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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.16 no.2 Rio de Janeiro Aug. 2011

 

Artigo Científico

 

Similaridades entre a epistemologia genética de Piaget e a cognição incorporada

 

Similarities between the Piaget's genetic epistemology and the embodied cognition

 

 

Gilbert Cardoso Bouyer

Departamento de Engenharia de Produção (DEENP), Instituto de Ciências Exatas e Aplicadas (ICEA-UFOP), Campus João Monlevade, Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), João Monlevade, Minas Gerais, Brasil

 

 


Resumo

Este artigo se concentrou nas similaridades entre cognição incorporada e epistemologia genética. Este novo ponto de vista amplia as possibilidades das ciências cognitivas e da psicologia do desenvolvimento. Este texto compara as teorias fundamentais de Piaget e as ideias da cognição incorporada. Este estudo concluiu que as duas teorias têm princípios similares sobre cognição, conhecimento, estruturas cognitivas, processos sensório-motores, percepção e ação. © Cien. Cogn. 2011; Vol. 16 (2): 082-095.

Palavras-chave: Epistemologia genética; cognição incorporada; Piaget; auto-regulação.


Abstract

This paper concentrates on similarities between embodied cognition and genetic epistemology. This new point of view enlarges the possibilities of cognitive sciences and developmental psychology. This text compares the fundamental Piaget's theories and the ideas of the embodied cognition. This study concluded that all theories have similar principles about cognition, knowledge, cognitive structures, sensorimotor processes, perception and action. © Cien. Cogn. 2011; Vol. 16 (2): 082-095.

Keywords: Genetic epistemology; embodied cognition; Piaget; self-regulation.


 

 

Introdução

Este texto apresenta uma tese ousada e inédita, apoiada em trabalho de pesquisa teórica. Como tudo que se propõe a apresentar o novo, expõe-se a um risco epistemológico. Eis uma das perguntas aqui propostas - é possível haver uma proximidade entre duas correntes de pensamento distantes no tempo, ambas extremamente relevantes para a psicologia do desenvolvimento, para as ciências cognitivas e para a compreensão da gênese do sujeito do conhecimento: a epistemologia genética e a cognição incorporada?

As ciências cognitivas vêm evoluindo rapidamente no sentido de compreender este sujeito do conhecimento, sua interação com o meio que o cerca e os fenômenos cognitivos envolvidos na sua ação de conhecer. O ápice desta evolução é representado pela cognição incorporada (Thompson, 2005; Petitot, Varela, Pachoud & Roy, 1999).

Até mesmo sofisticados robôs têm sido desenvolvidos (principalmente nos Estados Unidos) com base nos princípios da cognição incorporada. Mas outra pergunta, instigante, fica no ar: não seria mais justo, nos textos, artigos, livros, etc., sobre ciências cognitivas, em diferentes idiomas, publicados no mundo inteiro, citar Piaget como um dos fundadores da cientificamente fértil abordagem da cognição incorporada? Infelizmente, Piaget quase não é citado.

Ora, mas os longos anos de pesquisa neste campo tornaram impossível não perceber que, o que agora é enunciado pelas ciências cognitivas contemporâneas, já fora constatado, há várias décadas atrás, por Jean Piaget.

O objetivo do presente estudo foi, então, explicitar o pensamento de Piaget em sua similaridade com a moderna abordagem das ciências cognitivas: a cognição incorporada. Baseado em extensa pesquisa teórica, e utilizando as citações do próprio Piaget, foi possível identificar Piaget como um pesquisador que já havia dito o que hoje emerge das pesquisas em cognição incorporada. E vão além as constatações da presente tese. Piaget também foi um severo crítico do cognitivismo, em suas coordenadas objetivistas; crítica que hoje é ferrenhamente sustentada pelos autores da cognição incorporada. Ora, mas Piaget já havia feito esta crítica! O sujeito do conhecimento piagetiano é um sujeito atuante e incorporado em seu meio, e que desenvolve estruturas mais sofisticadas que se estendem para além do biológico.

As contribuições que este estudo pode oferecer dizem respeito a um novo olhar sobre a epistemologia genética, trazendo-a à tona para o mesmo nível epistemológico das modernas ciências cognitivas. Isso pode contribuir para jogar luz ao pensamento de Piaget, talvez pouco lembrado ou mesmo esquecido pelos atuais pesquisadores da cognição. A junção entre a abordagem piagetiana e a abordagem da cognição incorporada pode se mostrar fértil no sentido de ampliar, e muito, o campo das pesquisas teóricas e empíricas desenvolvidas sob as duas perspectivas.

O texto está organizado de forma a colocar, frente a frente, os postulados e pressupostos da cognição incorporada e aqueles da epistemologia genética, de modo a tornar claras, para o leitor, as similaridades entre ambas. Foi necessário abusar um pouco das citações de Piaget, visto que a presente proposta teve de lidar num nível bastante aprofundado do pensamento do autor. E, nesse sentido, mostrou-se mais produtivo para os objetivos ousados deixar que o próprio Jean Piaget diga o que é necessário para fazer justiça ao seu pensamento.

 

A cognição incorporada e a epistemologia genética: similaridades entre os pressupostos

A expressão cognição incorporada, neste texto, reflete a abordagem do "enactive approach" ou "embodied enactive approach" nas ciências cognitivas, de acordo com Varela, Thompson e Rosch (1991), Maturana e Varela (1984/2002) e também de acordo com autores que relacionam tal abordagem à fenomenologia (Petitot et al., 1999; Thompson, 2005; Pachoud, 1999).

"Enactive approach" expressa um conjunto de pressupostos da cognição humana, em contraponto à idéia da cognição como manipulação de símbolos e processamento de informações, de forma abstrata. Os principais pilares da abordagem da cognição incorporada são sintetizados a seguir, na forma de pressupostos. Posteriormente, apresentaremos os principais fundamentos da epistemologia genética, num conjunto de citações do próprio Piaget, que poderão ser então enxergados, pelo leitor, como similares aos principais pressupostos da cognição incorporada. Postulamos a tese de que a epistemologia genética de Piaget obedece a todos estes principais pressupostos.

