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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.15 no.3 Rio de Janeiro dez. 2010

 

Revisão

 

Pragmatismo e cognição: self, mente, mundo e verdade na teoria pragmática do conhecimento

 

Pragmatism and cognition: self, mind, world and truth in the pragmatic knowledge theory

 

 

Gilbert Cardoso Bouyer

Instituto de Ciencias Exatas e Aplicadas (ICEA), Departamento de Engenharia de Produção, (DEENP), Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Joao Monlevade, Minas Gerais, Brasil

 

 


Resumo

O presente artigo discute os fundamentos e pressuposições pragmáticas frequentemente usados para compreensão dos fenômenos cognitivos. Discutindo os conceitos de self, mente mundo e verdade, marcos teórico-epistemológicos das ciências cognitivas, o texto aponta implicações de tais conceitos de acordo com uma teoria pragmática do conhecimento. A abordagem do pragmatismo pode ser vista como uma espécie de pluralismo antes que um monismo ou um dualismo (como cognitivismo) porque há muitos caminhos emergentes no qual as coisas são definidas ou constituídas como úteis em diferentes situações. Um tema comum ligando diferentes abordagens pragmáticas à cognição é a mudança no modo como a relação pessoa/ambiente é concebida. Ao invés da pessoa estar inserida em um ambiente, as atividades da pessoa e do ambiente são vistas como partes de um todo mutuamente construído. Simplesmente, a relação dentro/fora entre pessoa e ambiente é substituída pela relação parte/todo. Vista desta forma, a cognição não mais é o espelho do mundo, mas sim parte de um processo natural envolvendo hábitos evolucionários bem sucedidos e capacidades. Cognição e mundo são mutuamente moldados. © Cien. Cogn. 2010; Vol. 15 (3): 164-179.

Palavras-chave: ciências cognitivas; pragmatismo; teoria do conhecimento.


Abstract

This paper discusses pragmatics fundamentals and assumptions often used for the understanding cognitive phenomena. Discussing the concepts of self, mind, world and truth in the pragmatism, the theoretical-epistemological marks of cognitive sciences, it points out implications of such concepts according to a pragmatic knowledge theory. A pragmatic approach can be seen as a species of pluralism rather than a monism or a dualism (like cognitivism) because there are many emergent ways in which things are defined or constituted as useful in different situations. A common theme uniting many pragmatism approaches to cognition is a shift in the way the person/environment relationship is conceived. Rather than a person being "in" an environment the activities of person and environment are viewed as parts of a mutually-constructed whole. Put simply, the inside/outside relationship between person and environment is replaced by a part/whole relationship. Viewed in this way, cognition is no longer a mirror of world but part of a natural process involving evolutionarily successful habits and capabilities. Cognition and world are mutually shaping. © Cien. Cogn. 2010; Vol. 15 (3): 164-179.

Keywords: cognitive sciences; pragmatism; knowledge theory.


 

 

Introdução

A realidade é conhecida na experiência. O pragmatismo adota uma atitude anti-dualista e anti-idealista ao conferir primazia à experiência e à ação sobre o ser e o pensamento. Nas ciências da cognição contemporâneas, destacam-se as ideias do pragmatismo em teorias e artefatos que priorizam a ação e a experiência no mundo do cotidiano (p.ex. inteligência artificial, neurociência, psicologia cognitiva). Neste texto, veremos como os princípios do pragmatismo de James e Dewey impregnam as ciências cognitivas contemporâneas, principalmente no combate aos dualismos e na sua superação (matéria-espírito; mente-corpo; pensamento-ser; sujeito-objeto; homem-natureza), e, também, na crítica do racionalismo e do idealismo das teorias cognitivistas tradicionais.

No pragmatismo, mente e corpo não são entidades isoladas e/ou excludentes, assim como o homem não está isolado da natureza, mas é co-criado e co-especificado mutuamente com ela. A ação é o amálgama no qual esses dualismos se dissolvem, e pelo qual a cognição e o sentido de si mesmo (self) emergem como efeitos do agir concreto sobre o mundo cotidiano. Na teoria pragmática do conhecimento, uma cognição de laboratório, separada da natureza e da ação sobre o mundo concreto do dia-a-dia cede terreno à cognição incorporada, que se dá pela ação em sua mundaneidade. Não há como separar o pensar do agir.

A atitude anti-essencialista do pragmatismo repercutiu severamente na teoria do conhecimento e nas ciências da cognição. Podemos conhecer as coisas como elas realmente são (sua essência) A nossa mente reflete o mundo tal e qual ele, de fato, é, funcionando como uma espécie de espelho da natureza A atitude anti-essencialista é aquela que responde negativamente a estas questões. Estamos sempre procurando uma base sólida e estável para o self, a mente, o mundo e a verdade. Segundo o pragmatismo de William James, John Dewey, Charles Sanders Peirce e Ferdinand Schiller, esta base não existe. O pragmatismo enfatiza a prioridade da ação e da experiência sobre a ideia de uma essência no pensamento e no ser.

Em James, temos sua crítica a perspectivas e concepções universais e aprioristas em filosofia. Contrapunha-se ao elementarismo psicológico da Psicologia Experimental de Wundt, ao privilegiar a valorização da experiência fenomenal.

Neste texto, veremos que o que acreditamos ser o self emerge de nossa história de seres que se produzem a si mesmos em seu agir concreto sobre o seu meio. O self, tal qual na tradição kantiana (puro, transcendental) não existe. Ele é uma entidade emergente de nossas crenças e desejos. O self é um agregado de formas (físicas, incluindo o corpo), sentimentos, sensações, percepções, impulsos.

"O eu, para Rorty, é simplesmente a rede de crenças, desejos, estados e coisas assim, nas quais cada um de nós está - e não algo separado, que tenha aquelas crenças e desejos, que seja de algum modo transcendental ou anterior a elas, e, assim, permaneça o mesmo ao longo de nossa vida, intocado pelo processo de tecer de novo aquela rede. Não há nenhuma agência separada que nos tece de novo (...). O eu, assim como a linguagem, é inteiramente contingente. Como tudo mais, ele pode ser redescrito." (Calder, 2006: 45)

Veremos ainda que a mente não é uma entidade explicável pelos estados físicos cerebrais; é uma entidade emergente ou agência (Minsky, 1986) resultante dos agentes abstratos que formam um agregado singular que propicia os fenômenos mentais. Não existe um fundamento estável e materialmente localizável para a mente. Um cogito imutável no tempo também não existe. As formas de pensar são diferentes em cada momento histórico. Quanto ao mundo, iremos ver que é um existencial, ou seja, não há mundo predeterminado e unívoco para todos os seres; o mundo emerge como resultado da conduta de acoplamento dos seres ao seu meio: o mundo é fruto da experiência do ser, resultado do ser-no-mundo e de seu existir concreto como agente atuante sobre o real. O mundo é um recorte da realidade ou o "umwelt" do ser que age incorporado e acoplado ao seu meio ambiente circundante. Mundo e experiência não existem dissociados; são interdependentes e ontologicamente especificados um pelo outro. Pode-se falar de mundo comum, aquele que é co-criado pela dinâmica estrutural de acoplamento dos agentes uns com os outros e com o meio circundante, numa conduta recursiva de perturbações mútuas e recíprocas que desencadeiam mudanças em suas estruturas e permitem a coerência na experiência: a constituição de um mesmo domínio ontológico (ou domínio de distinções).

