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Ciências & Cognição

versión On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.16 no.1 Rio de Janeiro dic. 2011

 

Ensaio

 

A mediação no processo de construção e representação de conhecimentos em deficientes visuais

 

Mediation in the construction and representation of knowledge in the visually impaired

 

 

Claudia Pinto Pereira Sena

Departamento de Ciências Exatas, Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, Bahia, Brasil

 Endereço para correspondência

 

 

 


Resumo

O objetivo desse ensaio é apresentar as inquietações sobre como são construídos e representados os conhecimentos pelos deficientes visuais. A percepção de quem escreve é de um vidente, e por isso ainda maior a busca por algumas respostas e/ou novas perguntas. A investigação tem como objetivo refletir sobre a utilização da mediação, em especial o método do quarto excluído, no processo de construção de conceitos, em todos os seus níveis, desde o mais simples até o mais abstrato, em pessoas que apresentem problemas visuais (cegueira total ou visão subnormal), assim como iniciar uma discussão sobre o significado de representação mental e percepção visual, tanto para os videntes quanto para os deficientes visuais. Busca-se, com a continuidade do trabalho, ampliar a pesquisa para um grupo maior de deficientes visuais, proporcionando um diálogo mais constante que permita a observação do cotidiano dessas pessoas, as dificuldades enfrentadas, as habilidades desenvolvidas e a percepção de mundo. © Cien. Cogn. 2011; Vol. 16 (1): 035-048.

Palavras-chave: mediação; deficiente visual; conhecimento, representação mental, percepção visual.


Abstract

The aim of this paper is to present the concerns about how the knowledge is constructed and represented by the blind. The perception of the writer is a seer, and thus further the search for some answers and/or new questions. The research aims to reflect on the use of mediation, especially the method of the fourth excluded in the process of building concepts on all levels, from the simplest to the most abstract, in people who have visual impairments (total blindness or low vision) and start a discussion about the meaning of mental representation and visual perception, both for sighted and for the visually impaired. Search itself, with the continuity of work, extend the search to a larger group of visually impaired, providing a more constant dialogue enabling the observation of the daily life of these people, the difficulties, the skills developed and the perception of the world. © Cien. Cogn. 2011; Vol. 16 (1): 035-048.

Keywords: collaborative learning; PBL; visual deficiency; knowledge.


 

 

Introdução

Conhecimento passa pela apreensão das coisas, pela interiorização da informação apreendida, autoconstrução, configurando-se como algo muito próprio e particular de cada sujeito. Dessa maneira, pode-se dizer que o processo cognitivo depende, além do sujeito e de seus processos mentais, também do ambiente a sua volta, da cultura e dos outros sujeitos. Pessoas de mesma idade não necessariamente possuem os mesmos processos cognitivos, ou, pelo menos, não possuem os mesmos mecanismos na construção dos conhecimentos, pois outras variáveis influenciam no desenvolvimento e também aprendizagem do sujeito, tais como experiências anteriores, processos e sujeitos mediadores, alguma deficiência física ou motora.

A compreensão e análise dos processos cognitivos dependem do sujeito observado, do contexto a sua volta, e, de certa forma, da subjetividade de quem o observa. Segundo Vygotsky (2007), o conceito de mediação na interação homem-ambiente se estende além do uso de instrumentos, para o uso de signos. Para ele (2007, p. XXVI), "[...] Os sistemas de signos (a linguagem, a escrita, o sistema de números), assim como o sistema de instrumentos, são criados pelas sociedades ao longo do curso da história humana e mudam a forma social e o nível de seu desenvolvimento cultural." Sem dúvida, é observável que as crianças, mesmo antes do desenvolvimento da fala, através da experiência com o outro, seja seu pai, sua mãe, irmão ou outros, imita o uso de instrumentos e manipulação de objetos, o que já é um indício do papel importante da experiência social no desenvolvimento humano. Dessa maneira, pode-se dizer que os processos de mediação (seja pelo uso de instrumentos, seja pelo uso de signos) representam caminhos para o desenvolvimento e também reorganização do funcionamento psicológico global.

Nesse processo de construção do conhecimento e mediação, há a internalização do que foi observado. Essa internalização é um processo individual, um processo do sujeito, uma autoconstrução, através do qual ele organiza o "novo" com o "velho", ou seja, no qual ele reestrutura os conhecimentos prévios com os novos adquiridos.

"A internalização é a reconstrução interna, intrapsicológica, de uma operação externa com objetos e bens culturais com os quais o sujeito interage. A atividade externa (intersubjetiva), realizada no contexto cultural, torna-se atividade interna ao sujeito, processo que ocorre por intermédio da linguagem e do pensamento que possuem participação fundamental nessa apropriação dos bens da cultura." (Santos, 2008, p. 7)

A mediação não pressupõe, somente, o uso dos recursos visuais; outros signos podem ser utilizados nesse processo, privilegiando o desenvolvimento de outras aptidões, como a percepção tátil, auditiva, dentre outras. Os deficientes visuais, com cegueira total, não dispõem da visão como recurso, instrumento possível para experimentar o mundo e construir seus conhecimentos a cerca dele. Os de visão subnormal, aqueles com baixa visão, ainda que possuam um pouco desse recurso visual, sentem também a necessidade de, em alguns momentos, experimentar o mundo através de outros recursos. Segundo Masini (1992), é preciso ter cuidado para não definir o desenvolvimento e a aprendizagem dos deficientes visuais a partir dos padrões adotados para os chamados videntes (aqueles que não apresentam cegueira ou visão subnormal). Para Vygotsky (2007), o sujeito, ao solucionar um problema, pode utilizar estímulos que não estão contidos no seu campo visual imediato. Pode, por exemplo, usar palavras (uma outra classe de estímulos) para criar um plano de ação, além dos instrumentos que estão à mão, para planejar, articular tais estímulos, tornando-os úteis à solução do problema.