Procuramos sintetizá-los em um total de cinco, cabendo ressaltar que, conforme detectado nos textos de vários autores, estes pressupostos são reentrantes, uns afetam, interagem e se sobrepõem aos demais; uns fazem referências aos demais e deles dependem para o seu entendimento e compreensão; muitas vezes as semelhanças entre o que afirmam deixam a impressão de se tratar de um mesmo pressuposto (Petitot et al., 1999; Thompson, 2005; Maturana & Varela, 1984/2002; Varela et al., 1991). Eles devem ser, portanto, compreendidos em conjunto e não uns isolados dos outros, visto formarem uma totalidade cujas partes interagem e afetam a compreensão global do todo. Essa síntese é similar àquela que encontramos em Thompson (2005).

Além dos cinco pressupostos, verificamos que alguns dos principais conceitos da epistemologia genética possuem o mesmo sentido dos seus equivalentes conceituais nas teorias da cognição incorporada. São alguns deles: estruturas; organização; função; sistema; conservação; identidade; forma e conteúdo; autonomia. Por uma questão de espaço, não apresentaremos uma definição de cada um deles, visto que o presente texto necessitou realizar a discussão num nível que pressupõe familiaridade com os conceitos da epistemologia genética.

O primeiro pressuposto da cognição incorporada é que os seres vivos são agentes autônomos que, por sua atividade ou ação incorporada, geram sua identidade - e conservam-na com uma dada organização. E daí geram também seu domínio (universo) cognitivo.

Aqui já começa a sintonia fina com a epistemologia genética. Nesta, também, o organismo age sobre o seu meio para se re-equilibrar ante as perturbações geradas por ele, de modo a manter sua identidade - sua organização interna (e seu funcionamento) e, sobremaneira, sua forma. Piaget (1967/2003, p. 174) afirma que a organização é uma função de conservação de uma totalidade relacional; similar ao que propõem os autores da cognição incorporada (Maturana & Varela, 1984/2002; Varela et al., 1991). Isso tem validade inicialmente no domínio biológico e, como característica primordial da epistemologia genética, temos a freqüente afirmação de que essa função organizadora vai se expandir para o domínio cognoscitivo, guardando, neste, as mesmas características do biológico, quanto ao que tange, também, a noção de forma. "O primeiro caráter desta função de organização é pois ser uma função de conservação" (Piaget, 1967/2003, p. 174).

Como característica essencial da epistemologia genética, assim como da cognição incorporada, temos um paralelismo (ou analogia, como diz Piaget) entre os fenômenos situados no domínio dos organismos e aqueles no domínio cognoscitivo. Isso vale para estas questões de identidade, organização, conservação, forma e funcionamento, no que tange ao conhecimento:

"A conservação do todo é a conservação de uma forma, e não de seu conteúdo (...). Noutras palavras, em resumo, a função e a organização consistem em conservar a forma de um sistema de interação através de um fluxo contínuo de transformações cujo conteúdo se renova incessantemente por trocas com o exterior." (Piaget, 1967/2003, p. 175)

E quanto ao paralelismo (ou analogia), anteriormente citado, entre o que ocorre no domínio biológico e o que ocorre no domínio cognoscitivo, vejamos o que nos diz o autor da epistemologia genética:

"O conhecimento contém antes de tudo uma função de organização e esta é uma primeira analogia fundamental com a vida (biológica). Todo ato de inteligência supõe preliminarmente a continuidade e a conservação de certo funcionamento." (Piaget, 1967/2003, p. 175)

Temos, portanto, que a conservação do todo é a conservação de sua forma e não de seu conteúdo, o qual se renova incessantemente nas trocas com o exterior, em sua atividade ou ação incorporada em seu meio. A identidade está na forma, pois nas organizações cognoscitivas há uma dissociação progressiva entre forma e conteúdo. O universo - ou domínio - cognitivo emerge, também aqui, do funcionamento (atuação) desta organização em seu meio, com sua forma própria (Piaget, 1967/2003; Maturana & Varela, 1984/2002). Ora, observemos algo de interessante aqui: para esse último parágrafo inteiro, pudemos então fazer duas citações paralelas, que simbolizam a nossa tese ora proposta neste trabalho. Essas citações, referentes às afirmações idênticas de diferentes autores, contidas em suas respectivas obras, permitiram-nos colocar num mesmo plano Piaget e a dupla Maturana e Varela.

O segundo pressuposto refere-se ao caráter autônomo e de clausura operacional do sistema nervoso. Em sua atividade interna (fechada), mas acoplada ao mundo material, ele gera e mantém sua coerência operacional segundo uma organização específica. E, a partir dela, os fenômenos cognitivos emergem de padrões recorrentes de atividade sensório-motora. Isso implica que o sistema nervoso não processa informação numa perspectiva cognitivista (como se fosse um computador, recebendo informações e emitindo respostas), mas cria sua interpretação do mundo em sua atuação sobre ele (enactive), em ressonância com suas estruturas de sensório-motricidade.

A sintonia deste segundo pressuposto com a epistemologia genética é clara. O que começa no domínio biológico do sistema nervoso não se restringe a ele, mas se expande para a formação e o desenvolvimento de estruturas cognoscitivas. O cérebro, em Piaget, também não é um processador de informações, mas um criador de possibilidades de evolução das estruturas mais elementares (orgânicas) em direção àquelas mais elaboradas (cognoscitivas). O universo orgânico do sistema nervoso, embora em sua clausura operacional, é o ponto inicial de transformações evolutivas que não se encerram no universo biológico, mas se estendem para o domínio cognoscitivo.

