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Ciências & Cognição

versión On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.16 no.1 Rio de Janeiro dic. 2011

 

Artigo Científico

 

 

A dialética socrática e a relação ensino-aprendizagem

 

Socratic Dialectic and the learn-teaching relation

 

 

Fabio Wellington Orlando da Silva

Departamento de Física e Matemática, Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

 


Resumo

Discute-se a dialética socrática no contexto contemporâneo de ensino-aprendizagem e a percepção de Jacotot a respeito desse método, sobretudo a partir da visão de Rancière, procurando determinar as possíveis causas para suas divergências. As principais categorias de análise são as de competição, cooperação e rivalidade, de Mead; disputa, discussão e controvérsia, de Dascal; mestre ignorante e mestre embrutecedor, de Jacotot. A competição e a cooperação seriam comportamentos condicionados por um objetivo comum, socialmente determinado, em que a relação dos indivíduos com esse objetivo é que os mantém separados ou unidos; diferentemente da rivalidade, um comportamento dirigido a outros seres humanos, cuja derrota é o alvo principal. A disputa teria como objetivo a vitória sobre o adversário; controvérsia, a persuasão; discussão, a determinação da verdade. Conclui-se que a divergência se deve ao fato de Jacotot, ao analisar a dialética socrática sob o prisma da dicotomia mestre ignorante/embrutecedor, não considerar a relevância da instauração do princípio de conceito para a construção do conhecimento e não estabelecer distinção entre competição e rivalidade, disputa e discussão. © Cien. Cogn. 2011; Vol. 16 (1): 058-074.

Palavras-chave: ensino-aprendizagem; ensino de ciências; diálogos socráticos; mestre ignorante; Jacotot.


Abstract

We discuss the topicality of Socratic dialectic in the learn- teaching context and Jacotot's perception about that, especially from Rancière, seeking to determine the possible motivations of their divergences. The mainly categories of analysis are Mead's conceptions of competition, cooperation and rivalry; Dascal's dispute, discussion and controversy; Jacotot's ignorant and brute schoolmaster. Competition and cooperation are behavior oriented toward a goal, socially determined, and it is the relationship to the goal that holds the individuals together or not; rivalry is a behavior oriented toward another human being, whose worsting is the primary goal. The primary goal of dispute is the beat of adversary; controversy, persuation; discussion, determination of the truth. We conclude that the divergence is due to the fact that Jacotot, in his analysis about Socratic dialectic, in the way of ignorant/brute schoolmaster dichotomy, doesn't recognize the relevance of the instauration of the concept principle for the construction of knowledge and doesn't distinguish between competition and rivalry, dispute and discussion. © Cien. Cogn. 2011; Vol. 16 (1): 058-074.

Keywords: learn-teaching; science education; Socratic dialogues; the ignorant schoolmaster; Jacotot.


 

 

Introdução

Neste trabalho, discutimos a contribuição da dialética socrática para a relação ensino-aprendizagem e a percepção de Jacotot a respeito desse método, sobretudo a partir da visão de Rancière (2003, 2007). Procuramos determinar as possíveis causas de divergência intelectual entre esses dois pensadores, Sócrates e Jacotot, aparentemente tão próximos do ponto de vista pedagógico e epistemológico. Uma das motivações para essa análise é a relevância da utilização da dialética no ensino, sobretudo de ciência, que não deve limitar-se a informar os estudantes acerca de seus resultados mais proeminentes, emergindo entre os educadores a convicção de que discutir a história e a natureza da ciência seja tão importante quanto expor seus princípios e equações. E a natureza da ciência, independentemente de concepções particulares, remete à formulação de questões. Nesse ponto, contudo, as evidências revelam que geralmente os estudantes são bons "respondedores" de questões, mas se mostram reticentes quando se trata de elaborar suas próprias questões (Wenning, 2005). Por que isso ocorre? Provavelmente porque sejam tratados como recipientes passivos de informações, não devendo admirar-se que façam aquilo para que foram treinados, ou que se espera que façam. Os alunos não questionam porque não são ensinados a questionar ou porque perderam essa habilidade ao longo do processo escolar.

Uma estratégia para superar essa deficiência é induzir os estudantes a debater concepções ou teorias conflitantes, de acordo com a Reconstrução Racional Didática, inspirada em Lakatos (Silva, Nardi & Laburu, 2008a, 2008b). Trata-se de uma proposta pedagógica embasada no uso da história e da filosofia da ciência. Uma das vantagens dessa estratégia é a valorização da aprendizagem racional dos conceitos científicos, ao suscitar a discussão e a comparação entre duas ou mais teorias rivais. Ao mesmo tempo em que essa proposta simula situações reais vividas ao longo da história da ciência, auxilia o estudante a acompanhar debates posteriores entre concepções alternativas e científicas.

Outra opção é engajar os estudantes em diálogos socráticos (Leigh, 2007; Wenning, 2005; Wenning, Holbrook & Stankevitz, 2006). Além dos debates em torno de ideias constituir uma atividade necessária para a construção das ciências, os diálogos socráticos tem servido de inspiração explícita a muitos pesquisadores, para os quais desempenharam um papel relevante em sua fase de formação intelectual. A título de exemplo, citem-se Galileu Galilei (1564-1642) e Benjamin Franklin (1706-1790).

Galileu é considerado o criador da Física Moderna, por sua maneira inovadora de investigar os fenômenos da natureza. Foi também matemático, um dos maiores astrônomos de todos os tempos, um inventor habilidoso e deixou impresso em suas obras o germe para o desenvolvimento de diversas especialidades. Deve-se a ele, além do estudo das leis fundamentais do movimento, um aperfeiçoamento do telescópio, a descoberta dos satélites de Júpiter, uma discussão sobre resistência dos materiais e um vasto leque de contribuições em diversas áreas da ciência.

A influência dos diálogos socráticos sobre Galileu se manifesta não apenas como metodologia de pesquisa, mas também de expressão literária. Não por acaso, seus livros mais famosos, como o Ensaiador (Galilei, 1623/1978) e o Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo (Galilei, 1632/2004), foram redigidos sob a forma de diálogos, cuja estrutura e organização revelariam um estudo intenso dos diálogos socráticos (Olschki, 1967). Neste último, por exemplo, um dos interlocutores (Salviati) aplica reiteradamente a dialética para ensinar o outro (Simplício), propondo-lhe questões e explorando-as de todas as formas possíveis. Além disso, Galileu sempre se referiu a Platão com respeito e admiração, revelando de maneira inequívoca a profunda influência do mestre.

Franklin, que nasceu nos Estados Unidos e foi um dos líderes da independência americana, interrompeu os estudos regulares aos 10 anos de idade. Apesar disso, foi escritor, jornalista, impressor, editor, diplomata, inventor e cientista notável. Entre suas contribuições à ciência, estão a invenção do pára-raios, a demonstração experimental de que os raios são uma descarga elétrica, o reconhecimento de dois tipos de carga elétrica, um enunciado do "princípio de conservação da carga elétrica", a invenção das lentes bifocais, a invenção de um aquecedor a lenha mais eficiente, para citar apenas as mais conhecidas. Em sua autobiografia, ele relata que descobriu o método socrático aos 16 anos e o adotou imediatamente, tornando-se um exímio debatedor. Lamentavelmente, Franklin (1966, p.13) considerava-o apenas o:

"...mais seguro para mim e muito embaraçoso para aqueles contra os quais eu o empregava; por essa razão, adquiri prazer nele, praticava-o continuamente, e cresceu muito minha habilidade e perícia para arrastar pessoas, mesmo de maior conhecimento, por meio de conexões cujas conseqüências não poderiam antever, colocando-as em dificuldades das quais não podiam se libertar, obtendo assim vitórias que não serviam nem a mim, nem à minha causa."

