SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.16 issue2Assessing the degree of insertion of the science museum in the school's Baixada Fluminense, Rio de JaneiroThe teacher and literature: for small, medium and large author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.16 no.2 Rio de Janeiro Aug. 2011

 

Artigo Científico

 

A habilidade matemática e o desempenho escolar na solução de problemas mal-estruturados

 

Mathematical ability and school performance in solving improperly structured problems

 

 

Maria Alice Veiga Ferreira de Souza

Instituto Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo, Brasil

 

 


Resumo

Que relações possuem as habilidades matemáticas de estudantes e seus desempenhos em provas de Matemática? Psicólogos cognitivistas e educacionais defendem que essas variáveis são psicológicas e que estudos detalhados das habilidades acrescentariam informações às provas cujas estatísticas carecem de um delineamento dos processos cognitivos usados no desempenho dessas tarefas. Doze estudantes de uma amostra inicial de 141 graduandos em Ciência da Computação foram analisados em suas soluções de cinco problemas mal-estruturados propostos por Krutetskii. Os principais resultados apontaram descolamento entre o desempenho e a habilidade, seja como estudante ingressante ou concluinte, seja como bem ou mal-sucedido em provas de Matemática. © Cien. Cogn. 2011; Vol. 16 (2): 113-122.

Palavras-chave: habilidade matemática; desempenho; pensamento matemático; problemas mal-estruturados; cognição.


Abstract

What relations are there between the students` mathematic skills and their performance in Mathematics exams? Educational and cognitive psychologists support the idea that these variables are psychological and that detailed studies of skills would add information to the tests which the statistics lack a delineation of the cognitive processes used to carry out these tasks. Twelve students from an initial sample of 141 Computer Science students had the solutions of five improperly structured problems, suggested by Krutetskii, analyzed. The main results showed a mismatch between the ability and performance whether the student was a freshman or senior, and whether the student did well or not on the Mathematics exams. © Cien. Cogn. 2011; Vol. 16 (2): 113-122.

Keywords: mathematics ability; performance; mathematical thinking; improperly structured problems; cognition.


 

 

Introdução

Problemas de Matemática requerem adequada articulação dos elementos neles envolvidos para o alcance de sua solução. O raciocínio ali presente é entendido como uma variável psicológica que compõe o processo de busca em meio ao que se chama de pensamento matemático. O raciocínio, segundo Sternberg (2000, p. 368), é um "processo cognitivo pelo qual uma pessoa pode inferir uma conclusão, a partir de um grupo de evidências ou de declarações de princípios". Ele integra o pensamento matemático que é o caminho desde o reconhecimento dos elementos constituintes de um problema até sua solução.

Variáveis psicológicas podem revelar certos processos cognitivos e, até mesmo, explicar e justificar a solução encontrada. Ao contrário, levantamentos estatísticos mostram apenas o produto final, os sucessos ou os fracassos no alcance dessas soluções. Os resultados assim expostos falam pouco da dinâmica do processo de construção do conhecimento pelos indivíduos, seja no sucesso, seja no fracasso. Por isso, é preciso associar aos dados estatísticos, um estudo dos processos subjacentes ao comportamento observável, que delineie, pelo menos em parte, a maneira que os leva ou não para a solução do problema.

É nesse sentido que proponho responder à seguinte pergunta: que habilidades matemáticas estudantes, com alto e baixo desempenho em provas que exigem raciocínio matemático, apresentam quando solucionam problemas matemáticos mal-estruturados? E para isso, estabeleço os seguintes objetivos: conhecer o desempenho de estudantes em provas de Matemática, explorar a habilidade matemática desses estudantes e, estudar a relação entre suas habilidades e seus desempenhos.

 

A teoria de Vadim Andrevich Krutetskii

O estudo desenvolvido por Krutetskii (1976) versa sobre o problema das habilidades matemáticas. Para isso, desenvolveu ampla pesquisa que explorou a natureza e a estrutura das habilidades matemáticas, tomando como preocupação maior o máximo desenvolvimento das potencialidades matemáticas de estudantes. Essas habilidades foram concebidas como constructos psicológicos complexos, cuja estrutura é constituída por componentes, que combinados, vêm formar diferentes habilidades matemáticas.