A ideia de uma verdade inabalável, na epistemologia e na teoria do conhecimento, segundo o pragmatismo, não se sustenta. A verdade é uma construção delimitada por diversas ontologias dadas na realidade: a cultura, a história, a dimensão social - edificadoras do mundo comum anteriormente explicado. Ou, como nos diz James (1907/2006: 124):

"No reino dos processos-verdade, os fatos vêm independentemente e determinam nossas crenças temporariamente. Essas crenças, porém, fazem-nos agir, e tão rápido quanto assim procedem trazem, à vista ou à existência, novos fatos que tornam a determinar consequentemente as crenças. Desse modo, a elasticidade total da verdade, à medida que rola, é o produto de dupla influência. As verdades emergem dos fatos; estes, porém, mergulham de novo nos fatos e trazem acréscimos aos fatos; os fatos criam de novo ou revelam nova verdade (a palavra é indiferente) e assim indefinidamente. Os "fatos" em si mesmos, nesse meio tempo, não são verdadeiros. Simplesmente são. A verdade é função das crenças que começam e terminam entre eles."

E arremata algumas linhas abaixo, com uma expressão que é uma brilhante, elucidativa e direta síntese de boa parte de seu pensamento pragmático: "A experiência está na mutação; nossas certezas psicológicas da verdade acham-se em mutação" (James, 1907/2006: 124).

Não há, portanto, verdade universal, e sim verdades que podem ser elaboradas pelo método histórico: cada verdade tem sua história. A verdade pode ser entendida como fruto de uma tecnologia específica de poder operante em um dado contexto histórico e social. Trata-se de uma produção da verdade.

A verdade não é concebida como adequação entre o pensamento e o pensado, a mente e a realidade exterior. Não coaduna, também, com uma suposta coerência de ideias entre si, e adquire, assim, um caráter funcional. Uma proposição é considerada verdadeira na medida em que possa guiar o homem no seu ambiente, ou seja, na sua realidade circundante, conduzindo-o de uma experiência até outra. A verdade está em mutação.

A verdade se expressa na necessidade de as proposições serem comprovadas para serem tidas como verdadeiras - verificabilidade. A verdade deve possuir valor para a vida do dia-a-dia. Tais perspectivas conduzem a uma concepção de verdade como algo aberto e em constante mutação. Para William James, a verdade não é algo feito ou dado, mas sim algo produzido em um processo de constante produção.

O pragmatismo nega a visão de uma separação radical entre sujeito e objeto, mente e mundo (que ela supostamente espelharia), abalando a ideia de que o mundo teria uma natureza oculta ou intrínseca a ser representada. Trata-se de uma contestação do essencialismo e sua tradição de separar radicalmente mente e mundo exterior, bem como de outras oposições fundamentais.

O pragmatismo de John Dewey e William James vai romper com a tradição epistemológica Kantiana, numa visão anti-essencialista de noções como verdade, conhecimento, linguagem, ciência, etc. Não faz sentido buscar conhecer as coisas como realmente são e acusar a percepção de desviar o nosso conhecimento de uma dita essência escondida nas coisas. O pragmatismo parte rumo a uma não-diferenciação metodológica entre moralidade e ciência; a não-diferenciação epistemológica entre a verdade acerca do que deve ser e aquela acerca do que é; a não-diferenciação metafísica entre fatos e valores.

 

"Self"

O self, conforme postulado pelo cognitivismo, não existe. Não existe tal como especificado pelo psicologismo e pelas tradições filosóficas calcadas no dualismo corpo-mente e no racionalismo. Ao dizer que o self não existe, estamos nos distanciando dos extremos racionalista e empirista. O self "é" enquanto produto de um fluxo, de uma sequência transitória de estados que se alternam e que, de modo dinâmico, operam no mundo concreto. É um construto.

"Talvez seja porque não existem pessoas em nossas cabeças, que nos levem a fazer as coisas que queremos - nem mesmo pessoas que nos façam querer - é que construímos o mito de que nós estamos dentro de nós mesmos." (Minsky, 1986: 128)

Descentralização. Eis a palavra que caracteriza o self. Ausência de fundação. Eis a expressão que o especifica.

Eu "sou" um agregado formado por minhas crenças, meus desejos, meus apetites, meus instintos, minhas emoções, meus sentimentos. Eis a minha identidade.

Tendemos a buscar uma centralidade que não existe. O self não é uma entidade central, detentora de uma autonomia independente de suas condições exteriores de constituição. Ele é descentralizado e constituído por forças situadas na exterioridade e não na interioridade. Embora ele possa ser entendido como interioridade e intimamente ligado à subjetividade, o self tem sua gênese nas forças externas ao sujeito. O próprio sujeito é um produto de forças externas a si.

A ideia de uma entidade autônoma, situada na interioridade do sujeito, que governa suas condutas como um homúnculo inteligente assentado dentro do homem, a controlar sua conduta, foi desmistificada pelas ciências cognitivas contemporâneas. O self é um agregado formado por condições de contorno externas. Ele se caracteriza como uma unidade formada por uma multiplicidade - Unidade na multiplicidade de: crenças, desejos, apego material, instintos, pulsões, apetites, emoções, sentimentos, motivações, valores do sujeito e forças externas que o moldaram (como relações de poder e disciplina, por exemplo).

Não há espaço para um dualismo na compreensão do self. Ele não resulta de uma alma que anima o corpo. Ele é o corpo moldado pelas forças exteriores a sua unidade construída. Unidade que foi criada pelo agir incorporado num dado universo social. E ao incluir o universo social na explicação da gênese do self, podemos compreender que a existência de um self somente ocorre pela existência do Outro num fenômeno de alteridade. "Sou" porque existe o outro que me observa, que me vê e que me permite "ser" por intermédio do seu olhar. Eu sou no outro.

