capacidade de compreensão e resolução do aluno, mas sabe-se também o quanto é necessário que o professor se torne agente dessa construção de conhecimentos, organizando, mediando e atendendo às necessidades primordiais do aluno em sua atividade, o que, para Leontiev (1988), psicologicamente, é caracterizado por aquilo a que o processo, como um todo, se dirige (seu objeto) e que são ligados especialmente às emoções e sentimentos.

O que faz de uma determinada atividade uma "situação-problema" não é somente o enunciado, a comanda escrita de um problema. Espera-se uma postura didática que vá além da escrita modificada e criativa de um problema. Do contrário, ocorre o risco de vestirmos o "velho" com uma "nova" roupagem. Fazer uso dos problemas matemáticos como um modismo desprovido de preparo e consciência sobre seu uso, é perder a potencialidade de uso desse instrumento.

De fato, é um risco muito grande confundir uma concepção de ensino matemático, pautada na criatividade e no espírito do "aprender a aprender", com modismos passageiros. A superação da sisudez dos exercícios matemáticos tradicionais, que nada dizem respeito ao aluno, por situações lúdicas e mais criativas, ou ainda o uso de situações reais do cotidiano como objeto de problematização, nem sempre significa uma mudança conceitual em relação ao ensino da Matemática.

Uma boa situação didática matemática ou uma boa situação-problema deverá ir além da boa formulação do enunciado, deverá levar em conta o perfil de aluno que se tem ou que se quer. Aquilo que vem sendo chamado de conhecimentos prévios, que se trata dos conhecimentos adquiridos e já trazidos pelo aluno anteriormente a uma dada intencionalidade educativa, a bagagem de conceitos, procedimentos e atitudes aprendidas até o momento de uma "nova" aprendizagem, constituem elementos essenciais para que o professor formule os problemas matemáticos.

Mas, que conhecimento é esse? É possível mensurá-lo e classificá-lo? Constitui-se de bons e verdadeiros conhecimentos? Estão mecanicamente guardados na memória ou são de fato pertencentes ao aluno? São meramente reproduzidos ou são significativos para o aluno? Estas e outras perguntas devem ser formuladas e respondidas pelo professor que pretende valer-se do que o aluno sabe para ensinar novos conhecimentos.

Saber o que o aluno já aprendeu sobre um determinado conteúdo é muito valioso para se evitar duas situações que atrapalham o aprendizado da matemática:

  • A elaboração de atividades didáticas que estão muito além das possibilidades do aluno;
  • A oferta de atividades que não proporcionam nenhum desafio, pois já foram aprendidas exaustivamente.

Compreender como se dá o processo de desenvolvimento psicossocial das crianças em seu meio cultural pode apoiar a promoção de experiências pedagógicas no ensino formalizado. Nessa perspectiva, o contrário, a ignorância aos processos de interação e mediação cultural extra-escolares, poderia retardar avanços e mesmo tolher o desenvolvimento do conhecimento escolar organizado.

A escola não deveria desconsiderar a composição familiar e sua relação cotidiana com o conhecimento, o que mobiliza pais e irmãos e que envolve a interação entre novatos e veteranos. No entanto, a escola é vista como uma instituição única, com sentidos e objetivos iguais, tendo como função garantir a todos o acesso ao conjunto de conhecimentos acumulados pela sociedade. Erroneamente, ensinar se torna transmitir esse conhecimento acumulado, e aprender se torna assimilá-lo. Por essa razão, não faz sentido para a maioria dos educadores, estabelecer relações entre o vivenciado pelos alunos e o conhecimento escolar, entre o escolar e o extra-escolar, justificando-se a desarticulação existente entre o conhecimento escolar e a vida dos alunos (Dayrell, 1996).

Acreditamos que para haver mudança na maneira da escola lidar com o ensino da matemática, sem "coisificar" conteúdos e alunos, é necessário buscar compreender o universo de relações matemáticas com que esse aluno teve contato externamente à escola e que, provavelmente, forjou seus conhecimentos prévios.