As habilidades são estruturas mentais complexas que constituem uma síntese das propriedades e qualidades da mente. Inclui diversos aspectos desenvolvidos durante a execução adequada de uma atividade. As habilidades são totalidades cujos componentes não podem funcionar de forma isolada. A identificação e a análise de cada componente em separado são elaboradas apenas com o objetivo de pesquisa, mas na execução da atividade, o conjunto desses elementos interage formando uma única estrutura.

Krutetskii (1976) desenvolveu sua teoria levando em conta aspectos sócio-históricos ligados ao aprendizado escolar, estando em sintonia com teorias de outros personagens russos, como Vygotsky e Leontiev. Em meio a esses pressupostos, a teoria krutetskiiana realça o fato de que a habilidade é um problema de diferenças individuais e que os sujeitos não possuem o mesmo potencial para desenvolvimento de atividades. Para ele, os sujeitos eram capazes de realizar tarefas, mas as capacidades aí envolvidas ocorriam em níveis diferentes. Nesse sentido, os sujeitos apresentavam maior ou menor capacidade para diferentes atividades. Krutetskii (1976) afirmou que essas capacidades não são naturais, mas desenvolvidas em meio ao trabalho e às vivências de cada sujeito.

Para Krutetskii os sujeitos podem ser mais ou menos capazes em Matemática, segundo os níveis de habilidades matemáticas em que se encontrem, alcançados por meio do aprendizado, prática e domínio de uma atividade matemática. Justamente por estar ligado a um aprendizado, Krutetskii (1976) afirmou que as habilidades não são constantes e nem inalteráveis, mas passíveis de cultivo e de melhoramentos.

Além disso, o desempenho expresso por notas, muito observado no meio educacional, no aprendizado escolar é insuficiente para explicar e fundamentar a natureza das habilidades dos estudantes, dado que o baixo rendimento escolar não é necessariamente um indicativo de baixa habilidade e vice-versa. Estudantes com habilidades idênticas podem diferir nos seus progressos. Krutetskii constatou daí que estudantes, que estavam sob o mesmo método de aprendizagem, desenvolvendo exercícios iguais e que apresentavam condições escolares gerais semelhantes, produziam essencialmente resultados diferentes e, essas diferenças poderiam ser explicadas pelas diferenças de habilidades.

De seu estudo, Krutetskii (1976) caracterizou os estudantes como capazes, medianamente capazes e relativamente incapazes. Os estudantes capazes eram assim considerados por dominarem facilmente os objetos matemáticos, solucionando-os com alta velocidade, por apresentarem independência no pensamento e por esboçarem alguma criatividade, principalmente ao estudarem um novo conteúdo, bem como por apresentarem soluções originais para problemas não padronizados.

Os sujeitos com mediana habilidade foram bem-sucedidos nas tarefas matemáticas, mas consumiam maior tempo e esforço quando comparados aos capazes. Esses estudantes tinham dificuldade em transferir o conhecimento de um problema para a solução de outro. Entretanto, uma vez dominado o método de solução, eles se saíam bem. O conhecimento nesse caso era mais imitativo do que criativo.

Já os relativamente incapazes apresentavam grandes dificuldades na compreensão e explicação do professor, necessitando sempre de lições extras. Estes estudantes não podiam trabalhar problemas que estavam além dos limites padronizados. Requeriam grande número de exercícios e demonstravam frequente insegurança.

 

O Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes - ENADE

O Ministério da Educação (MEC) no Brasil instituiu um exame nacional - o ENADE: Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes - que avalia os graduandos, ingressantes e concluintes, de cursos superiores, a fim de aferir o rendimento acadêmico ao longo da formação superior nos conteúdos programáticos entre outros aspectos, previstos nas diretrizes curriculares das respectivas graduações. Entre os cursos, inclui-se o de Ciência da Computação.

