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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.15 no.3 Rio de Janeiro dez. 2010

 

Ensaio

 

O corpo segundo Merleau-Ponty e Piaget

 

The body according to Merleau-Ponty and Piaget

 

 

Maria Elisa Mattos Pires Ferreira

Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, São Paulo, Brasil

 

 


Resumo

O tema deste ensaio é o corpo em Merleau-Ponty e Piaget. O trabalho visa trazer à luz o que estes cientistas pensavam sobre o corpo e sua relação com a aprendizagem humana. Usando uma pesquisa bibliográfica, verificamos que para Merleau-Ponty a essência da subjetividade e a essência do corpo estão ligadas à existência do mundo, enquanto que a aprendizagem está intimamente ligada ao movimento: para a criança, mover-se é pensar. No entanto, para Piaget, descobrimos que a relação entre mente e corpo é colocada em termos de um paralelismo entre a psique e o físico: o corpo é uma parte do mundo dos objetos e está sujeito às regras da causalidade, enquanto a mente é uma unidade formal que está sujeita à lei formal da necessidade. Piaget, por sua vez, reduz a noção de aprender a adquirir novos conhecimentos, resultantes da interação sujeito - meio ambiente, diferenciando-a do desenvolvimento da inteligência, o que corresponderia a todas as estruturas de conhecimento que foram construídas. © Cien. Cogn. 2010; Vol. 15 (3): 047-061.

Palavras-chave: corpo; aprendizagem; Merleau-Ponty; Piaget.


Abstract

The theme of this study is the body per Merleau-Ponty and Piaget. The study aims to highlight what these scientists thought about the body and its relationship with the human learning. Using a bibliographic research, we see that for Merleau-Ponty the essence of the subjectivity and the essence of the body are linked to the existence of the world, while learning is deeply linked to movement: for a child, moving means thinking. However, for Piaget, we find out that the relationship between the mind and the body is placed in terms of a parallelism between the psyche and the physical: the body is a part of the world of objects and is subject to the rules of the causality, while the mind is a formal unit that is subject to the formal law of necessity. Piaget, in his turn, reduces the notion to learn to acquire new knowledge, resulting from subject interaction - environment, differentiating it from the development of the intelligence, what would correspond to all the knowledge structures that were built. © Cien. Cogn. 2010; Vol. 15 (3): 047-061.

Keywords: body; learning; Merleau-Ponty; Piaget.


 

 

Introdução

O presente texto caracteriza-se como um ensaio acadêmico cuja tese principal é a de que conhecer as ideias de corpo expressadas por Maurice Merleau-Ponty1 e por Jean Piaget2 em seus trabalhos é de fundamental importância para aqueles que se dedicam aos estudos da aprendizagem humana, particularmente os educadores. Tendo como tema ocorpo para Merleau-Ponty e Piaget, as ideias aqui defendidas serão trabalhadas a partir da ótica da Fenomenologia.

Entendemos que não haja nada mais apropriado hoje do que nos voltarmos para a matéria em questão, visto existirmos numa sociedade que tem o corpo como um de seus signos.3 Para confirmarmos esse fato, basta que visitemos as bancas de revistas, onde certamente encontraremos um sem número de publicações direcionadas ao corpo humano e, de modo particular, às maneiras de mantê-lo em forma. Outra corroboração que poderemos ter está na quantidade de salões de cabeleireiros e de academias de ginástica que existem em praticamente a cada quadra que percorremos. Mesmo que façamos uma investigação bem superficial, não será difícil verificarmos que o culto ao corpo movimenta sobremaneira a nossa economia: somente a indústria de cosméticos investe, anualmente, bilhões de dólares pesquisando e produzindo materiais de beleza cada vez mais eficazes;4 novas clínicas médicas e de estética surgem cotidianamente disponibilizando tratamentos de emagrecimento ou cirurgias plásticas.

Porém, a preocupação que a nossa espécie tem com o corpo não é exclusiva do nosso tempo nem é recente. O que é recente é a forma como o vemos e o tratamos. Na verdade, a cada momento histórico, a relação do ser humano com seu corpo tomou diferentes caráteres, como procuraremos mostrar neste ensaio. Em tal contexto, perguntamo-nos: até que ponto os educadores têm a oportunidade de se voltarem para o estudo da representação que eles próprios têm de corpo? O que eles conhecem a respeito das ideias que pensadores tão importantes para a Educação externaram sobre o corpo e a aprendizagem humanas?

No intuito de contribuir com os educadores e buscando aclarar a acepção de corpo para Merleau-Ponty e para Piaget, realizamos uma pesquisa de cunho bibliográfico que demandou inicialmente a iluminação de alguns conceitos, quais sejam: os de corpo, corporeidade, cognição e organismo.

Sabemos que nosso projeto envolve uma tarefa inesgotável e, diante das possibilidades existentes, entendemos que o que aqui apresentamos é algo bem introdutório, mas mesmo assim cremos que poderá colaborar com os que buscam informações relativas ao tema, de modo particular com os que nele se iniciam. Pelo fato de trabalharmos numa linha fenomenológica, estamos conscientes de que aquilo que aqui expomos é apenas uma das infinitas perspectivas que o fenômeno apresenta, restando-nos a empreitada de continuar investigando.

Por termos a esperança de que o presente texto possa ser de serventia para os educadores em geral e para os que se dedicam à psicopedagogia, cujo interesse recai na compreensão do processo da aprendizagem, foi que optamos por dedicar uma atenção particular às ideias de Maurice Merleau-Ponty e de Jean Piaget a respeito do corpo humano. Ressaltamos, entretanto, que o que neste trabalho consta é uma simples abertura para o tema e que caberá aos interessados se aprofundarem nos aspectos que mais os interessarem.