Lave e Wenger (apud Daniels, 2002:167) afirmam:

"(...) levando em conta, de modo central, a natureza conflituosa da prática social. Damos mais ênfase em conectar questões de transformação sociocultural com a mudança das relações entre novatos e veteranos no contexto de uma prática compartilhada mutante."

Guias curriculares tais como os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1996) consideram que a Matemática seja entendida pelos alunos como uma forma de compreender e agir em um mundo em constante transformação. Almeja-se que ele compreenda a matemática como fruto da construção humana em sua interação com os diversos contextos naturais, sociais e culturais. Dessa forma, o aluno compreenderá que sua participação deve ser ativa e não passiva perante o fazer matemático.

Tornou-se comum, nos guias curriculares, almejar objetivos de cunho atitudinal, entre eles a "desenvoltura" do aluno em extrapolar os limites da aula dada e dos conteúdos apresentados. Para que ocorra de fato essa atitude, é preciso proporcionar situações-problema em que o aluno possa fazer suas deduções, testar "sua" maneira pessoal de resolver.

Valorizar este ato pessoal é absolutamente essencial quando se almejam alunos autônomos. A valorização não se dará apenas verbalmente e nem deve ser esperado por parte do aluno uma busca espontânea para a solução de problemas. O professor, ao planejar, deve levar em conta aspectos conceituais sem esquecer que as atitudes são conteúdos perfeitamente possíveis de serem previstos, ao menos a maioria delas. Há que se dizer que é preciso uma boa dose de paciência em relação às respostas esperadas aos estímulos dados.

Um exemplo de atividade em que as hipóteses dedutivas e as atitudes autônomas estão em jogo se dá quando é solicitado ao aluno que vá à lousa explicar a maneira como resolveu determinado problema. Em primeiro lugar, espera-se, entre outras coisas, que o aluno consiga explicitar o seu modo de pensar através de esquemas gráficos (desenhos, sinais e símbolos matemáticos convencionais ou não); em segundo, que sua fala explicativa tenha coerência com o registrado na lousa; e, em terceiro, que aceite ser questionado ou inquirido pelos colegas e pelo professor (Jacobik, 2005).

Por parte dos demais alunos, espera-se que fiquem atentos às explicações do colega; que comparem a resolução com suas próprias estratégias; que reconheçam no outro uma possibilidade de aprender; que saibam inquirir e questionar; que saibam superar o próprio erro podendo corrigi-lo.

Obviamente, todos esses componentes atitudinais não são espontâneos. É tácito que deverão ser construídos nas abordagens do professor. Tal qual na escrita e leitura, a postura do professor perante o saber do aluno deve servir de modelo ao mesmo. Sua participação não deve limitar-se a de mero espectador. O professor precisará mediar tanto o aluno expositor, ajudando-o quando este não for claro o bastante, quanto os demais alunos, questionando, instigando e demonstrando o valor da troca. A escola pode ser um ótimo lugar para proporcionar situações em que os alunos experimentem ser donos da responsabilidade de ensinar e de aprender.

A busca pela autonomia do aluno, o respeito às suas ideias e a noção de que ele é também construtor de sua aprendizagem tem se oposto ao empirismo exacerbado da escola dita "tradicional" (Libâneo, 2004). Essa dicotomia tem gerado uma confusão sobre o papel do educador. Em muitos manuais educacionais, lê-se que ele é um mero interlocutor/mediador entre os sujeitos e o objeto de conhecimento.

O professor sempre foi e sempre será um detentor importante de conhecimentos. Não se pode negar sua experiência e formação. É um especialista na difícil tarefa de educar. A categoria profissional "professor" vem buscando a mudança de uma postura extremamente diretivista e subestimadora, para outra libertadora e encorajadora. O que não significa, em absoluto, que tenha negado sua tarefa de ensinar, mas que compreendeu, ou vem compreendendo o papel ativo do aluno na busca pela liberação de sua criatividade, de sua capacidade crítica/contestadora, de sua análise dedutiva (Freire, 1979; Arroyo, 2001). Que compreendeu, ou vem compreendendo também o seu próprio papel profissional para então ter condições de auxiliar seus alunos.