Particularmente, para os estudantes de Ciência da Computação, o raciocínio matemático é de fundamental importância por integrar a formação desse profissional. Por isso, o ENADE explora desses estudantes questões que valorizem esse raciocínio. Mas, sabendo que o ENADE apresenta somente resultados baseados em respostas certas ou erradas, um estudo detalhado das habilidades matemáticas acrescentaria informações aos levantamentos estatísticos, relevantes, mas insuficientes, se despidos de um delineamento dos processos cognitivos utilizados pelas pessoas no desempenho dessas tarefas.

 

Problemas mal-estruturados de matemática

Uma atividade mental matemática emerge em meio à solução de um problema de Matemática. Essa solução é vista por muitos estudiosos como um processo composto por etapas integradas, visando alcançar uma solução (Sternberg, 2000; Johnson-Laird, 1992; Mayer, 1992; Polya, 1946). Johnson-Laird (1992), por exemplo, afirmou serem necessárias investigações experimentais para aprender-se mais sobre os processos mentais subjacentes ao raciocínio. Uma maneira seria fornecer aos sujeitos problemas e observar as características do processo de solução para tentar explicar esses complexos processos mentais.

Para ele, a solução de qualquer problema deve percorrer vários estágios: compreensão das condições iniciais do problema; traçar um plano (selecionar um método apropriado); executar o plano traçado sem erros (muitas vezes a incapacidade para a solução não está em uma deficiência de lógica, mas um fracasso na memória); verificar a resposta encontrada (avaliar a coerência da resposta obtida, bem como considerar haver outra maneira mais simples).

Um problema pode ser entendido como uma tarefa na qual a solução ou meta não é alcançável imediatamente e não existe um algoritmo óbvio para uso. Um sujeito vê-se diante de um problema quando deseja algo que não sabe imediatamente com que série de ações poderá solucioná-lo (Bruner, 1997; McLeod, 1989; Newell & Simon, 1972; Sternberg, 2000; Polya, 1946). Já um problema de matemática, segundo estes autores, é visto por matemáticos como problemas não rotineiros que requerem mais que procedimentos prontos ou algoritmos no processo de solução.

De acordo com Sternberg (2000, p. 309), de maneira geral, os psicólogos cognitivos classificaram os problemas como sendo bem-estruturados ou mal-estruturados. Não de maneira estanque, mas como um continuum tendo como extremos, essas duas classificações. Os problemas bem-estruturados possuem caminhos claros para a solução, enquanto os mal-estruturados não apresentam essa característica. A determinação da área de um paralelogramo é exemplo de problema bem-estruturado. Problemas probabilísticos seriam mal-estruturados.

 

Método, instrumentos e procedimentos

Participaram do ENADE 141 estudantes, sendo 111 ingressantes e 30 concluintes, assim considerados segundo critérios do MEC, graduandos em Ciência da Computação, de uma instituição de ensino privada do estado do Espírito Santo. Destes, foram selecionados doze estudantes, formando uma amostra aleatória estratificada (Triola, 1999), extraída segundo o desempenho no ENADE.

Estudar a habilidade matemática dos 141 sujeitos era inviável, pois seria impossível trabalhar de forma individual e detalhar os produtos dos problemas propostos. Por isso, foram selecionados doze estudantes: três ingressantes e três concluintes que obtiveram desempenhos aquém da média aritmética do grupo dos 141 estudantes (mal-sucedidos no desempenho escolar) e, três ingressantes e três concluintes que obtiveram desempenhos além da média aritmética do mesmo grupo (bem-sucedidos no desempenho escolar).

Para os estudos das habilidades matemáticas, foram analisadas as soluções de cinco problemas estudados por Krutetskii, dos doze estudantes, por meio da técnica do "pensar em voz alta", de forma individual, em local previamente testado e agendado, na própria instituição de ensino, com imagens e sons registrados por uma filmadora estrategicamente localizada. Essas medidas estão em sintonia com a técnica de coleta e análise de dados abordada por Powell, Francisco e Maher (2004).