Ele praticou o método durante alguns anos, mas o abandonou gradualmente, conservando, porém, o hábito de expressar-se com modesta desconfiança. A crítica contida em suas palavras é mais comum do que se pensa, ou seja, como ele outros também não distinguem os diálogos em que se busca desvelar a verdade daqueles em que se almeja simplesmente derrotar o adversário. Provavelmente essa mesma linha de interpretação é que levou Jacotot, e mais recentemente Ranciére (2003, 2007), a se opor a Sócrates, considerado por eles um "mestre embrutecedor", e não um "mestre emancipador" ou um "mestre ignorante".

Na visão de Jacotot, o mestre ignorante é aquele que não atua como um transmissor do saber, nem como um guia para conduzir o aluno ao bom caminho. Ora, um filósofo que afirmava "só sei que nada sei" deveria materializar o "mestre ignorante" por excelência. Um filósofo que procurava fazer com que cada um descobrisse a verdade que trazia dentro de si deveria ser o protótipo do "mestre emancipador". De onde provém, então, essa oposição? Rancière reconhece que Jacotot não era um especialista em filosofia grega, mas isso não seria suficiente para uma condenação tão contundente como a que se observa em seus textos. A princípio, ela derivaria da maneira como Sócrates criticava os pontos de vista enunciados por seus alunos, com o objetivo de eliminar contradições e desvelar a essência conceitual. Jacotot interpreta esse processo como um tipo de violência intelectual cometida contra os alunos para a imposição da vontade do mestre.

Nossa conclusão é que Jacotot não teria feito a necessária distinção entre os comportamentos de competição e rivalidade, discussão e disputa, bem como teria desprezado a relevância para o pensamento humano de trabalhar a partir de conceitos, como postulava Sócrates, em lugar de meras opiniões, como se fazia anteriormente.

 

Os diálogos de Platão

Ao se referir a Sócrates, Jacotot não esclarece se tem em mente o Sócrates histórico ou a personagem que aparece nos Diálogos de Platão, nas Memórias de Xenofonte ou nas peças de Aristófanes. Considerando a dificuldade manifestada por diversos pesquisadores em reconstituir o homem histórico e o fato de Jacotot fazer referência praticamente a apenas um diálogo, o Mênon, fica implícito que tem por base o testemunho de Platão, e é assim que vamos supor neste trabalho.

A obra de Platão é muito vasta e, no que se refere aos Diálogos, não há unanimidade quanto à sua classificação ou à ordem cronológica em que foram redigidos. Não há nem mesmo acordo a respeito do número exato de diálogos. Se alguns textos são indiscutivelmente autênticos, permanecem dúvidas sobre outros, ora incluídos nessa categoria, ora considerados apócrifos. Particularmente acerca do Mênon, pode-se afirmar que não é representativo, ou seja, não é propriamente um diálogo socrático. Os diálogos típicos têm por objetivo elucidar um conceito ou estabelecer o melhor conceito. Neste caso específico, ele parte de uma questão formulada por Mênon (Platão, 1970, p. 82), "estarias disposto a dizer-me, Sócrates, se é possível ensinar a virtude?", em torno da qual gira a primeira parte do diálogo, à qual visa dar uma resposta. A segunda parte resgata um pouco as características habituais, ao tentar estabelecer o conceito de virtude, areté. É então que se convoca um escravo com o intuito de investigar a possibilidade da teoria da reminiscência. Ao fazer o escravo "relembrar" um conhecimento de geometria, por meio de perguntas adequadas, ficaria demonstrado que o teria aprendido em outra vida, pois na atual sua condição social não lhe permitiu o acesso ao ensino. Assim, o Sócrates desse diálogo se afasta simultaneamente do homem histórico, seja ele qual for, revelando a independência de Platão em relação ao mestre, e da personagem usual, pois seu argumento de partida não é a elucidação de um conceito, mas a demonstração de uma tese. Portanto, não deve ser tomado como paradigma para caracterizar nenhum dos casos.

De acordo com Tannery (1970), a classificação mais antiga que se conhece dos diálogos é a de Trasilo, do séc. I d. C., que os dividiu em 9 tetralogias, em um total de 36. Esse autor tentou conciliar a ordem das matérias com a ordem cronológica e realizou um trabalho que ainda é a base para os estudos atuais. Considerando o ponto de vista de outros autores, como Estienne, a quantidade de diálogos seria superior a 40. Seja como for, trata-se de um número elevado de obras, escritas ao longo de décadas, e que podem refletir tanto a evolução filosófica de Platão quanto a de seu mestre.

A classificação de Trasilo distingue duas grandes categorias: os diálogos de pesquisa (zetéticos) e os de explicação (ifegéticos). Entre os de pesquisa, há os de exercício (maiêutica e ensaio) e os polêmicos (denunciativos e refutativos). Os diálogos de explicação conteriam os teóricos (físicos e lógicos) e os práticos (éticos e políticos).

Como se pode perceber, os diálogos contemplam diversos tipos, objetivos e temáticas. Por exemplo, o Mênon seria um diálogo de ensaio e o Fedro seria ético. Essa classificação, contudo, também está sujeita polêmicas, bem como a seqüência de elaboração dos textos. O fato é que o gênero não foi inventado por Platão, e deriva certamente do hábito dos atenienses de discutir de forma jurídica, mas ele o transformou, e essa transformação ocorreu ao longo de várias décadas.

Uma alternativa possível para estabelecer uma seqüência é considerar o tempo interno aos próprios diálogos como parâmetro de referência, ignorando as suposições externas da tradição interpretativa (Benoît, 1996). Dessa forma, as indicações contidas nos diálogos, as datas em que as cenas supostamente ocorreram e as citações de um diálogo em relação a outro permitiriam construir um tempo interno à obra e estabelecer uma linha de evolução. Se o objetivo é tratar do Sócrates personagem platônico, essa abordagem, além de suficiente, é a mais adequada, pois oferece uma coerência que de outra forma seria mais difícil obter.

Segundo essa abordagem, a vida de Sócrates, que faleceu aos 70 anos, poderia ser dividida em algumas fases, de acordo com seu desenvolvimento intelectual. Quem quiser conhecê-lo deve analisar esse processo, não se restringindo a um ponto isolado de sua vida. Afinal, assim como a mãe de um conhecido presidente da república, o grande filósofo também nasceu analfabeto.

A Apologia, que é sua defesa diante da Assembléia que o condenou, e Fédon, o diálogo de despedida em seu leito de morte (399 a. C.), permitiriam uma visão de retrospecto, pontuada pelos diálogos intermediários. Na juventude, ele teve uma fase naturalista, seguida de uma causalidade baseada na teoria das ideias. O encontro com Parmênides (450 a.C.) revelaria algumas dificuldades nessa teoria, produzindo um silêncio de muitos anos. Em 440 a.C., ao afirmar que não haveria ninguém mais sábio do que ele, o oráculo de Delfos desencadeou a fase de interrogação de todos aqueles que se tomavam por sábios, a negação do falso conhecimento, o saber que não se sabe. Em 434 a.C., o encontro com Diotima daria um conteúdo afirmativo à sua busca e, da beleza do mundo sensível, passaria à beleza do inteligível. Por volta de 432 a.C., seria introduzido um novo elemento, o conhecimento de si mesmo, o ver a si mesmo pelos olhos do outro, a teoria mítica da reminiscência, que aparece no Mênon. Finalmente, temos a eclosão de seu método, aquele pelo qual ficaria conhecido, a maiêutica. Vejamos esse quadro com um pouco mais de detalhes.