De acordo com Piaget (1967/2003, 1970/2007), esse funcionamento orgânico do sistema nervoso, incorporado ao meio, conforme estruturas do próprio organismo, em sua organização e forma específicas, é a base e o ponto de partida para o desenvolvimento e evolução das estruturas cognoscitivas mais elaboradas, pelas sucessivas assimilações e auto-regulações (num sentido também autônomo). As estruturas iniciais são, também aqui, as de natureza sensório-motora. Por meio dessas assimilações e auto-regulações, processos internos (numa coerência operacional, como diz a cognição incorporada...), dá-se a adaptação ao meio externo, nessa mesma coerência operacional de interação (ativa) do organismo (e mais tarde o sujeito...) com o meio (e os objetos). Na literatura da epistemologia genética, aparece com freqüência a expressão "isomorfismos entre o organismo e o sujeito do conhecimento" (Piaget, 1967/2003, p.163), que também pode facilmente ser associada a este segundo pressuposto.

O terceiro pressuposto, intimamente relacionado aos anteriores, afirma que cognição é ação incorporada. Ele confere uma primazia ontológica da ação sobre a cognição. Em outras palavras, cognição é uma forma de ação incorporada sobre o meio. Não existe fenômeno cognitivo puramente abstrato, independente do corpo e da ação material, concreta, do corpo sobre o mundo - e esta incorporação se dá basicamente pela sensório-motricidade. Ou seja, as estruturas cognitivas emergem (en-agem, encacted) de padrões sensório-motores recorrentes, de percepção e ação. Significa, portanto, que o acoplamento sensório-motor entre organismo e meio modula, mas não determina, a formação de padrões endógenos e dinâmicos de atividade neural, que respondem ao próprio acoplamento sensório-motor, numa atividade circular, recorrente e contínua (entre a via neural e a via sensório-motora).

Na epistemologia genética, este terceiro pressuposto da cognição incorporada talvez seja o mais nítido. Piaget, freqüentemente, aborda a questão da sensório-motricidade na formação da vida cognoscitiva; na constituição do sujeito do conhecimento. As condutas sensório-motoras, por exemplo, estender-se-ão até as operações lógico-matemáticas. As interações entre o sujeito e o objeto (meio), de caráter sensório-motor, propiciam transformações e evolução das estruturas daquele em sua contínua atuação sobre este. É por isso que se encontram, nos conhecimentos mais elaborados, os invariantes funcionais que caracterizam a auto-regulação no nível sensório-motor (Piaget, 1967/2003, p. 47). As ações sensório-motoras são anteriores a toda linguagem, a toda conceituação representativa ou pensamento conceitualizado (Piaget, 1970/2007, p. 9). Em Piaget (1967/2003, p. 210), o pensamento está ancorado na ação, visto que os esquemas operatórios diretamente derivam dos esquemas de ação.

O quarto pressuposto afirma que o mundo não é uma categoria externa ao sujeito, algo pré-especificado e representado internamente, como se a mente elaborasse uma cópia ou réplica do que a cerca. Na verdade, o que é o mundo, o que dele é percebido, sentido - e o meio como é moldada a ação sobre este mesmo mundo (desde o comportamento sensório-motor até as formas mais elaboradas de ação e pensamento abstrato) - depende das estruturas internas do sujeito; depende da forma como ele age e interage com o mundo (em destaque no domínio sensório-motor). O mundo depende do sujeito e, para falar num nível mais conceitual, utilizando um termo que os cientistas da cognição tomaram de empréstimo da fenomenologia, a leitura do mundo pelo sujeito depende de sua intencionalidade motora (Merleau-Ponty, 1945/2005; Thompson, 2005; Pachoud, 1999).

Em outras palavras, o mundo é inseparável do sujeito; um sujeito incorporado que é projetado pelo mundo em que en-age. Em contrapartida, o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que é uma projeção do próprio sujeito incorporado. Isso recebe o nome de mútua especificação sujeito-mundo, um conceito fundamental da cognição incorporada. Em decorrência deste pressuposto, vem que nossa forma de compreender o mundo não é, inicialmente, nem puramente sensorial ou reflexiva, nem cognitiva ou intelectual; ela é corporal e motora ou, para falar como Merleau-Ponty e os cientistas cognitivos, decorre da nossa intencionalidade motora (Merleau-Ponty, 1945/2005; Thompson, 2005; Pachoud, 1999).

Em Piaget, conforme veremos, essa compreensão do mundo pela via motora, incorporada, está no centro de sua epistemologia genética. Ressalta-se, quanto a isto, que em ambas abordagens (epistemologia genética e cognição incorporada), a experiência subjetiva do mundo, não num sentido subjetivista, é condicionada pelas estruturas do sujeito e, destaque-se, que nas duas abordagens, estas estruturas estão em constante desenvolvimento justamente em sua interação ativa sobre o mundo (ou sobre o meio), por intermédio do corpo. As estruturas fundamentais são as de caráter sensório-motor.

Quanto a esse quarto pressuposto da cognição incorporada, vejamos a citação de Piaget que bem se sintoniza com ele: "O fato essencial de que convém partir é que nenhum conhecimento, mesmo perceptivo, constitui uma simples cópia do real, porque contém um processo de assimilação a estruturas anteriores" (Piaget, 1967/2003, p. 13).

O quinto pressuposto afirma que nossa experiência é central para o entendimento da mente. Tanto na epistemologia genética quanto na cognição incorporada, conforme trataremos mais adiante, a experiência perceptiva é guiada pela ação sensório-motora e, a ambas, podemos identificar um conjunto de padrões de atividade neural. Portanto, não se pode tratar o fenômeno da experiência nem como puramente objetivo (observando apenas os padrões de atividade neural) nem como puramente subjetivo (considerando apenas as vivências internas do sujeito), mas sim como algo que interliga essas dimensões justamente pelo terceiro viés, o incorporado, en-agido (enacted, enactive), representado também pela ação sensório-motora.