Dois dos cinco problemas são:

  • Problema 1: Um lago extenso está sendo coberto por uma vegetação. Todo dia, a extensão da área encoberta dobra de tamanho. No oitavo dia, metade do lago se encontra encoberto pela vegetação. Em que dia o lago estará totalmente encoberto?
  • Problema 3: Quarenta peixes foram apanhados em um lago com uma rede; cada peixe recebeu uma marca de identificação e todos foram devolvidos ao lago. Num outro dia, 60 peixes foram apanhados do mesmo lago com uma rede. Entre eles, havia 4 com a marca de identificação. Como se pode estimar aproximadamente o número de peixes no lago?

Após a aplicação dos cinco problemas, os estudantes foram abordados pela pesquisadora a respeito da interpretação dos textos dos problemas, do conhecimento e uso de conteúdos matemáticos específicos para a solução, e de dúvidas, que poderiam comprometer as análises.

As entrevistas foram do tipo semi-estruturada (Lüdke & André, 1986, p.34), por seguir um roteiro não aplicado rigidamente, permitindo adaptações no transcorrer da mesma. O estudo se classifica como quase-experimental, sob a ótica de Campbell e Stanley (1979), por não haver controle absoluto dos estímulos experimentais provocados pela pesquisadora sobre os sujeitos e, no entendimento de Eichelberger (1989), como uma pesquisa descritiva correlacional, por se estudar relações entre variáveis psicológicas descrevendo-as apenas, sem que um tratamento especial seja dado aos sujeitos.

Os critérios para a classificação dos estudantes segundo a habilidade matemática foram traçados a partir dos resultados de um estudo piloto realizado com outros estudantes da Ciência da Computação, além das diretrizes do estudo de Krutetskii (1976). Desse estudo, resultou a classificação como mais habilidosos e menos habilidosos matematicamente: os mais habilidosos foram os que estabeleceram relações eficientes entre os elementos do problema e executaram um plano de ação que mostrasse uma lógica que os conduzia para a solução correta, seja com números, símbolos, palavras, esquemas, seja de forma idiossincrática. Após a interpretação, se ele buscou construir um algoritmo de solução eficiente e inédito, diferente daqueles já assimilados. O estudante menos habilidoso apresentou dificuldades nessas tarefas ou, não conseguiu desenvolvê-la.

 

Resultados e discussão

Para o grupo de 141 estudantes, o número de participantes ingressantes (111) foi maior que o de concluintes (30), por haver alta evasão nessa graduação, um dos motivadores desta pesquisa. Quanto ao desempenho no ENADE, o estudo apontou 76 estudantes mal-sucedidos e 65 bem-sucedidos, conforme tabela 1.

 

Grupo

N

Média de acertos (%)

Erro-padrão da média

Desvio-padrão (%)

Estatística

ingressantes

111

23,81

0,83

8,77

t(141)=-0,57

p=0,574

concluintes

30

25,00

1,93

10,57

todos

141

24,40

0,77

9,15

mal sucedidos

76

21,85*

0,95

8,29

t(141)=-3,17

p=0,002

bem sucedidos

65

26,65*

1,18

9,49

todos

141

24,25

0,77

9,15

Tabela 1 - Desempenho no ENADE por diferentes agrupamentos - FAESA (*p = ou menor que 0,05).

 

Observe que o desempenho acadêmico não evoluiu significativamente com a graduação (t(12)=-0,57, p=0,574), ou seja, possivelmente os ingressantes não foram estimulados suficientemente pela instituição de ensino a ponto de destacar os concluintes nessa variável. O mesmo não ocorreu quando comparados como os bem-sucedidos ou não, ao observar-se que o teste t (t(12)=-3,17, p=0,002) revelou diferença significativa entre o grupo dos bem-sucedidos e o dos mal-sucedidos, ou seja, os bem-sucedidos se distanciam significativamente dos mal-sucedidos no teste acadêmico.

O resultado do estudo da habilidade matemática com os doze estudantes encontra-se resumido na tabela 2.

 

Estudante

Grupo

Desempenho no ENADE

Habilidade Matemática

1

ingressantes

Mal-sucedidos

Mais habilidoso

2

Mais habilidoso

3

Menos habilidoso

4

Bem-sucedidos

Mais habilidoso

5

Mais habilidoso

6

Menos habilidoso

7

concluintes

Mal-sucedidos

Mais habilidoso

8

Mais habilidoso

9

Menos habilidoso

10

Bem-sucedidos

Mais habilidoso

11

Mais habilidoso

12

Mais habilidoso

Tabela 2 - Habilidade matemática dos doze estudantes selecionados.