Em sua mocidade, Sócrates sentiu-se apaixonado pelo estudo da natureza. Parecia-lhe "admirável conhecer as causas de tudo, saber porque tudo vem à existência, porque perece e porque existe" (Platão, 1970, pp. 141-142). Ele se propunha questões do tipo: a origem dos seres vivos; se é o sangue que nos faz pensar, ou o ar, o fogo, ou o próprio cérebro; a maneira como ocorrem as transformações observadas na Terra e na abóbada celeste etc. Essa é uma declaração relevante, em que provavelmente grande parte dos pesquisadores atuais reconheceriam o enunciado de um dos objetivos da ciência moderna, particularmente daqueles que compartilham uma visão determinista de correlacionar causas e efeitos. Antes desse tipo de preocupação, Sócrates julgava ter um conhecimento certo de muitas coisas, mas esse estudo o levou a duvidar desse conhecimento, por exemplo, sobre o que até então julgava serem as causas que determinavam o crescimento do homem. O estudo, em lugar da certeza, deixou a dúvida; em lugar de respostas, mais e mais questões.

Ao tomar conhecimento de uma obra de Anaxágoras, acreditou ter encontrado a solução para seus questionamentos. Ao ler que "o espírito ou a inteligência é o ordenador e a causa de todas as coisas" (Platão, 1970, p. 143), esperava que, em seguida, Anaxágoras aplicasse esse princípio para lhe dizer se a Terra era plana ou redonda, bem como a causa e a necessidade desse fato, mostrando-lhe ainda que essa resposta seria a melhor possível. Infelizmente, à medida que lia seus livros, percebia que o autor não fazia nenhum uso do espírito, nem lhe atribuía nenhum papel como causa na ordem do universo, ou seja, Anaxágoras postulou um princípio explicativo ao qual, em seguida, não recorreu. Ao contrário, buscou a causalidade no ar, no éter, na água, construindo uma teoria puramente fenomenológica, e não a partir de primeiros princípios.

A decepção com Anaxágoras o levou a outra teoria: à suposição de um belo em si, um bom e um grande em si. Em outras palavras, ele abandonou o estudo direto dos seres sensíveis (concretos) e se voltou para o estudo das ideias, em busca do princípio conceitual dos seres sensíveis. Em 450 a.C., esse programa de pesquisa, porém, sofreu um duro golpe em um confronto com Parmênides e Zenão de Eléia, em que Sócrates tomou consciência de diversas dificuldades para explicar como as coisas sensíveis participariam das ideias. Essa dificuldade o deixou angustiado. Não é para menos, pois no século XX, outro gênio da humanidade, Albert Einstein, ainda considerava um grande mistério o fato de o mundo ser inteligível. Naquela época, a conexão entre o mundo sensível e o plano das ideias deveria ser ainda mais frágil.

Por volta de 440 a.C., um amigo de infância foi ao templo de Delfos e ouviu da Pítia a afirmação de que não haveria ninguém mais sábio do que Sócrates. Isso o deixou perplexo e o induziu a investigar o significado da revelação do oráculo com todos os que se reputavam sábios, na esperança de provar que eram mais sábios do que ele e, assim, refutar o oráculo. Interrogou políticos, oradores, artistas, artesãos, e demonstrou, um a um, que eles nada sabiam. Com isso, conquistou o ódio de diversos concidadãos, mas descobriu que ele, Sócrates, pelo menos sabia que nada sabia, e isso já era alguma coisa.

Pouco depois, o encontro com a sacerdotisa Diotima iniciaria uma nova fase de sua vida. Com ela, aprendeu a admirar a beleza. O mortal busca, na medida de suas forças, eternizar-se e imortalizar-se. Há aqueles cuja fecundidade reside no corpo e procuram preservar-se na procriação dos filhos. Para isso, a natureza os leva à procura dos belos corpos. Há também aqueles que desejam procriar pelo espírito, mas esse é um aprendizado, um processo que não se instala instantaneamente. Deve-se evoluir da procura dos belos corpos para as belas ocupações, dessas para os belos conhecimentos e, de saber em saber, atingir o conhecimento da Beleza Absoluta, da Beleza em si.

Em 434 a.C., reiniciam então os Diálogos, na forma de discussões com sofistas (Protágoras, Hípias Menor, Eutidemo) e adolescentes (Lysis, Alcibíades e Cármides). Nessa fase, os diálogos ainda são debates, disputas. Sócrates demonstra a inconsistência do discurso dos sofistas e dos belos jovens, mas não há uma busca real pelo aprofundamento das questões.

O diálogo Alcibíades, de 432 a. C., contém um elemento novo, a busca de si mesmo. Após demonstrar ao jovem Alcibíades que este nada sabia, surge a necessidade da busca do conhecimento de si mesmo, e a metáfora de se ver nos olhos do outro, pois os olhos se vêem a si mesmos quando olham em outros olhos e podem dessa maneira conhecer-se a si mesmos em outros olhos. Cada um precisa do outro para ver a si mesmo. O saber de si manifesta-se então como um dever. Nessa fase, Sócrates entra em choque com seus interlocutores e afirma a teoria da reminiscência, ou seja, das ideias como recordação do saber de outras vidas.

Pertencem a essa fase o Górgias e o Mênon. Muitos elementos definitivos já aqui se encontram, como, por exemplo, quando afirma para Mênon (Platão, 1970, p. 84): "não sei o que é a virtude (...) não obstante isso, eu desejaria investigar e examinar em tua companhia o que é a virtude (areté)", isto é, ambos participarão de uma investigação que os ultrapassa. Para demonstrar a tese da reminiscência, ele se oferece para interrogar um escravo de Mênon. A interrogação do escravo pode ter partido de uma premissa falsa, mas exibe um bom professor em ação, que aos poucos vai levando o estudante a perceber algumas relações entre os lados e as áreas dos retângulos. Se é verdade que ele induz o aluno pouco a pouco a extrair as relações corretas, o que invalidaria a demonstração da reminiscência, esse é um exemplo de duplo interesse para os professores de ciência ou matemática: (1) uma tentativa de demonstração empírica de uma tese, mesmo que todas as variáveis não tenham sido bem controladas; (2) uma exposição didática de como levar um aluno a reconhecer certas relações geométricas, em vez de afirmar desde o início essas relações e obrigá-lo a memorizá-las (decoreba).

Em Fedro, Sócrates avança um pouco mais, explica o princípio da síntese e da análise e a necessidade de organização (Platão, 1970, p. 248): "todo discurso deve ser formado como um ser vivo e ter seu organismo próprio; não deve faltar-lhe a cabeça nem os pés, e tanto os órgãos centrais como os externos devem estar dispostos de maneira a se ajustarem uns aos outros, e também ao conjunto". Refere-se ainda a alguém que pretendesse ensinar a medicina, ao qual se perguntasse a que pessoas, quando e durante quanto tempo deveria aplicar certos tratamentos (Platão, 1970, p. 253): "Mas que diriam os médicos se esse homem respondesse: isso não sei, mas exijo que os meus alunos sejam capazes de determinar por si mesmos o modo de aplicação desses tratamentos?". Esse suposto professor de medicina é muito semelhante ao mestre ignorante de Jacotot, e não seria prudente submeter-se aos cuidados dos alunos formados por ele. Quem se arriscar talvez não viva o suficiente para tomar o cálice de cicuta...