É nessa perspectiva que esse trabalho tenta fazer uma relação do método do quarto excluído, como abordagem mediadora, com os pressupostos epistemológicos da construção do conhecimento em deficientes visuais, trazendo as concepções de construção mediada do conhecimento (sujeito enquanto ser sócio cultural) e aspectos iniciais sobre a representação mental desse conhecimento.

O texto se organiza em sete partes, incluindo a introdução. Inicialmente serão abordadas questões sobre metaconhecimento (conhecimento sobre conhecimento), seguida das questões relativas ao processo de mediação, método do quarto excluído e sua experimentação em um público de deficientes visuais, sempre na perspectiva de construção e representação do conhecimento. Finaliza-se, então, com as conclusões e reflexões.

 

Metaconhecimento

A teoria do conhecimento vem evoluindo ao longo dos tempos, ao longo da história, deixando o positivismo, a verdade absoluta, e voltando-se para a verdade relativa, a subjetividade. Na verdade, a busca não é pela oposição entre as vertentes, entre a objetividade e a subjetividade, a razão e a emoção, mas sim pela complementaridade entre elas. O conhecimento vai além do que é possível mensurar e quantificar. Busca-se uma ciência onde o quantitativo e o qualitativo convivam bem, onde seja possível relativizar a verdade, "o que é verdade para alguns, não é para outros", "o que hoje é verdade, amanhã pode se tornar novamente uma hipótese".

Vygostky (2007, p. 68) diz que "estudar alguma coisa historicamente significa estudá-la no processo de mudança". Dessa maneira, compreender o que é conhecimento, e, mais ainda, conhecimento sobre o conhecimento, é ter uma visão holística, uma visão do todo. Não é possível entender a construção do conhecimento, sem entender esse processo em sua dinâmica, em seu movimento, sem entender o objeto de estudo em seu contexto histórico-social, mesmo que este objeto seja o próprio conhecimento.

André (1995) diz que selecionar uma unidade para estudo, como forma de entendê-la como uma unidade, não impede que haja uma preocupação com o seu contexto e às suas inter-relações com um todo orgânico. Contextualizar o fenômeno é uma forma de apreendê-lo mais significativamente (Macedo, 2006). É importante entender que assumir uma unidade como objeto de estudo, embora possa representar um recorte de um todo muito maior, não é um simples reducionismo. Caracteriza-se como uma forma de "dar conta" do que é estudado, para que depois, de posse dessa unidade, seja possível generalizar e ampliar os horizontes.

Conhecimento se caracteriza pela internalização dos saberes, conceitos adquiridos. As pessoas, mesmo que apresentadas às mesmas informações e situações cotidianas, reagem de formas diferentes, e, consequentemente, constroem conhecimento também de formas diferentes. Possuem estruturas mentais diferenciadas, que dependem, além das construções neuropsicológicas, também das construções sociais. Maturana & Varela (2001, p. 32) dizem que "todo fazer é um conhecer e todo conhecer é um fazer", no sentido de que se aprende vivendo, e vive-se aprendendo. Mesmo entre os deficientes visuais, entendendo primeiramente que cada um deles é um ser vivo diferente, uma pessoa que carrega histórias próprias, essa internalização e construção dos significados também são particulares. Aqueles com cegueira congênita (desde o nascimento) não guardam memórias visuais, diferentemente daqueles com cegueira adquirida, pois, em algum momento de suas vidas, enxergavam e mantém retido em suas memórias lembranças visuais, das cores, objetos, imagens (Gil, 2000).

Habermas (19821, p. 26 apud Franco, 2008, p. 111) diz que "não há possibilidade de individualização sem socialização, assim como não há socialização possível sem individualização". Nesse sentido, aprende-se com o ambiente a nossa volta, com as interações, com o espaço dialógico que ressignifica o sujeito enquanto unidade sócio-cultural, além de biológico. De acordo com Maturana & Varela (2001, p. 12), "se a vida é um processo de conhecimento, os seres vivos constroem esse conhecimento não a partir de uma atitude passiva e sim pela interação". Acrescentam ainda que "Não há descontinuidade entre o social, o humano e suas raízes biológicas. O fenômeno do conhecer é um todo integrado e está fundamentado da mesma forma em todos os seus âmbitos" (Maturana & Varela, 2001, p. 33).

O conhecimento passa por diversos estágios, desde o conhecer tátil, sensorial, até níveis superiores, determinados pelo pensamento verbal. Esses dois níveis de conhecimento (senso-perceptual e pensamento verbal) são os extremos inferior e superior da escada cognitiva. Entre eles estão a memória, a atenção e a consciência. O pensamento, externalizado em palavras, permite analisar, reelaborar e generalizar dados senso-perceptuais, o que é vivido e experimentado, dando forma a outros e novos conceitos, e a relação entre eles (Díaz, 2008).

