SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.15 número2Pensamento e linguagem em crianças com síndrome de Down: um estudo de caso da concepção das professorasComo se aprende? Estratégias, estilos e cognição índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.15 no.2 Rio de Janeiro ago. 2010

 

Estudo de Caso

 

A estrutura sintática e semântica dos delírios de perseguição e de referência na esquizofrenia paranóide: um estudo de caso

 

The syntactic and semantic structures of persecution delirium and reference in paranoid schizophrenia: a case study

 

 

Wasney de Almeida Ferreira

Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

 

 


Resumo

O objetivo deste trabalho foi analisar o discurso delirante de um portador de esquizofrenia paranóide, buscando caracterizar a estrutura sintática e semântica dos delírios de perseguição e de referência, que são característicos nesse subtipo de esquizofrenia. Tendo em vista que a linguagem reflete, pelo menos em partes, a estrutura e o funcionamento do sistema conceptual, o discurso delirante do participante foi gravado e transcrito para análise de corpus. Utilizando-se como referencial teórico as teorias da metáfora cognitiva e da mesclagem conceptual, foi possível compreender não somente os delírios de referência e de perseguição, mas também as alucinações auditivas e as interpretações delirantes. Apesar de não ter sido encontrado comprometimento na estrutura sintática (na relação entre sujeito, verbo e complemento), foi possível identificar uma recorrente ambiguidade semântica nos processos de referenciação. Esses achados, nesse primeiro momento, parecem ser característicos da esquizofrenia paranóide, uma vez que esse subtipo de esquizofrenia apresenta menor comprometimento da personalidade e da inteligência. © Cien. Cogn. 2010; Vol. 15 (2): 228-238.

Palavras-chave: linguística; metáfora; psicanálise; psicologia; psicopatologia.


Abstract

The goal of this project was to analyze the speech of a patient with delusional paranoid schizophrenia; in order to identify the syntactic structure and semantics of delusions of persecution and reference, which are characteristic of this subtype of schizophrenia. Given that language reflects, at least in part, the structure and functioning of the conceptual system this made it possible to map the participant's delusional speech, which was then recorded and transcribed for analysis corpus. Using this transcription as the basis for cognitive theories of metaphor and conceptual blending it was possible to not only understand the reference and delusions of persecution but identify specific auditory hallucinations and delusional interpretations. The speech, despite not having been found impaired in syntactic structure (the relationship between subject, verb and complement) led us to identify an applicant semantic ambiguity in the processes of identification. These findings, in this first instance, appear to be characteristic of paranoid schizophrenia, since this subtype of schizophrenia has less involvement of personality and intelligence. © Cien. Cogn. 2010; Vol. 15 (2): 228-238.

Keywords: linguistics; metaphor; psychoanalysis; psychology; psychopathology.


 

 

Revisão de literatura

A esquizofrenia é considerada como a mais devastadora das doenças mentais, pois seu início é precoce e seus sintomas podem ser destrutivos para o paciente, para sua família e amigos (Kaplan et al., 1997). Apesar de ser tratada como uma única doença, a esquizofrenia é, na verdade, uma categoria diagnóstica diversificada, que inclui sintomas mais ou menos semelhantes. Sendo assim, tornam-se necessários novos estudos que tenham por finalidade a caracterização dos subtipos de esquizofrenias, o que possibilitaria melhores tratamentos. A nosologia psiquiátrica (que é uma área da psiquiatria que busca classificar, nomear e categorizar as doenças mentais) busca agrupar as esquizofrenias conforme as suas sintomatologias. Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais [DSM-IV-RT] (Associação Psiquiátrica Americana, 2002), os sintomas característicos das esquizofrenias, abordados de uma forma generalista, são, a saber:

  • Delírios;
  • Alucinações;
  • Discurso desorganizado (frequente descarrilamento ou incoerência);
  • Comportamento acentuadamente desorganizado ou catatônico;
  • Sintomas negativos (isto é, embotamento afetivo, alogia ou abulia).

Para o diagnóstico da esquizofrenia, pelo menos dois dos quesitos acima devem estar presentes por uma porção significativa de tempo durante um período de um mês (ou menos, se tratado com sucesso). Além desses sintomas característicos (Critério A), o diagnóstico da esquizofrenia deve levar em consideração a disfunção social\ocupacional (Critério B), a duração (Critério C), a exclusão de transtornos esquizoafetivo e do humor (Critério D), a exclusão de substâncias\condição médica geral (Critério E) e, por fim, a exclusão da relação com um transtorno global do desenvolvimento (Critério F). Em suma, o DSM-IV-TR (2000) é um manual internacional de nosologia, que contém a nomenclatura oficial utilizada por psiquiatras e profissionais de saúde mental em diversas regiões do mundo.