Com a intenção de tornar o texto didático, abordaremos inicialmente o que se nos iluminou ao procurarmos compreender o significado dos termos corpo, corporeidade, cognição e organismo, a seguir, faremos um breve mergulho na história do Ocidente a fim de nos cientificarmos de como o corpo humano foi percebido ao longo do tempo e, finalmente, apresentaremos algumas das principais ideias que Merleau-Ponty e Piaget expressaram sobre o corpo e sua importância para a aprendizagem humana.

 

Corpo, corporeidade, cognição? Corpo ou organismo?

Antes de buscarmos compreender como nossos antepassados percebiam seus corpos, cremos ser necessário clarear os significados que atribuímos, neste documento, aos termos corpo, corporeidade, cognição e organismo. Foi com tal objetivo que direcionamos nossa atenção para as ideias de Platão e de Aristóteles, visto ser inegável a influência que esses filósofos exerceram (e exercem) no pensamento cristão e em toda a civilização ocidental, da qual fazemos parte. O que nos foi possível constatar é que, mesmo que a vida no mundo helenístico não tenha ocorrido conforme as ideias platônicas ou aristotélicas, o que delas herdamos foi o que ficou registrado em antigos documentos e nestes o termo corpo, contrapondo-se ao de mente, faz referência ao que é biologicamente dado (Vieira e Baggio, 2004). Quanto à palavra mente, averiguamos que em Português significa fundamentalmente intelecto, pensamento, entendimento, espírito (Ferreira, 2009).

Embora Platão e Aristóteles pensassem de formas diversas, podemos encontrar em ambos a tendência de atribuir ao corpo valor secundário e à mente, primazia. É o que podemos identificar numa das passagens do texto Política, de Aristóteles :

"Há uma espécie humana de indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o é em relação à alma, ou a fera ao homem; são os homens nos quais o emprego da força física é o melhor que deles se obtém. Partindo dos nossos princípios, tais indivíduos são destinados, por natureza, à escravidão." (Aristóteles, 2010: I, c.2,.§ 13)

Em Platão, por outro lado, encontramos:

"Vou dizer-te. É uma coisa bem conhecida dos amigos do saber, que sua alma quando foi tomada sob os cuidados da filosofia, se encontrava completamente acorrentada a um corpo e como que colada a ele; que o corpo constituía para a alma uma espécie de prisão, através da qual ela devia forçosamente encarar as realidades, ao invés de fazê-lo por seus próprios meios e através de si mesma; que, enfim ela estava submersa em uma ignorância absoluta. E o que é maravilhoso nesta prisão, a filosofia bem o percebeu, é que ela é obra do desejo, e quem concorre para apertar ainda mais as suas cadeias é a própria pessoa." (Platão, 1999: 82d-83a)

Essa visão dominou a civilização ocidental durante centenas de anos, contudo, a partir do século XX, ideologias que supervalorizam o físico começaram a se sobrepor aos pensamentos legados por Platão e Aristóteles; nessa nova condição, os investimentos sobre o mesmo cresceram a ponto de se mostrarem exacerbados.

Também no século XX, despontou no âmbito da filosofia outra concepção de corpo, que não o tomava como inferior à mente e também não lhe atribuía um valor exagerado; devemos principalmente a Maurice Merleau-Ponty (1999) tal modo de entendê-lo. Segundo esse pensador, o homem precisa ser apreendido não apenas enquanto corpo material, mas principalmente enquanto um fenômeno corporal, ou seja, enquanto expressividade, palavra e linguagem. Somos movimento, gesto, expressividade, presença. Merleau-Ponty denominou esta compleição de corporeidade (Merleau-Ponty, 1999). Com esse termo, fomos remetidos a novos conceitos de ser humano e de corpo, bastante diversos dos que herdamos dos antigos gregos e bem distantes da idolatria do físico. O ponto de vista merleau-pontyano carrega consigo o juízo de que somos presenças ativas no mundo, forçando-nos a ultrapassar a ideia de que seríamos objetos passivos à mercê da História.

Seguindo o raciocínio do fenomenólogo francês, diríamos que a corporeidade corresponde a uma representação que criamos em nossa mente, por meio da qual percebemos nossos corpos e, principalmente, os compreendemos. Como nos coloca Galante (2001), o conceito de corporeidade está profundamente associado ao de corpo, mas vai além dele porque toma o ser humano como uno, suplantando o entendimento de homem fragmentado em corpo e mente.

Quanto à cognição, sabemos que as investigações sobre a natureza do conhecimento tiveram início no século IV antes de Cristo quando Platão fundou, na Antiga Grécia, uma escola de filosofia para difundir as ideias de Sócrates. Quando a psicologia se separou da filosofia, a cognição passou a ser investigada a partir de diversos pontos de vista. Atualmente, podemos defini-la como o ato ou processo de conhecer, que envolve atenção, percepção, memória, raciocínio, juízo, imaginação, pensamento e linguagem (Ferreira, 2009). De acordo com tal definição, a cognição ultrapassa em muito o ato de adquirir conhecimentos e, consequentemente, a capacidade de melhor nos adaptarmos ao meio.

Na perspectiva que adotamos, a cognição é um processo pelo qual o indivíduo interage com seus semelhantes e com o meio em que vive, sem perder a sua identidade existencial, transformando tudo o que capta e percebe, e em seu modo interno de ser. Dessa forma, ela se inicia com a captação realizada pelos sentidos a qual é seguida da percepção; em sequência, o percebido é "gravado" no organismo sob forma de memória, juntando-se a conteúdos já incorporados ou compondo novas cognições (Godoy, 2006).