A linguagem, apresentada em qualquer uma de suas formas, escrita, falada, gestual, e outras, juntamente com o pensamento, contribuem para a construção do conhecimento. Entretanto, esse conhecimento não é neutro, no sentido de que depende do objeto observado, mas também do sujeito que o observa. Dessa forma, compreender o conhecimento, ou conhecer o conhecer, depende também, e, sem dúvida, não é uma tarefa trivial, da subjetividade do sujeito, de suas experiências e construções anteriores. Matura & Varela (2001, p. 31) dizem que "[...] não se pode tomar o fenômeno do conhecer como se houvesse "fato" ou objetos lá fora, que alguém capta e introduz na cabeça. A experiência de qualquer coisa lá fora é validada de uma maneira particular pela estrutura humana, que torna possível "a coisa" que surge na descrição".

Nesta prática social, as propriedades, funções e valores das "coisas" se convertem em significado (o que é em si) e sentido (o que é para nós) em palavras que representam tais "coisas" e que fornecem ao pensamento um material inestimável para a criação de novos conceitos sobre as "coisas" (Díaz, 2008).

Ainda segundo Maturana & Varela (2001, p. 32), "Toda reflexão, inclusive a que se faz sobre os fundamentos de conhecer humano, ocorre necessariamente na linguagem, que é nossa maneira particular de ser humanos e estar no fazer humano." Consideram que a linguagem é o nosso instrumento cognitivo, que nos permite analisar o próprio instrumento de análise.

 

Processo de mediação

Mediação, no dicionário Aurélio (2004), significa ato de mediar. Mediar, por sua vez, significa intervir, intermediar, interceder. Observa-se, nesse conceito, que a mediação necessariamente pressupõe a parceria entre as "partes", não é um processo "intra" sujeito, mas sim "inter" sujeitos e "inter" sujeito e instrumentos. Pressupõe, dessa maneira, a interação entre os sujeitos, e a utilização de instrumentos que colaborem nesse processo.

A interação, relação entre sujeitos, a partir da perspectiva sócio-histórica, é possibilitada pela linguagem. Embora as palavras, signos ideológicos por excelência, sejam mediadoras do processo dialético entre o individual e o social (Jobim-e-Souza & Kramer, 2003), a linguagem não se resume ou se encerra nelas. A linguagem é "tudo o que en-caminha e movimenta" (Heidegger, 2003, p. 163), "é antes de tudo um meio de comunicação social, de enunciação e compreensão" (Vygotsky, 2000, p. 11). A linguagem reúne as funções de comunicação e do pensamento, de tal forma que as mantém intrinsecamente interligadas. "O outro social intercepta a relação entre o sujeito e objeto do conhecimento, atribuindo sentidos e significados à realidade e, desse modo, gerando uma representação da realidade, construindo novos signos" (Santos, 2008, p. 7).

"[...] O objeto de conhecimento, na realidade, faz o seu desvelamento na teia de relações sociais, através de símbolos e signos, sendo a palavra o seu signo principal. Todo objeto é cultural e se apresenta na sociedade. E a maneira de captá-lo ou assimilá-lo é pelo diálogo... Portanto, a interação social é uma forma privilegiada de acesso a informação, de acesso ao objeto de conhecimento." (Matui, 1995, p. 45)

Vygotsky (2000) estabelece dois processos de funcionamento dessa linguagem-discurso: a exterior, como um processo de transformação do pensamento em palavras (materialização do pensamento), e a interior, como um processo que se realiza de fora para dentro ("evaporação" da linguagem no pensamento).

A linguagem é constitutiva dos próprios sujeitos na medida em que estes interagem com os outros durante as situações de comunicação discursiva, e sua consciência, seu conhecimento do mundo, e em última análise, eles próprios, se completam e se constroem continuamente nas suas práticas discursivas e nas dos outros. Ao longo de sua história, então, o sujeito se constitui a medida que ouve e se apropria de palavras e de discursos de seus pares (pais, amigos, colegas, professores, etc.) tornando-as, em parte, suas próprias palavras.

A linguagem, embora existam outros, se caracteriza como o "instrumento essencial" para a atuação transformadora do homem no mundo e vice-versa. Os instrumentos e os processos de mediação são fontes para o desenvolvimento e reorganização dos processos cognitivos e psicológicos do ser humano.

A mediação contribui para o processo de desenvolvimento humano, assim como possibilita o aprender. Para Vygotsky (1993), o verdadeiro curso do desenvolvimento do pensamento não vai do individual para o socializado, mas do social para o individual. Para ele, aprendizagem e desenvolvimento estão inter-relacionados. Considera, também, que o sujeito, deparando-se com uma situação-problema, possui conhecimentos prévios, que não podem ser ignorados, e que o aprendizado deve ser combinado de alguma maneira com o nível de desenvolvimento de cada um. É nesse sentido que surge o conceito de zona de desenvolvimento proximal (ZDP), que corrobora para a compreensão sobre interação, mediação e aprendizagem colaborativa.

Segundo Vygotsky (2007, p. 97), a ZDP é a:

"[...] distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes."

O nível de desenvolvimento real é "o nível de desenvolvimento das funções mentais que se estabelecem como resultado de certos ciclos de desenvolvimento já completados." (Vygotsky, 2007, p. 95). Nesse nível, o sujeito tem maturidade para solucionar problemas de maneira independente, já que funções para tal já amadureceram.

"[...] A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de mutação [...] Essas funções poderiam ser chamadas de "brotos" ou "flores" do desenvolvimento, em vez de "frutos" do desenvolvimento. O nível de desenvolvimento real caracteriza o desenvolvimento mental retrospectivamente, enquanto a zona de desenvolvimento proximal caracteriza o desenvolvimento mental prospectivamente." (Vygotsky, 2007, p. 98)

A aprendizagem é a relação que existe entre o nível de desenvolvimento real e o nível de desenvolvimento potencial, é a capacidade do sujeito, através da socialização, da interação com os outros, da mediação, solucionar problemas, antes não resolvidos individualmente.