A esquizofrenia, enquanto uma categoria nosológica vasta, apresenta basicamente cinco subtipos: o paranóide, o desorganizado, o catatônico, o residual e o não-diferenciado (Rotondo, 1998). Os traços psicopatológicos característicos do subtipo desorganizado são a fala e o comportamento desorganizados, com afeto incongruente ao conteúdo discursivo. Trata-se de indivíduos que sorriem sem uma causa clara, que choram quando deveriam ter sorrido, ou que produzem salada de palavras sem nenhuma coerência discursiva. Já no subtipo catatônico, os traços psicopatológicos característicos são de natureza psicomotora, como estereotipias, mutismo (ausência de fala) ou mesmo imobilidade motora. Trata-se de indivíduos que, em alguns casos, são capazes de permanecerem durantes horas em uma mesma posição, como se fossem verdadeiras estátuas. No subtipo residual, o indivíduo não apresenta mais sintomas positivos (como alucinações, delírios, fala e comportamento desorganizados), mas se percebe no sujeito a presença da continuação dos sintomas negativos (depressão, abulia, afeto raso). Trata-se de indivíduos que já tiveram pelo menos um episódio esquizofrênico, mas que no momento da entrevista clínica apresentam apenas sintomas reativos às crises anteriores. Os traços psicopatológicos essenciais do subtipo indiferenciado devem ser insuficientes para diagnosticar o enfermo como do subtipo paranóide, desorganizado ou catatônico. Trata-se de uma categoria de esquizofrenia mais genérica, em que nem sempre é possível classificar o enfermo de acordo com os critérios diagnósticos. Por fim, a esquizofrenia paranóide, objeto de estudo deste trabalho, ainda segundo o DSM-IV-TR (2000), deve apresentar os seguintes sintomas, a saber:

  • Preocupação com um ou mais delírios ou alucinações auditivas frequentes;
  • Nenhum dos seguintes sintomas é proeminente: discurso desorganizado, comportamento desorganizado ou catatônico ou afeto embotado ou inadequado.

As alucinações auditivas, apesar de serem encontradas em outros transtornos, são sintomas psicopatológicos característicos da esquizofrenia paranóide (Dalgalarrondo, 2000). Essas alterações da senso-percepção podem ser classificadas como verbais ou não-verbais, dependendo de sua natureza, e são sempre percepção sem objeto. O doente pode ouvir ruídos, barulhos de tiros, portas sendo arrombados, sons que não são ouvidos por outras pessoas, o que caracterizaria as alucinações auditivas não-verbais. Por outro lado, o doente também pode ouvir palavras isoladas, frases, enunciados e mesmo discursos complexos, vozes que não são ouvidas por outras pessoas, o que definiria as alucinações auditivas verbais. O portador de esquizofrenia paranóide, na grande maioria dos casos, diz que esses sons e vozes são produzidos por pessoas que desejam matá-lo ou arruiná-lo. Além dessas alucinações auditivas, que são percepções sem objeto, há também as interpretações delirantes, em que o doente ouve (ou vê) algo socialmente compartilhado, mas acaba fazendo uma interpretação bizarra. O doente pode, por exemplo, ver na televisão a reportagem de um criminoso sendo preso e, ao ouvir o repórter se referindo a uma terceira pessoa, pode ter a crença delirante de que a polícia também o deseja prender. A reportagem é um fato socialmente compartilhado, as pessoas de seu convívio confirmarão, mas a ideia de que a polícia deseja prendê-lo é delirante. Essas interpretações delirantes, bem como as alucinações auditivas, são vivenciadas pelo portador de esquizofrenia como fatos reais e verdadeiros.