Resta-nos, agora, explicitar o que entendemos por organismo. Citando Grossi (1990), podemos dizer que:

"Demos o nome de organismo ao conjunto de órgãos que nos constituem, à nossa bagagem genética, ao que nos faz fisicamente distintos dos demais. O organismo é a instância onde memorizamos o que aprendemos, onde criamos automatismos. Por que escrevemos rapidamente? Porque criamos esquemas automáticos que nos permitem fazer isto; e isto está no organismo." (Grossi, 1990: 48)

Contudo, para entendermos melhor o significado de organismo, afirma Grossi (1990), precisamos confrontá-lo com o conceito de corpo:

"Mas, qual é a diferença entre o organismo e o corpo? Uma mão é organismo enquanto estiver simplesmente sendo vista como um pedaço de alguém. No momento em que fizer um gesto de adeus ou um gesto de OK, já não é mais organismo; trata-se de uma manifestação do corpo. O corpo é a forma como o organismo atua. Pode-se comparar o organismo a uma tela e o corpo, à imagem que a inteligência e o desejo projetam sobre essa tela." (Grossi, 1990: 48)

Agora, esclarecidos os significados que atribuímos, neste documento, aos termos corpo, corporeidade, cognição e organismo, busquemos compreender como nossos antepassados percebiam seus corpos.

 

A percepção do corpo ao longo do tempo

Hoje em dia, entre as diversas possibilidades de se abordar o corpo, nós podemos constatar que ele se nos apresenta como objeto de pesquisa, como um enigma a ser decodificado, como uma fronteira a ser transposta; isto ocorre porque a cada tempo ele é apreendido conforme a relação que por seu intermédio o ser humano estabelece com o mundo. A História nos mostra que para a nossa espécie, desde seus primórdios, o corpo foi elemento fundamental à própria sobrevivência, haja vista necessidade de correr, caçar, competir que o homem primitivo tinha (tem) para sobreviver (Moraes, 2009).

Na Pré-história e nos inícios da História, somente os indivíduos portadores de corpos fortes e sadios estavam aptos a conseguirem seu sustento diário. Por meio de seus corpos, expressavam-se e interagiam com a natureza; até mesmo "as relações sociais eram construídas e consolidadas pelo corpo" (Gonçalves, 1994: 18). Contudo, a importância que nossos ancestrais lhe davam não se restringia à sobrevivência, é o que nos revelam os estudos acerca da arte primitiva: nela, o corpo humano se apresentava como a expressão máxima das atividades artísticas. Em seus trabalhos, nossos antepassados procuravam destacar sua beleza e superar seus medos; pintando e cobrindo seus corpos com adereços, faziam rituais nos quais se transformavam em outras entidades, numa demonstração de que acreditavam que uma mudança estética pudesse gerar mudança interior (Silva, 2010)5

Mergulhando no tempo, verificamos que por volta de 2.500 anos a.C. os gregos, ao buscarem a perfeição, atribuíam à estética e ao físico o mesmo grau de importância que atribuíam ao intelecto. Na Antiguidade Clássica, gregos e romanos buscavam o aperfeiçoamento do corpo e, por meio das competições esportivas, não apenas deixavam transparecer sua admiração por um físico forte e bem modelado como preparavam os jovens para o exercício do poder.6 Vencer uma competição representava, além da superioridade física, ser admitido como um membro superior de seu grupo social (Gonçalves, 1994).

Também foi com os gregos que despontou a visão do corpo como obstáculo ao crescimento da alma. Sócrates, ao defender a ideia de corpo perecível e alma imortal, introduziu no pensamento ocidental os elementos que viriam produzir, posteriormente, a visão dicotomizada do ser humano (Gallo, 1997). A dicotomia defendida por Sócrates, porém, não era plena, porque seu pensamento ainda se assentava no conceito de Physis, antiga filosofia da natureza que englobava o ente em sua integridade (Ferreira, 1991).

Segundo essa filosofia, herdada dos pensadores pré-socráticos, a matéria é o fundamento perene de tudo o que existe e é ela que garante tanto a coesão quanto a estabilidade do Universo, embora este se mostre múltiplo, inconstante e efêmero em sua exterioridade. Por isso, na concepção socrática, a ideia de Physis se aproximava da ideia de natureza, mas não no sentido que hoje atribuímos a tal termo, pois fazia referência à realidade primária, opondo-se à realidade secundária; em outras palavras: a Physis (natureza) abrangia o que cresce, o que se desenvolve, enquanto a Techne se referia àquilo que é fabricado. Podemos dizer que o barro procede da Physis, enquanto o tijolo, da Techne. Assim, na visão socrática, o corpo (ou matéria) tinha um lugar próprio e como a natureza era concebida em estreita relação com o espiritual, entendia-se que haveria uma harmonia entre o espiritual e o natural (Oliveira, 2010).

Platão, discípulo de Sócrates, reforçou o pensamento do mestre, mas introduziu um dado novo e perturbador: viu no corpo um obstáculo à evolução da alma. Para ele, o corpo seria um cárcere que impediria o acesso da alma ao nível ideal perfeito (Gallo, 1997).

Com o advento do Cristianismo, corpo e alma foram assumidos como elementos irreconciliáveis. Em decorrência desse entendimento, ficaram em oposição: natureza e espírito, intelecto e sensibilidade, razão e paixão. Diferentemente dos povos primitivos, que admitiam os deuses e os elementos superiores inseridos na própria natureza, os cristãos entendiam que a dimensão espiritual não poderia ser apreendida pela dimensão material. Tal visão introduziu entre os europeus a dicotomia corpo-espírito (Oliveira, 2010).

No decurso da Idade Média, essa dicotomia robusteceu-se. Graças aos dogmas religiosos e ao ressurgimento do platonismo, a concepção de corpo corrupto e pecaminoso que dificultava o desenvolvimento da alma se reacendeu. O corpo, em especial o feminino, passou a ser percebido como fonte de pecado e tratado com toda a severidade exigida pelo clero (Oliveira, 2010). Dessa forma, os medievais se tornaram pessoas reprimidas, buscando constantemente dominar seus impulsos individuais (Pelegrini, 2004).