Quanto mais tentamos encontrar centralidade e autonomia no self, mais nos deparamos com o vazio. Não há nada lá. Regredimos ao infinito sem constatar a existência de uma base sólida.

De fato, não há fundação fixa e sólida para o self. Ausência total de fundação. Isso nos lança na angústia de procurar e nada encontrar de concreto que explique a sua existência. Ele existe e, ao existir, "é". Inversão da máxima cartesiana. Na realidade, existo, logo penso.

Não há um centro produtor de emoções e sentimentos. As emoções e sentimentos é que conferem unidade e individualidade ao self.

As emoções resultam do esforço homeostático para produzir um estado de vida melhor - o bem-estar. Um arranjo simples que desencadeia num resultado complexo. Vejamos.

Os processos homeostáticos governam a vida por meio de arranjos elementares. Um organismo identifica mudanças ambientais e reage com modificações em sua constituição estrutural de modo a manter sua integridade e sua identidade, o seu "si". Desse modo, ocorre a manutenção do organismo como unidade individual e com identidade própria, com base na ocorrência de emoções como a tristeza, a alegria, o medo, etc.

Segundo Damásio (2004), elementos mais simples constituem os mais complexos. O "self", uma entidade complexa sob o ponto de vista do observador, advém de elementos mais simples como as emoções e sentimentos. Estes, por sua vez, são ainda constituídos de elementos mais simples ainda como numa cadeia hierárquica. Em síntese, temos, nesta cadeia, que a regulação metabólica, os reflexos básicos e as respostas imunitárias geram comportamentos de dor e prazer que, por sua vez, geram pulsões e motivações que, finalmente, geram padrões de emoções e sentimentos que modelam a identidade do indivíduo (organismo complexo) - eis a base do self.

Há uma essência corporal nos sentimentos. Ocorre uma percepção dos mapas cerebrais do corpo - o que consiste no sentimento. Sob uma forte influência do pragmatismo de William James, Damásio (2004:95) afirma:

"O conteúdo essencial dos sentimentos é um estado corporal mapeado num sistema de regiões cerebrais a partir do qual uma certa imagem mental do corpo pode emergir. Na sua essência, um sentimento é uma idéia, uma idéia do corpo, uma idéia de um certo aspecto do corpo quando o organismo é levado a reagir a um certo objeto ou situação. Um sentimento de emoção é uma idéia do corpo quando este é perturbado pelo processo emocional, ou seja, quando um estímulo emocionalmente competente desencadeia uma emoção. O cerne dessa noção de sentimento que hoje defendo provém das propostas de William James sobre o fenômeno da emoção."

Mais adiante, apresenta a sintonia de suas hipóteses com o pensamento de William James: "E eis a segunda questão que diz respeito a William James. Ele propôs que os sentimentos são, necessariamente, uma percepção do estado do corpo propriamente dito quando ele é modificado pela emoção" (Damásio, 2004: 121).

O self emerge de um mapeamento dos estados do corpo, realizado continuamente. A identidade individual vem deste levantamento incorporado dos estados em que simultaneamente ocorrem as interações do organismo com o seu meio circundante. A gênese dos sentimentos que configuram um self provém do corpo e de suas partes, do mapeamento das configurações dos estados do corpo. O sentimento de alegria, por exemplo, liga-se aos estados de equilíbrio, assim como o sentimento de mágoa liga-se aos mapas realizados sobre estados de desequilíbrio funcional.

A razão, de que o self encontra-se dotado, não exclui a emoção. De fato, ao contrário, a razão possui sua base na emoção. Embora os estímulos de emoções não sejam em si racionais, eles geram efeitos racionais. As emoções possuem uma racionalidade intrínseca. É pelo sentimento das emoções que os sujeitos se empenham em ações racionais com vistas a solucionar problemas sociais, como defesa contra ameaças exteriores e solução de conflitos. São as emoções que harmonizam o sujeito com seu mundo social circundante.

Sem as emoções, os instrumentos culturais não emergiriam numa dada sociedade. As criações culturais possuem uma base corporal, o que implica que o homem não possui uma natureza social fixa. A ética, por exemplo, tem sua gênese no programa geral de regulação biológica, o que envolve mecanismos automatizados (não-conscientes) de regulação das pulsões, do metabolismo e de produção das motivações, emoções e sentimentos. Não há uma centralidade para o self dotado de comportamento ético. Ele emerge de algo mais primitivo:

"Não dispomos de um centro ou centros da moral. Nem mesmo a região ventromedial do córtex pré-frontal, cuja importância para os comportamentos éticos é óbvia, deve ser considerada um centro. Além disso, os sistemas que apóiam os comportamentos éticos não começaram a sua existência neural com uma dedicação exclusiva à ética. No fundo, são sistemas dedicados à regulação biológica, à memória, à decisão e à criatividade. Os comportamentos éticos são, eles mesmos, o resultado de certas sinergias entre essas atividades." (Damásio, 2004: 177)

Não existe experiência, de algo, que seja independente de uma situação, de um contexto. A experiência está sempre se modificando. Buscar uma base para nossa identidade, que vivencia experiências, que funda a personalidade e a memória, é tocar o vazio, o nada. Jean Paul Sartre sintetizou este "nada" ao afirmar que estamos condenados a acreditar no self. O ocidente esforça-se por se apegar ao que é constante e fixo, ao contrário do que é cultuado pelas tradições orientais (como no yoga e na meditação), para as quais a mente é transitória e sem self algum.

Buscamos um sentido para o self no apego, onde não há self algum. O apego instiga-nos a proteger um falso self que identificamos com nossa identidade. Medo e raiva surgem então deste processo, o que nos conduz a acreditarmos que nosso interior os produz, enquanto que na verdade eles emergem de situações específicas em que nos mantemos apegados e sem consciência da nossa própria experiência. A raiz desses impulsos está no fato de que agimos como se possuíssemos um self constante, fixo, imutável, que toma conta de nossas preocupações e de nosso desejo de protegê-lo e cultivá-lo. É um automatismo que escapa da consciência atenta, sem questionamento e auto-análise. A nossa ligação emocional ao pseudo-self é tão forte que sequer podemos suspeitar que ele não existe. Não há um self realmente experienciado e, no entanto, acreditamos que ele de fato existe. Por mais que se busque, nada encontramos que corresponda ao self.

O que ocorre é que construímos um sentido para o self, o que faz com que nossa mente funcione como se ele realmente existisse, gerando efeitos devastadores em nossa experiência diária, potencializando os efeitos dos impulsos, apetites e paixões. Estes, por sua vez, fazem com que seja reforçada a nossa ideia do self (a nossa crença de que ele seja isso) e, assim, forma-se um ciclo de retroalimentação e de reforço mútuo de uma existência calcada no apego.