Quando se apresenta uma determinada situação-problema ao aluno, deve-se esperar dele um papel ativo, o que significa, em termos didáticos, ensiná-lo a ter essa atitude diante dos desafios caso não tenha ainda recursos para tal. É necessário instrumentalizá-lo, oferecer-lhe meios para analisar e resolver o problema. Não se deve pressupor que responda autonomamente aos desafios de um problema matemático.

Algumas situações didáticas devem ser proporcionadas para que o aluno compreenda e possa valer-se de seus conhecimentos na resolução do problema, apresentamos algumas possibilidades a seguir.

O professor pode explorar exaustivamente a linguagem do problema, que parece óbvia, mas na verdade é muito complexa. Um problema é composto de partes que se complementam e que precisam ser compreendidas. Há nele um enredo ou situação que dá corpo e serve de base para as informações, um exemplo: "Quando João foi ao circo levou sua mesada para gastar..."; há informações numéricas a serem calculadas: "...foi na roda gigante e pagou R$2,00, no trem-fantasma e gastou R$3,00 ..."; e uma ou mais perguntas que precisam ser respondidas: "Quanto João gastou ao todo? Sobrou dinheiro de sua mesada?".

Entre muitas estratégias que se vivencia nas escolas, uma interessante maneira de explorar os problemas matemáticos é ensinar o aluno a marcar (sublinhar) com cores definidas, as diferentes informações do problema. Desta forma, ficará mais fácil compreendê-las e relacioná-las. Por exemplo, sublinhar de vermelho as informações referentes às quantidades numéricas e sublinhar de azul a pergunta. Esta estratégia ocorre em períodos curtos, pois serve apenas para que o aluno perceba diferentes informações em um único portador, que é a comanda do problema.

O aluno precisa ser motivado a registrar no papel a maneira como realiza o cálculo mental, assim exercitará a explicitação de suas estratégias. Isto é também de grande utilidade para que o professor perceba o processo e não apenas o produto final, podendo intervir nos erros processuais. É preciso incentivar o aluno a registrar de sua "própria maneira", utilizando desenhos, risquinhos, bolinhas, numerais e palavras se necessário. Na medida em que o trabalho vai evoluindo, o professor vai ensinando a simplificar as estratégias, tornando-as mais econômicas. Por exemplo, no cálculo aditivo 15 + 15 um aluno valeu-se desta estratégia:

I I I I I I I I I I I I I I I + I I I I I I I I I I I I I I I

Resposta: 30

O professor poderia perguntar como fez para realizar essa estratégia. Percebendo que o aluno consegue conservar o primeiro valor (15), pois afirma que o deixou na memória para depois somar com os risquinhos restantes (15) o professor propõe a seguinte possibilidade de registro:

15 + I I I I I I I I I I I I I I I

Dessa maneira, não só respeita a estratégia do aluno, mas o ensina a registrá-la melhor e de maneira mais econômica. Num outro momento, poderá ensiná-lo outras possibilidades de resolução, mas estas devem evoluir de acordo com as possibilidades e potencialidades apresentadas pelo aluno.

Faz-se necessário levar em conta, na resolução de problemas, a motivação do aluno em trocar suas estratégias com seus colegas, tanto o ensinando como o incentivando a aceitar aprender com os outros. O educador pode motivar seus alunos a irem à lousa expor diferentes maneiras de resolução, pedindo aos demais que escolham as estratégias mais interessantes e que as usem nas próximas vezes.

A situação didática apresentada a seguir representa uma rica experiência vivenciada em uma turma do primeiro ano do ensino fundamental. Após a exploração do enunciado, a professora incentivou seus alunos a registrarem não somente a resolução, mas também a forma como mentalmente construíram as respostas. No momento da correção, chamou algumas crianças com estratégias diferentes de resolução e pediu-lhes que as compartilhassem com os demais, solicitando que explicassem de forma que os outros pudessem aplicar também.