Essa narrativa bizarra, o delírio, é tido como um transtorno do juízo de realidade e geralmente está relacionado com as interpretações delirantes e as alucinações auditivas (Jaspers, 1979). O indivíduo ouve esses sons e essas vozes e acredita, com certeza irremovível, que elas fazem referência a sua pessoa, e não a outra pessoa qualquer. Esses delírios de referência, que tem o Eu do doente como o foco discursivo, podem caracterizar os chamados delírios de perseguição, que possuem sempre um conteúdo persecutório. O doente, por exemplo, ouve barulhos e vozes (alucinação) e tem certeza de que está sendo perseguido e espionado por uma máfia, que o deseja assassinar por algum motivo (delírio). Além dos delírios de perseguição, também são bastante comuns os delírios de grandeza, em que o indivíduo acredita ser uma pessoa famosa, rica ou super especial. Porém, esses delírios, ao contrário dos delírios de perseguição, são menos comuns na esquizofrenia paranóide, pois o mais importante na paranóia é exatamente a crença delirante de estar sendo perseguido. Freud (1976a) diz que essa sensação persecutória, como no famoso Caso Schreber 1 , ocorre devido um conflito inconsciente, de ordem sexual, que acaba na cisão do Eu. Essa contraparte alienada do Eu, essencialmente homossexual, é expulsa do campo da consciência, por causar desprazer, e passa a ser percebida como um estranho que o persegue. Portanto, o perseguidor é, na verdade, o próprio Eu do doente, que se encontra cindido e projetado no mundo, com todas as características de um Outro. Nesse contexto, o delírio é tido como uma construção do sujeito, uma forma de reorganizar o aparelho psíquico, uma vez que a fala é uma das principais formas de (re)construção da realidade psíquica.

A estrutura dessas construções psicopatológicas, o delírio, pode ser classificada como simples, complexas, não-sistematizadas e sistematizadas (Dalgalarrondo, 2000). Os delírios sistematizados são característicos da esquizofrenia paranóide, pois são histórias bem ricas e consistentes, que mantêm ao longo do tempo seu conteúdo, o que não seria tão comum no subtipo desorganizado. Esses delírios, além de variarem conforme a sua complexidade e sistematicidade, são vivenciados pelo doente como uma convicção extraordinária, uma certeza praticamente absoluta, que não pode ser modificado pela experiência (Jaspers, 1979). Seu conteúdo delirante na maioria das vezes é impossível, bizarros por excelência, e sua produção é associal, uma vez que se trata de narrativas idiossincráticas. Enquanto a maioria das pessoas se adapta mais cedo ou mais tarde a realidade factual, mudando as suas narrativas e histórias em função dos fatos, o psicótico faz com que a realidade se molde a sua estrutura (pensamento derreista). Os delírios dos portadores de esquizofrenia paranóide, apesar de pouco prováveis, são menos bizarros que nos demais subtipos de esquizofrenia e, muitas vezes, são difíceis de serem identificados. Além disso, outra diferença importante está no fato de que a esquizofrenia paranóide apresenta melhores prognósticos quando comparado aos demais subtipos de esquizofrenia. Geralmente a personalidade e a inteligência do esquizofrênico paranóico são menos comprometidas (Kaplan et al., 2007), e isso seria um indício, a princípio, de que esse subtipo não apresenta comprometimento da estrutura sintática.

Tomando como referencial teórico a filosofia analítica da linguagem e a psicopatologia, Martins e colaboradores (1999) defendem a tese de que o pensamento psicótico, como no caso do esquizofrênico paranóico, é caracterizado pela quebra do processo habitual de referenciação. Esse é um conceito muito utilizado na linguística, é a forma como os indivíduos fazem referência, por meio da linguagem, aos objetos de mundo e/ou de discurso. Segundo esses autores, o psicótico está

"Impossibilitado de realizar a identificação e quantificação eficazes da realidade extralinguística via referência, o psicótico passa a fazer relações de identidade não só entre termos-sujeitos como também entre termos-predicados. Esse funcionamento empresta um caráter vago ao pensamento esquizofrênico. Fica prejudicado em designar com eficácia os objetos da realidade extralinguística e de assumir uma identidade simbólica plena". (Martins et al., 1999: 14)

