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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.17 no.1 Rio de Janeiro abr. 2012

 

Artigo Científico

 

Processos implícitos não-conscientes na tomada de decisão: a hipótese dos marcadores somáticos

 

Implicit non-conscious processes in decision-making: the somatic-marker hypothesis

 

 

Leonardo Ferreira Almada

Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia e Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, Minas Gerais, Brasil

 

 


Resumo

Nesse artigo, pretendemos avaliar os fundamentos filosóficos e científicos da hipótese dos marcadores somáticos (HMS) quanto ao papel exercido por processos implícitos não-conscientes nas tomadas de decisão. Para tanto, analisaremos as relações entre nosso sistema neural reflexivo e nosso sistema neural impulsivo, destacando o papel da amígdala e do córtex pré-frontal ventromedial no desencadeamento de estados afetivos/emocionais que aumentam ou diminuem a velocidade e acurácia de processos decisórios. Essa discussão nos conduzirá à análise do modo como estados somáticos podem ser conduzidos por indutores primários e/ou secundários. Essa última análise propiciará um entendimento sobre como a emergência ou ausência da força de vontade depende da interação entre o sistema neural impulsivo, que desencadeia estados somáticos de indutores primários, e o sistema neural reflexivo, que desencadeia estados somáticos de indutores secundários. Concluímos que o conceito tradicional de autonomia precisa ser revisto, ainda que estejamos longe da possibilidade de fundamentar um novo. © Cien. Cogn. 2012; Vol. 17 (1): 105-119.

Palavras-chave: processos implícitos não-conscientes; sistemas neurais reflexivo e impulsivo; indutores primários e secundários; força de vontade.


Abstract

In this paper, we assess the scientific and philosophical foundations of the somatic marker hypothesis (SMH) on the role played by implicit non-conscious processes in decision-making. For this, we will analyze the relationship between our reflexive neural system and our impulsive neural system, emphasizing that the amygdale and the ventromedial prefrontal cortex play a key role in the triggering of affective/emotional states which increase or decrease the speed and accuracy of decision-making processes. This discussion will lead us to examine how somatic states can be driven by primary and/or secondary inducers. This analyze provides an understanding of how emergency or lack of willpower depends on the interaction between the impulsive neural system that triggers somatic states from primary inducers, and the reflective neural system that triggers somatic states from secondary inducers. We conclude that the traditional concept of autonomy needs to be revised even though we are far from being able to support a new concept.© Cien. Cogn. 2012; Vol. 17 (1): 105-119.

Keywords: implicit non-conscious processes; reflexive and impulsive systems; primary and secondary inducers; willpower.


 

 

Introdução

A experiência introspectiva nos revela o forte sentimento de que temos controle voluntário sobre nossas ações e de que agimos como escolhemos agir. A convicção que temos quanto à existência da ação voluntária é tão consolidada que, em seu nome, emitimos juízos morais, proibimos determinadas ações e estabelecemos sanções para quem as transgride: a cada momento, agimos de acordo com restrições sociais cuidadosamente justificadas e fortemente reguladas pelo próprio homem (Haggard, 2008, p. 934). Pela experiência introspectiva, adquirimos a absoluta convicção de que somos autônomos, de que sempre agimos com autodeterminação e autogoverno em processos de tomada de decisão, ou seja, de que somos os senhores de nossos atos e de nosso destino.

Há alguns séculos, Filosofia e Ciências do Comportamento têm se desvencilhado de alguns dos limites epistemológicos e metodológicos que são inerentes ao conhecimento introspectivo. Surgem daí novas formas de equacionar as questões que envolvem nosso poder de tomar decisões: Está em nosso poder a capacidade de tomar decisões 'autônomas'? Nossas ações refletem alguma capacidade de autodeterminação? É possível termos alguma capacidade de decisão sem termos a plena capacidade de autodeterminação? Somos efetivamente autônomos? Em comum, essas questões são alimentadas pela consideração de que a autonomia implica o poder de decisão, uma vez que um agente é efetivamente autônomo apenas no caso de ter capacidade plena para fazer escolhas e tomar decisões.