O que pode parecer estranho, aos olhos poucos experientes de quem não lida com crianças das séries iniciais do ensino fundamental, é na verdade algo comum (ou que poderia/deveria ser comum) no cotidiano escolar das crianças, e certamente é em relação às crianças analisadas a seguir. Elas aprendem ensinando e tem imenso prazer em fazê-lo. Não é incomum que todas as crianças dessa turma desejem ir à lousa. Da mesma forma, pode-se dizer da proposição feita pela professora, de que prestassem bastante atenção, pois posteriormente pediria a eles que resolvessem outros problemas, valendo-se das estratégias apresentadas pelos colegas. A cultura escolar, pautada na troca constante, na não censura ao errar e no apostar constante em sua própria capacidade, permite a essa escola uma grande riqueza de estratégias de compreensão de problemas. Durante esta atividade, houve inúmeros momentos em que as crianças quiseram esclarecer suas dúvidas, sugerir possibilidades, demonstrar que pensaram igual, elogiar ideias interessantes, corrigir erros. Isto tudo é possível porque há nesse ambiente um contrato cultural que estabelece que o diálogo e a troca constantes sejam mais importantes que o acerto. Dentre as várias crianças que foram à lousa nesta aula, estão selecionadas quatro pelo critério da diferença de estratégias aplicadas. A todos os alunos foi oferecido o seguinte problema:

Um ônibus vazio parou em três pontos. No primeiro subiram 30 pessoas, no segundo subiram 25 e no terceiro subiram 40. Quantas pessoas subiram no ônibus?

 

Figura 1

Figura 1 - criança 1.

 

Análise: percebe-se que a criança 1 consegue conservar o valor de partida (40) e somá-lo com a segunda informação numérica (30). Neste caso, valeu-se de seu conhecimento sobre a contagem de dez em dez, pois utilizou três dedos durante a operação, dizendo valer 10 cada um (assim explicou quando foi à lousa). Após obter o primeiro resultado (70) decompôs o valor seguinte (25) em 20 e 5, realizando a soma de 70 + 20 e obtendo a dezena cheia 90. Posteriormente, juntou o 5 restante, obtendo o resultado final 95. Repare o uso competente de diversos recursos tais como a decomposição numérica, a contagem salteada de dez em dez, a conservação de valores e o uso de sinais matemáticos (+ e =).

 

Figura 2

Figura 2 - criança 2.

 

Análise: trata-se de uma criança que compreendeu dois elementos importantes para a resolução de somas, a decomposição numérica em grupos de dez, e a recomposição, percebida em sua explicação na ocasião de sua ida à lousa, em que colocava o dedo sobre cada valor e, salteando, dizia em "voz alta", "dez, vinte, trinta, quarenta e continuando, cinquenta, sessenta, setenta, mais oitenta, noventa e cinco, cheguei no noventa e cinco". Perceba que já faz uso do sinal de soma (+), mas ainda não utiliza o de igual (=).

 

Figura 3

Figura 3 - criança 3.

 

Análise: ao contrário da criança dois, a criança três, para sua maior "segurança e entendimento", optou por registrar as somas parciais, como uma espécie de "garantia contra o erro". Ela igualmente decompõe cada valor em grupos de dez, mas sinaliza a recomposição em cada etapa. No momento de somar o total, no entanto, vale-se do mesmo recurso estratégico da criança anterior, conta de dez em dez com o detalhe de que a partir do 55 continua 65, 75, 85, 95, ou seja, de certa maneira vale-se de um recurso um pouco mais elaborado.

 

Figura 4

Figura 4 - criança 4.

 

Análise: sabemos que nem todas as crianças têm como modelo para suas estratégias de resolução somente o ensino escolar, este aluno é um bom exemplo. Apesar da escola só trabalhar com o algoritmo convencional a partir da segunda série, o aluno aprendeu com sua mãe essa estratégia e, por fazer um uso competente e consciente (não mecânico e limitado a essa situação), foi incentivado a ir à lousa e ensinar aos demais sua maneira de resolver. A professora complementou a explicação a fim de garantir uma maior compreensão dessa técnica, salientando que será mais bem explorada num momento posterior em que toda sala poderá acompanhá-la com mais eficiência.

Dado que a resolução de problemas vem se consolidando como uma importante estratégia de aprendizagem, a comunidade docente que atua na escolaridade básica tem tomado contato com teorias e autores de diferentes correntes. Este movimento parece indicar uma busca constante de um fazer mais consciente, intencional e acadêmico.