Os autores entendem que o psicótico, ao utilizar a língua, não faz referência ao mundo extralinguístico da mesma forma que a maioria das pessoas. Devido esse problema no processo de referenciação, o esquizofrênico passa a ter um pensamento vago, pouco preciso, já que as palavras e enunciados não designam corretamente o mundo. Os autores fizeram uma análise do livro O Processo, de Franz Kafka, e constataram que a atmosfera paranóide presente na obra se dá devido ao uso indefinido do pronome Ele. Esse pronome pode fazer referência a uma pessoa, a uma empresa, a um objeto ou a um animal, e isso criaria uma sensação de indefinição, insegurança, medo e paranóia. Essa mesma ideia foi percebida pelos autores ao analisarem o discurso delirante de portadores de esquizofrenia, pois enquanto o elemento dêitico Ele se vincula ao perseguidor, o pronome Eu associa-se ao grandioso e o pronome Tu tendia a desaparecer na interlocução. Os delírios paranóides, dentro deste referencial teórico analítico, dão-se devido à indefinição das referencias dêiticas, especificamente com relação à categoria pessoa, como no caso do uso do pronome Ele (Martins e Costa, 2003).

O problema da psicopatologia e da filosofia da linguagem, aqui apresentados introdutoriamente, está no fato de que ambas partem de pressupostos ontológicos realistas e materialistas. Essas duas abordagens partem da ideia de que existe um mundo extralinguístico independe da linguagem, da cognição e da cultura, sendo a língua apenas uma forma de fazer referência ao mundo. Nesses contextos, as alucinações e os delírios são tidos como criações fantásticas e mirabolantes, moléstias do sistema nervoso central, ou transtornos no processo de referenciação. Portanto, não há um aprofundamento epistemológico e ontológico diante a complexidade da esquizofrenia, e ela continua sendo uma doença etiologicamente desconhecida (Kaplan et al., 2007). O objetivo deste trabalho, ora proposto, é analisar o discurso delirante de um portador de esquizofrenia paranóide, buscando caracterizar a sua estrutura sintática e semântica, a partir de um referencial cognitivo. Portanto, trata-se de um trabalho que busca introduzir, mesmo que de forma despretensiosa, a aplicação de modelos teóricos da Linguística Cognitiva à psicopatologia geral.

 

Metodologia

Os passos metodológicos que possibilitaram a análise da estrutura sintática e semântica do discurso delirante de um portador de esquizofrenia paranóide foram os seguintes, a saber:

Dados do participante

O participante, chamado aqui pelo pseudônimo de Roberto, tem 29 anos, é do sexo masculino, moreno claro, nível de escolaridade técnico e trabalha com projetos. Há aproximadamente seis anos teve seu primeiro surto e, desde então, faz acompanhamento psiquiátrico. Passou por cinco profissionais da área e foi, diante todos eles, diagnosticado como portador de esquizofrenia paranóide. A sua mãe, apesar de não conviver com o mesmo, também é portadora de esquizofrenia desde muito jovem. No dia da entrevista, faziam-se aproximadamente duas semanas que Roberto ouvia vozes. Essas alucinações auditivas (ou interpretações delirantes) sempre faziam referência a sua pessoa. A sua medicação antipsicótica (SEMAP - 20mg por semana), que tem como propósito abolir as alucinações e os delírios, estava gradativamente perdendo o efeito.

Coletas de corpus e transcrição da fala

Os dados linguísticos para análise foram extraídos de uma entrevista realizada com Roberto em plena atividade delirante. Pediu-se ao participante que falasse sobre as vozes que estava ouvia nas duas ultimas semanas. A entrevista foi de aproximadamente 6 (seis) minutos. A única pergunta realizada pelo entrevistador foi "fale um pouco mais sobre isso". Essa atitude teve como propósito a busca de uma maior neutralidade. Toda a fala de Roberto foi gravada e transcrita conforme as normas de transcrição abaixo (Preti, 1999: 224):

 

Ocorrências

Sinais

Exemplificação

Prolongamento de vogal e consoante

:::

O que eu gostaria de dizer é::: que fique calmo.

Qualquer pausa

...

São três razões... primeiro a fome... segundo o desemprego.

Entonação enfática

LETRAS MAIÚSCULAS

CALE A BOCA... vão para os seus lugares... AGORA.

Desvio temático

- - - -

O jantar estava ótimo - - a missa já deve ter acabado - - a luz do banheiro está acessa.

Citação de terceiros

" "

O Mauro disse assim... "eu quero ser astronauta aos dezoito anos".

Nomes próprios e siglas

Iniciais Maiúsculas

João da Silva estuda na UFMG.

OBS: Os processos anafóricos são marcados pelas letras (i), (j), (k), (l) etc. Exemplo: João(i) é muito sapeca. Ele(i) é muito bagunceiro. Já Maria(j) é boazinha. Ela(j) é muito obediente.