 

Observou-se ter havido apenas três estudantes considerados menos habilidosos e que essa incidência não privilegiou nenhum grupo específico. Nove dos doze foram considerados mais habilidosos, o que remete a refletir sobre os resultados apresentados em provas de Matemática que explorem o raciocínio matemático. Tudo leva a crer na independência entre a habilidade matemática e o teste do ENADE. Essa possibilidade é coerente com o que pregou Krutetskii ao afirmar que o baixo rendimento escolar não é necessariamente um indicativo de baixa habilidade e vice-versa.

Em seguida, é apresentada análise da habilidade matemática predominante dos estudantes 1, 3, 9 e 12, como exemplo das diferentes situações encontradas.

Estudante 1 (ingressante, mal-sucedido e mais habilidoso) e estudante 12 (concluinte, bem-sucedido e mais habilidoso): ambos foram considerados habilidosos por identificarem os elementos dos problemas e por construírem relações eficientes entre eles (figuras 1 e 2). Em um constante ir e vir examinavam as lógicas que encontravam nessas construções, percebendo enganos aritméticos, algébricos, de proporção, lógicos etc. Os estudantes não possuíam quaisquer algoritmos conhecidos para a solução desses problemas.

Particularmente, no problema 3, o estudante 1 o associou a questões de proporção, o que o auxiliou a compreender a estimativa de peixes no lago. Ele lia e relia o texto balbuciando palavras-chave que pareciam conduzir sua linha de pensamento. Outra característica desse estudante foi a de buscar apoio em um desenho indicativo de um lago, particionando-o à medida que conferia em voz alta as palavras-chave antes mencionadas, sempre conferindo a lógica por ele delineada (figura 1). Esse "ir e vir", conforme Johnson-Laird (1983), aponta o cuidado em se manter presentes na memória os elementos do problema, minimizando a possibilidade de um fracasso provocado por lapsos dessa natureza. Vale realçar o cuidado tomado por ele em só partir para a escrita depois de ter sentido confiança naquilo que havia interpretado do texto do problema. Logo após a cuidadosa introdução, iniciou uma formatação da quantidade de peixes nos dois primeiros dias, como em uma enumeração, interrompendo-a tão logo tenha compreendido a generalidade da sequência, realizando cálculos que lhe forneceram a correta solução.

Observou-se dos estudantes 1 e 12, que o fato de diferirem como ingressante e concluinte e como bem-sucedido e mal-sucedido, não influenciou suas classificações como mais habilidosos em Matemática, confirmando a teoria krutetskiiana, exceto quanto à organização do pensamento e quanto ao apoio imagético. O estudante 12 relatou ter somente feito uso de recursos aritméticos, partindo-se da quantidade inicial de peixes no lago e utilizando a conhecida "regra de três" para concluir sua análise e declarar a correta solução (figura 2).

 

Figura 1 - Solução do problema 3 - estudante 1.

 

Figura 2 - Solução do problema 3 - estudante 12.

 

Estudante 3 (ingressante, mal-sucedido e menos habilidoso): foi considerado menos habilidoso por não ter estabelecido relações eficientes entre os elementos dos problemas. Não pareceu ter havido falhas na compreensão do que se pedia, uma vez que explicou corretamente esses entendimentos, posteriormente.

Especificamente, no problema 3 (figura 3), havia meios de o estudante ter examinado se suas análises estariam corretas ou não, mas não o fez, diferentemente do estudante 1. Reconheceu tratar-se de um problema que envolvia conjuntos e buscou apoio nos "diagramas de Venn", amplamente trabalhados em aulas de Matemática. O estudante revelou que, no problema 3, a figura dos diagramas esteve sempre presente em seu processamento. Essa revelação foi convincente por estar em sintonia com alguns de seus protocolos orais durante a solução: "isso aqui é uma questão simples de conjunto" e "...nesse conjunto todo...". No entanto, o uso da linguagem matemática dissociada da plena compreensão das relações entre os elementos do problema parece ter comprometido a trajetória lógica para a correta solução.