Essa trajetória de Sócrates o conduzirá ao amadurecimento do método, explicado no Teeteto. Agora sim, podemos contemplá-lo em toda a sua magnitude. Coincidentemente ou não, esse diálogo se passa em um ginásio. Teodoro fala a Sócrates a respeito de um jovem que aprende com rapidez, é gentil e corajoso, Teeteto. Por acaso, ele se encontra no meio de um grupo que terminara de untar o corpo, como fazem os desportistas no ginásio, e passa próximo a eles. Sócrates pede para chamá-lo e em seguida dão início a um diálogo. O tema desta vez é o conhecimento (Platão, 2007, p. 47): "Não posso compreender plenamente o que é realmente o conhecimento. Seríamos capazes de expressá-lo através de palavras?". A seguir, serão feitas diversas tentativas para determinar esse conceito. Os participantes não buscam destruir um ao outro, pois não são inimigos, mas parceiros em um programa de pesquisa, que se prestam auxílio recíproco.

A primeira tentativa de Teeteto é apresentar uma listagem de conhecimentos: geometria, sapataria, artesanato. Mas não é isso o que foi pedido! Não foi solicitado que enumerasse os ramos do conhecimento, o que procuram é desvelar o que seja conhecimento, determinar-lhe o conceito. E ele explica pacientemente: sapataria é a arte de confeccionar sapatos, carpintaria é a arte de fabricar mobiliário, e o que seria conhecimento, o que há por trás desse nome? O jovem sabe que a tarefa é difícil e pensa em desistir, "não sou capaz de responder tua pergunta", mas o mestre o apóia, "deves ter confiança em ti mesmo" (Platão, 2007, p. 50). O jovem recorda que já tentou resolver isso sozinho, mas não conseguiu nem resolver nem se libertar dessa preocupação. Sim, são as dores do parto. Sócrates faz a conhecida analogia entre a sua arte e a das parteiras. A diferença entre uma e outra é que a dele é praticada em homens, não em mulheres, e ele cuida das almas, não dos corpos. Ele mesmo não é um sábio, não gera o rebento, não traz à luz nenhuma descoberta, apenas auxilia o parto. Aqueles que se associam a ele e recebem a graça do deus realizam um magnífico progresso, não porque aprenderam com ele, mas porque descobriram em si mesmos.

Nesse pequeno trecho, Sócrates trata de dois pontos importantes para a ciência moderna: (1) o conceito, a busca de uma expressão operacional para um determinado conceito e sua distinção da mera relação dos elementos pertencentes a uma categoria; (2) o estabelecimento de uma metodologia de pesquisa distinta do próprio conhecimento proporcionado por essa metodologia.

Após essa exposição, Sócrates exorta o jovem a continuar sua pesquisa, "e jamais digas que és incapaz de fazê-lo, pois se é o desejo do deus e ele te transmite coragem, serás capaz" (Platão, 2007, p. 56). Ter coragem (andréia), agir corajosamente, agir como homem (aner), são conceitos indistintos para o grego, educado nas artes marciais. Com isso, Teeteto faz sua segunda tentativa, a do conhecimento como percepção. "Ótimo! Uma boa resposta, meu filho. Essa é a maneira devida de alguém se expressar. Mas anima-te, examinemos juntos tua declaração e verifiquemos se é algo fértil..." (Platão, 2007, p. 56). Afinal, o mestre não é aquele que abandona o discípulo à própria sorte, mas o que investiga junto com ele, o que se arrisca junto com ele. Descobrimos então outro ponto de contato com a ciência moderna: o da formação em condições de trabalho, ou seja, o pesquisador se forma ao realizar uma pesquisa com o seu orientador. Ambos precisam se exercitar. "Afinal, a condição do corpo não é deteriorada pelo repouso e pelo ócio, ao passo que é preservada, via de regra, pelos exercícios de ginástica e pelos movimentos?" (Platão, 2007, p. 59). Certamente isso implica uma exposição, mas, "se te dirigisses à Lacedemônia e visitasses as escolas de luta, acharias correto observar outros indivíduos nus - alguns deles fisicamente sofríveis - sem despir-se e exibir também teu próprio aspecto?" (Platão, 2007, p. 74). Não, Sócrates não faria isso, ele é um lutador obstinado e topou "com muitos Héracles e Teseus, homens poderosos no discurso, e poderiam ter-me derrubado se não fosse a paixão ardente por esses exercícios que me domina" (Platão, 2007, p. 86). Mas essa ainda não foi uma resposta definitiva, e "a conclusão é que o conhecimento não está nas sensações, mas no raciocinar sobre elas..." (Platão, 2007, p. 113).

Isso não quer dizer que o trabalho realizado fora inútil. Conseguiram eliminar algumas alternativas e estão aptos a prosseguir a pesquisa de um patamar mais elevado. A terceira tentativa, então, é de que o conhecimento seja a opinião verdadeira e, "caso na seqüência venha a se revelar incorreta, procurarei fornecer outra, tal como forneci essa", sabendo que "é melhor finalizar bem o pouco do que finalizar insatisfatoriamente o muito" (Platão, 2007, p. 114). Essa alternativa também exibe algumas dificuldades, mas conduz à relevante distinção entre ter e possuir conhecimento, por meio da seguinte analogia: "se alguém comprou um manto e este está sob seu controle e à sua disposição, mas não o usa, certamente não poderíamos dizer que o tem, mas que o possui" (Platão, 2007, p. 132). Esse exemplo é particularmente tocante aos professores de ciência. A literatura relacionada com o ensino relata em abundância episódios de alunos que memorizam os princípios da ciência, mas na vida cotidiana agem de acordo com o senso comum. Citem-se como exemplos, desenhar a cabeça dos antípodas voltada para a Terra e os pés para o espaço, ou uma partícula que desliza sobre a mesa e cai verticalmente, não segundo uma trajetória parabólica. Nos termos citados acima, esses alunos conceberiam uma opinião falsa porque possuem mas não tem conhecimento.

Infelizmente, a nova tentativa de estabelecer o conceito também foi reprovada. Não é por isso que vão desistir: "Se prosseguirmos em nossa investigação, talvez tropecemos no que buscamos no caminho. Se permanecermos imóveis, com certeza nada descobriremos" (Platão, 2007, p. 138). Com isso, Teeteto avança uma quarta possibilidade: "o conhecimento é a opinião verdadeira associada ao discurso racional" (Platão, 2007, p. 139). Essa ainda não será a resposta definitiva. A ciência não é uma verdade revelada pelos deuses, mas construída arduamente pelo espírito humano ao longo dos séculos. Essa busca ainda não foi concluída. Quem não estiver satisfeito com Sócrates por não ter chegado à resposta definitiva no espaço de um diálogo ficará ainda mais frustrado com a espécie humana por não tê-la fornecido após milhares de gerações. A exemplo do mestre, aqueles que compartilham dessa busca não desistem, pois, se permanecerem imóveis, não descobrirão nada. Persistirão, apesar de tudo, compreendendo a ciência como um problema que nunca poderá ser totalmente resolvido, em um ambiente em que o professor não está a serviço do aluno, mas ambos existem em função da ciência (Humboldt, 2003), ou da areté.