No entanto, com a passagem do tempo, ocorreu o progresso dos meios de produção agrícola e de transporte, resultando no crescimento do comércio entre os feudos e no nascimento de respeitáveis núcleos mercantis, os quais acabaram se configurando em importantes centros urbanos. Essas modificações provocaram o declínio da Idade Média7 e geraram as condições necessárias para que, tempos depois, surgisse a indústria moderna (Pelegrini, 2004).

As transformações sofridas pela sociedade ocidental durante o Renascimento promoveram a valorização do trabalho e, ao mesmo tempo, levaram os seres humanos a focarem em si próprios suas preocupações. Essa situação fez nascer o interesse pelas atividades físicas, que se apresentaram como um possível caminho para a educação social do homem (Goellner, 1997). Na nova ordem surgida, os ideais clássicos de perfeição física e espiritual do ser humano reapareceram e os ares renascentistas abriram espaços para a chegada da Modernidade. Assim, no século XVI, influenciados pelo renascimento italiano, os europeus passaram a se relacionar tensamente com o corpo: de um lado, permanecia a rigidez moral, a noção de pecado; de outro, reaparecia a admiração do corpo nu, visto como belo (Vasconcellos et al., 2004)

A partir do século XVII, as transformações ocorridas no modelo de produção capitalista ocasionaram uma profunda alteração nas relações entre o ser humano e seu trabalho, o qual começou a ser percebido como uma mercadoria, algo a ser vendido. Com a Revolução Industrial (século XVIII), por causa da divisão técnica das tarefas, o trabalhador perdeu a ligação afetiva que até então possuía com a sua própria produção. Estabeleceu-se, assim, um tipo de relação trabalhista na qual o trabalho se transformou em mero ato fisiológico, privado de criação (Gonçalves, 1994).

No campo filosófico, junto com as mudanças socioeconômicas do século XVIII, surgiu o movimento Iluminista.8 Com ele, reapareceram a depreciação do corpo e a dicotomia entre ele e a alma, que a Antiguidade Clássica havia inaugurado. O Iluminismo negou a experiência sensorial, reduzindo a importância do corpo. Concomitantemente, devido à necessidade de dominar e de se manipular o corpo, o ser humano passou a ser visto como passível de ser modelado e explorado (Pelegrini, 2004).

Após a Revolução Francesa, ocorrida no final do século XVIII, o corpo ganhou outro tipo de evidência na vida do homem ocidental.

"De acordo com o psicólogo Fernando de Almeida Silveira, doutor em Filosofia e professor da Universidade Federal de São Paulo, com a queda da aristocracia européia, a burguesia foi se autoafirmando por meio de uma nova relação corpo-essência. 'Se os nobres tinham suas origens genealógicas como diferencial, a burguesia passou a desenvolver a noção de um corpo disciplinado, saudável e longevo para se destacar tanto da aristocracia decadente quanto do proletariado promíscuo e desregrado'." (Firace, 2010)

Já no século XIX, com a expansão do capitalismo, surgiram outras formas de se perceber o corpo, isto porque a difusão do modo de produção industrial tornou necessária sua instrumentalização e as tecnologias de produção em massa provocaram a uniformização de gestos e de costumes, que se estendeu para além do universo das fábricas e atingiu todos os espaços sociais (Hobsbawm, 1996). Entretanto, não podemos nos esquecer de que o desenvolvimento da sociedade industrial possibilitou um grande progresso técnico-científico, o qual permitiu à burguesia o uso de técnicas e de práticas sobre o corpo anteriormente sequer imaginadas. Entre os fatores que concorreram para a disseminação das interferências sobre o corpo estão a ampliação da expectativa de vida e os novos meios de comunicação (Pelegrini, 2004).

Historicamente, o que constatamos é que a relação estabelecida entre a sociedade e o corpo humano, particularmente na sociedade capitalista, fundamentou-se na perspectiva do controle, envolvendo repressão e punição. No século XX, o domínio da sociedade sobre o corpo permaneceu, mas houve uma inversão na forma de exercê-lo: passou a se dar por meio do hedonismo, isto é, a repressão sexual foi substituída pela liberalização da sexualidade, pela busca desenfreada do prazer (Cavalcanti, 2005). Como diz Foucault (1979: 147): "Como resposta à revolta do corpo, encontramos um novo investimento que não tem mais a forma de controle repressão, mas de controle estimulação, fique nu, mas seja magro, bonito e bronzeado!". Esse novo modo de dominar o corpo é identificado por Cavalcanti (2005) como uma ideologia produtora de um tipo específico de alienação.

No decorrer do século XX, o desenvolvimento da ciência também contribuiu para a mudança de percepção do corpo. Nesse desenvolvimento, encontram-se as descobertas decorrentes da biologia, da genética, da medicina que permitiram o surgimento do paradigma de um corpo pós-orgânico (Cavalcanti, 2005). Empregando os novos conhecimentos e os recentes recursos tecnológicos, o corpo tornou-se modelável e remodelável conforme os desejos do sujeito. Fala-se de um corpo pós-orgânico porque a tecnologia desenvolvida tornou possível colocar ou trocar partes dele empregando materiais inorgânicos.

Seguindo esse percurso histórico, chegamos ao século XXI quando encontramos um imaginário de beleza física estabelecido pela indústria da moda e divulgado pelos meios de comunicação. Possuir um corpo segundo esse imaginário transformou-se numa verdadeira obsessão. Entretanto, em tal contexto de corpolatria, cremos que para nós, educadores,

"(....) o ideal é pensarmos o corpo como objeto da educação, ou seja, é reconhecer que o conhecimento emerge do corpo a partir das experiências vividas. Experiências que estão relacionadas tanto com a autonomia do corpo quanto com a sua dependência com o meio, com a cultura e com a sociedade em que vive." (Florentino e Florentino, 2007)

É o que veremos no próximo tópico, quando abordaremos a percepção de corpo tomando por base as ideias de estudiosos que muito contribuíram para que melhor compreendêssemos a relação entre o corpo e o aprender, entre o corpo e o conhecimento. Começaremos abordando o pensamento de Maurice Merleau-Ponty.