Quanto ao quinto pressuposto anteriormente citado, em Piaget, sujeito e objeto estão ligados pela ação, e o sujeito da experiência, assim como na cognição incorporada, é um sujeito que age, dotado de sensório-motricidade. Se inicialmente há uma indiferenciação entre ambos (sujeito e objeto), é a partir do nível sensório-motor que se inicia uma diferenciação marcada pela formação de coordenações que ligam entre si as ações do sujeito. Desde então, este se torna o sujeito da experiência (e da cognição, do conhecimento), diferente do que havia no início, quando do "egocentrismo radical" - no caso do bebê, por exemplo, enquanto não distingue a si mesmo dos demais objetos do mundo, numa total indiferenciação e centração das ações primitivas (Piaget, 1970/2007, p. 10). O corpo está, então, inteiramente ligado ao objeto.

Nesse sentido, a cognição humana funciona de acordo com a noção de cognição incorporada, por estar tanto encarnada no organismo inteiro (corporificada), quanto incorporada (ou imersa) no mundo material. Os fenômenos cognitivos daí decorrentes não são redutíveis a estados mentais como estados puramente cerebrais, ou em estruturas cerebrais isoladas.

Além dos pressupostos anteriormente detalhados, o desenvolvimento cognitivo e a gênese de um sujeito do conhecimento (e do fenômeno do conhecer), segundo a cognição incorporada, envolvem três domínios permanentes, e interdependentes, de atividade corporal: a) auto-regulação; b) acoplamento sensório-motor (arco intencional; intencionalidade motora); c) interação intersubjetiva. Sustentamos a tese de que a epistemologia genética atende, também, a estes três domínios, , e suas inter-relações.

Daremos, neste texto, uma ênfase maior aos itens a) e b) - auto-regulação e acoplamento sensório-motor - devido ao fato de serem os que mereceram maior destaque na obra de Piaget e, também, por serem peças fundamentais para a sustentação de toda a teoria da cognição incorporada .

As abordagens tanto da epistemologia genética quanto da cognição incorporada eliminam, excluem, portanto, as hipóteses do neuro-reducionismo (Crick, 1994), segundo as quais a vida mental inteiramente não é nada mais que uma atividade de neurônios ou sinapses. Ao invés disso, postulam que a vida mental, inclusive o desenvolvimento cognitivo, estão situados na vivência corporal de um sujeito da experiência, em sua sensório-motricidade, em sua vida perceptiva inseparável desta última; e situados ainda na intersubjetividade.

Pode-se, tanto com a epistemologia genética, quanto com a cognição incorporada, dizer que a mente do sujeito "do conhecer", e seu desenvolvimento, emergem de modos de atividade corporal, numa singularidade dinâmica (Hurley, 1998), pautada por esses processos recorrentes e re-entrantes centrados no organismo, em sua dinâmica operacional no ambiente em que se encontra incorporado - acoplado pelas vias sensoriais e motoras.

 

Piaget e a cognição incorporada

As bases teóricas tanto da epistemologia genética quanto da cognição incorporada , segundo Bouyer (2010), filiam-se ao pragmatismo de William James e John Dewey. O pragmatismo coloca sua ênfase na experiência e na ação. Assim, numa perspectiva pragmática, a mente está no corpo e, também, ela emerge da incorporação do ser no mundo, em sua ação corporificada sobre o mundo. A mente surge na experiência mais incorporada, mais mundana. O sujeito do conhecimento, abordado na epistemologia genética, não foge destes princípios de incorporação. Como Richard Rorty (1980/1994), um discípulo do pragmatismo de James e Dewey, salienta, a mente não espelha a natureza conforme o modelo das representações mentais supõe. Ela recria o seu mundo, sem que seja necessário, para tal compreensão da mente, a noção de representação.

Os pragmáticos da cognição incorporada vêem as realizações da mente humana como um prolongamento da luta biológica pela adaptação e sobrevivência. Mais adiante, veremos que isso é fortemente defendido por Piaget, em sua noção de isomorfismos. Assim, as funções cognitivas superiores, e a própria cognição, até mesmo a cultura, possuem suas raízes na nossa biologia. Ora, esta perspectiva pragmática está na essência da noção de cognição incorporada e, também, na epistemologia genética. Em ambas as abordagens do conhecimento, encontramos traços do pragmatismo no que concerne à primazia da ação sobre o intelecto, e a prioridade ontológica da experiência incorporada (incluindo a sensório-motora) sobre os fenômenos da mente e do conhecimento.

A epistemologia genética, e a cognição incorporada , apresentam a ideia do ato de conhecer como um prolongamento das funções biológicas, e a primazia da ação, sobre o mundo, no fenômeno do conhecer. Ou seja, uma idéia de assimilação entre o biológico e o intelectual. Para Rorty (1991), não é mais possível pensar a cognição humana como alguma coisa que escapa às categorias biológicas. Bem em sintonia com o que é afirmado por Piaget, ao não conceder a prioridade do conhecer nem ao sujeito em si mesmo, nem ao objeto que se imporiam ao sujeito, e sim ao processo de interação, de ação sobre o mundo, em trocas que superam o próprio dualismo sujeito-objeto:

"Os conhecimentos não partem, com efeito, nem do sujeito (conhecimento somático ou introspecção) nem do objeto (porque a própria percepção contém uma parte considerável de organização), mas das interações entre sujeito e objeto, e de interações inicialmente provocadas pelas atividades espontâneas do organismo, tanto quanto pelos estímulos externos." (Piaget, 1967/2003, p. 39-40)

E, de forma semelhante, afirma em um trecho de outra obra, destacando uma indiferenciação entre sujeito e objeto que não realizam trocas como formas distintas:

"De um lado, o conhecimento não procede, em suas origens, nem de um sujeito consciente de si mesmo nem de objetos já constituídos (do ponto de vista do sujeito) que se lhe imporiam: resultaria de interações que se produzem a meio caminho entre sujeito e objeto, e que dependem, portanto, dos dois ao mesmo tempo, mas em virtude de uma indiferenciação completa, e não de trocas entre formas distintas." (Piaget, 1970/2007, p. 8)

Para Piaget, o instrumento inicial de troca é a própria ação e sua plasticidade (p. 8), como também se nota na abordagem da cognição incorporada (Thompson, 2005; Pachoud, 1999).