Para Gil (2000), o desenvolvimento individual e psicológico do deficiente visual é impactado pela deficiência (congênita ou adquirida), mas não do mesmo jeito ou com a mesma intensidade, uma vez que é dependente de uma série de outros fatores, tais como: a idade em que ocorreu, o grau da deficiência, a dinâmica geral da família, as intervenções aplicadas e testadas e a personalidade da pessoa. Mais uma vez, percebe-se que, além de outros fatores, as intervenções do outro social (o processo de mediação) são importantes e determinantes para o desenvolvimento social e psicológico do deficiente visual.

 

Método do quarto excluído

O método do quarto excluído, embora tenha sido pensado por Vygotsky e Luria, foi desenvolvido e experimentado primeiramente por Luria. A investigação realizada por Luria, na Rússia, foi feita em um ambiente o mais próximo possível daquele vivido pelos sujeitos (objetos da investigação), de tal maneira que, mesmo quando respondiam individualmente, estavam em grupos que permitiam a troca de opiniões e ideias entre os sujeitos, e entre os sujeitos e o investigador (Melo, 2002).

Esse método tem sido utilizado para diagnóstico psicopedagógico, fornecendo "[...] indicativos de mediação para que a ZDP possa ser ampliada, através de uma mediação ajustada e efetivamente dirigida" (Melo, 2002, p. 13). Segundo este autor, o método do quarto excluído envolve as seguintes etapas:

  • Conversas (diálogo) com os sujeitos participantes;
  • entrevistas;
  • aplicação do instrumento de investigação, que caracteriza mais propriamente o método, que é a apresentação aos sujeitos de quatro objetos, três dos quais pertencem a uma categoria e o quarto a outra.

Nesta última etapa, na qual se concentra a investigação propriamente dita, apresentam-se ao sujeito da investigação fichas com desenhos de objetos reais e de fácil identificação. Em seguida, questionam-se quais são os objetos semelhantes, de tal maneira que possam ser colocados em um mesmo grupo, designado por um único nome, e qual é o elemento, dentre os quatro, que não se encaixa neste grupo. O sujeito, ao ser questionado, elabora verbalmente os motivos de sua escolha, a exclusão e a generalização. Nesse processo, observa-se a maneira como o indivíduo classifica os objetos (classificação), sua capacidade de abstração e generalização, e o caminho descrito por ele (informações detalhadas) para incluir os três objetos (inclusão) em um mesmo grupo, e excluir o quarto (exclusão) (Luria, 19902 apud Melo, 2002).

Este método permite, dessa forma, observar os mecanismos utilizados para a generalização (através da comparação, discriminação e agrupamento) e o uso de significados das palavras como instrumento básico do pensamento. A linguagem, aqui expressa em palavras, representa o pensamento do sujeito investigado, as relações entre os conceitos pré-formados e os novos que se formam da relação e mediação.

Além dos objetivos já enumerados, o método busca também avaliar, analisar aspectos como: memorização de palavras, comparação entre conceitos, dificuldades de aprendizagem (tanto aspectos quantitativos quanto qualitativos nesse processo de aprendizagem) (Melo, 2002).

Segundo Melo (2002), existem três níveis de ajuda, para o processo de mediação no método: (1) Nível 1: reorientação e chamada da atenção; (2) Nível 2: perguntas que geram estímulos (ajuda e estímulos) e (3) Nível 3: demonstração da atividade. Esses níveis de ajuda (mediação) podem ser usados isoladamente ou não, a depender da necessidade do sujeito e da dificuldade da tarefa apresentada.

Este mesmo autor classifica o método de duas formas, caracterizando-o: (1) quanto instrumento de avaliação diagnóstica e (2) quanto método de ação sobre o conhecimento. Em relação à primeira classificação (instrumento de avaliação, de diagnóstico), o método explora conhecimentos em diferentes áreas:

  • Área da linguagem: propicia ao sujeito a capacidade de se expressar oralmente, podendo ser observados a pronúncia, a dicção, possíveis incorreções sonoras, sua expressividade lingüística, o uso de termos para explicar a generalização, a pronúncia e o conhecimento nominal das figuras;
  • área da percepção visual: buscar investigar como o sujeito identifica as formas; como ele relaciona os objetos, exclui, percebe as semelhanças e diferenças, em um processo de generalização e exclusão;
  • área da psicomotricidade: observa-se a coordenação visio-motora, a forma como o indivíduo segura as lâminas, a forma como se comporta, em pé ou sentado, como se aproxima ou se afasta;
  • área das relações afetivas: observa a receptividade do sujeito, a curiosidade sobre os desenhos, sobre o método, a participação, a reciprocidade de afeto que se pode estabelecer entre o investigado e o investigador, por se tratar de um método para uso individualizado.

Quanto à ação sobre o conhecimento, o método permite observar quais são os conhecimentos trazidos pelo sujeito (nível real) e aqueles que eles podem alcançar (nível potencial) com os níveis de ajuda (ZDP - mediação). Enfatiza, neste caso, características como a identificação, a atenção, a sistematização, a decisão-ação, características estas que podem propiciar a aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo, relacional e social.