Para compreender melhor este fenômeno, podemos tomar como ponto de partida a ideia dos cinco agregados (Varela et al., 1993/2003): Eles promovem o surgimento do que denominamos por self (e que supostamente acreditamos sê-lo). São eles as formas, os sentimentos/sensações, as percepções, as formações disposicionais e a consciência.

O primeiro dos agregados - as formas - baseiam-se no físico ou material, enquanto que os outros quatro agregados são mentais. Os cinco, em conjunto, formam o complexo psicofísico que constitui, para o agente, em cada instante da experiência, aquilo que ele acredita ser o self. E que podemos até aceitar que o seja, sem maiores problemas teóricos ou epistemológicos. De fato, o self é algo que nos escapa quando tentamos apreendê-lo. Lidamos com suas sombras, enquanto o objeto que as produz torna-se inapreensível.

O problema é que tomamos cada um desses agregados como sendo nós mesmos, e perdemos então a consciência do processo de formação ou de emergência dessa nossa ideia distorcida do self. Os cinco, em conjunto, constroem um ente individual que sentimos ser o nosso self. Entretanto, quando tomamos consciência deste processo de atribuição de sentido de nossa identidade como produto destes cinco agregados, novamente o self "escorre pelas mãos".

Não somos somente corpo, não somos somente sentimentos e sensações, não somos somente percepções e impulsos, não somos somente formações disposicionais e não somos somente consciência. Podemos entender apenas que o nosso sentido de self emerge deste conjunto em sua dinâmica de atuação no mundo concreto. O self está na nossa experiência enquanto seres encarnados no mundo. O self só "aparece" na experiência.

Perdemos, portanto, a nossa base sólida, o nosso ponto central de fixação. O que somos Os agregados (corpo, sentimentos, percepções, impulsos, consciência) possibilitam-nos a experiência da identidade, e construímos a imagem do self em torno destes pontos. O self está na experiência do corpo, na experiência dos sentimentos, percepções, impulsos... Na experiência da consciência, embora nada disso possa, isoladamente, esgotar o self. O self não está em nenhum dos cinco agregados descritos a seguir, mas emerge da nossa experiência conjunta dos agregados.

Vale ressaltar que cada agregado descrito a seguir inclui os demais que o precedem. Vejamos.

O primeiro agregado diz respeito ao que denominaremos por formas. As formas dizem respeito ao corpo e ao ambiente físico, aos seis órgãos dos sentidos e aos mecanismos físicos efetivos da percepção. Contribuem para aquilo que percebemos como nosso self. Na mente apegada, tendemos a acreditar que o corpo é o nosso self. Tratamos o corpo como se ele fosse nosso eu mais profundo. Qualquer ameaça ao nosso corpo nos faz reagir com ira, raiva, agressividade, etc.

O segundo agregado é formado pelos sentimentos/sensações. Nós tendemos a nos identificar com nossos sentimentos e sensações, como se fôssemos nossos sentimentos e sensações. Seriam eles o nosso self Eles mudam o tempo todo e com eles mudam o nosso estado, o que nos traz a impressão de que nós mesmos mudamos profundamente. O self não tem, portanto, a tão buscada base sólida nos sentimentos e sensações - embora estes sejam fundamentais para a sua emergência, assim como não tem sua base fixa e imutável no corpo (como vimos anteriormente).

O terceiro agregado é formado pelas percepções e impulsos. A percepção ocorre junto a uma ativação de um impulso para ação sobre o objeto. O discernimento dos objetos e a ação sobre eles me faz crer que existo independentemente deles, e que sou algo que age soberanamente sobre eles, de forma independente. Na verdade, perco a consciência de que não existo independente do mundo material que me cerca, mas sim coexisto com ele numa relação de mútua especificação e de acoplamento estrutural. Portanto, erroneamente, tendo a crer que sou um agente independente a agir sobre um mundo independente de mim, e a perceber o mundo como uma câmera que capta imagens que devem corresponder fielmente ao objeto filmado. O self não é uma entidade pura que não se "contamina" e não se mistura com o mundo. O self emerge com o mundo e pelo ser-no-mundo. É produto do "experienciar o mundo".

O quarto agregado diz respeito às formações disposicionais. São padrões habituais de pensamento. Embora estejamos circunscritos pelos nossos padrões de pensamentos, não somos integralmente o que pensamos. Se alguém diz algo a respeito de nosso padrão de pensamentos, é o mesmo que dizer algo sobre nossa personalidade e sentimos que está se referindo a nosso self. Na verdade, este é outro equívoco, pois nosso self não é o nosso padrão de pensamentos ou nossa personalidade, embora a nossa experiência do quarto agregado contribua para a construção (dinâmica) do nosso self.

O quinto agregado é a nossa consciência. Ele inclui os demais. A consciência é sustentada pelos outros agregados. De certa forma, ela os abarca. Envolve o contato dos órgãos dos sentidos com seus objetos, juntamente com sentimentos, impulsos, etc. A consciência somente existe numa tríade: uma pessoa que vivencia uma experiência, um objeto experienciado e as relações que os unem.

No fenômeno da consciência os estados mentais ocorrem graças às relações que ligam objeto e consciência. Ou seja, a consciência é dinâmica, é um fluxo que ocorre a cada momento como fruto dos estados mentais, fruto dos agregados. A consciência se prende ao seu objeto pelos agregados. Há o contato da mente com o objeto, junto com um sentimento (por exemplo, de prazer ou desprazer), com o discernimento do objeto, uma intenção e uma atenção para com ele.

O self pode ser, assim, entendido como o fluxo dos agregados enquanto estados mentais, numa dada experiência, no cerne da transitoriedade da mente. O self pode "acontecer" em qualquer momento neste fluxo de estados transitórios da mente. Trata-se, portanto, de um processo constituidor do self e não de uma entidade estática, fixa e duradoura. Processo-fluxo de momentos descontínuos formados por percepção, sentimento e apego, com uma falta absoluta de unidade. Isso nos conduz a um paradoxo, visto que quanto mais procuramos um self unitário na experiência, mais nos deparamos com o vazio de nosso sentimento continuado de apegar-se ao self. Embora não possuamos um self central e unívoco, há uma coerência em nossa experiência, em nossa vida. Os elementos da experiência surgem de forma transitória, pela sucessão dos estados mentais, dos cinco agregados, do contato, do sentimento, do discernimento, da intenção e da atenção.