Essa teoria da co-especificação recíproca entre organismo e meio, uma das noções básicas da cognição incorporada, está no cerne da epistemologia genética piagetiana. Em diferentes passagens, como na citada abaixo, Piaget reforça esta teoria, enfatizando o papel do meio (exterior), e da organização interna (interior), no desenvolvimento cognitivo. Nos esquemas cognitivos, inclusive os apoiados em níveis sensório-motores mais elementares, as características inatas definem apenas as impossibilidades ou possibilidades de aquisição, sendo que: "esta exige então, além do mais, uma atualização que envolve contribuições exteriores devidas à experiência, portanto ao meio, e uma organização progressiva interna dependente da auto-regulação" (Piaget, 1970/2007, p. 62-63).

A obra de Piaget tem como fundamento esse isomorfismo entre regulações (e auto-regulações) orgânicas e cognoscitivas. Em Piaget, as "regulações cognoscitivas são a continuação das regulações orgânicas" (Piaget, 1967/2003, p. 233). Uma regulação, segundo o autor, é um controle retroativo que mantém o equilíbrio de uma estrutura organizada ou de uma organização em via de construção. A construção de uma nova estrutura não se separa de sua regulação, e o controle é o enriquecimento da própria organização (Piaget, 1967/2003, p. 237).

Esse conceito de auto-regulação possui destacada importância em toda a epistemologia genética. Ele é recorrente, também, nas teorias da cognição incorporada. Em ambas, o significado é o mesmo, e envolve entender o organismo como agente dotado de identidade, em sua inter-relação com o meio, sempre buscando se re-equilibrar e conservar esta identidade (seu funcionamento e sua organização), numa contínua ação incorporada nesse seu meio circundante.

Quer observemos isso sob a ótica do funcionamento orgânico, quer sob a ótica do funcionamento cognitivo, a lógica é a mesma, visto que tanto epistemologia genética quanto a cognição incorporada postulam a existência de um isomorfismo estrutural entre organismo e sujeito do conhecimento. Indo mais além, as funções cognoscitivas ultrapassam as funções do organismo, visto que as primeiras podem ser mais diferenciadas. "Em primeiro lugar, as funções mais gerais do organismo, organização, adaptação e assimilação, conservação e antecipação, regulação e equilibração, são encontradas todas no terreno cognoscitivo, e têm aí o mesmo papel essencial" (Piaget, 1967/2003, p. 244, grifos nossos).

Num trecho mais adiante, prossegue a explicação dos isomorfismos orgânico-cognoscitivos:

"Reciprocamente, os caracteres essenciais do conhecimento apresentam correspondentes orgânicos evidentes. As duas grandes funções da inteligência são inventar e compreender, e tanto a invenção morfológica e fisiológica, quanto a assimilação orgânica, são as origens delas, tendo como conseqüência a descoberta progressiva ou a extensão indefinida do meio." (Piaget, 1967/2003, p. 245)

E arremata sua tese, da seguinte forma:

"Mas se os isomorfismos parciais que procuramos desentranhar parecem comprovar mecanismos comuns incontestáveis, não se trata senão de correspondências parciais, pela razão fundamental de que o conhecimento, mesmo tirando seus quadros funcionais da organização viva, supera-a incessantemente em estruturas mais requintadas, embora na mesma direção impressa desde o ponto de partida. Do ponto de vista da organização, a inteligência chega a estruturas muito mais notáveis, ao mesmo tempo que muito mais diferenciadas, porque se é possível conceber a matematização de todas as estruturas biológicas, todas as estruturas matemáticas não são realizáveis no plano orgânico. Do ponto de vista da adaptação, a inteligência chega a formas de equilíbrio entre a assimilação e a acomodação muito mais avançadas e coerentes do que as aproximações orgânicas." (Piaget, 1967/2003, p. 245-246)

Os fatores de auto-regulação, embora endógenos, não são hereditários. As auto-regulações são próprias do desenvolvimento e se situam entre o que é inato e o que é adquirido. As auto-regulações e equilibrações estão presentes em todos os níveis dos comportamentos cognitivos e, como afirma o autor (Piaget, 1970/2007, p. 68), uma auto-regulação é uma das características mais universais da vida e, ao mesmo tempo, dotada de um duplo caráter, orgânico e cognitivo. Indo além, ela é geradora de novas estruturas, que conforme bem delineado por Piaget em toda a sua obra, jamais estão prontas e acabas e nunca foram inatas. Constroem-se pela incorporação do sujeito ao mundo, numa interação recíproca entre organismo e meio. Algo que na abordagem da cognição incorporada recebe o nome de acoplamento sujeito - mundo (Maturana & Varela, 1984/2002; Varela et al., 1991); e na própria obra de M. Merleau-Ponty (cuja fenomenologia é uma das grandes bases filosóficas da cognição incorporada ) surge com a denominação de arco intencional (Thompson, 2005; Merleau-Ponty, 1945/2005).