 

A perspectiva merleau-pontyana

Para falar da relação corpo e cognição numa perspectiva psicopedagógica, principiaremos abordando alguns elementos do pensamento do fenomenólogo francês Maurice Merleau-Ponty a respeito desse tema. Tal opção deve-se ao seu particular modo de entender à vinculação corpo-mente: em primeiro lugar, por defender a tese de que a consciência objetiva não é o nosso único modo de acessar a realidade, uma vez que o corpo é fonte de conhecimento; a seguir, por ter invertido o ponto de partida da união entre o corpo e a mente - enquanto seus antecessores e contemporâneos tomavam a consciência como o elemento responsável por criar o elo inicial entre eles, Ponty, reconceituando corpo, afirmou que seria este a origem da referida ligação (Merleau-Ponty, 1999).

De acordo com o estudioso francês, o corpo e o mundo são constituídos da mesma matéria, mas é o corpo que nos possibilita perceber o mundo e tudo o que nele há; é o corpo, igualmente, que nos permite realizar as operações mentais, fantasiar, desejar e atribuir significados aos acontecimentos, inclusive efetuar escolhas e tomar decisões. Conforme suas próprias palavras:

"A cada instante também eu fantasio acerca das coisas, imagino objetos ou pessoas cuja presença aqui não é incompatível com o contexto e, todavia eles não se misturam ao mundo, eles estão adiante do mundo, no teatro do imaginário." (Merleau-Ponty, 1999: 5)

Não é difícil de se perceber o quanto as ideias de Merleau-Ponty sobre o corpo são valiosas para nós, educadores. Entendemos que conhecer seu trabalho é imprescindível para que possamos compreender o pensamento herdado do século XX, particularmente o que diz respeito à importância do corpo e sua relação com a aprendizagem.9 Entre os pontos de fundamental interesse para os que se dedicam à compreensão da aprendizagem humana destaca-se sua tese de que a vinculação entre alma/mente e corpo não ocorre devido a um elo artibrário entre dois elementos separados, o objeto e o sujeito. Para ele, esse vínculo é contínuo, acontece a todo momento da nossa existência.

Insatisfeito com os pontos de vista dos filósofos e dos cientistas de sua época e desejoso de combater o intelectualismo e o empirismo então reinantes, Merleau-Ponty (1999) passou a defender a existência de uma consciência situada e concreta. Superando as ideias racionalistas, que admitem corpo e pensamento como elementos independentes e conferem primazia à dimensão intelectual, viu o primeiro como fonte legítima e originária do conhecimento. Num movimento concomitante, mas em outra direção, procurou demonstrar que estavam equivocadas as correntes psicológicas ancoradas nas ideias de John Locke, as quais admitiam ser a percepcão resultado de sensações atômicas. Para Ponty, a percepção é ativa e representa a primeira abertura do ser ao mundo da vida, também designado de Lebenswelt.

Nessa perspectiva, conhecer não poderia ser aceito como uma atividade mental ou racional que ocorre independentemente do corpo, isto é, dele descolada. A tese merleau-pontyana é de que cabe à vivência propiciada pelo corpo dar acesso à subjetividade. Como nosso corpo é pleno de subjetividade e encontra-se perpassado pela historicidade, podemos chegar ao conhecimento e tomar decisões na vida. É ele o responsável pela tomada de consciência de tudo o que nos rodeia, ou seja, "... não estou no espaço e no tempo, não penso o espaço e o tempo; eu sou no espaço e no tempo, meu corpo aplica-se a eles e os abarca" (Merleau-Ponty, 1999: 95). Graças à mediação do corpo, nossas experiências são classificadas e organizadas; trata-se de um processo cujo início ocorre antes mesmo de sermos capazes de operar a linguagem.

Merleau-Ponty, convencido da impossibilidade de dicotomizarmos interior/exterior, bem como a realidade em geral, propõe que tomemos a sensibilidade e a percepção como elementos básicos do processo de significação do mundo e da existência humana. Segundo ele, a reflexão e a existência são presença do ser no mundo, cuja expressividade o corpo permite e inaugura. Ao abordar essa questão, afirmou: "trata-se precisamente de mostrar que a filosofia não pode mais pensar segundo esta clivagem: Deus, o homem, as criaturas" (Merleau-Ponty, 2003: 245).

Ao negar as dualidades sujeito-objeto, corpo-alma, Merleau-Ponty, ultrapassando as visões de sua época, posicionou nosso corpo anteriormente à nossa experiência externa - em outras palavras, só somos capazes de entender, sentir, pensar, porque nossos corpos nos proporcionam vivências. Assim, a perspectiva que temos do mundo deriva das experiências pelas quais nosso corpo passa. Continuando a acompanhar o pensamento de Merleau-Ponty, poderíamos dizer que o modo como projetamos nossas existências, nelas incluídas as relações que mantemos com nossos semelhantes, é que constitui o tempo e, nesse processo, vamos construindo sentidos para nossa vida e para o mundo. Empregando o corpo, conhecemos o mundo e graças a ele a realidade externa se amalgama ao nosso ser, constituindo-o. Em síntese, para Ponty, nós não temos um corpo: somos corpos.