A resposta está na noção de emergência. Assim como qualquer agência emerge da ação de agentes individuais (Minsky, 1986), o self emerge de um fluxo em que os padrões recorrentes por ele exibidos emergem da ação conjunta dos estados mentais, dos agregados, numa forma em que um depende de todos os outros, ou seja, numa verdadeira cadeia de surgimento co-dependente. Não existe um padrão habitual em si mesmo. Um bom exemplo metafórico para tal fenômeno é a mão humana. Uma mão é uma agência cujos agentes são os dedos, a palma, etc. Uns não existiriam sem os outros e vice-versa.

Um único momento de consciência e sua coerência em forma de momentos de consciência encadeados no tempo podem existir pela noção de emergência, ou seja, sem a necessidade de postular um self unitário, central e fixo, ou outra entidade ontológica qualquer. Esta cadeia de consciência pode ser pragmaticamente descrita como herança do pragmatismo de W. James nas ciências da cognição. É, de fato, o cerne da noção de pragmatismo na ciência cognitiva que permite visualizar a completa ausência de fundação do self, ou seja, sua não-centralidade conforme anteriormente descrito.

 

Mente

Origina-se, do pragmatismo, a ideia de que a mente funciona segundo um modelo de arquitetura cognitiva, sem centralidade, sem fundação (no sentido cartesiano) e sem uma unidade fixa que a possa explicar. A ideia de um homúnculo inteligente dentro da mente, a comandar seu funcionamento, não cabe no pragmatismo. Este nos conduz à ideia de que a mente é um sistema cooperativo, que não é um conjunto de redes uniformemente estruturadas, mas sim o efeito de muitas redes conectadas de distintas formas. Ela é um sistema que, como um todo, pode metaforicamente ser visualizado como mosaico de sub-redes reunidas por um intrincado processo de composição.

Vem de Minsky (1986) a proposição da mente como uma sociedade. Nesta, o elemento central é a sua arquitetura em mosaico, formada por muitos "agentes" de potencialidades limitadas mas que, em seu conjunto, conferem as propriedades da mente. Tomados isoladamente, os agentes agem apenas num limite bastante estreito de problemas de pequena escala. No caso da Inteligência Artificial, o desafio seria, então, sob este enfoque pragmático, organizar os agentes que operam em limites restritos específicos em sistemas mais abrangentes e mais eficazes - as agências. Estas, por sua vez, podem ainda ser organizadas em sistemas mais abrangentes ainda, de mais alto nível, fazendo com que a mente e seus fenômenos venham a emergir como uma espécie de sociedade.

Cabe ressaltar que esses agentes e as agências não são entidades (ou processos) materiais, mas sim funções e processos abstratos. Na abordagem pragmática de Minsky, a mente não pode mais ser vista como uma entidade unificada e homogênea, mas sim como um conjunto heterogêneo e não-unificado de redes de processos, que podem ser avaliadas em mais de um nível.

Tanto a palavra mente quanto a palavra self são modos de se fazer menção a uma série de efeitos que possuem coerência no tempo. Abrigam o nosso desejo de encontrar uma base sólida e fixa para nossa identidade. No entanto, essa base não tem fundamento. Estamos no campo da ausência completa de fundação.

O pragmatismo está na teoria da mente incorporada de Varela e colaboradores (1993/2003). O pragmatismo combate os dualismos, em destaque, para o dualismo mente-corpo. O pragmatismo coloca sua ênfase na experiência e na ação. Assim, numa perspectiva pragmática, a mente está no corpo, ou seja, ela é um efeito da incorporação do ser no mundo, um efeito da ação do corpo sobre o mundo. A mente surge na experiência mais incorporada, mais mundana. Exatamente como Richard Rorty (1980/1994) salienta, um representante de destaque do pragmatismo, a mente não espelha a natureza conforme o modelo das representações mentais supõe. Ela recria o seu mundo, sem que seja necessário, para tal compreensão da mente, a noção de representação.

Mente e mundo estão numa relação de co-especificação mútua. O mundo é um existencial, como diz Merleau-Ponty (1945/2005). Ou seja, ele existe na medida em que existe uma mente atuante que delimita, no para-si, o que vem a ser seu mundo. As capacidades cognitivas estão arraigadas na nossa incorporação biológica e cultural, e são, de fato, vividas e experienciadas num domínio de ação, num domínio de atuação corporal numa trajetória de história cultural. Essa ideia está em plena sintonia com a primazia, conferida pelo pragmatismo, à ação e à experiência.

Os pragmatistas vêem as realizações da mente humana como um prolongamento da luta biológica pela adaptação e sobrevivência. Assim, as funções cognitivas superiores, e a própria cognição, até mesmo a cultura, possuem suas raízes na nossa biologia. Ora, esta perspectiva pragmática está na essência da teoria da mente incorporada e no próprio construtivismo de Piaget, o pai da epistemologia genética. Em ambas as abordagens do conhecimento, encontramos os traços pragmatistas da primazia da ação sobre o intelecto, e a prioridade ontológica da experiência sobre os fenômenos da mente e do conhecimento.

Portanto, há uma sintonia entre construtivismo e pragmatismo. Além disso, a epistemologia genética tem em sua essência os postulados pragmatistas da teoria do conhecimento: a ideia do ato de conhecer como um prolongamento das funções biológicas e a ideia da primazia da ação sobre o mundo no ato do conhecimento. Ou seja, uma ideia de assimilação entre o biológico e o intelectual: "Não é mais possível manter uma imagem do conhecimento de tipo sujeito-objeto, e então não é mais possível pensar a cognição humana como alguma coisa que escapa às categorias biológicas" (Rorty, 1991: 98).

Foi Dewey, um dos expoentes do pragmatismo, o principal defensor da ideia de que as operações lógicas crescem a partir de atividades orgânicas, sem serem idênticas àquilo do qual emergem.

A mente não foi criada com uma finalidade em si mesma, a de conhecer. Na verdade, para a mente e o seu modo de operar incorporada ao mundo, não há finalidade alguma, segundo postulam os pragmatistas e até mesmo Nietzsche (na sua visão anti-platônica e anti-socrática do conhecimento). De acordo com Rorty (1991), existe, em Nietzsche, traços nítidos de uma teoria pragmatista do conhecimento. O conhecimento, em crenças confiáveis, não possui um fim em si mesmo. A formação de crenças está subsumida aos desejos humanos.