Tabela 1 - Normas para transcrição de entrevista gravada.

 

Análises de corpus

O referencial teórico utilizado durante toda a pesquisa e, sobretudo, durante a análise de corpus foi o movimento em Ciências Cognitivas chamado de Linguística Cognitiva (Evans e Green, 2006; Geeraerts e Cuyckens, 2007). Essa abordagem, se assim se pode dizer, parte da hipótese de que a linguagem reflete, pelo menos em partes, a estrutura e o funcionamento do sistema conceptual. Portanto, analisando-se a fala de Roberto, sua estrutura sintática e semântica, foi possível inferir o seu funcionamento cognitivo em plena atividade delirante. As teorias utilizadas dentro da Linguística Cognitiva foram as teorias da Metáfora Cognitiva (Lakoff e Johnson, 1980; Lakoff, 1995; Kövecses, 2002, 2006) e as teorias da Mesclagem Conceptual (Fauconnier e Turner, 2002).

 

Termos de consentimento

Roberto aceitou participar desta pesquisa e, junto aos seus familiares responsáveis, após recobrar o seu estado de consciência, por meio da medicação anti-psicótica, assinaram o Termos de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

Resultados

Os delírios identificados no discurso de Roberto podem ser classificados como sistematizados e complexos, de natureza persecutória e de grandeza. As narrativas são bastante ricas e sistematizadas, apesar de socialmente não compartilhadas, com progressiva construção de sentido ao longo dos anos. O período pré-surto (prodrômico) estabelece a ocasião para a retomada de eventos ocorridos nos surtos anteriores. Por exemplo, a recaída devido à perda de efeito da medicação estabelecia a ocasião para que Roberto lembra-se de eventos ocorridos na época em que teve outros surtos. Novos elementos eram introduzidos no delírio e, a cada surto, a história ganha dimensões cada vezes mais complexas, tomando um caráter gradativamente bizarro.

[;1]; UAI... pelo que eu(i) ouvi... o vizinho(j) ali falou que "o Arnold Schwarzenegger(k) achou ele(i, j) muito INTELIGENTE... achou ele(i, j) -- que pelo NÍVEL... por ele(i, j) ter NASCIDO NO BRASIL... pelo que ele(i, j) JÁ PASSO... ele(i, j k) achou ele(i, j):: EXTRAORDINÁRIO... achou ele(i, j):: super... INTELIGENTE... o Stalone(l) acho ele(i, j, k, )... um tipo DIFERENTE... um tipo... INTERESSANTE".

Nesse fragmento de discurso [1], assim como nos demais, não foram percebidos alterações da estrutura sintática, mas sim dos aspectos semânticos. As relações dos constituintes oracionais (sujeito, verbo, objeto e complemento) encontram-se dentro do padrão do português brasileiro. Porém, no que se refere aos processos semânticos, sobretudo aos aspectos de referenciação, percebeu-se algumas alterações. Notou-se que Roberto fazia referência a si mesmo, ao seu Eu, por meio da terceira pessoa do singular (Ele). Por exemplo, ao invés de falar Arnold Schwarzenegger achou-me [me achou] muito inteligente, acabava dizendo Arnold Schwarzenegger achou ele muito inteligente. Além disso, notou-se que isso se relacionava a uma ambiguidade semântica, pois não se é possível saber se o elemento anafórico ele, na primeira linha, retoma o antecedente vizinho ou o próprio narrador, Roberto. Afinal, Schwarzenegger achou o vizinho ou Roberto muito inteligente? Quem Stalone achou um tipo diferente e interessante?

Essa estrutura ambígua, presente nos processos de referenciação, foi encontrada em uma série de relatos. Todas as vezes que Roberto relatava as suas histórias delirantes, os mesmos fenômenos semânticos se repetiam.

[;2]; Há umas::: duas noites atrás eu(i) ouvi um cara(j) falando que:::... "se ele(i, j) sair na rua tá morto"... aí então eu(i) já identifiquei que é comigo(i)... porque::: com os problema que eu(i) tenho... eu(i):: achei que::: que o vizinho(j) ai do fundo tá falando se eu(i) sair na rua eu(i) to morto.