A forte manipulação matemática dissociada de seus significados vem sendo condenada por estudiosos da área, pela ausência de conexão entre os diferentes conceitos ali envolvidos. A esse respeito, Kline (1976) criticou textos matemáticos em livros didáticos que valorizavam a mecânica dos números em detrimento dos significados a eles associados. Eram como páginas arrancadas de livros diferentes, nenhuma das quais transmitindo a vida, o sentido e o espírito da Matemática.

 

Figura 3 - Solução do problema 3 - estudante 3.

 

Estudante 9 (concluinte, mal-sucedido, menos habilidoso): foi considerado menos habilidoso por não estabelecer relações eficientes entre os elementos dos cinco problemas. Além disso, pareceu não possuir as características de um bom solucionador de problemas por não investir tempo em uma leitura preliminar completa do texto, por não ter traçado um plano ou buscado auxílio em uma representação que o guiasse nesse processamento e por não avaliar a coerência do que realizava. As operações desconexas do problema 3 (figura 4) indicaram ausência de significado para o uso da linguagem matemática para esse estudante.

 

Figura 4: Solução do problema 3 - estudante 9

 

A solução errada encontrada pelo estudante ao problema 3 poderia ter sido verificada com a simples lembrança de que se quarenta peixes foram apanhados do lago e marcados, como se poderia declarar ter vinte e cinco peixes no total? O mesmo ocorreu na solução dos outros problemas. Os números não pareceram fazer sentido para esse estudante, assim como para o estudante 3.

 

Conclusões

Os resultados apontaram não ter havido evolução do desempenho medido pelo ENADE, ou seja, os ingressantes e concluintes não se diferenciam nesse aspecto. No entanto, houve relevante diferença no grupo dos mal e bem-sucedidos.

Para a amostra de doze estudantes, nove foram considerados habilidosos ao solucionarem problemas matemáticos mal-estruturados, pois teceram boas relações e souberam construir uma linha de conduta que os fizesse convergir para uma solução coerente e aceitável, conforme parâmetros estabelecidos por Krutetskii (1976). Esse fato se deu independentemente do agrupamento como ingressante/concluinte ou como mal e bem-sucedido. Ao contrário, os três considerados menos habilidosos não apresentaram essas características, mas falhas em etapas básicas como a leitura completa do texto do problema proposto, extração de elementos relevantes e ausência de sucessivas revisões do raciocínio e da avaliação do resultado alcançado. Esses três não foram considerados bons solucionadores de problemas, conforme indicações de Johnson-Laird (1992).

O desempenho, por si só, não revela as habilidades matemáticas dos estudantes por desprezar aspectos intrínsecos ao processo de solução de problemas mal-estruturados.

Houve certo equilíbrio entre estudantes ingressantes e concluintes considerados habilidosos em Matemática, o que levanta a possibilidade de a instituição de ensino contribuir pouco para essa evolução. Por outro lado, é possível que essa variável sofra maiores alterações em escolaridades anteriores à superior, uma vez que, segundo Krutetskii (1976), essa variável não é inata e nem inalterável, mas passível de cultivo e de melhoramento. Nesse caso, aumenta a responsabilidade do trabalho desenvolvido nesses níveis escolares para esse progresso.

A pesquisa de Floyd, Evans e McGrew (2003) reforça esta hipótese, pois, ao estudarem relações entre habilidades cognitivas e êxito em tarefas matemáticas, obtiveram resultados que ascendiam rapidamente em idades mais jovens e praticamente se estabilizavam em idades mais maduras como as de estudantes de ensino superior. Nesse sentido, estudos futuros poderiam verificar que pequenos progressos na habilidade matemática e em outras variáveis psicológicas no ensino superior podem não ser tão pequenos quanto parecem. Este fato justificaria pequenas discrepâncias entre as médias obtidas para algumas das variáveis aqui estudadas, mas que os testes revelaram não serem significativas.