 

Mundo

Não há conhecimento possível da coisa em si. O mundo é um existencial. É a existência do ser-no-mundo que promove o recorte, na realidade, daquilo que vem a ser o seu mundo, o mundo do para-si. A ideia de um mundo único, fixo, unívoco, comum a todos os seres, não condiz com a teoria pragmática do conhecimento. Na realidade, tal mundo não existe. Não existe um mundo predeterminado pronto a ser captado pela cognição, ou seja, pronto a ser representado tal qual o é. O mundo é consequência do exercício do existir e, em seguida, do ser em seu mundo próprio. Seria, então, mais correto usar a expressão mundo no plural, e não no singular. Há tantos mundos possíveis quantos modos de existir e, consequentemente, tantos mundos possíveis quantos modos de ser-no-mundo.

A ideia de um mundo predeterminado vem a ruir na teoria pragmática do conhecimento. O mundo não é predeterminado. Suas características não podem ser especificadas antes de qualquer experiência cognitiva. Não há, portanto, representações sobre um mundo que está lá fora da mente, espelhado por estas representações. Mundo e mente se especificam mutuamente, derrubando por terra o falso dualismo mente-mundo. Nossa cognição não é sobre um mundo supostamente exterior à mente. E o fenômeno do nosso conhecimento sobre este suposto mundo predeterminado não se dá por representações de suas características intrínsecas. A percepção, por exemplo, é um processo ativo que não funciona como o espelhamento simples de um ambiente predeterminado, mas sim como a recriação de um mundo conforme a estrutura interna do agente.

"O ponto de referência para compreender a percepção não é mais um mundo predeterminado independente do observador, mas sua estrutura sensório-motora (a forma pela qual o sistema nervoso une as superfícies sensorial e motora). Essa estrutura - a maneira pela qual o observador é incorporado - não especifica nenhum mundo predeterminado, mas o modo como o observador pode agir e ser modulado por eventos ambientais. Assim, a preocupação geral de uma abordagem enactivo-incorporada (atuacionista) da percepção não é determinar como um mundo independente do observador pode ser representado; é, ao contrário, determinar os princípios comuns ou ligações regradas entre os sistemas sensorial e motor que explicam como a ação pode ser perceptivamente orientada em um mundo dependente do observador." (Varela et al., 1993/2003: 177)

A percepção não é, portanto, captação de sinais de um mundo predeterminado que está lá fora. Ela é um processo ativo de criação de um mundo conforme a estrutura interna e a ação (incluindo o comportamento) do agente.

Há, portanto, uma impossibilidade, no tocante ao conhecimento, de encontrar um mundo totalmente independente da existência (e da estrutura) do agente. O mundo não é um objeto, um fato ou um processo, mas sim um background, um cenário para a nossa experiência, o qual não possui existência independente de nossa estrutura, de nosso comportamento e de nossa cognição. O que conhecemos sobre o mundo nos diz algo a respeito de nós mesmos.

Não conhecemos o mundo, mas sim nossas supostas representações sobre o que ele venha a ser. Estamos condenados, pela nossa constituição estrutural, a considerar estas representações como o próprio mundo que julgamos ser predeterminado em relação a nós mesmos. As ciências cognitivas se depararam com a realidade de que o mundo é um existencial. Várias pesquisas o demonstram no universo empírico e teórico e até mesmo no domínio da filosofia. Mundo e agente atuante formam um amálgama indissociável em que se conhece o mundo pela estrutura e pelo comportamento do agente, ao passo que o agente se mostra em seu mundo específico de atuação. Não há uma cognição pura independente do mundo de atuação do agente assim como o que se sabe do mundo é conhecido graças a uma estrutura incorporada nele atuante, a qual não pode se afastar do próprio mundo para ter um conhecimento puro da coisa em si. O acesso à coisa em si não é possível, mas apenas a coisa tal qual a conhecemos por mediação de nossa própria estrutura e de nossa própria forma de interagir e de atuar (agir, comportar-se) no mundo.

"Na verdade, uma importante e ampla mudança está começando a ocorrer nas ciências cognitivas em decorrência de sua própria pesquisa. Essa mudança exige que nos afastemos da ideia do mundo independente e extrínseco em direção à ideia de um mundo inseparável da estrutura desses processos de automodificação. Essa mudança de postura não expressa uma mera preferência filosófica; ela reflete a necessidade de compreendermos os sistemas cognitivos não com base nas relações entre informações (input) e comportamento (output), mas a partir de seu fechamento operacional. Em um sistema operacionalmente fechado, os resultados de seus processos são os próprios processos. A noção de fechamento operacional é uma forma de especificar classes de processos que, na sua própria operação, voltam-se sobre si mesmos para formar redes autônomas. Essas redes não se enquadram na classe de sistemas definidos por mecanismos externos de controle (heteronomia), mas, ao contrário, na classe de sistemas definidos por mecanismos internos de auto-organização (autonomia). O ponto chave é que esses sistemas não operam por representação. Em vez de representar um mundo independente, eles atuam em um mundo como um domínio de distinções inseparável da estrutura incorporada pelo sistema cognitivo." (Varela et al., 1993/2003: 149)

Há, então, uma camada pré-objetiva que antecede ao nosso conhecimento do mundo. Esta camada está dada pela nossa experiência como agentes incorporados, e não-dissociáveis do nosso mundo. Eu sou no mundo e o mundo é em mim. As capacidades da consciência, por exemplo, surgem do enraizamento carnal do sujeito no mundo. Há um ser carnal, uma camada pré-objetiva, que antecede a pseudo-distinção entre sujeito e mundo. O ser do mundo é delimitado conforme a estrutura e as capacidades do sujeito-agente, ou seja, conforme o que este pode do mundo conhecer em sua ação incorporada, em sua atuação. Por exemplo, não existe um mundo comum de percepção a todos os seres, visto que cada ser habita o seu mundo (umwelt). Logo, os organismos não reagem a todos os estímulos do ambiente como se houvesse um ambiente perceptivo único para todos eles. De fato, somente se torna estímulo para um organismo aquilo que é compatível com sua estrutura de incorporação ao ambiente.

É bem típica do pragmatismo de James a ideia de que o mundo seja um conjunto de estruturas organizadas segundo parâmetros perceptivos. O mundo se apresenta não como uma reunião de objetos e eventos determinados segundo categorias apriorísticas (causalidade, quantidade, medida), mas como um campo organizado segundo uma lógica perceptiva. É neste nível pré-objetivo que o mundo se manifesta. Esse nível pré-objetivo dos fenômenos é original em relação ao mundo objetivo. Não há, portanto, um ser objetivo puro, e nem um mundo objetivo puro, mas sim um ser inseparável das estruturas perceptivas, cujo caráter objetivo ocorre posteriormente à manifestação fenomenal originária.