Nesse fragmento de discurso [;2];, mais uma vez, percebe-se que o elemento anafórico ele retoma o antecedente cara e, ao mesmo tempo, faz referência ao Eu de Roberto. Quem tá morto se sair na rua: o vizinho ou Roberto? Tendo em vista essa ambiguidade semântica, que só pode ser resolvida em contexto, foi-se possível identificar as metáforas conceptuais envolvidas nesses processos de construção de sentido. As expressões metafóricas ele, sublinhadas no fragmento de discurso [1] e [2], deixam claro que uma coisa (ele) estava sendo dita e compreendida em termos de outra (eu e me). Substituindo-se as expressões metafóricas ele pelos pronomes de primeira pessoa (eu ou me), foi-se possível identificar a mesclagem conceptual entre os espaços mentais EU e ELE.

 

Figura 1

Figura 1 - Mesclagem conceptual entre os espaços mentais ELE e EU.

 

No espaço genérico, tem-se o pronome, o corpo, a mente, a fala, a personalidade, o nome, a profissão, que caracterizam genericamente uma pessoa qualquer no mundo. Cada indivíduo tem o seu próprio corpo, sua própria mente e personalidade, sua fala, que geralmente não se confundem com a de ninguém. Quando um indivíduo fala, é o Eu que fala, pensa e se comporta, pois o Eu experiência o mundo através de um corpo, de um papel social, de uma personalidade que é sua. No espaço input 1 (ELE), tem-se o vizinho, a expressão de uma outra pessoa singular no mundo, pois o vizinho possui o seu próprio corpo, sua própria mente e personalidade, sua fala que é produzida por sua própria pessoa. Quando o vizinho fala e Roberto ouve, é o Ele que fala, pois o vizinho possui um corpo, uma mente, uma personalidade que é relativa à sua pessoa, e a mais de ninguém. No espaço input 2 (EU), tem-se o Roberto, pois este possui o seu próprio corpo, sua mente, fala e personalidade, que deveria ser somente sua, e mais de ninguém, mas que se encontra alienada: ao utilizar o espaço mental ELE como forma de organização do espaço mental EU, emerge no espaço mescla, um Outro, um cara, falando que se ele sair na rua ta morto.

[3] O cara(i) -- os dois rapazes(j) falaram... "ah:: ele(k)... olha a cara dele(k)... cara esquisito(k) né?... de onde esse cara(k) deve ter vindo?... É::: parece que é russo(k)... mas um russo diferente(k) né?... Um russo asiático(k)... misturado com russo europeu(k)... cara de mongolóide(k)... esquisito(k)"... (l) não sei o quê... ai eu(l) achei que era comigo(l).

Ao ouvir o pronome pessoal Ele, seja em qualquer contexto (em casa, dentro do ônibus, no cabeleireiro ou na rua) Roberto tem grande probabilidade de compreender o EU em termos de ELE e, dessa mescla, emerge um CARA. Independente dessas vozes serem reais, alucinação auditiva ou interpretação delirante, a presença do Ele no discurso estabelece a ocasião para a construção de delírios de referência. O pronome possessivo Dele, por relação de acarretamento, também estabelece a ocasião para que Roberto compreenda esse DELE em termos de MEU. Esses processos semânticos ambíguos aqui apresentados parecem ser característicos da esquizofrenia paranóide, uma vez que esses delírios de referência e de perseguição são muitos comuns nesse subtipo de esquizofrenia.

 

Discussão

A esquizofrenia paranóide, pelo menos nesse estudo de caso, parece não estar relacionada ao comprometimento da estrutura sintática, mas sim dos processos semânticos. Tendo em vista que a fala reflete, pelo menos em partes, a estrutura e o funcionamento do sistema conceptual, a ausência de comprometimentos sintáticos sugere boa estruturação cognitiva. Esses resultados estão de acordo com a literatura, uma vez que o subtipo paranóide apresenta menor comprometimento da personalidade e da inteligência (Kaplan et al., 2007). Apesar de não apresentar comprometimento da estrutura sintática, a ambiguidade semântica presente nos processos de referenciação parece ser característica da esquizofrenia paranóide. Ao utilizar o espaço mental ELE como forma de organização do espaço mental EU emergia no espaço mescla um CARA, com características de um perseguidor. Porém, de onde provem esse significado persecutório e perverso da paranóia sendo que Roberto nunca teve problemas com a justiça nem mesmo comportamentos agressivos?