"O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade não 'habita' apenas o 'homem interior', ou, antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece. Quando volto a mim a partir do dogmatismo do senso comum ou do dogmatismo da ciência, encontro não um foco de verdade intrínseca, mas um sujeito consagrado ao mundo." (Merleau-Ponty, 1999: 6)

O corpo humano, juntamente com a realidade externa, é a base da consciência; por essa razão, há um inseparável vínculo existencial entre o sujeito conhecedor e suas circunstância (Merleau-Ponty, 1999). Desse modo, o nosso corpo mostra-se como elemento vital para a constituição da nossa consciência e meio de comunicação entre ela e o mundo, enquanto a experiência motora se caracteriza como um modo de acessarmos o mundo.

"O corpo é nosso meio geral de ter um mundo. Ora ele se limita aos gestos necessários à conservação da vida e, correlativamente, põe em torno de nós um mundo biológico; ora, brincando com seus primeiros gestos e passando de seu sentido próprio a um sentido figurado, ele manifesta através deles um novo núcleo de significação: é o caso dos hábitos motores da dança. Ora enfim a significação visada não pode ser alcançada pelos meios naturais do corpo; é preciso então que ele construa um instrumento, e ele projeta em torno de um mundo cultural." (Merleau-Ponty, 1994: 203)

Partindo do estudo da percepção, Merleau-Ponty (1999) concluiu que o corpo humano não é apenas um objeto estudado pela ciência; ele é condição e base para a existência. De nosso corpo tanto depende a nossa percepção do mundo quanto a própria criação desse mundo. Entre consciência e corpo existe, assim, uma junção impossível de ser desfeita. Por compreender fenomenologicamente o ser humano, o vê como resultado de uma ligação dialética e inseparável da mente com o corpo; por isso, torna-se impossível se estabelecer alguma lei a respeito deles se os tomarmos separadamente.

Na perspectiva merleau-pontyana, deveremos pensar e experimentar um modo de existir entendendo o corpo e seus atributos como elementos fundamentais para a construção do saber humano, pois eles são formas de acesso ao mundo não menos legítimas do que a consciência reflexiva, o pensamento objetivo.

Quanto à aprendizagem, ela está intimamente ligada ao movimento: para a criança, mover-se é pensar. O aprender somente ocorre por meio de um corpo dotado de propósitos, aptidões físicas, intelectuais e afetivas, que está inserido num meio social que lhe proporcione os estímulos e os conteúdos com os quais interagirá e, dessa forma, o sujeito apreenderá novos instrumentais e novas linguagens, transformando a realidade e adquirindo aptidões para lidar consigo mesmo e com o mundo (Merleau-Ponty, 1999).

 

A perspectiva piagetiana

Piaget e Merleau-Ponty são dois pensadores cujas ideias divergem em várias questões, mas também apresentam intersecções interessantes para aqueles que lidam com a educação e a aprendizagem. Inicialmente, é curioso saber que Piaget, em 1952, foi quem substituiu Merleau-Ponty na cadeira de Psicologia e Pedagogia na Sorbonne, quando o segundo assumiu a Cátedra de Filosofia no Collège de France. Por ocasião desse acontecimento, despontou uma discussão entre os adeptos da fenomenologia e os da epistemologia genética (Coelho Junior e Carmo, 1991).

Um dos pontos do debate estava no fato de Merleau-Ponty haver criticado o pensamento de Piaget quanto à lógica infantil. Sem querer desmerecer a contribuição piagetiana para a ciência, Merleau-Ponty entendia que não seria possível se estudar a criança deixando-se de levar em conta questões fundamentais como a história, os afetos, os fenômenos da linguagem e da comunicação que a envolviam (Merleau-Ponty, 1999).

Entretanto, mesmo respeitando a crítica merleau-pontyana à teoria desenvolvida por Piaget, não é possível não nos rendermos ao imensurável aporte que este estudioso deu à Ciência, até porque sua primeira preocupação relacionava-se com a forma como o conhecimento surge no ser humano. Ao se dedicar ao trabalho que o consagrou, o investigador suíço norteava-se por questões epistemológicas que podem ser sintetizadas em: Como chegamos a conhecer algo? Como os seres humanos constróem o conhecimento?

Por trás dessas questões, denota-se que sua intenção última era a de descobrir como o ser humano chega ao pensamento formal. Segundo o próprio Piaget, o objetivo da Epistemologia Genética seria o de "(...) pôr a descoberto as raízes das diversas variedades de conhecimento, desde as suas formas mais elementares, e seguir sua evolução até os níveis seguintes, até, inclusive, o pensamento científico" (Piaget, 1978: 3).

A premissa basilar do pensador genebrino era que unicamente uma visão desenvolvimentista do conhecimento conseguiria responder a questões para as quais a filosofia especulativa não possuía respostas. Apoiando-se em tal convicção, construiu uma teoria alicerçada na ideia de que os seres humanos passam por transformações ordenadas e previsíveis, mas ressalta que não é a cronologia em si que caracteriza esses estágios:

"Para que haja estágios é necessário primeiramente que a ordem de sucessão das aquisições seja constante. Não a cronologia, mas a ordem de sucessão. Podemos caracterizar os estágios numa população dada por uma cronologia, mas essa cronologia extremamente variável; ela depende da experiência anterior dos indivíduos e não somente de sua maturação, e depende principalmente do meio social que pode acelerar ou retardar o aparecimento de um estágio, ou mesmo impedir sua manifestação." (Piaget, 1978: 235)

Para realizar o trabalho investigativo a que se dispôs realizar, Piaget elegeu algumas categorias básicas de pensamento (tempo, espaço, causalidade e quantidade) e partindo delas, procurou explicar porque as crianças, dependendo do desenvolvimento que atingiram, não conseguem compreender certos conteúdos. Essa elucidação piagetiana causou profundos desdobramentos no campo da pedagogia, pois à medida que os educadores passaram a conhecer as possibilidades que seus educandos possuem frente à fase do desenvolvimento humano em que se situam, podem organizar atividades e vivências adequadas às suas condições existenciais. É o que afirma Lima (1980):