 

Método do quarto excluído enquanto método de análise dos processos cognitivos

O método do quarto excluído possui peculiaridades e características próprias, que o caracteriza como uma metodologia de avaliação, de análise dos processos cognitivos. Segundo Figueira (2006), quando cita os trabalhos de Cavanaugh & Perlmutter (1982)3, Caverni (1988)4 e Garner (1988)5, existem, de modo genérico, duas grandes categorias de métodos de avaliação dos processos cognitivos e metacognitvos: os métodos concorrentes e os métodos independentes (consecutivos), que se distinguem pela presença ou ausência de atividade simultânea, a partir das verbalizações/introspecções ou desempenhos do sujeito. Ambos podem ser verbais ou não verbais.

Os métodos concorrentes se caracterizam pela análise ou avaliação que ocorre durante ou no contexto de realização da tarefa. Dentre eles, estão o thinking aloud, as técnicas de memorização, as narrativas verbais e o ensino tutorial de pares (discussão entre pares), todos eles verbais. Dentre os não verbais, estão os tempos de reação e a observação direta das realizações (Figueira, 2006).

Em contrapartida, os métodos independentes "podem ser definidos como aqueles que não se aplicam ou utilizam em simultaneidade à execução da atividade, incidindo, antes, sobre tarefas ou situações hipotéticas ou experiências passadas" (Figueira, 2006, p. 2). Dentre os independentes verbais estão os questionários, as entrevistas, os inventários, as escalas, os auto-registros (as narrativas, os diários) e a recordação estimulada; dentre os não verbais, estão as técnicas pictóricas.

Todos esses métodos possuem suas limitações, vantagens e desvantagens (ver Figueira, 2006), podendo ser usados de maneira não excludente, na tentativa de diminuir o nível de falhas.

O método do quarto excluído, na medida em que inclui conversas, diálogos com os sujeitos participantes, entrevistas, além da investigação/aplicação das lâminas, pode ser considerado tanto concorrente quanto independente. A independência fica a cargo dos instrumentos como entrevista, questionário, que podem ser aplicados antes ou depois da utilização das lâminas (fichas). Já a sua concorrência é expressa na verbalização do sujeito, enquanto avalia as fichas, ou seja, enquanto executa a atividade de identificação, classificação, generalização e exclusão. Esse procedimento envolve o thinking aloud, uma vez que é sugerido ao sujeito que verbalize em voz alta todos os pensamentos que lhe ocorrem, enquanto realiza a tarefa. Segundo Figueira (2006), a verbalização pode pecar em qualidade, pois nem sempre reflete com rigor o que o sujeito conhece, e também em quantidade, pois pode haver conhecimentos que nunca são expressos, por motivos diversos. No entanto, além de expressar o que se conhece sobre algo (sobre os objetos, as coisas), mesmo com suas limitações, a verbalização é rica em subjetividade, afetividade e emoção, questões também envolvidas na construção do conhecimento pelo sujeito.

Pode-se também fazer uma relação do quarto excluído com os métodos não verbais de observação direta dos desempenhos e dos tempos de reação, ambos concorrentes. "A partir do tempo de reação, ou seja, do tempo que o sujeito leva a dar uma resposta, infere-se o seu grau de conhecimento metacognitivo" (Figueira, 2006, p. 5).

A técnica pictórica, que consiste na apresentação, através de imagens, de problemas que o sujeito deve comparar e classificar, tem alguma semelhança com o quarto excluído. Em ambos, existe a apresentação de imagens para a classificação do sujeito, e a construção dos processos cognitivos é inferida a partir dessas classificações. O que difere, entretanto, é que a técnica pictórica é independente, ou seja, não implica em simultaneidade à execução da atividade, enquanto que no quarto excluído, necessariamente a apresentação das imagens acontece enquanto o sujeito pensa, identifica os objetos, classifica e generaliza, logo enquanto executa a tarefa.

A generalização envolve diferentes operações intelectuais, o que permite uma investigação dos caminhos de construção cognitiva do sujeito. Para melhor compreensão do processo de generalização, vale a pena entender os níveis de generalização trazidos por Vygotsky (1993; Santos, 2008), apresentados abaixo.

Esses três níveis, o sincrético, o de complexos e o de conceito, embora distintos, se correlacionam, de tal maneira que cada nova fase do desenvolvimento da generalização se baseia na generalização das fases anteriores.

O primeiro nível, o sincrético, é a fase mais elementar da formação do conceito, com baixo nível de abstração e generalização. Manifesta-se no sujeito bem cedo e se caracteriza pela tentativa de realizar os primeiros agrupamentos de maneira não organizada, as primeiras generalizações a partir de objetos concretos, visualizados (ou "sentidos", pelo tato, percepção sensorial, no caso dos deficientes visuais), pela proximidade de uma mesma série, pelas semelhanças de objetos dentro de um fluxo vertical (e.g. lápis, caderno, livro, cola, todos se agrupam em material escolar).

O segundo nível, o de generalizações complexas, mais abstrato que o anterior, se caracteriza por relações objetivas existentes entre os objetos, na possibilidade de reunir as figuras em um mesmo grupo. É baseado no funcionamento do pensamento verbal, onde objetos e enunciados isolados se associam na mente do sujeito (agrupamento concreto) devido às suas impressões objetivas e experiências. É nesta fase que surgem os pseudo-conceitos, que se assemelham a conceitos abstratos, onde o sujeito, através do agrupamento de objetos concretos, baseados em características externas, correlaciona-os, cria vínculos entre eles, consegue colocá-los em um mesmo grupo, mesmo que sejam objetos diferentes, não tão próximos.