Numa perspectiva psicanalítica, esse Outro seria, na verdade, uma parte alienada do Eu de Roberto que se encontra projetada no mundo externo, devido conflitos psíquicos de ordem inconsciente, e que passa a ser percebido como um estranho (Freud, 1976b). Essa parte alienada do Eu que é percebida como um estranho, o Outro, teria um caráter perverso devido à consciência moral imposta pelo Super-Eu. Esta instância psíquica, que tem como propósito reprimir e censurar as pulsões inconscientes, sobretudo de ordem sexual, pode adotar uma postura sádica diante o próprio Eu. Poder-se-ia, grosso modo, dizer que o perseguidor é o próprio Eu alienado de Roberto que se encontra personificado na forma sádica do Super-Eu, que busca afastar da consciência tudo aquilo que é tido como imoral. Essas afirmações psicanalistas seriam parcialmente verdadeiras, uma vez que a compreensão e a conceptualização do EU, como demonstram os resultados, ocorre de fato em termos de ELE. Como uma parte do EU de Roberto encontra-se "fora" de sua mente e de seu corpo, essa parte alienada é percebida e conceptualizada como um CARA, isto é, como um ELE.

Porém, esse pressuposto psicanalítico, da alienação do Eu, não está absolutamente correto, uma vez que ele não explica toda a complexidade das alucinações e dos delírios de perseguição e de referência. Como pode uma alucinação auditiva ter a voz de uma mulher, sendo que Roberto é do sexo masculino? Como pode uma alucinação ter as suas próprias características linguísticas como entonação e prosódia? Se as alucinações fossem manifestações de um Eu alienado, elas deveriam ter muitas coisas em comum com Roberto e deveriam, em algum momento, se manifestar no comportamento dele. Seria no mínimo antiético dizer que Roberto é inconscientemente homossexual ou um assassino perigoso (alienação do Eu), uma vez que ele não tem história de agressão e se diz ser enfaticamente heterossexual. Cabe relembrara que essas alucinações não estão sobre o controle de Roberto, pois elas são vivenciadas como agentes, isto é, tratam-se de um Outro que fala e se comporta com controle da ação.

Numa perspectiva filosófica analítica e psicopatológica, esse significado paranóico advém da vagueza semântica presente nos processos linguísticos de referenciação, no caso do elemento dêitico Ele. Esse pronome pessoal do caso reto (Ele) pode fazer referência a qualquer objeto-de-mundo, como uma pessoa do sexo masculino, um animal ou objeto, e essa vagueza levaria Roberto a certa dúvida, insegurança, medo e, por consequência, paranóia. A filosofia analítica e a psicopatologia, além de salvaguardarem a tese da vagueza do pronome Ele, defendem a teses de que as alucinações são percepções sem objeto, o que significa que as "vozes" ouvidas por Roberto são criações de uma mente doente. Portanto, os transtornos psicóticos, pelo menos na esquizofrenia paranóide, não estariam relacionados ao comprometimento dos aspectos sintáticos, mas sim dos processos de referenciação.

Essas afirmativas psicopatológicas e analíticas estão parcialmente corretas, uma vez que o pronome ELE, como demonstram os resultados, estabelecia a ocasião para que Roberto construísse delírios de referência. Por exemplo, se duas pessoas estavam dentro de um ônibus conversando sobre uma terceira pessoa, Roberto ouvia essa conversa e tinha certeza irremovível de que elas faziam referência a sua pessoa, e não a outra qualquer. Porém, esses pré-supostos psicopatológicos e analíticos, assim como o psicanalítico, também não explicam toda a complexidade das alucinações auditivas e da paranóia. Se Roberto e o Cara (perseguidor) fossem sinônimos, como pré-supõe a psicanálise, deveria haver uma relação de acarretamento entre Roberto e o Cara, e vice-versa. O cara deveria possuir, conter, as características semânticas de Roberto e Roberto, por sua vez, deveria conter as características semânticas do perseguidor, e ambas as palavras deveriam fazer referencia a um mesmo objeto de mundo (sinonímia). Porém, como foi explicitado nos resultados, o significado perverso não pertence ao espaço mental do EU de Roberto, mas se trata de uma propriedade emergente que aparece só no espaço da mescla.