"Aceitar o ponto de vista de Piaget, portanto, provocará turbulenta revolução no processo escolar (o professor transforma-se numa espécie de 'técnico do time de futebol', perdendo seu ar de ator no palco). (...) Quem quiser segui-lo tem de modificar, fundamentalmente, comportamentos consagrados, milenarmente (aliás, é assim que age a ciência e a pedagogia começa a tornar-se uma arte apoiada, estritamente, nas ciências biológicas, psicológicas e sociológicas). Onde houver um professor 'ensinando'... aí não está havendo uma escola piagetiana!" (Lima, 1980: 131)

O fio condutor do raciocínio piagetiano foi a interação organismo-meio (que neste estudo estamos nos permitindo interpretar como a interação corpo-meio), que ocorre a partir de dois processos simultâneos: a organização interna e a adaptação ao meio, funções exercidas pelo organismo/corpo ao longo da vida.

Ao elaborar a teoria psicogenética, Piaget buscou explicitar quais as modificações qualitativas por quais passa a criança, desde o estágio sensório-motor, que ocorre nos dois primeiros anos de vida e no qual se manifesta uma inteligência prática, até o estágio operatório formal, caracterizado pelo pensamento lógico-dedutivo e que passa a existir a partir da adolescência. Nesse processo, o pensamento vai ganhando complexidade e abrangência, possibilitando que o sujeito compreenda objetos do conhecimento cada vez mais diversos e abstratos.Como a sua intenção era a de descrever os processos subjacentes à construção do conhecimento, começou pontuando a diferença entre inteligência e pensamento. Em sua perspectiva, a inteligência deve ser entendida como a capacidade construída pelo sujeito para solucionar um problema novo para si; via-a como a coordenação dos meios para atingir um objetivo não atingível de modo imediato; quanto ao pensamento, concebia-o como inteligência interiorizada, cujo apoio não estaria na ação direta, mas em um simbolismo, evocado pela linguagem ou por imagens mentais.

Analogamente a Merleau-Ponty, Piaget rejeitou o conhecimento como algo herdado (visão inatista) e também como resultado de registros de percepções e informações (visão empirista). Para ele, o conhecimento resulta das ações e interações do sujeito com o ambiente onde vive. Nessa perspectiva, percebeu o corpo como elemento integrante do mundo objetal, submetido às leis físicas que o regem. Quanto à mente, tomou-a como uma unidade formal, que obedece à lei da necessidade formal. Desse modo, para o pensador suíço, é a causalidade que pode elucidar os fatos que ocorrem no corpo, enquanto o imperativo lógico é que tem condições de explicar as ocorrências mentais.

No que diz respeito ao conhecimento, afirma que este procede de ações sensório-motoras, resultando de uma construção que começa a ser elaborada na mais tenra infância. Essa construção somente é possível por meio da interação do sujeito com aquilo que procura conhecer, seja objeto do mundo físico ou do mundo da cultura. Ao contrário do que muitos acreditam, Piaget não desprezou os fatores sociais no desenvolvimento intelectual, pois eles causam desequilíbrio e são promotores da construção do conhecimento. É nas trocas de valores com o meio que o indivíduo vai aprendendo a pensar por si mesmo.

Em última instância, o conhecimento surge da ação, na qual também se acham presentes tanto a inteligência quanto a aprendizagem. Seguindo o raciocínio piagetiano, fica-nos claro que o conhecimento é construído e sua origem se acha num tempo da vida humana no qual o indivíduo e o mundo formam uma unidade; ele ainda não está capacitado a distinguir seu próprio corpo do meio que o rodeia. O seio da mãe ou um objeto que agarra se lhe apresentam como um prolongamento de si próprio. Em sua percepção, tudo o que existe forma um todo indiferenciado, logo não se pode ainda falar de conhecimento.

"O mundo exterior é uma série de quadros movediços que aparecem, desaparecem, donde os mais interessantes podem reaparecer quando se procede desajeitadamente... Mas esses são apenas quadros movediços sem substancialidade, sem permanência e, principalmente, sem localização." (Piaget, 1978: 217)

Em tal situação, a primeira função que necessariamente terá que ser realizada por ele, indivíduo, é a de estabelecer a distinção entre si mesmo e o mundo. Trata-se de um processo que se desdobra ao longo dos dois anos iniciais da vida do bebê e envolve o emprego das ações reflexas que ele traz ao nascer. À medida que opera sobre o meio, manipulando os objetos, o sujeito vai construindo a noção de espaço e as de relações causais. Ao final da fase sensório-motora (aproximadamente aos 24 meses) a noção geral de espaço se estabelece, subordinando as demais. O corpo adquire o papel de um objeto igualmente a todos os objetos que rodeiam a criança (Piaget, 1978).

É nesse momento do desenvolvimento e graças às atividades sensório-motoras que tem início a função simbólica, isto é, a possibilidade de representar um elemento por outro. A função simbólica se faz presente nos jogos, na imitação indireta (que ocorre por meio de gestos), na imitação interiorizada (que se dá por meio de imagem mental), mas principalmente na linguagem.

Pelo exposto, podemos verificar que, para Piaget, o corpo tem papel essencialmente ativo na construção de suas próprias estruturas e é por meio dessa atividade que também são construídas as estruturas mentais.

"A idade de 7 a 8 anos, em média, assinala um fato decisivo na elaboração dos instrumentos de conhecimento: as ações interiorizadas ou conceituadas com as quais o sujeito tinha até aqui de se contentar adquirem o lugar de operações enquanto transformações reversíveis que modificam certas variáveis e conservam as outras a título de invariantes." (Piaget, 1978: 18)

O que se pode verificar é que no pensamento piagetiano a relação entre mente e corpo é explicada em termos de um paralelismo entre a psique e os processos físicos. Essa constatação decorre do fato de Piaget posicionar o corpo como elemento integrante do mundo objetal, sujeito às regras da causalidade e, ao mesmo tempo, conceber a mente como uma unidade formal e, desse modo, obedecendo à lei da necessidade formal, que é a implicação.