O terceiro e último nível, o de generalização de conceitos científicos, é constituída de operações de isolamento/abstração e análise/síntese. Nessa fase, onde nasce o conceito "verdadeiro" (entenda verdade como algo que é "agora", mas que, em um futuro próximo, pode novamente se tornar hipótese), o sujeito mostra-se capaz de abstrair, isolar os atributos do objeto e examinar os elementos abstratos de forma separada da totalidade da experiência concreta de que fazem parte. Estes conceitos se caracterizam por estarem organizados em um sistema hierárquico de interrelações conceituais, de tal maneira que necessitam de articulação com conceitos subordinados ou supra-ordenados, imprescindíveis a sua compreensão. A formação de tais conceitos e este nível de generalização dependem de uma estrutura mental superior que acontece no desenvolvimento do sujeito.

Segundo Santos (2008), a formação de conceitos é resultado do esforço conjunto da utilização da palavra ou signo com os processos psicológicos, além de pressupor abstração e generalização dos atributos da realidade. Lembra que, para Vygotsky (1993),

"[...] cada sujeito será capaz de realizar abstrações que suplantam significados ligados a suas práticas imediatas, dependendo de suas experiências interativas. Os significados evoluem, adquirindo novos sentidos e transformam-se ao longo do desenvolvimento do sujeito." (Santos, 2008, p. 8)

Como já foi dito, as etapas de generalização não se excluem. Passa-se da generalização em uma etapa horizontal (e.g. mesa, cadeira, armário) para a etapa vertical em que se classifica (e.g. mesa, cadeira, armário são móveis), até chegar ao nível conceitual (e.g. móveis são de uso doméstico). Cada estrutura seguinte se baseia na generalização que ocorre anteriormente, partindo de conceitos de objetos concretos até a generalização de conceitos abstratos (Melo, 2002).

 

Método do quarto excluído e sua aplicação com deficientes visuais

O método do quarto excluído, como método de investigação, se baseia na escola sócio-histórico-cultural de Vygotsky e seguidores. Dessa maneira, tem como objetivo explorar o nível de generalização que existe no nível de desenvolvimento real do sujeito e, através de níveis de ajuda (reorientação; ajuda e estímulo e demonstração), favorecer o aprendizado, a descoberta, mediando, intervindo na ZDP. Busca, através da apresentação ordenada das lâminas e do seu grau de dificuldades (implícito nesse ordenamento), aplicar níveis de ajuda, quando necessário, e avaliar quantitativamente e qualitativamente as respostas e o percurso delineado pelo sujeito, em um processo interativo de "aprender - mediar - aprender". Além desses aspectos, é possível inferir, a partir das repostas e desse percurso, a necessidade do sujeito associar o objeto apresentado a conhecimentos prévios, para que possa dar sentido, significação ao objeto observado (percebido).

Segundo Luria (19902 apud Melo, 2002, p. 42), as trocas sócio-históricas não se limitam à introdução de novos conteúdos (conceitos) no mundo mental dos seres humanos, mas criam também novas formas de atividades e novas estruturas de funcionamento cognitivo (avanço da consciência humana para um novo estágio). Observa-se que, nessa perspectiva, existe relação direta entre o desenvolvimento humano e seu meio social, entre a formação dos processos cognitivos e a história sócio-cultural de cada um, entre a estruturação dos processos mentais e as formas de desenvolvimento histórico, através de práticas sociais.

Dessa maneira, aplicou-se, de maneira bem incipiente, o método do quarto excluído a duas pessoas portadoras de deficiência visual. A intenção desse pequeno experimento foi começar a pensar, analisar como acontecem as generalizações em deficientes visuais, quando da aplicação do método do quarto excluído, como a mediação pode oportunizá-los a aprender a aprender, a reconstruir seus conceitos em um processo de autoconstrução, como criam representações mentais e observar o comportamento dessas pessoas frente aos desafios apresentados.

Todas as duas pessoas observadas, ambas do sexo feminino, possuem cegueira total. A primeira delas, de 19 anos, possui cegueira congênita, ou seja, desde o seu nascimento. A segunda, de 26 anos, perdeu a visão em função de um acidente de espingarda, aos 9 anos passou a não enxergar do olho esquerdo, e aos 19 anos, do olho direito. Portanto, possuem experiências de vida diferentes que, com certeza, influenciam na forma como "vêem" o mundo, como sentem e experimentam os objetos e coisas a sua volta.

Como não dispõem do sentido visual, fez-se, primeiramente (a intenção é posteriormente fazer adequação das lâminas do quarto excluído para os deficientes visuais, com auto relevo) uma adaptação do método a essa situação. Foram apresentados objetos reais aos dois sujeitos da pesquisa, no lugar das fichas. Antes mesmo da apresentação das fichas, foi apresentado o objetivo da tarefa, e o que elas precisariam fazer. Depois de apresentados os objetos, questionou-se sobre que objetos seriam aqueles. Até este momento, algumas situações foram observadas. A primeira delas é que, durante a pesquisa/investigação, principalmente pelo fato de ser o primeiro encontro, eu (investigador), muito mais do que elas, estava constrangida, sem saber como lidar com as diferenças, sem saber como me portar, talvez pelo fato de ter receio em invadir um espaço antes só delas. Isso me fez pensar que o diferente depende do espaço e contexto em que esteja. Naquele momento, eu era a diferente, estava na Fundação Jonathas Telles de Carvalho, de apoio pedagógico aos deficientes visuais, e me encontrava sozinha com as duas voluntárias e mais um terceiro portador de deficiência visual. Eles estavam bem à vontade, em um ambiente que lhes era próprio e cotidiano. A segunda situação observada é que uma delas, a de 19 anos, estava um pouco apreensiva com a atividade que seria realizada e preocupada se acertaria ou não o objeto apresentado. Esses aspectos afetivos podem influenciar e devem ser considerados nos processos cognitivos.