 

Conclusões

A esquizofrenia paranóide, como deve ter ficado explicito, é um transtorno mental extremamente complexo, que, além de apresenta as suas características peculiares, precisa ser problematizada ontologicamente. Nem a psicanálise nem a filosofia analítica, que influenciam toda psicopatologia, pensam na possibilidade de haver, de fato, um ser volitivo, um agente que age com controle da ação nas alucinações. A Psicologia Transpessoal defende a tese de que alguns casos que são tidos como psicopatológicos na psiquiatria são, na verdade, crises espirituais relatadas em várias culturas (Grof e Grof, 1992: 9). Nesse contexto, a alucinação seria a percepção de uma realidade outra que só pode ser acessada durante estados de consciência alterados, como estados meditativos e êxtase profundo, mas que sofre influência da subjetividade do indivíduo. Portanto, o perseguidor não é algo puramente imaginário ou psicopatológico, mas se trata realmente de um ser, de um Outro, que por motivos diversos e variados persegue a pessoa para vingar-se. A paranóia propriamente dita, de natureza psicopatológica, surge na medida em que o sujeito não sabe lidar com essas percepções extraordinárias e acaba, por consequência, generalizando a sensação de perseguição. Concluindo este trabalho, porém, a única conclusão que se gostaria de reforçar é a de que a esquizofrenia paranóide parece não envolver comprometimentos sintáticos, mas sim semânticos, e que isso garantiria melhores prognósticos.

 

Referências bibliográficas

Associação Psiquiátrica Americana (2002). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais DSM-IV-TR. 4ª ed. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Dalgalarrondo, P. (2000). Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Evans, V. e Green, M. (2006). Cognitive Linguistics. Edinburgh: Edinburgh University Press.         [ Links ]

Fauconnier, G. Turner, M. (2002). The way we think: conceptual blending and the mind's hidden complexities. New York: Basic Books.         [ Links ]

Freud, S. (1976a). Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranóia - o Caso Schreber. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. XII. Rio de Janeiro: Imago Editora.         [ Links ]

Freud, S. (1976b). O estranho. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago Editora.         [ Links ]

Geeraerts, D e Cuyckens, H (org.) (2007). The Oxford Handbook of Cognitive Linguistics. Oxfor University Press.

Grof, S. e Grof, C. (org.) (1992). El Poder Curativo de Las Crisis. Barcelona: Kairós.         [ Links ]

Jaspers, K. (1979). Psicopatologia Geral. Rio de Janeiro: Atheneu.         [ Links ]

Kaplan, H.; Sadock, B. e Greeb, J. (1997). Compêndio de Psiquiatria, Ciências do Comportamento e Psiquiatria Clínica. 7ª ed.. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Kaplan, H.; Sadock, B. Greeb, J. (2007). Compêndio de Psiquiatria, Ciências do Comportamento e Psiquiatria Clínica. 9ª Ed. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Kövecses, Z. (2002). Metaphor: A Practical Introduction. New York: Oxford University Press.         [ Links ]

Kövecses, Z. (2006). Metaphor in Culture: Universality and Variation. New York: Cambridge University Press.         [ Links ]

Lakoff, G. e Johnson, M. (1980). Metaphors We Live By. Chicago.         [ Links ]

Lakoff, G. (1995). The contemporary Theory of Metaphor. Em: Ortony, A. Metaphor and Thought. (pp. 202-251). Cambridge: Cambridge University Press.         [ Links ]

Martins, F.; Costa, A.; Aquino, A. (1999). A referência e o pensamento psicótico. Psicol. Reflex. Crit., 12 (2), 537-548.         [ Links ]

Martins, F.; Costa, A. (2003). Quem são eles?. Psic. Teor. Pesq., 19 (1), 91-96.         [ Links ]

Preti D. (org) (1999) O discurso oral culto. 2ª. Ed. São Paulo: Humanitas Publicações.         [ Links ]

Rotondo, H. (1998). Manual de Psiquiatría. 2ª Ed. Perú: Universidad Nacional Mayor de San Marcos.         [ Links ]

 

 

Agradecimentos

Agradecemos a professora e orientadora Ulrike Schröder, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pela orientação desse trabalho.

 

Notas

Wasney de Almeida Ferreira
E-mail para correspondência: waf.ufmg@gmail.com.

(1) Schreber, apesar de não ter sido paciente de Freud, mas sim do médico Flechsig, era um psicótico que apresentava delírios de se tornar mulher e de copular com Deus. Foi deste estudo de caso que emergiu a ideia de que a esquizofrenia paranóide estaria relacionada com a homossexualidade inconsciente e reprimida.

Creative Commons License