A noção de objeto, em Piaget, é a mesma da encontrada na cognição incorporada, e atrela-se às noções de mundo exterior, ambiente, ou meio, constantes em ambas. O desenvolvimento cognitivo provém, tanto na epistemologia genética, quanto na cognição incorporada, da interação do organismo com o seu meio, ou também, das interações do sujeito com o objeto. Inclusive as estruturas lógico-matemáticas não são preexistentes no sujeito como estruturas acabadas, nem são inteiramente provenientes do objeto. Elas supõem, para o seu desenvolvimento, o comportamento ativo, também no tocante ao nível sensório-motor, de ações sobre esses objetos do mundo concreto. Nessas experiências sensório-motoras, as estruturas se constroem e se desenvolvem, por meio dos elementos operatórios abstraídos das ações do sujeito sobre os objetos, ou como nos diz com suas próprias palavras:

"Encontramo-nos, desta maneira, em presença de um funcionamento organizador e regulador, que o apriorismo erroneamente quis traduzir em estruturas acabadas de uma só vez, ignorando que a construção delas é irrealizável sem um conjunto de interações entre o sujeito e os objetos, no curso das quais as reações destes últimos constituem a ocasião (mas não a causa) das regulações formadoras." (Piaget, 1967/2003, p. 141)

E, aprofundando e melhor elucidando seu pensamento, diz mais adiante:

"O objeto é enriquecido pelo sujeito, tal como o meio pelo organismo, ao mesmo tempo que o sujeito elabora suas próprias estruturas agindo sobre os objetos, de tal sorte que suas interações excluem simultaneamente todo empirismo e todo apriorismo em favor de uma construção contínua que admite o aspecto de totalidades relacionais indissociáveis e o de desenrolar histórico. A formação dos conhecimentos é, pois, a história de uma organização progressiva, de modo que, eliminando todo caráter de fixidez do objeto e do sujeito, a explicação se orienta necessariamente no sentido da pesquisa do mecanismo de equilibração e auto-regulação." (Piaget, 1967/2003, p. 147-148)

Portanto, a construção do conhecimento ocorre no sentido, segundo o autor, de reunir, numa mesma totalidade funcional, as contribuições respectivas de sujeito e objeto. O caráter de interação e de influência recíproca (e recorrente) entre estes dois últimos, expressões familiares à cognição incorporada, pautam a gênese do conhecimento conforme Piaget, construída com base na ação. Esta aprimora progressivamente uma organização (funcionamento organizador) em sua composição estrutural em constante desenvolvimento (Piaget, 1967/2003).

A idéia de um sujeito que conhece o mundo como algo independente de si mesmo não se sustenta nem na cognição incorporada, nem na epistemologia genética. O mundo não é algo exterior que está à mercê do agente do conhecimento, pronto para ser descoberto em sua forma pura, desvinculada das estruturas do sujeito. Mundo e sujeito estão numa relação de mútua interdependência e de co-especificação (Thompson, 2005; Maturana & Varela, 1984/2002). O mundo não é uma categoria pré-especificada, externa e puramente dada a uma representação interna pelo cérebro. É, por outro lado, um domínio relacional trazido à tona pelo sujeito conhecedor autônomo, em seu acoplamento com ele. O que é o mundo para o sujeito depende das estruturas internas do sujeito, tanto em Piaget (estruturas orgânicas e cognoscitivas) quanto na cognição incorporada . "Conhecer não consiste, com efeito, em copiar o real mas em agir sobre ele e transformá-lo (na aparência ou na realidade), de maneira a compreendê-lo em função dos sistemas de transformação aos quais estão ligadas as ações" (Piaget, 1967/2003, p. 15).

Assim também é na cognição incorporada. Um sujeito incorporado não pode ser especificado independentemente do mundo, assim como não é possível especificar o mundo independentemente das estruturas do sujeito (Thompson, 2005).

Mente e mundo estão numa relação de co-especificação mútua, conforme já dito. O mundo é um existencial, como diz Merleau-Ponty (1945/2005). Ou seja, ele existe na medida em que existe uma mente atuante que delimita, no para-si, o que vem a ser seu mundo. As capacidades cognitivas estão arraigadas na nossa incorporação biológica e cultural, e são, de fato, vividas e experienciadas num domínio de ação, num domínio de atuação corporal, numa trajetória de história cultural, segundo o ponto de vista da cognição incorporada. Essa idéia está em plena sintonia com a primazia, conferida pelo pragmatismo de Piaget, à ação e à experiência.

Nenhum conhecimento, inclusive perceptivo, implica numa representação do mundo exterior, tal qual uma fotografia que independe do sujeito que observa, porque envolve um processo de assimilação a estruturas anteriores (1967/2003, p. 13). O termo assimilação é empregado por Piaget para se referir ao processo de integração de novos elementos a estruturas prévias, sem perda da identidade e da organização, mas sim a acomodação à nova situação.

Assim, a ideia de um mundo predeterminado vem a ruir nas teorias da cognição incorporada e da epistemologia genética. O mundo não é predeterminado. Suas características não podem ser especificadas antes de qualquer experiência cognitiva. Não há, portanto, representações sobre um mundo que está lá fora da mente, espelhado por estas representações. Mundo e mente se especificam mutuamente, derrubando por terra o falso dualismo mente-mundo. Nossa cognição não é sobre um mundo supostamente exterior à mente. E o fenômeno do nosso conhecimento sobre este suposto mundo predeterminado não se dá por representações de suas características intrínsecas, e sim, conforme Piaget, pela assimilação a estruturas prévias.