Em muitas experiências escolares analisadas, há uma busca pela confluência de enfoques que respeitem o pensar da criança, ao mesmo tempo em que a estimule cognitivamente. Como exemplo, pode-se citar os estudos da "Educação Matemática", em particular as pesquisas de Gerard Vérgnaud (apud Magina et al., 2001).

A pretensão não é defender um determinado ponto de vista teórico, mas levantar ponderações que parecem essenciais na melhor compreensão dos mecanismos que favorecem o uso da resolução de problemas como estratégia de aprendizagem de cálculo.

Ao fazer uso de problemas matemáticos, é importante que o professor compreenda sua diferença em relação aos exercícios tradicionalmente propostos, tais como os algoritmos convencionais. Um exercício, como "continhas", por exemplo, quase sempre já dispõe dos mecanismos ou regras que levam à solução, o que permite pouca variação. Também a operação matemática já está predeterminada explicitamente através dos sinais matemáticos utilizados. Ao apresentar situações mais abertas e que exigem interpretação por parte do aluno, como os problemas matemáticos, ao contrário de dificultar, como poderiam alegar alguns críticos dessa estratégia, amplia-se o leque de possibilidades de resolução, permitindo a troca e a ampliação da capacidade de adaptação ou de modelagem matemática. Também permite ao professor conhecer melhor como seu aluno aprende.

Para que as atividades com resolução de problemas se tornem ricas e estimulem a efetiva participação do aluno, é necessário que aquelas sejam variadas (como se vê a seguir) e que se tome o cuidado de não transformá-las em fórmulas, cujos indícios de linguagem do texto dos enunciados tornem-se "senhas" de modelos de resolução já conhecidos, algo comumente visto em inúmeros livros didáticos. O importante é que o aluno seja capaz de, autonomamente, localizar a incógnita e, para tal, é preciso que o professor estimule o aluno para que questione sua própria resposta, elabore suas hipóteses, desenvolva estratégias, amplie a sua capacidade de análise. O professor deve, para isso, apostar na atividade do aluno e não em sua passividade.

Quanto à variedade de problemas, acredita-se que os estudos de Vergnaud à cerca dos campos conceituais aditivos (que envolve a adição e a subtração) e multiplicativo (que envolve multiplicação e divisão) são boas premissas à elaboração de problemas matemáticos, pois amplificam os significados e diminuem a dificuldade que os alunos tem em relação às suas escolhas, dado que podem aprender a se valer de operações diferentes para solucioná-los, por exemplo, subtrair ao invés de somar, somar ao invés de subtrair. Quanto mais tipologias de problemas os alunos conhecerem, maior o repertório de estratégias e possibilidades de resolução em novas situações e operações diferenciadas eles poderão ter.

Apresentam-se aqui exemplos de situações relacionadas a esses diferentes tipos de problemas que podem ser oferecidos às crianças do segundo ano do ensino fundamental. Não foram citadas todas as situações apontadas por Vergnaud, mas representam boa mostra sobre as possibilidades de oferecer situações diferenciadas de problemas aos alunos.

CAMPO ADITIVO

Situações relacionadas à ideia de combinar dois estados para obter um terceiro

JUNTAR: Em uma cesta de frutas há 9 laranjas e 8 bananas. Quantas frutas há no cesto?

SEPARAR/ TIRAR: Em um cesto há algumas laranjas e 8 bananas, no total são 17 frutas. Quantas laranjas há nesse cesto?

Em um cesto há 17 frutas, 9 são laranjas. Quantas bananas há?

Situações relacionadas à ideia de transformação, alterando o estado inicial (positiva ou negativa)

POSITIVA: José tinha 15 figurinhas. Ele ganhou 12 figurinhas de seu pai. Com quantas figurinhas José está agora?

NEGATIVA: Bianca tinha 19 figurinhas. Ela perdeu 6 num jogo. Quantas figurinhas Bianca possui agora?

Situações relacionadas à ideia de comparação

Ao fim de um jogo Luiz e Pedro conferiram suas peças. Pedro tinha 16 e Luiz tinha 10 a mais que Pedro. Quantas eram as peças de Luiz?