Vale registrar indicações dos autores em Psicologia Cognitiva a respeito de algumas limitações em estudos como esse. Uma delas é que não podemos penetrar no cérebro de cada sujeito e observar a computação das informações que geram as variáveis que se pretende estudar. É preciso fazê-lo de forma indireta, ou seja, por meio de seus protocolos durante alguma atividade que evidencie essa construção numa tarefa cognitiva.

Outra limitação é a desvantagem em se fragmentar o pensamento para estudá-lo. A falta de uma teoria mais ampla que abranja o estudo do pensamento como um todo, compromete um esclarecimento dessa dinâmica por inteiro. Apesar disso, ocorreram avanços significativos em pesquisas dessa área que explicam variáveis na área de Psicologia Cognitiva e que interessam e fertilizam outras áreas da ciência.

Além das indicações aqui fornecidas, a continuidade do estudo é necessária tanto porque o ideal era que os sujeitos ingressantes e concluintes tivessem sido os mesmos, num estudo que levaria cinco anos, no mínimo, como pelo lado da extensão em se comparar os resultados aqui obtidos, além de se agregar outras variáveis.

Finalmente, registra-se que o presente estudo não teve a pretensão de obter resultados conclusivos porque se sabe pouco a respeito de como os estudantes processam informações no meio escolar e, portanto, há pouco apoio em pesquisas anteriores a respeito de estudantes brasileiros nas variáveis aqui investigadas.

 

Referências bibliográficas

Bruner, J. (1997). Realidade mental, mundos possíveis. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Campbell, D.T. & Stanley, J.C. (1979). Delineamentos experimentais e quase-experimentais de pesquisa. São Paulo, SP: EPU.

Eichelberger, R.T. (1989). Discipline Inquiry: understanding and doing educational research. (pp. 171-181). New York: Longman.         [ Links ]

Floyd, R.G.; Evans, J.J. & McGrew, K.S. (2003). Relations between measures of Cattell-Horn-Carroll (CHC) cognitive abilities and mathematics achievement across the school-age years. Psychology in the Schools, 40(2), 155-171.         [ Links ]

Johnson-Laird, N.P. (1983). Mental models. Cambridge: Harvard University Press.         [ Links ]

Johnson-Laird, N.P. (1992). A capacidade para o raciocínio dedutivo. Em: Sternberg (Ed.). As capacidades intelectuais humanas: uma abordagem em processamento de informações (pp. 194-216). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.

Kline, M. (1976). O fracasso da matemática moderna. São Paulo: IBRASA.         [ Links ]

Krutetskii, V.A. (1976). The psychology of mathematical abilities in schoolchildren. Chicago: The University of Chicago Press.         [ Links ]

Lüdke, M. & André, M.E.D.A. (1986). Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo, SP: EPU.

Mayer, E.R. (1992). Thinking, problem solving, cognition. New York: W.H. Freeman and Company.         [ Links ]

McLeod, D.B. (1989). The Role of Affect in Mathematical Problem Solving. Em: Affect and Mathematical Problem Solving: a new perspective. (pp. 20-38). New York: Springer - Verlag.         [ Links ]

Newell, A. & Simon, H.A. (1972). Human Problem Solving. New Jersey: Prentice-Hall.         [ Links ]

Polya, G. (1946). How to solve it: a new aspect of mathematical method. Princeton: Princeton University Press.         [ Links ]

Powell, A.B.; Francisco, J.M. & Maher, C.A. (2004). Uma abordagem à análise de dados de vídeo para investigar o desenvolvimento de idéias e raciocínios matemáticos de estudantes. Bolema, 21, 17, 81-140.         [ Links ]

Sternberg, R.J. (2000). Psicologia Cognitiva. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.

Triola, M.F. (1999). Introdução à Estatística. Rio de Janeiro, RJ: LTC.

 

 

Notas

M.A.V.F. Souza
Endereço para correspondência: Rodovia José Sette s/n, Itacibá. Cariacica, ES, Brasil.
E-mail para correspondência: mariaalice@ifes.edu.br ou alicevfs@hotmail.com.