Depois de experimentarem os objetos através do tato (desenvolvimento da psicomotricidade, uma das áreas exploradas pelo método do quarto excluído, enquanto instrumento de avaliação diagnóstica), começaram a arriscar, a se aproximarem do objeto concreto, a identificarem. Vale ressaltar que este experimento foi feito com objetos que se aproximam das lâminas de I a IV do método do quarto excluído, nas quais as figuras são as mesmas apresentadas de formas diferentes, e com objetos que se assemelham as lâminas de VII a X, que trazem figuras pertencentes a um mesmo grupo utilitário, com usos semelhantes.

Na apresentação do primeiro grupo de objetos (iguais em formatos diferentes), observou-se a generalização em suas fases sincrética e complexa, onde há a aproximação do objeto e a sua categorização.

Nesta etapa, o primeiro sujeito recebeu três réguas com formatos diferentes e uma bolsa. Teve um pouco de dificuldade em identificar uma das réguas, pelo fato dela apresentar um desnível. Tão logo essa dificuldade foi superada, e já tendo identificado a bolsa, conseguiu concluir que a bolsa era o quarto excluído, uma vez que os três outros objetos tinham exatamente a mesma função. A mediação, no instante da dificuldade, foi essencial para colaborar no processo de identificação do objeto, de interiorização, de autoconstrução do "novo" a partir do "velho", do desconhecido a partir do conhecido. Essa mediação se deu no nível um de ajuda e estímulo apresentado na sessão 4. Eu, sujeito mediador, chamei a atenção do sujeito observado quanto à forma do objeto, pedi que novamente tocasse e experimentasse. Depois disso, ela, com dúvidas, disse que poderia ser também uma régua, mas não com muita certeza. Então, acabei por interferir e afirmei que era uma régua.

Ao segundo sujeito foram apresentados três relógios de mesa com formatos diferentes e uma pulseira de braço. O primeiro relógio, mais convencional, facilmente foi identificado, pelo formato e por apresentar uma bateria. O segundo relógio, embora não tão convencional, foi também identificado. A pulseira de braço foi também percebida, pelo seu formato. Entretanto, como ela não conseguiu identificar com facilidade o terceiro relógio, que estava em um formato de HelloKit, não sabia ao certo qual seria o quarto excluído. Neste instante, novamente se fez necessária a mediação através da reorientação e chamada de atenção. Segurei em suas mãos e fui experimentando juntamente com ela o objeto, expressando verbalmente por onde tocávamos e alertando sobre a presença de alguns elementos nesse objeto, como uma bateria e um vidro, que podiam remetê-la às semelhanças com um relógio. Inicialmente, ela havia dito que aquele objeto se assemelhava a um carrinho de brinquedo, por conta de suas experiências sensoperceptivas anteriores, não conseguindo abstrair para o conceito de relógio. Como não teve experiência visual anterior, teve dificuldade maior se comparada ao outro sujeito com experiência visual anterior. Para ela, o conhecimento do mundo acontece por experiências táteis, é preciso apresentá-la os objetos para que ela forme o conceito sobre eles.

Merleau-Ponty (19946 apud Herval, 2008) reforça a necessidade de relação entre conteúdo e forma. Nesse sentido, entende conteúdo como os dados sensoriais (visão, audição, tato, etc.) e forma como a organização completa desses dados, que é fornecida pela função simbólica. "Não se pode organizar nada se não houver dados. Entretanto, esses dados quando dissociados da função simbólica (fragmentados), de nada adiantam" (Herval, 2008, p. 93). É indispensável que o sujeito faça suas associações cognitivas, dando significação ao "novo", diante do que lhe foi apresentado. Essa significação ou ressignificação depende do que previamente o sujeito tem em sua memória e em sua história de vida.

Em um segundo momento, quando da apresentação dos objetos que se assemelham às lâminas de VII a X, além de identificarem os objetos individualmente, conseguiram ir além, classificando-os em um mesmo grupo, correlacionando-os. Observou-se, nesta etapa, a generalização sincrética, complexa, até a fase mais conceitual, abstrata.

Foram trazidos para o primeiro sujeito (com experiência visual anterior), um livro, um lápis, um marca texto e uma laterna pequena. A sua dificuldade foi em identificar a lanterna, pois para ela se assemelhava a um batom, por conta do formato, ou a um chaveiro, por conta de possuir algo parecido com o cordão do chaveiro. Facilmente, conseguiu identificar os outros três objetos, classificando-os como "material de estudo". Para o segundo sujeito, foram apresentados uma calculadora, um livro, um pincel atômico e uma bolsa pequena. A dificuldade na identificação da calculadora aconteceu por seu formato diferente, um estojo fechado que ao abrir possuía de um lado um espaço para colocar uma caneta, do outro, os botões da calculadora. Nesse instante, de novo houve a mediação, na tentativa de aproximá-la do que já lhe era familiar, os botões da calculadora, mostrando, através do contato físico (tato), as outras partes constituintes do objeto. Depois dessa identificação, os demais objetos foram percebidos com maior facilidade. Ela, assim como a colega anterior, classificou esses três objetos como "objetos de estudo", justificando que a bolsa era a mais distante deste fim.