 

A competição na Grécia

O comportamento de um indivíduo deve ser analisado em relação ao contexto em que vive. Essa contextualização é um dos pressupostos de qualquer investigação psicológica ou sociológica (Mead, 1937, p. 5): "Nenhum fato acerca do comportamento dos membros de um grupo que compartilha uma cultura em comum, e são em maior ou menor grau membros de uma dada sociedade, é relevante fora de seu contexto". Portanto, para tentar compreender a Dialética Socrática, com um entendimento mínimo do comportamento de Sócrates em sua função de professor, devemos cotejá-lo com a realidade em que vivia.

A ideia de educação representava para o homem grego o sentido de todo o esforço humano (Jaeger, 2003). Assim, educação é um conceito-chave para entender o legado dos gregos e sua posição na história da humanidade. A educação grega buscava o desenvolvimento da areté, a virtude. Em Homero, essa qualidade estava associada à destreza guerreira e ao engenho da inteligência, mas, tanto para ele quanto para o grego em geral, a ética não continha convenções de mero dever, continha leis do ser. A busca da lei é uma constante no pensamento grego através dos tempos. Por mais primitivo que seja um povo ou grupo de pessoas, seus membros observam um conjunto de convenções, ou um código de leis, "mas os gregos buscaram a lei que age nas próprias coisas, e procuraram reger por elas a vida e o pensamento do homem" (Jaeger, 2003, p. 12). Na filosofia, a busca sistemática da lei no Cosmos evoluiu para a busca da lei no homem; ao período naturalista, sucedeu o período antropológico, instaurado por Sócrates.

A polis incitava os cidadãos a competir nos jogos olímpicos e era na competição que se formava o verdadeiro espírito comunitário. Por isso, em Atenas, o Ginásio, ou seja, a escola de atletismo era um local de encontro da juventude. O Ginásio era também um dos locais em que se poderia encontrar Sócrates, "onde cedo se torna uma figura indispensável, ao lado do ginasta e do médico" (Jaeger, 2003, p. 521). Ele próprio era um indivíduo robusto e um soldado de valor, respeitado no campo de batalha pelos compatriotas e pelo inimigo.

Mas em que consiste a competição? Na linguagem usual (Ferreira, 1975), competição seria a "busca simultânea, por dois ou mais indivíduos, de uma vantagem, uma vitória, um prêmio etc.", oposta à cooperação, ou "ato de competir, operar ou obrar simultaneamente, trabalhar em comum, colaborar". Sob esse prisma, os dois comportamentos parecem opostos. Neste trabalho, entretanto, tendo em vista que, para os gregos, na competição se construía o verdadeiro espírito comunitário, será oportuno adotar o conceito proposto por Margaret Mead (1937) no âmbito de pesquisas etnográficas. Para ela, é possível classificar as culturas em função de sua maior ênfase nos comportamentos cooperativos, competitivos ou individuais. Nos comportamentos individuais, cada indivíduo buscaria atingir seus objetivos sem referência aos demais componentes do grupo. Isso não implica, entretanto, agressão ou exploração de uns em relação aos outros, como poderia sugerir a acepção usual. Além disso, ela distingue também atividades individuais de atividades coletivas, termos que se referem somente aos modos de comportamento público, mas não aos objetivos em si, nem à motivação dos participantes. Por exemplo, um homem que caça sozinho para contribuir a uma festa comunitária realiza uma atividade individual, mas está engajado em um empreendimento coletivo.

Quanto à competição e à cooperação, seriam comportamentos condicionados por um objetivo comum, socialmente determinado. Fundamentalmente, é a relação dos indivíduos com esse objetivo que os mantém separados ou unidos. Para melhor esclarecer esse ponto, ela cita as categorias de Folsom de competição e rivalidade: enquanto a competição é um comportamento orientado em direção a um objetivo, em que os outros competidores são secundários, a rivalidade é um comportamento dirigido a outros seres humanos, cuja derrota é o objetivo primário, e o objeto ou posição pelo qual eles disputam é secundário. Folsom distingue ainda cooperação de ajuda. Na cooperação, o objetivo é compartilhado e é a relação com esse objetivo que mantém os indivíduos unidos. Na ajuda, o objetivo é compartilhado apenas através da relação dos ajudantes com o indivíduo para o qual a tarefa está sendo realizada, ou seja, a ênfase está na relação com esse indivíduo, não com o objetivo em si. Por exemplo, se um homem vai dar uma festa, e um amigo o acompanha durante a caça para ajudá-lo no que for preciso, está prestando uma ajuda. Se eles caçam juntos ou sozinhos para uma festa em que ambos estão interessados, é uma cooperação. Por outro lado, se o objetivo é estabelecer quem obtém o maior número de presas, mesmo que para isso um deles tente afastar o outro para evitar que alcance o objetivo, trata-se de uma competição. Assim, também seriam competições a maratona, o lançamento de dardos e a luta do pancrácio.

Analisada sob esse critério, a Dialética Socrática não era um comportamento nem de rivalidade, nem de ajuda, pois o objetivo fundamental não era um indivíduo apoiar nem destruir outro indivíduo. Em vez disso, ambos participavam de uma atividade em busca de um objetivo compartilhado, socialmente determinado, o desenvolvimento da areté. A preocupação de Sócrates com o desenvolvimento da virtude está explícito em praticamente todos os diálogos, abrangendo diversos aspectos. No que concerne à sua forma física, uma das personagens de O Banquete (Platão, 1970), Alcibíades, relata que muitas vezes praticaram juntos a ginástica e a luta. Afirma ainda ter observado que, durante a guerra, na expedição militar de Potideia, Sócrates suportava melhor do que todos a fadiga, o frio e a fome, além de ser extremamente comedido. Na retirada de Délion, quando o exército grego se desagregou, ele se comportara com tamanho autocontrole que era visto com respeito tanto pelos amigos quanto pelos adversários, que não se atreviam a molestá-lo.

Xenofonte confirma, de forma independente e reiterada, a presença de Sócrates no ginásio, bem como o zelo com a moderação, o autocontrole e a condição física. Apenas a título de exemplo, citemos duas passagens: "Não deveria todo homem manter o autocontrole, de modo a ser o alicerce de toda virtude, começando por fixar esse alicerce solidamente em sua alma?" (Xenofonte, 2006, p. 48) e "não sabes que, graças ao treinamento, um fracalhão insignificante melhora em qualquer modalidade de exercício que pratica, e logra mais resistência do que o prodígio musculoso que descuida no seu treinamento?" (Xenofonte, 2006, p. 50).

 

Classificação dos argumentos

As interações polêmicas diferem quanto aos seus fins, extensão, procedimentos e outras características. Dascal (2005) distingue três tipos de polêmicas: disputas, discussões e controvérsias. A disputa teria como objetivo a vitória sobre o adversário, em geral estendendo-se a divergências pessoais e sociais, sem concordância quanto aos procedimentos. Na controvérsia, o objetivo é a persuasão, começando com uma questão bem definida, mas cada procedimento pode ser questionado. Na discussão, o objetivo é a determinação da posição verdadeira, acerca de um problema ou questão bem definida, por meio de um procedimento de decisão acordado, com a eliminação de crenças equivocadas. Segundo essa classificação, os Diálogos seriam idealmente reconhecidos como discussão.

No que se refere à construção coletiva do saber, os manuais escolares costumam enfatizar seu caráter cooperativo. Mas não menos importante que cooperação - e talvez condição necessária de sua possibilidade - é a polêmica, o confronto crítico entre abordagens, projetos, metodologias, objetivos, disciplinas, teorias e cientistas individuais ou grupos de cientistas. A história da ciência revela que, diferentemente da visão tradicionalmente propalada, a polêmica está longe de ser um fenômeno marginal. Portanto, ela desempenha uma função essencial para a construção coletiva da ciência e, nesse aspecto, seria uma herdeira da dialética.