Luiz e Pedro conferiram suas cartas. Luiz tem 14 e Pedro 7. Quantas cartas Pedro precisa ganhar para ter o mesmo número que Luiz?

Fabiana iniciou um jogo com 20 pontos de desvantagem e terminou o jogo com 35 pontos de vantagem. O que aconteceu durante o jogo?

CAMPO MULTIPLICATIVO

Situações relacionadas à ideia comparativa

MULTIPLICAÇÃO: Um cachorro possui quatro patas. Quantas patas há em 5 cachorros juntos?

DIVISÃO: Se quatro cachorros têm 16 patas. Quantas patas há quando dois cachorros estão juntos?

Situações relacionadas à comparação entre razões (proporcionalidade)

Se uma caixa possui 20 bombons, quantos bombons há em 3 caixas? (1 está para 20, assim como 3 para 60)

Duas balas custam R$ 0,50. Quanto pagarei por 4 balas? (se 2 balas é igual a R$ 0,50, o dobro é R$ 1,00)

Se João pagou R$ 12,00 por 24 ovos, quanto iria pagar por uma dúzia?

Maria gastou R$ 45,00 em três pacotes de bolacha. Quanto custou cada um deles?

Situações relacionadas à configuração retangular

MULTIPLICAÇÃO: Se em um teatro há 10 fileiras com 8 cadeiras cada, quantas pessoas cabem sentadas?

Uma sala tem 5 metros de largura por 7 de comprimentos. Quantos metros quadrados há nessa sala?

DIVISÃO: As 49 cadeiras de um cinema estão dispostas em fileiras e colunas. Sé há 7 fileiras, quantas são as colunas?

Situações relacionadas à combinatória

Os sete anões se vestem todos com calças marrons e camisetas de cores diferentes. Se cada um emprestar ao outro suas camisetas, quantas combinações diferentes serão possíveis para cada um deles?

SÍNTESE DOS PROBLEMAS MATEMÁTICOS

Para a boa formulação de uma situação-problema de cunho matemático, faz-se necessário, portanto:

  • Conhecer os alunos e seus prévios conhecimentos;
  • Buscar atitudes autônomas e a valorização das estratégias pessoais de resolução, bem como sua troca com os demais colegas da classe;
  • O educador deve planejar sua intervenção no ato da resolução e da troca. Esta deve ser ativa, objetiva e instigadora;
  • O educador pode e deve nortear seus alunos para que compreendam e utilizem as boas estratégias desenvolvidas pelos seus colegas de classe;
  • Os problemas devem superar o óbvio. Devem ser criativos, reais ou fictícios, e até bem humorados.
  • Os problemas devem variar em suas situações didáticas.

Há, ainda, três aspectos que dependem do aluno e que podem ser incentivados pelo educador:

  • A vontade: o aluno precisa estar motivado, disponível para buscar solução para o problema;
  • A necessidade: o sentido, a significação do que se quer alcançar é fundamental para uma boa aprendizagem;
  • A possibilidade: a tarefa a ser desenvolvida tem que ser possível de se resolver com o mínimo de controle do adulto, buscando superar a heteronomia em busca da autonomia (Piaget, 1977).

 

Conclusões

Acredita-se que a utilização de problemas matemáticos se enquadra perfeitamente como recurso de grande validade quando o professor investe na atividade participativa e consciente do aluno. Quando o mesmo observa sua diferenciação em relação aos exercícios de fixação mecânica, tais como listas de cálculos (arme e efetue, por exemplo) e proporciona situações desafiadoras ao aluno. Quando o professor tem claro seu papel de mediador do diálogo que se estabelece no momento da resolução e no momento em que se compartilham as estratégias, as quais são legitimadas pelo grupo de alunos e, posteriormente, generalizadas. Olhar investigativamente a prática do aluno é premissa do professor-pesquisador que busca ampliar seu olhar reflexivo e também o de seu aluno.

 

Referências bibliográficas

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Notas

G.S. Jacobik
Endereço para Correspondência: Rua Gonzaga, 225, Casa 41, Parque Rincão, Cotia, SP 06705-485, Brasil.
E-mail para correspondência: guijacobik@ig.com.br.

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