Ao serem questionadas sobre se conseguiam constituir alguma representação mental do objeto, a primeira, aquela que já experimentou o sentido da visão antes, respondeu que sim, que ao tocar o objeto, conseguia "visualizar mentalmente" sua imagem. A outra, aquela sem experiência visual, ao contrário, disse que nada, nenhuma representação mental era feita ao tocar e identificar o objeto. Esse é um assunto que merece discussões e aprofundamentos, uma vez que ela pode estar confundindo percepção visual (a possibilidade de ver) com representação mental. Segundo Bértolo (2006), a imagem independe da percepção visual, o que implica na possibilidade de cegos congênitos utilizarem outras modalidades sensoriais para produzir conceitos passíveis de representação gráfica. Sharon (2007) traz um estudo neurológico em paciente deficiente visual congênito, mostrando a capacidade desta pessoa, que nunca teve a oportunidade de ver, de fazer desenhos de paisagens e com perspectivas tridimensionais. Esse caso, talvez não tão comum, ilustra o quanto é possível que cegos totais congênitos possam ter e construir representações mentais, mesmo sem ter experimentando percepções visuais.

Diante dessa primeira experiência, pôde-se perceber que a mediação é um instrumento que pode possibilitar a ascensão do cego de um nível potencial para um nível real. A mediação, neste caso, se caracterizou, não pelo uso de instrumentos físicos, mas pelo uso do instrumento verbal, a linguagem, e do sentido tátil.

Aspectos relacionados a representação mental contrapondo-se a percepção visual ainda merecem estudos mais aprofundados, na tentativa de compreensão do que pensam, sentem e "imaginam" os deficientes visuais. É importante a compreensão, por todos, videntes e deficientes visuais, do que é representação mental e quais suas semelhanças e/ou diferenças da percepção visual. Enquanto este esclarecimento não for compreendido, principalmente pelos deficientes visuais, provavelmente teremos respostas imprecisas ou errôneas. Para Herval (2008, p. 93), "a diferenciação do conteúdo visual e não visual sugere uma organização distinta entre o sujeito que enxerga e o que não enxerga. No caso dos sujeitos cegos ou com baixa visão, a especificidade refere-se ao tátil, ao auditivo, ao olfativo, ao cinestésico". Diante disso, o sujeito deficiente visual organiza seus dados através de outros sentidos que não o visual, percebendo o mundo diferente daqueles que veem.

 

Reflexões e considerações finais

A experiência descrita e vivenciada, do uso do método quarto excluído como método de análise dos processos cognitivos e como mecanismo de mediação, ainda é o início de uma experiência maior. A perspectiva é de adaptação das lâminas em auto relevo, além de somente objetos reais, para observar o nível de abstração possível para os deficientes visuais. Outra perspectiva é de utilização dos outros níveis de ajuda (perguntas que gerem novos estímulos e demonstração), principalmente a adição de perguntas que reorientem os sujeitos, que os estimulem a pensar em outros e novos caminhos possíveis para suas respostas. A utilização do método, é, portanto, uma possibilidade de estimular a aprendizagem, de permitir a construção novos conceitos, e a evolução dos conhecimentos anteriores.

Segundo Dewey (1994), a aprendizagem acontece quando o fluxo da ação e da onda reflexa de suas consequências ganha significado. Para ele, o aprender ara esse trabalho, focando na estrat desse trabalho, envolvr as relaçimportante no sentido de blem ntaç vem da experiência, das conexões estabelecidas entre as coisas que fazemos e o que apreciamos ou sofremos delas. "Nesse sentido, o fazer torna-se um experimento com o mundo e o que dele sofremos torna-se aprendizagem [...]. O valor cognitivo de uma experiência repousa, portanto, na percepção de relacionamentos ou continuidades a que ela conduz" (Mamede & Penafort, 2001, p. 60).

A aprendizagem de um novo conceito, a construção de conhecimentos, necessita da internalização pelo sujeito, da autoconstrução do que foi apreendido. A mediação, nesse processo, privilegia a colaboração, a troca, as reflexões, saindo de uma zona de conforto (nível de desenvolvimento real, do que se conhece a priori) para o que é possível aprender e conhecer com o outro (nível de desenvolvimento potencial). "A noção de zona de desenvolvimento proximal favorece as interações... e fundamenta uma proposta de educação para a diversidade" (Hernández & Ventura, 1998, p. 34).

Essas representações mentais, construídas ao longo do experimento, representam a atividade cognitiva do sujeito, representam o que ele apreende, aprende, compreende do objeto manipulado. Não necessariamente existe relação entre as representações mentais com as representações/percepções visuais, um exemplo disso são os estudos sobre os sonhos em cegos (Bértolo, 2006), ou os desenhos produzidos pelos congênitos (Sharon, 2007). Para Gardner (2003), os símbolos, os esquemas, as imagens, as ideias, são todas elas formas de representação mental. É preciso incentivar o sujeito, seja ele deficiente ou não, na construção de novos significados, de novos conhecimentos.

Para finalizar, fica aqui uma reflexão: "não façamos das diferenças desigualdades".

 

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Endereço para correspondência
C.P.P. Sena
Rua Sabino Silva, 1071, Edifício Residencial Isaura, 301, Ponto Central, Feira de Santana, Bahia, Brasil.
E-mail para correspondência: caupinto.sena@gmail.com.

 

 

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