Não é difícil perceber em que sentido uma discussão sobre a autonomia é também uma discussão sobre a tomada de decisão. Afinal, se é verdade que a noção de autonomia pressupõe a capacidade de autodeterminação, autogoverno e de deliberações visando a metas, também é verdade que toda teoria da autonomia é também uma teoria dos processos de tomada de decisão. Só podemos atribuir efetiva autonomia a um agente que seja plenamente capaz de tomar decisões por meio de processos deliberativos que visam a metas. Por outro lado, um sujeito só é capaz de tomar decisões por meio de deliberações que visam a metas se possui consciência e controle satisfatórios sobre pelo menos grande parte dos mecanismos que constituem os processos de deliberação e da intenção. Ao que parece, destarte, deliberação e intenção são pressupostos da tomada de decisão em um sujeito autônomo. Nesse sentido, é natural que a significação e realidade da autonomia não sejam significativamente imunes à demonstração de que os processos de tomada de decisão possam ser influenciados por processos implícitos dos quais não temos consciência: deliberações só podem se sustentar nos mesmos processos conscientes a partir dos quais (em tese) definimos metas.

Por isso mesmo, a necessidade que se impõe a alguns neurocientistas de delinear os mecanismos neurais que subsidiam a tomada de decisão diz respeito à possibilidade de verificar se temos absoluto controle sobre esses mecanismos, se são esses mecanismos que têm absoluto controle sobre nossas tomadas de decisão ou ainda se temos pelo menos parte do controle. A resposta a essa questão definirá se somos autônomos, se não somos autônomos ou se apenas em parte somos autônomos.

Há muitos estudos publicados sobre o assunto, na medida em que é grande a motivação para entender como certas entidades mentais - razões, desejos e metas - derivam de processos cerebrais. Desde que essas questões foram estabelecidas pela Neurociência Cognitiva e Comportamental, muito se avançou no entendimento acerca do modo "como o cérebro faz decisões e gera ações", ou seja, muito se avançou no entendimento dos percursos que efetivamente ensejam as decisões, escolhas e ações (Schall, 2001, p. 33). A demarcação do modo como os mecanismos cerebrais ensejam decisões, escolhas e ações não nos compromete, em princípio, com alguma rejeição em relação à significação e à realidade da autonomia, mas nos compromete, por outro lado, com a obrigação de investigar os processos implícitos não conscientes que estão na base de nossos processos de tomada de decisão. Entendemos, nesse sentido, que é possivelmente muito relevante perpetrar uma discussão sobre a autonomia a partir do modelo filosófico-científico conhecido como "hipótese dos marcadores somáticos".

 

Autonomia e tomada de decisão: fundamentos da hipótese dos marcadores somáticos

Nos debates atuais acerca da autonomia e das bases psiconeurofisiológicas da escolha, da ação e da decisão, é comum a referência a processos implícitos não conscientes que supostamente subsidiam grande parte de nossos processos de tomada de decisão. Em um recente estudo, Burns e Bechara (2007, p. 263-264) destacam a existência de inúmeras pesquisas que têm elucidado "os processos neurais subjacentes a como fazemos nossas escolhas", reconhecendo, para tanto, que muito do que sabemos sobre esses mecanismos cerebrais indicam "que a tomada de decisão é grandemente influenciada por processos implícitos que não necessariamente chegam à consciência". Para tanto, ambos se apoiam em recentes evidências neurofisiológicas de que lesões cerebrais específicas e relativamente bem localizadas podem alterar, de maneira significativa, a operação normal de alguns desses processos implícitos.