O mundo percebido não se reduz às categorias auto-excludentes de sujeito-objeto. O mundo não se mostra de modo independente das estruturas perceptivas. O mundo percebido não é nem puramente objetivo (em-si) e nem puramente subjetivo (para-nós), visto que ele possui um caráter autônomo ao qual a percepção tem acesso, mas que somente se torna acessível na simbiose entre esta autonomia e as capacidades perceptivas do agente. Uma criação que se dá na experiência, na ação (termos bem pragmáticos) e na interação do agente com o mundo, não estando tal criação do mundo nem no mundo isolado (objetivismo) nem na subjetividade do agente (subjetivismo). O mundo está no "se lançar" às coisas, constante ação, constante experimentar que gera o que enxergamos como o mundo.

O mundo se manifesta segundo as estruturas perceptivas, mas sem se reduzir a um puro subjetivismo. O mundo dado, estudado objetivamente, é posterior a uma camada pré-objetiva da realidade, em que se tem a experiência cognitiva e perceptiva do agente situado e incorporado. Ou seja, a objetividade do mundo ocupa um caráter secundário em relação à experiência do mundo percebido pelo corpo.

Os fenômenos perceptivos não são fenômenos passivos de um mundo objetivo predeterminado e independente da estrutura do sujeito que percebe (agente). A experiência perceptiva resulta de uma sincronização das capacidades de percepção do sujeito (com seus esquemas incorporados) com as situações do mundo que o sujeito co-especifica e co-cria em sua ação. Toda a configuração singular que adquire o mundo percebido, dos dados sensíveis, resulta de uma sincronização corporal que reconstitui um evento mundano. O corpo comporta, em sua experiência, em seu existir, um projeto geral do mundo, um conjunto de capacidades perceptivo-motoras aptas a se sincronizar com toda situação factual possível: um pacto natural entre corpo e mundo. No entanto, como bem típico do pragmatismo, estamos longe do intelectualismo ou do subjetivismo. Ou seja, a percepção do mundo não é um processo meramente subjetivo e determinado pela subjetividade do sujeito. O que ocorre é que o sentido dos fenômenos percebidos é uma propriedade intrínseca dos eventos mundanos e não uma criação puramente do sujeito. O sentido do percebido não é criado pelo sujeito, visto que faz parte dos próprios fenômenos mundanos. O ser do mundo não se reduz à experiência perceptiva.

O ser do mundo, que é exterior e que desencadeia a percepção, no pragmatismo, é entendido como ser sensível, como um conjunto de atributos apreensíveis pela percepção, num sentido em que o mundo é um existencial. No entanto, para longe do idealismo subjetivista, tais atributos não são constituídos por atos subjetivos, os quais reconstituem apenas estruturas de organização próprias ao ser mundano.

Estamos, pois, segundo a visão pragmática, impossibilitados de crer no postulado de um mundo independente de nossas descrições, e idêntico para todos os observadores. Por outro lado, encontramos a descoberta da filosofia da linguagem segundo a qual não temos um acesso direto, não mediatizado pela linguagem, à realidade em si.

A nossa concepção da realidade é sempre feita de modo relativo à nossa constituição, como uma verdade trivial na medida em que significa que só formamos conceitos que somos capazes de formar.

A virada pragmática propõe uma compreensão anti-realista do conhecimento, sobretudo no tocante ao realismo representativo (segundo o qual o conhecimento está na mente como um reflexo da natureza e do mundo como eles são em-si). A teoria da correspondência, contestada pelo pragmatismo, implica o realismo, uma vez que ela postula a existência de uma realidade (unívoca e independente de quem conhece) à qual correspondem afirmações sobre sua veracidade.

Há sistemas de regras segundo os quais são gerados contextos de interações e a realidade simbólica. Não há, portanto, um mundo unívoco e único para todos agentes, visto que o que se compreende do mundo e o que se comunica sobre ele, na linguagem, restringem-se ao tecido comum criado pelos agentes em sua ação e em sua linguagem (seu linguajar). Por exemplo, para alcançar o entendimento mútuo faz-se necessário que falante e ouvinte operem não apenas no domínio da intersubjetividade, mas também no domínio dos objetos ou dos estados de coisas sobre os quais eles comunicam um com o outro.

Os vocabulários de que dispomos são instrumentos para fazer frente às coisas e não representações da natureza intrínseca das coisas.

 

Verdade

"Esta renúncia à ideia de que a verdade científica é uma questão de correspondência a uma realidade preexistente é o mais familiar e óbvio exemplo de uma doutrina comum a Nietzsche e aos pragmatistas americanos." (Rorty, 1991: 102)

Podemos atribuir a Nietzsche uma teoria pragmatista da verdade, segundo Rorty (1991). O pragmatismo nos convida a excluir de nossas mentes noções do tipo "verdade", "erro", "aparência" e "realidade". Essas noções, numa teoria pragmática do conhecimento, são substituídas por outras do tipo: "crenças vantajosas para certos propósitos, mas não para outros" e "uma descrição de coisas úteis para certos tipos de pessoas, mas não para outros". Ou seja, noções realmente pragmáticas, as quais abandonaram inteiramente a metáfora cognitivista da correspondência. O pragmatismo não enxerga a verdade como correspondência entre pensamento e realidade. Isto porque não existe uma realidade independente do pensamento. O mundo e a verdade estão em relação direta com a ação do ser, e entre ser e mundo, conforme já discutido, existe uma relação de co-especificação mútua.

No pragmatismo, a verdade de uma proposição depende de seus efeitos práticos e não se mostra completamente independente como na teoria da correspondência à realidade. Uma crença, por exemplo, é tida como pragmaticamente verdadeira quando suas consequências, na vida cotidiana, forem convenientes para aquele que crê.

Compreender o significado de uma proposição envolve compreender seu significado prático, ou seja, com as experiências que ela prediz. Uma proposição é verdadeira quando, no tempo, realiza-se o seu sentido. A verdade de uma crença depende de quão ela tem se mostrado satisfatória, em termos práticos.

As ciências naturais então, sob a ótica do pragmatismo, são um modo de satisfazer desejos humanos e não uma teoria de correspondência à realidade. A verdade empírica não é uma correspondência entre nossas representações e a forma como as coisas realmente são em si mesmas. A verdade pragmática, então, passa a depender do seu sucesso prático e da sua eficácia, não sendo o resultado de uma correspondência entre proposições e a realidade predeterminada que tentam descrever segundo o modelo do realismo. Desta forma, é questionada a ideia de verdade absoluta que poderia ser conhecida independentemente de um dado contexto.