Outra classificação baseia-se na presença de argumentos convergentes ou divergentes. No pensamento convergente, reúnem-se fatos e dados de diversas fontes para, por meio de aplicação da lógica e do conhecimento, resolver problemas, alcançar objetivos ou tomar decisões. Há somente uma reposta possível. A lógica dedutiva de Sherlock Holmes é um exemplo de pensamento convergente. O pensamento divergente se dirige para fora, em vez de para dentro. É a habilidade para desenvolver ideias originais e únicas, e então obter a solução de problemas ou alcançar objetivos. As questões divergentes permitem explorar diferentes possibilidades e criar diversas variações, respostas ou cenários alternativos. Sob esse ponto de vista, os Diálogos exercitavam as duas habilidades, mas, sobretudo, o pensamento divergente, pois nada estava definido a priori e não raramente as questões permaneciam em aberto.

Os argumentos invocados também podem ser classificados em persuasivos e adversários (Flowers, McGuire & Birnbaum, 1982). Os participantes do processo usam argumentos persuasivos quando estão motivados a alcançar um entendimento comum, por exemplo, resolver um problema. Neste caso, ao mesmo tempo em que buscam persuadir, estão dispostos a ser persuadidos, ou seja, há um objetivo comum a ser alcançado, consistindo um caso particular de competição.

Quanto aos argumentos adversários, nenhum dos participantes espera persuadir ou ser persuadido. Eles pretendem permanecer adversários. Ao apresentar seus argumentos para uma audiência ou julgamento, pretendem demonstrar que seu lado é bom e o do adversário é mau. Se não conseguirem demonstrar sua tese, devem pelo menos desacreditar a do oponente com uma avaliação negativa. Essas avaliações negativas ou ataques pessoais desempenham um papel central nesses argumentos em que o objetivo é destruir o adversário. Evidentemente, argumentos adversários incluem-se na categoria de rivalidade de Mead.

Para compreender a estrutura dos argumentos adversários, é necessário reconhecer que eles preenchem diversas funções, e o participante deve relacionar o conteúdo de cada proposição de seu oponente a tudo que sabe sobre o mundo e à estrutura de argumentação como um todo. Assim, ele deve realizar três tarefas básicas: (1) transformar o argumento em uma representação significativa; (2) relacioná-lo com a memória de longo alcance e (3) relacioná-lo com o progresso dos argumentos. A estrutura de argumentação e as estratégias isoladas não são necessariamente coerentes. Ao contrário, a ausência de regras previamente acordadas constitui uma característica dessa forma de diálogo. Portanto, ela estaria próxima do que Dascal classificou de Controvérsia. Ora, na Grécia, o emprego de argumentos adversários era típico dos sofistas, aos quais Sócrates se opunha, e que tinham como objetivo vencer a qualquer custo. A busca da verdade por Sócrates, e a estruturação do pensamento que essa busca exigia, culminaria na formalização das regras de inferência consideradas lícitas, por Aristóteles. No campo oposto estariam os sofistas, que buscavam a vitória pela vitória, ou pelos benefícios decorrentes da vitória. Essa forma ilícita ou falaciosa de argumentação, denominada por Aristóteles de Erística, na antigüidade nem chegou a ter uma compilação, e poderia modernamente ser associada aos estratagemas de Schopenhauer (2005).

 

O mestre ignorante

Jacotot (Rancière, 2007) era professor e deputado na França, em 1815, quando uma reviravolta política, o retorno dos Bourbons ao poder, o obrigou ao exílio na Holanda. Em seu novo país, prosseguiu no exercício da profissão, despertando o interesse dos estudantes. Entre eles, muitos desconheciam o francês, e Jacotot não falava holandês. Por isso, ele iniciou um curso de francês, adotando como texto uma edição bilíngüe de Telêmaco. Ele entregou o livro aos estudantes por meio de um intérprete, o qual solicitou que estudassem francês com o auxílio da tradução.

Esse evento foi o ponto de partida para o seu futuro método de ensino, no qual os estudantes tomam parte ativa durante a aprendizagem e o mestre não é um simples transmissor de informações. Até então, inclusive para ele próprio em sua atividade docente, a tarefa essencial do mestre era explicar, retirar os elementos simples do conhecimento e apresentá-los de forma ordenada, organizando sua simplicidade de princípio com a simplicidade de princípios dos espíritos jovens e ignorantes. Possivelmente, algo muito parecido com o que hoje é conhecido como saberes escolares e transposição didática. É a lógica do sistema explicativo.

Jacotot propôs inverter essa lógica. A explicação não seria necessária para corrigir uma incapacidade de compreensão. Essa incapacidade é que seria a ficção estruturante da concepção explicativa. O explicador teria necessidade dessa incapacidade para constituir o incapaz como tal. Esse tipo de ensino foi denominado por ele de embrutecedor.

Em oposição ao ensino embrutecedor, Jacotot concebe outro tipo, inspirado em sua experiência com o Telêmaco, no qual os estudantes aprendem sozinhos e sem mestre explicador. Observe-se que eles não aprendem sem um mestre, mas sem um mestre explicador, sem a submissão de uma inteligência a outra. Essa via conduziria os estudantes à liberdade intelectual, à independência, à confiança do estudante em suas próprias habilidades (Biesta, 2010).

Essa linha de pensamento levou Jacotot a distinguir quatro categorias de mestre: o mestre emancipador e o mestre embrutecedor, o mestre sábio e o mestre ignorante. Ele afirmava explicitamente que o mestre poderia ensinar o que ignorava (Rancière, 2007, p. 33): "É preciso que eu lhes ensine que nada tenho a ensinar-lhes". Acreditava também que seu método de ensino fosse o mais antigo de todos, o da criança que aprende a andar e a falar sem explicações, e não haveria uma só pessoa na Terra que não tivesse aprendido algo por si mesma.

Até aqui, o método proposto por Jacotot e endossado por Rancière guarda similaridades com a Dialética Socrática. Em princípio, seria possível aproximá-la também da proposta de Francis Bacon (1561-1626) e da atual Metodologia de Projetos (Santos & Silva, 2006). Bacon postulava o cultivo da dúvida sistemática entre os alunos, em lugar da propagação de verdades "imutáveis". Os docentes deveriam deixar de lado sua vaidade e incentivar os estudantes à investigação, à busca da verdade. Os falsos profetas poderiam ser comparados aos professores que se julgam donos do saber, pois consideram-se superiores por saber. Esses falsos professores seriam então análogos aos sofistas e aos mestres embrutecedores. A Metodologia de Projetos, por sua vez, é uma pedagogia ativa, com vistas a uma aprendizagem significativa, em que o estudante percebe que o material a ser estudado se relaciona com seus próprios objetivos. Ela permite ao estudante conhecer sua força, tornando-se protagonista de sua aprendizagem, um parceiro de pesquisa com seu mestre.

O fulcro da divergência surge quando Jacotot afirma que Sócrates vai às ruas simplesmente para expor, publicamente, a ignorância do interlocutor e deduzir a verdade ensinada da progressão do próprio discurso. Ele acusa Sócrates de organizar uma mise-en-scène para confrontar o aluno com as lacunas e aporias do próprio discurso simplesmente para demonstrar sua inferioridade. Isso conduziria o aluno a um sentimento de incapacidade e de dependência em relação ao mestre. Esse método de ensino seria, portanto, embrutecedor, em oposição ao método emancipador, em que o estudante exerce sozinho sua inteligência.