 

Considerações finais

Concluímos este texto constatando que a pesquisa que fizemos foi bastante produtiva porque pôde nos desvelar quão importante é o tema corpo para os educadores de modo geral.

Ao longo da investigação, configurou-se-nos que a preocupação com o corpo não é exclusividade do nosso tempo, pelo contrário, é tão antiga quanto a presença humana na Terra; o que é recente é a forma como o estamos vendo e o estamos tratando. Pudemos averiguar que a cada momento histórico, a relação do ser humano com seu corpo tomou diferentes caráteres.

No transcurso da pesquisa, tivemos a oportunidade de elucidar os significados de corpo, organismo, corporeidade e cognição e compreender como o corpo foi percebido pelos nossos antepassados e por dois grandes pensadores do século XX: Maurice Merleau-Ponty e Jean Piaget.

Constatamos que nosso projeto associa-se a uma tarefa inesgotável e, por isso, o que pudemos trazer à luz é bastante introdutório, embora possa contribuir com os que procuram conhecimentos relativos ao tema, particularmente com os neófitos. Baseadas na Fenomenologia, foi-nos possível constatar que aquilo que se nos desvelou foi apenas uma das incontáveis perspectivas que a questão carrega, por isso, a investigação terá que continuar...Ao visitarmos os escritos de Merleau-Ponty e de Piaget a respeito do corpo, descobrimos aspectos muito importantes para os que desejam compreender como se dá o processo da aprendizagem.

Vimos que para Merleau-Ponty, a essência da subjetividade encontra-se ligada tanto à essência do corpo quanto à essência do mundo, porque nossa existência como subjetividade é uma e a mesma que nossa existência como corpo e com a existência do mundo, pois o sujeito que somos é inseparável do corpo e do mundo.

Quanto às ideias de Piaget, apoiadas na noção de interação, foram organizadas em uma teoria revolucionária na medida em que trouxeram uma nova concepção de organismo/corpo. De acordo com a teoria piagetiana, a adaptação do ser humano ao meio ocorre por meio d.  ação, elemento responsável pela interação organismo/corpo-meio. A relação entre mente e corpo é vista por Piaget como um paralelismo entre a psique e os processos físicos. Por um lado, o corpo integra o mundo objetal e, dessa forma, obedece às regras da causalidade. Por outro lado, a mente é uma unidade formal e, assim, segue a lei da necessidade formal, ou seja, a implicação.

Nossa esperança e nosso desejo é que o trabalho que desenvolvemos e que aqui apresentamos seja útil para a melhoria da qualidade da Educação nacional.

 

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Notas

Maria Elisa Mattos Pires Ferreira
Endereço para correspondência: Rua Radamés Gonçalves de Freitas, 84, São Paulo, SP05.353-090.
E-mail para correspondência: elisamattos@terra.com.br

(1) Maurice Merleau-Ponty (1908-1961): filósofo fenomenologista francês, cuja obra tornou-se uma das mais expressivas contribuições ao método da Fenomenologia. É considerado um pensador moderno importante pela contribuição ao estudo do mecanismo psicológico que baseia o conhecimento e a prática científica.

(2) Jean Piaget (1896-1980): renomado psicólogo e filósofo suíço, conhecido por seu trabalho pioneiro no campo da inteligência infantil. Especialista em Psicologia Evolutiva e Epistemologia Genética.

(3) Signo é uma coisa que representa outra, seu objeto. Ele só pode ser aceito como signo se tiver o poder de suscitar uma coisa diversa de si mesmo. (Cf. Santaella, 1983)

(4) "Mesmo com a crise econômica no ano passado, essa indústria bateu recorde e cresceu 14,7%, com uma receita de R$ 24,97 bilhões, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos no Brasil (Abihpec). Descontando a inflação no período, o crescimento foi de 11,8%. Para este ano, com a retomada da economia, as empresas esperam um avanço real de até 12% e acreditam que o Brasil tem grandes chances de superar o Japão e se transformar no segundo maior mercado mundial, atrás apenas dos Estados Unidos." A Gazeta do Povo. Domingo, 15/08/2010. Retirado em 15/08/2010, no World Wide Web: http://www.gazetadopovo.com.br/economia/conteudo.phtml?tl=1&id=995971&tit=Brasil-sera-o-segundo-maior-mercado-de-cosmeticos.

(5) Texto retirado da internet, sem indicação da data e sem a numeração das páginas. Essa é a situação de todos os textos em que não aparece a data de publicação ou a numeração das páginas.

(6) Não confundir a forma como o povo em geral tratava o corpo com a que alguns filósofos, entre os quais Sócrates, Platão e Aristóteles, pensavam deste, como veremos a seguir.

(7) O período em questão pode ser referenciado como Renascimento, Renascença ou Renascentismo. Embora os estudiosos não tenham chegado a um consenso sobre a cronologia relativa a esse período, havendo variações consideráveis nas datas conforme o autor, é possível admiti-lo entre fins do século XIII e meados do século XVII. O período em questão foi denominado de Renascimento. em virtude da redescoberta e da revalorização das referências culturais da antigüidade clássica, que nortearam as mudanças deste período em direção a um ideal humanista e naturalista.

(8) Este movimento surgiu na França do século XVII e defendia o domínio da razão sobre a visão teocêntrica que dominava a Europa desde a Idade Média. Segundo os filósofos iluministas, esta forma de pensamento tinha o propósito de iluminar as trevas em que se encontrava a sociedade.

(9) Compreender o pensamento do século XX é imprescindível para que compreendamos o pensamento e as ocorrências deste início do século XXI.