"Rorty pensa que podemos evitar essas preocupações nos ajuntando à conclusão pragmatista de que, nas palavras de William James, "o verdadeiro é o nome daquilo que se mostra bom na forma da crença". Ser "algo com que possamos lidar" não implica nenhum tipo de correspondência direta com a forma como as coisas "realmente são"; apenas significa que a verdade, na classificação mais generalista que possamos encontrar, é o que funciona." (Calder, 2006: 17)

Não há uma realidade em si mesma, independente das proposições e do seu contexto de elaboração, assim como não há mundo independente da mente nem self independente da atuação do sujeito. Uma realidade independente da linguagem em que é formulada não é possível no pragmatismo. Não se pode estabelecer se uma proposição é verdadeira ou não por comparação com uma suposta realidade externa e independente de tal proposição. O que se pode, de fato, é lidar com as consequências e resultados do que esta proposição afirma sobre a realidade numa teoria pragmática do conhecimento.

No pragmatismo não é possível uma ciência no seu sentido realista tradicional, como conhecimento conclusivo e definitivo de uma realidade dada de antemão, imune aos métodos e instrumentos do cientista.

A verdade precisa ter um fundamento na experiência e deve poder ser resgatada discursivamente. O que um falante faz ao realizar um ato de linguagem é entrar numa relação de partilha com o ouvinte. Sujeitos, agentes e falantes, podem referir-se a mais de um mundo. Quando chegam a um entendimento um com o outro sobre alguma, estão co-habitando um mesmo mundo e fundamentando a sua comunicação neste mundo partilhado em comum. Nada é verdadeiro a não ser aquilo que faça referência a algo que já aceitamos como verdade. Estamos, portanto, sem ter como sair de nossas crenças e de nossa linguagem, pois é com elas que construímos a verdade. A verdade de uma proposição não pode ser tida como mera correspondência com alguma coisa no mundo, visto que não temos como sair da linguagem usando a linguagem para construir a verdade.

Para Peirce, as crenças são "hábitos de ação" e o modo de conseguir o que queremos, numa visão pragmática, é formando e corrigindo crenças. Já as teorias são instrumentos e não respostas aos enigmas. A validade das hipóteses das teorias científicas somente pode ser determinada levando-se em conta sua eficácia, seus efeitos, resultados e consequências.

Na vida cotidiana, não temos como usar a linguagem independentemente da ação. A linguagem está arraigada em contextos de interação. Enquanto agentes, estamos em contato com as coisas e com o mundo, e nesse contato geramos, sem que tenhamos conta, formas aí atreladas de fazer referência às coisas e ao mundo. É assim que somente se torna possível um entendimento mútuo quando os agentes partilham de um mesmo mundo que, para eles, se torna o seu mundo objetivo. Isso elimina a hipótese de um mundo objetivo que seria independente das descrições que dele fazemos. Estamos longe, portanto, do chamado realismo metafísico, ou concepção segundo a qual o mundo existe independentemente de nossas representações sobre ele. Todas as afirmações são feitas dentro de um sistema conceitual útil para fazê-las. Caso haja sistemas conceituais alternativos, haverá descrições alternativas da realidade.

Os pragmatistas não acreditam que a verdade tenha uma essência, nem que a racionalidade ou o conhecimento, ou a relação entre pensamento e o seu objeto o tenham. É impossível, sob este enfoque, querer ser capaz de usar um suposto conhecimento de tais essências para criticar perspectivas que consideradas falsas. Não existem essências em qualquer lugar.

"Em vez disso, dizem-nos os pragmatistas, é o vocabulário da prática mais do que o da teoria, da ação mais do que da contemplação, aquele em que podemos dizer alguma coisa de útil sobre a verdade." (Rorty, 1982/1999: 234)

No pragmatismo, não existe diferença epistemológica entre a verdade acerca do que deve ser e a verdade acerca do que é. Não há diferença metafísica também entre fatos e valores. Não há diferença metodológica entre moralidade e ciência. A tradição epistemológica equivocou-se ao buscar uma essência para a ciência e ao procurar reduzir a racionalidade a uma regra.

"Quando o pragmatista ataca a noção de verdade como adequação da representação está desse modo a atacar as distinções tradicionais entre razão e desejo, razão e apetite, razão e vontade. Porque nenhuma destas distinções tem sentido a menos que a razão seja pensada segundo o modelo da visão, a menos que persistamos no que Dewey chamava a teoria contemplativa do conhecimento." (Rorty, 1982/1999: 236)

O pragmatismo contesta a visão kantiana de encontrar princípios que seriam definidores da essência da racionalidade, da representação, da moralidade, do conhecimento.

 

Considerações finais

O pragmatismo seria, sob nosso ponto de vista, uma teoria do conhecimento anti-cognitivista, anti-intelectualista e anti-dualista.

O pragmatismo confere uma primazia à ação e à experiência sobre os fenômenos da cognição. A importância da corrente pragmática da filosofia para as ciências da cognição é inegável. Desde as neurociências até a inteligência artificial, resultados proeminentes, do ponto de vista experimental e tecnológico, possuem suas bases na visão pragmática do mundo e da experiência.

O pragmatismo faz um resgate da prioridade ontológica da experiência sobre os fenômenos da mente e do conhecimento. Ele mostra que há uma camada pré-objetiva que antecede o nosso conhecimento do mundo, dada pela nossa experiência incorporada no mundo. Os fenômenos cognitivos dependem da pertença carnal do sujeito ao mundo do dia-a-dia. Isso tem sido de grande valia para as pesquisas em ciências da cognição, em destaque para a robótica. Robôs artificiais deixam de ser produzidos como entidades que buscam esgotar todas as regras predeterminadas de ação em um mundo predeterminado, para se tornarem agentes atuantes em um mundo corriqueiro, com suas capacidades de auto-regulação e de aprendizagem conforme aquilo com o que se deparam no mundo real do dia-a-dia.

Nestes avanços experimentais da inteligência artificial, o mundo deixa de se apresentar como conjunto de objetos e eventos determinados segundo categorias apriorísticas, para se manifestar como campo organizado de acordo com uma lógica perceptiva incorporada. Uma típica visão pragmática...

A cognição, sob a égide do pragmatismo, é uma criação que se dá na experiência, na ação (expressões que ganham primazia na abordagem pragmática da cognição) e na interação do agente com o mundo. Esta criação do mundo não pode ser entendida nem pelo mundo predeterminado (objetivismo) nem pela pura subjetividade do agente (subjetivismo).

 

Referências Bibliográficas

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Notas

Gilbert Cardoso Bouyer
Endereço para correspondência:UFOP, Departamento de Engenharia de Produção, Campus João Monlevade, Instituto de Ciencias Exatas e Aplicadas, Cidade: João Monlevade, MG 35930-970, Brasil.
E-mail para correspondência: gilbertcb@uol.com.br