Comecemos por analisar a tese do aprendizado da língua materna. Não é justo afirmar que não haja um mestre explicador, pois a família desempenha esse papel muito bem. Os primeiros balbucios da criança vêm por imitação, de maneira tosca, confusa, incompleta. É necessário ensinar, mostrar, explicar, corrigir à exaustão. Provavelmente naquela época essa tarefa ficasse relegada às mães e ele não tenha tido oportunidade de presenciá-la, mas certamente ocorreu. Além disso, o cérebro da criança nessa fase da vida é diferente do cérebro de um adulto. Se durante o crescimento algumas habilidades são ampliadas e desenvolvidas, há outras que são reduzidas. Uma das formulações contemporâneas para compreender esse desenvolvimento é a Epistemologia Genética de Jean Piaget (1983). Para ele, a construção da inteligência depende da maturação do sistema nervoso central, de experiências físicas e lógico-matemáticas, da interação com o ambiente social e da equilibração das estruturas cognitivas do indivíduo. Esse desenvolvimento ocorreria em estágios e se estenderia até a idade adulta. Para caracterizar esse desenvolvimento, que combina dados genéticos e interação com o ambiente social, Piaget distinguiu três grandes períodos: (1) o sensório-motor, entre o nascimento e o aparecimento da linguagem, ou seja, até aproximadamente dois anos; (2) o de preparação e de organização das operações concretas de classes, operações e números, entre dois e onze ou doze anos; (3) o das operações formais, a partir dessa idade. Cada um desses períodos envolveria a observação de operações intelectuais distintas e uma estrutura hereditária forneceria o quadro das possibilidades e das impossibilidades de cada nível.

Portanto, o adulto não é uma criança grande, nem a criança é um adulto em miniatura. Do contrário, Jacotot teria aprendido perfeitamente o holandês em poucos meses, como qualquer criança que saiba andar; em virtude da língua, ninguém saberia distingui-lo de um cidadão nato; não haveria necessidade de um método novo para comunicar-se com os estudantes holandeses e ninguém jamais teria ouvido falar no "mestre ignorante". Assim, é preciso tomar muito cuidado ao extrapolar uma metodologia baseada na plasticidade do cérebro de crianças pequenas para a educação de jovens e adultos. Não se trata apenas da perda de uma habilidade por falta de prática, mas de um desenvolvimento vinculado a condições genéticas estabelecidas ao longo da evolução da espécie. No início do século XIX, a diferença entre a inteligência de uma criança e a de um adulto talvez não fosse bem conhecida, mas atualmente faz parte do domínio público.

Ao elidir os pressupostos que embasam o método, afasta-se automaticamente a necessidade de outras considerações. Todavia, será interessante e útil expor algumas dificuldades inerentes a essa abordagem.

Ele separou duas faculdades em jogo no ato de aprender: a inteligência e a vontade. A inteligência estaria vinculada à informação, que se encontra no livro ou no professor, por exemplo. O professor pode ser sábio, o que possui a informação, ou ignorante, o que não a possui. A vontade se refere à liberdade de ação, de escolha. Haverá embrutecimento quando uma inteligência for subordinada a outra; ocorrerá emancipação quando uma inteligência obedecer apenas a si mesma. Ao valorizar a confiança dos alunos em si mesmos, em sua capacidade de superar as dificuldades e de se tornarem cada vez mais independentes, ele estaria educando os alunos, mais do que instruindo. Neste caso, daria prioridade ao aspecto educacional, à independência intelectual, mais do que ao conhecimento em si. Por isso ele combate os programas de instrução do povo como um processo de manipulação, de submissão à autoridade, de adestramento. Afirma que todo homem do povo está apto a conceber sua dignidade de homem, a tomar conhecimento de sua capacidade intelectual e decidir sobre o seu uso. Certamente essa é uma tomada de posição política, não científica, é uma profissão de fé, um dogma que ele adotou para nortear sua conduta educacional.

Não se pretende negar que o estudante possa aprender sozinho uma língua por meio de comparações diversas, como o formato das letras, a posição ou as terminações das palavras, as imagens etc. Em vez de cultivar apenas a memória, cultivaria também a capacidade de observação, de estabelecer relações, o gosto e a imaginação. Isso provavelmente representou uma ruptura com uma tradição de ensino fortemente baseada na memorização, na passividade. Ele chega a afirmar que pais analfabetos poderiam ensinar os filhos a ler, usando esse mesmo tipo de comparações. Talvez, mas a que custo! Quanta dificuldade! Se não houver outro meio, é uma alternativa. Champollion (1790-1832), o grande egiptólogo francês, levou muito tempo para decifrar os hieróglifos usando um sistema parecido, ao comparar um texto hieroglífico com sua versão em demótico e grego. A mãe que observa a leitura do filho para verificar se ele atribui o mesmo sinal à mesma palavra refaz o caminho de Champollion. No entanto, ela irá no máximo testar a coerência, pois, se o filho errar sistematicamente, não perceberá. Se a mãe não tiver acesso a uma pessoa alfabetizada, talvez seja um recurso extremo a ser adotado, ou o único disponível, mas não o melhor, nem o mais eficiente.

Outro postulado de Jacotot é a igualdade das inteligências. Para ele, se houvesse diferença entre as inteligências, elas deveriam aparecer materialmente no cérebro (Rancière, 2004, pp. 82-83). Que há diferenças de inteligência entre as pessoas, não resta a menor dúvida. As pessoas têm estilos diferentes de pensar e de aprender (Felder & Silverman, 1988). Por que essas diferenças ocorrem e onde estariam fisicamente alojadas seria outro problema de pesquisa. O certo é que pessoas distintas possuem abordagens, facilidades e dificuldades diferentes para resolver o mesmo tipo de questão. A variabilidade dos indivíduos parece constituir uma lei da natureza. Aparentemente, a sobrevivência da espécie está ligada a essa diversidade. Por conseguinte, em lugar de propor estratégias de ensino baseadas em uma igualdade jamais observada, deveríamos explorar essas diferenças, sobretudo porque observações experimentais têm corroborado a maior eficiência dessa última opção, tanto em atividades individuais quanto em grupo (Almeida & Silva, 2004).

Até aqui, apesar de uma ou outra nota de discordância com Sócrates, não foi possível vislumbrar um motivo plausível da referida aversão pelo sábio grego. Contudo, a partir de certo ponto (Rancière, 2007, p. 90), esse motivo começa a se manifestar: "A verdade não se diz. Ela é una e a linguagem despedaçada, ela é necessária e as línguas são arbitrárias". Em outras palavras, a verdade é única e universal e as diversas línguas não fazem mais do que representar essa verdade. Em seguida, esse entendimento avança um pouco mais: "O homem não pensa porque fala - isso seria, precisamente, submeter o pensamento à ordem material existente - o homem pensa porque existe" (Rancière, 2007, p. 93). Portanto, Jacotot não percebe uma relação iterativa entre o desenvolvimento da inteligência e o desenvolvimento da linguagem. A linguagem serviria apenas como instrumento de comunicação do pensamento, e é isso o que ele afirma explicitamente um pouco à frente (Rancière, 2007, p. 93):

"Penso e quero comunicar meu pensamento: imediatamente minha inteligência emprega, com arte, signos quaisquer, os combina, os compõe, os analisa - e eis uma expressão, uma imagem, um fato material que será, desde então, para mim o retrato de um pensamento, isto é, de um fato imaterial."