A percepção, por exemplo (a qual abordaremos mais adiante), em ambas as teorias, é um processo ativo que não funciona como o espelhamento simples de um ambiente predeterminado, mas sim como a recriação de um mundo conforme a estrutura interna do agente:

"O ponto de referência para compreender a percepção não é mais um mundo predeterminado independente do observador, mas sua estrutura sensório-motora (a forma pela qual o sistema nervoso une as superfícies sensorial e motora). Essa estrutura - a maneira pela qual o observador é incorporado - não especifica nenhum mundo predeterminado, mas o modo como o observador pode agir e ser modulado por eventos ambientais. Assim, a preocupação geral de uma abordagem enactivo-incorporada (atuacionista) da percepção não é determinar como um mundo, independente do observador, pode ser representado; é, ao contrário, determinar os princípios comuns ou ligações regradas entre os sistemas sensorial e motor, que explicam como a ação pode ser perceptivamente orientada em um mundo dependente do observador." (Varela et al., 1991, p. 173, tradução nossa)

Piaget reforça esse ponto de vista, em função de sua ênfase na re-elaboração do mundo, pelo sujeito atuante (ativo, que age), graças a suas estruturas prévias que são transformadas pelos processos de assimilação e acomodação que, por sua vez, num processo recorrente, permitem uma nova leitura do mundo, uma nova percepção e... novas assimilações... novas transformações... A circularidade, tão presente na cognição incorporada (Thompson, 2005). O organismo está em contínua construção de si mesmo em sua interação com o mundo. Ele:

"[...] reage ativamente assimilando o meio a suas estruturas, em lugar de deixá-las curvar-se em todos os sentidos por indefinidas acomodações. Certamente, o organismo é capaz de aprendizagem, mas todo registro de informações exteriores está ligado a estruturas de assimilação." (Piaget, 1967/2003, p. 127)

O autor da epistemologia genética ressalta, portanto, o caráter incorporado do conhecimento também pelos termos da assimilação, da incorporação a esquemas de ação e das condutas sensório-motoras, num processo que se estende desde estas últimas até às operações lógico-matemáticas superiores. Para Piaget (1970/2007), todo conhecimento supõe uma assimilação e consiste em conferir significações ao mundo. Conhecer um objeto implica incorporá-lo a esquemas de ação, e isto se aplica desde as condutas sensório-motoras elementares até às operações lógico-matemáticas superiores.

Piaget afirma que embora o organismo sofra as influências do meio, age sobre o mesmo de forma essencialmente ativa, não sendo uma réplica dos corpos que o cercam e, principalmente, possui uma organização que se conserva. Tal organização tem o poder da assimilação (a esquemas prévios), desenvolvendo-se sem se descaracterizar por meio de suas sucessivas auto-regulações (Piaget, 1967/2003, p. 44):

"Ora, é precisamente nisso que consiste o comportamento: um conjunto de escolhas e de ação sobre o meio, que organiza de maneira ótima as trocas. O aprendizado não constitui de modo algum exceção a esta definição, porque, ao adquirir novos condicionamentos e novos hábitos, o ser vivo assimila os sinais e organiza esquemas de ação que se impõem e ao mesmo tempo se acomodam ao meio." (Piaget, 1967/2003, p. 45)

O caráter incorporado do comportamento e dos conhecimentos - inclusive no universo biológico (auto-regulação orgânica) - é um traço fundamental do pensamento de Piaget. Similar à perspectiva da cognição incorporada, quanto à importância de interação com o meio, em contínuas trocas (Thompson, 2005), para o desenvolvimento do conhecimento. Na cognição incorporada, o papel de estruturas baseadas nas experiências concretas e sensório-motoras é indispensável para o pensamento mais elaborado, inclusive o científico. Piaget postula a existência, neste, de estruturas invariantes e funcionais de níveis mais elementares:

"A auto-regulação cognoscitiva vai utilizar os sistemas gerais de auto-regulação orgânica, que se encontram em todas as escalas genéticas, morfogenéticas, fisiológicas e nervosas, e vai adaptá-las, sem nada mais, a esses novos dados (novos com relação às escalas precedentes, mas presentes em toda a série animal), que constituem as trocas com o meio no âmbito do comportamento. É por isso que se encontram nos conhecimentos, até nas formas humanas mais evoluídas na direção do pensamento cientifico, os principais invariantes funcionais que caracterizam a auto-regulação em todos os níveis. É assim que, em sua forma mais geral, as estruturas operatórias da inteligência são sistemas de transformações, mas de tal espécie que conservam o sistema a título de totalidade invariante." (Piaget, 1967/2003, p. 47)

Mesmo a formação das operações lógico-matemáticas encontra sua base nas auto-regulações orgânicas, assim como as primeiras etapas da inteligência sensório-motora vieram de instrumentos mais elementares, que:

"[...] puderam modificar-se mediante novas regulações, até levar à construção das etapas ulteriores, etc. Ora, as regulações orgânicas já nos fornecem a imagem de reconstruções indefinidas, de patamar em patamar, sem que as formas superiores estejam contidas de antemão nas inferiores, consistindo apenas sua ligação num funcionamento análogo que tornou possível novas construções." (Piaget, 1970/2007, p. 69)

E no tocante ao acoplamento entre o organismo e o seu meio, é a estrutura interior do organismo que adere à realidade material, sem que o organismo determine o que constituirá o seu mundo, mas apenas o especifique. E, se isso reafirma um pressuposto essencial da cognição incorporada, também aparece nítido em Piaget. Assim como, também, a preponderância da ação, em seu caráter material e concreto, sobre a cognição:

"É, portanto, pelo próprio interior do organismo e não (ou não somente) pelo canal das experiências exteriores, que se faz a junção entre as estruturas do sujeito e as da realidade material. Isso não significa, em absoluto, que o sujeito tenha consciência disso, nem que compreenda a física ao ver-se agir manualmente, comer, respirar, olhar ou ouvir; mas isso equivale a dizer que seus instrumentos operatórios nasceram, graças à ação, no seio de um sistema material que determinou suas formas elementares." (Piaget, 1970/2007, p. 70)

E retornando à questão da percepção, como já bem notado nas duas teorias, é, tanto em Piaget, quanto na cognição incorporada, tida como um processo ativo, atrelado ao comportamento sensório-motor (Thompson, 2005; Pachoud, 1999). Vejamos o que nos diz o autor da epistemologia genética:

"As percepções desempenham, sem dúvida, um papel essencial, mas dependem em parte da ação em seu conjunto, e certos mecanismos perceptivos que se poderia crer inatos ou muito primitivos (como o "efeito túnel" de Michotte) só se constituem num certo nível da construção dos objetos. De um modo geral, toda percepção termina por conferir aos elementos percebidos significações relativas à ação e é, portanto, da ação que convém partir." (Piaget, 1970/2007, p. 8-9)

Em sintonia com a fenomenologia de Merleau-Ponty (1945/2005), as ciências cognitivas contemporâneas, representadas aqui pela noção de cognição incorporada, concebem a percepção como um processo ativo, no qual as funções sensório-motoras desempenham um papel determinante. Percepção não é, portanto, um processo passivo de captação de estímulos do ambiente. É o organismo que "recorta" no seu ambiente o que será percebido, de acordo com seu comportamento ativo, atuante, incorporado em seu meio.

Tanto em Piaget, quanto na cognição incorporada, isso se verifica, e pode-se dizer que ambos defendem a existência de uma interação, ao menos parcial, entre o sistema sensorial e o sistema motor, o que contradiz a hipótese da recepção e transmissão passiva de sinais e estímulos de um mundo objetivo independente da ação do organismo em sua incorporação no meio circundante.

E não se esgota na questão da percepção a preponderância do nível sensório-motor para o desenvolvimento cognitivo do sujeito do conhecimento, em ambas as teorias. O comportamento sensório-motor é a base da aquisição de formas mais avançadas de pensamento. A cognição incorporada, conforme apontado em diversas citações, supõe, como base da cognição e de todo o pensamento abstrato, um suporte de ação concreta no nível sensório-motor (Thompson, 2005; Pachoud, 1999). Quanto a Piaget, mais uma vez temos a referência à sensório-motricidade:

"Distinguiremos a esse respeito dois períodos sucessivos: o das ações sensoriomotoras anteriores a toda linguagem ou a toda conceituação representativa, e o das ações completadas por essas novas propriedades e a propósito das quais se apresenta então o problema da tomada de consciência dos resultados, intenções e mecanismos do ato, ou seja, de sua tradução em termos de pensamento conceitualizado." (Piaget, 1970/2007, p. 9)

Proximidade maior entre as duas correntes não poderia ser encontrada senão no trecho em que o autor da epistemologia genética nos diz: "As raízes do pensamento devem ser procuradas na ação e os esquemas operatórios derivam diretamente dos esquemas de ação" (Piaget, 1967/2003, p. 210). Nesse mesmo trabalho, ele culmina afirmando que os numerosos esquemas sensório-motores são a base da constituição de esquemas isomorfos aos da inteligência representativa. A noção de cognição incorporada , em alguns de seus trabalhos de destaque, assim como também em Thompson (2005) e Pachoud (1999), exacerba a importância e a centralidade da sensório-motricidade.

Para Thompson (2005), um dos expoentes das modernas ciências cognitivas, no campo das neurociências, explicar a experiência do mundo requer ir além da explicação com base nas propriedades intrínsecas de uma atividade neural. Essa explicação envolve as relações sensório-motoras entre atividade neural, corpo e mundo. E a motricidade do corpo no seu ambiente tem papel de destaque.

Por exemplo, para a neurociência, baseada na cognição incorporada, não faz mais sentido tentar explicar a experiência perceptiva com base na atividade neural tomada abstratamente, mas sim com base numa atividade neural incorporada em um contexto de ampla atividade sensório-motora dinâmica. Pedimos licença, para que a seja feita uma pequena observação, talvez em prol de certa "justiça intelectual": Piaget deveria ao menos ser lembrado pelos cientistas das ciências cognitivas contemporâneas... Afinal, já havia, o pai da epistemologia genética, nos mostrado estas mesmas bases do conhecimento... da percepção... a importância da sensório-motricidade... O que se aponta como novo, hoje, já deveria soar como familiar graças ao trabalho de Jean Piaget. Justiça seja feita a Piaget...

 

Considerações finais

A abordagem da cognição incorporada - "embodied cognition ou embodied-enactive-view" (Petitot et al., 1999, p. 6) - vem ganhando grande relevância no cenário das ciências cognitivas em geral. Em diferentes países, em diferentes programas de pesquisa, o ponto de vista de uma cognição incorporada vem auferindo um acelerado progresso, tanto sob uma perspectiva teórica e, em especial, sob uma perspectiva aplicada. Por exemplo, nos laboratórios do MIT (Estados Unidos), vêm sendo desenvolvidos robôs que interagem com o seu ambiente segundo um programa que favorece as trocas, as auto-regulações e, pasmem, os aspectos sensoriais e motores de uma máquina.

Em face destas palavras, fica no ar uma pergunta, talvez sem resposta: quando lemos estes termos nos artigos, livros e etc, das ciências cognitivas, temos uma leve impressão de que já tínhamos aprendido estas teorias, princípios e fundamentos em algum lugar... Onde? Em Piaget. Este artigo conclui que a similaridade entre a cognição incorporada e a obra de Piaget não se resume a uma impressão. Piaget merece, com a devida justiça, ser lembrado como um dos fundadores das modernas ciências cognitivas.

 

Referências bibliográficas

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Varela, F.; Thompson, E. & Rosch, E. (1991). The embodied mind: cognitive science and human experience. Cambridge, MA: The MIT Press.

 

 

Notas

G. C. Bouyer
Endereço para correspondência: Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Departamento de Engenharia de Produção (DEENP), Campus João Monlevade, Instituto de Ciências Exatas e Aplicadas (ICEA), Rua Trinta e Sete, 115, Bairro Loanda. João Monlevade, MG 35.931-006, Brasil.
E-mail para correspondência: gilbertcb@uol.com.br.
Telefone/FAX: +55-31-38528709.