Efetivamente, se a função da linguagem fosse apenas comunicar um pensamento que já existisse na mente humana, em estado puro, anterior à própria linguagem, os diálogos socráticos não fariam o menor sentido. Sócrates buscava com seu interlocutor a construção e a depuração dos conceitos para, por meio deles, interpretar os fenômenos. "O que é o belo? O que é a verdade?" Chegou a criticar Anaxágoras justamente por ter anunciado os conceitos de espírito e de inteligência como princípios explicativos, mas não tê-los empregado posteriormente em sua descrição do mundo natural. Se esses conceitos já estivessem prontos no pensamento humano, perderia o sentido qualquer discussão a seu respeito. É claro que discutir o que vem primeiro, se o pensamento ou a linguagem, seria uma discussão bizantina, sobretudo quando se referem a operações intelectuais de alto nível. Provavelmente seria mais adequado afirmar que ambos participam de um processo iterativo de aprimoramento recíproco. Não foi por acaso que Isaac Newton (2002) iniciou os Principia com o enunciado do que entendia por tempo e espaço, e fez diversas considerações sobre alguns significados usualmente atribuídos a esses termos. Em seguida ele os aplicou para desenvolver o seu modelo, o que o conduziu a novas conclusões e descobertas. Seria, contudo,falso afirmar que o conceito de espaço de Newton coincidia com o das outras inteligências do seu tempo, pois de início houve resistência de diversos lados à sua aceitação, assim como também não coincide com o dos físicos atuais.

Em síntese, Jacotot estaria ligado a uma concepção de linguagem que a supõe apenas como a representação simbólica de um mundo intelectual pré-existente. Por isso, qualquer discussão a respeito da compreensão ou da extensão dos termos do discurso seria para ele completamente descabida, não passaria de um ato embrutecedor.

Na esteira de Jacotot, ao se referir aos indivíduos de uma sociedade, Rancière (2007, p. 117) afirma:

"Nenhum gênero, espécie, corporação tem qualquer realidade. Somente os indivíduos são reais, somente eles têm uma vontade e uma inteligência; a totalidade da ordem que os submete ao gênero humano, às leis da sociedade e às diversas autoridades não é mais do que uma criação da imaginação."

Mais uma vez, ele se atém aos seres concretos e nega a validade do uso de categorias, não percebe que, ao referir-se a indivíduos, vontade ou inteligência, lança mão de categorias, de conceitos arbitrários que não passam de criações humanas, com as quais raciocinamos, mas que receberam acepções variadas ao longo da história.

 

Discussão

Aplicando os pressupostos enunciados por Jacotot para o aprendizado em geral a esse caso particular, deveríamos analisar o método socrático por ele mesmo, sem a necessidade de um mestre explicador. E o que se depreende da leitura dos Diálogos e de sua relação com a cultura da época? Sócrates freqüentava o Ginásio onde os jovens praticavam esportes. A competição e a preparação para os jogos faziam parte da cultura grega e o Ginásio era o local em que os jovens se exercitavam para as competições. Sócrates deveria então ser comparado a um preparador de atletas, a um instrutor de artes marciais, cujo objetivo não é destruir o aluno, mas permitir que este se desenvolva e revele a força que tem dentro de si. Um espectador leigo que assista ao treinamento poderá considerar que o mestre de artes marciais agride seu aluno e deseja sua aniquilação. Em tal caso, esse espectador terá uma percepção falseada por desconhecer as regras do jogo.

A competição fazia parte da cultura grega em todos os sentidos, na palavra e na ação, nos jogos olímpicos e nos concursos de peças teatrais. Aqui, porém, é necessário distinguir os conceitos de competição e de rivalidade. A competição é um comportamento orientado para um objetivo comum, socialmente determinado; na rivalidade, esse objetivo tem significação praticamente secundária e o alvo é o adversário. Por isso, o conceito adequado para expressar esse traço da cultura grega é o de competição, não o de rivalidade.

Além dessa diferença quanto à origem do comportamento, há outra, que lhe é correlata: discussão ou disputa. Na discussão, busca-se a determinação da verdade; na disputa, procura-se apenas obter a vitória sobre o adversário. Na dialética socrática, os interlocutores têm o objetivo comum da busca da verdade, por meio do emprego de argumentos persuasivos, sem imposição da vontade de um sobre a do outro. Portanto, ela deve ser caracterizada como discussão, e assim constituiria, inclusive, uma estratégia altamente eficaz para o ensino de ciência. Essa visão é diametralmente oposta à de Jacotot, o qual, em vista dessa análise, não teria interpretado corretamente os Diálogos.

No que concerne à contribuição de Sócrates para o surgimento da ciência, é necessário reconhecer que a ciência é uma construção coletiva, em que o trabalho de um pesquisador fornece o suporte para o de outro. Essa criação é realizada a partir de conceitos que se desenvolveram ao longo dos séculos, em uma busca árdua pela expressão mais adequada para descrever a realidade. Esses conceitos não estão prontos na mente humana, mas constituem uma criação do espírito humano, resultantes de um permanente debate de ideias, a exemplo da dialética socrática.

O processo de criação leva os pesquisadores a contrapor diversas possibilidades ou teorias explicativas, elaboradas por contemporâneos ou por antecessores, aplicando argumentos convergentes e divergentes. Essa contraposição busca satisfazer objetivos comuns e um colega não procura destruir os demais, como se fossem inimigos, mas toma parte de uma atividade coletivamente determinada. Para se preparar para esse tipo de trabalho, o estudante deve receber um treinamento, não para destruí-lo, em uma educação embrutecedora, mas para fortalecê-lo, de forma similar ao que realiza um mestre de artes marciais em sua academia, um instrutor grego no ginásio de esportes, ou Sócrates com seus discípulos. Da mesma forma, durante o confronto entre teorias alternativas, em congressos, simpósios ou revistas, um colega não tem a função de aniquilar o outro, mas a de por em prática uma metodologia de trabalho com um objetivo comum: escolher a melhor opção. Frequentemente, antes de publicar um artigo em um periódico, os cientistas preferem apresentá-lo a um grupo mais restrito, em um simpósio ou palestra, para ouvir as críticas da platéia, sugestões de aprimoramento e correções de possíveis falhas. Durante o processo de aprovação de um artigo, habitualmente ele é enviado a outros pesquisadores com essa mesma finalidade. Portanto, a construção da ciência e a escolha da melhor opção requerem colaboração e competição, mas não rivalidade. Se essa vier a ocorrer, será como uma prática condenável, não a regra.

 

Conclusão

Neste trabalho, discutimos a dialética socrática, sua contribuição para a relação ensino-aprendizagem e a percepção de Jacotot a respeito de Sócrates, sobretudo a visão transmitida atualmente por Rancière, procurando determinar as possíveis motivações da divergência intelectual entre eles. Nossa conclusão é que essa divergência é devida ao fato de Jacotot, ao se manifestar sobre a dialética socrática: (1) não perceber a importância do conceito para a construção do conhecimento; (2) não distinguir competição de rivalidade e (3) não distinguir disputa de discussão. Além disso, a contribuição do método socrático para a ciência pode ser reconhecida por sua presença explícita na formação de eminentes cientistas, como Galileu e Franklin, e pelos excelentes resultados obtidos no ensino de ciências por meio de estratégias que a tem por fundamento ou fonte de inspiração.

 

Agradecimento

O autor agradece ao Prof. Dr. Heitor Garcia de Carvalho por suas valiosas sugestões.

 

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Endereço para correspondência
F.W.O. da Silva
Endereço para correspondência: Av. Amazonas, 7675, Belo Horizonte, MG 30510.000.
E-mail para correspondência: fabiow@des.cefetmg.br.