Com a intenção de avaliar essas relações, Bechara e Damasio formularam um conhecido teste neuropsicológico de averiguação do papel exercido por processos implícitos em nossa capacidade de tomada de decisão (Iowa gambling task). A aplicação do teste sugeriu o seguinte resultado: lesões cerebrais no córtex pré-frontal (doravante CPF), especialmente na região ventromedial (doravante CPFVM) podem estar relacionadas com alterações na capacidade "voluntária" de tomada de decisões (Bechara, Damasio & Damasio, 2000; Bechara, Dolan & Hindes, 2002; Bechara, 2005, 2004; Damasio, Everitt & Bishop, 1996; Damasio, 1995, 1994). Antoine Bechara, Antonio Damasio e Hannah Damasio verificaram a existência de 'desordens' da vontade que levam determinados indivíduos a repetir decisões e ações claramente contrárias a seus melhores interesses. A aplicação do teste sugeriu que lesões no CPFVM tendem a gerar uma significativa incapacidade de aprender com os erros cometidos, mesmo permanecendo intactas as capacidades do intelecto, da memória e de outras atividades cognitivas. Como demonstram alguns experimentos de Bechara (2004, p. 30), pacientes com lesões adquiridas bilaterais do CPFVM "desenvolvem muitas deficiências em tomadas de decisão pessoal e social, a despeito de manter em grande parte preservadas suas habilidades intelectuais". Antes da lesão, esses indivíduos mantinham níveis normais de inteligência, de criatividade e de tomada de decisão. Após a lesão, passaram a desenvolver um grande nível de dificuldade (i) no planejamento comum das atividades cotidianas, (ii) no estabelecimento de metas seguras para o futuro e (iii) em decisões pessoais e sociais, como na escolha de amigos, parceiros e atividades (Bechara, 2005, 2004; Bechara et al., 2000; Damasio, 1994). Eis o problema: ainda que cognitivamente normal, um indivíduo pode não ter intacta sua capacidade de autodeterminação e de autogoverno. Isso parece sugerir implicações interessantes: é provável que exista um abismo neural entre (i) nossos processos deliberativos que visam a metas e (ii) nossos processos de escolhas, decisões e ações.

Em linhas gerais, essas lesões podem ser responsáveis por uma espécie de disrupção de nossa 'força de vontade'. A expressão 'força de vontade' se refere a uma combinação de determinação e autodisciplina; portanto, se aplica a agentes morais autônomos, com controle 'total' dos mecanismos subjacentes aos seus processos de tomada de decisão. Enquanto associação de determinação e autodisciplina, a 'força de vontade' gera a capacidade de fazer o que queremos a despeito de todas as dificuldades aí envolvidas. Com efeito, é pela 'força de vontade' que conseguimos (i) suportar os maiores sacrifícios hoje em nome de benefícios futuros, (ii) resistir às maiores tentações e (iii) retardar as gratificações mais atraentes seja em nome de um princípio moral seja pela espera de uma gratificação ainda mais atraente. Daí porque a compreensão da natureza desse comportamento complexo chamado 'força de vontade' seja de tanto interesse para quem se propõe investigar as noções de escolha, ação e decisão, ou ainda, as noções de autonomia, autodeterminação e autogoverno.

Os comportamentos complexos e aparentemente indeterministas relacionados com a 'força de vontade' são "o produto de um complexo processo perceptivo-cognitivo-emocional subsidiado por dois sistemas neurais separados, porém em interação" (Burns & Bechara, 2007, p. 264): (i) um sistema neural impulsivo - dependente da amígdala - que sinaliza a dor ou o prazer das perspectivas imediatas de uma opção, o que não demanda reflexão; (ii) um sistema neural reflexivo - dependente do CPFVM - que sinaliza a dor ou o prazer das perspectivas futuras de uma opção, o que demanda reflexão. No sistema neural impulsivo, cabe à amígdala um papel crucial no desencadeamento de sinais afetivos/emocionais de perspectivas imediatas; no sistema neural reflexivo, cabe ao CPFVM um papel crucial no desencadeamento de estados afetivos/emocionais de perspectivas de longo prazo (Bechara, 2005, p. 1459). Enquanto a amígdala se relaciona mais estreitamente com eventos que ocorrem no ambiente (sinais afetivos/emocionais de perspectivas imediatas), a região ventromedial desencadeia estados somáticos das memórias, do conhecimento e da cognição (estados afetivos/emocionais de perspectivas de longo prazo). Temos aí o resumo do mecanismo por meio do qual o sistema neural impulsivo e o sistema neural reflexivo interagem. A decisão final decorre dessa interação: a força efetiva e atual dos sinais de prazer e de dor em associação com as perspectivas imediatas e futuras (Burns & Bechara, 2007, p. 264; Damasio, 1995). Se, por exemplo, a perspectiva imediata é desagradável e a futura é agradável, "então o sinal positivo das perspectivas futuras constitui a base para suportar os desconfortos da perspectiva imediata" (Burns & Bechara, 2007, p. 264; Damasio, 1995). O contrário também ocorre. Nesse caso, as perspectivas imediatas predominam sobre as perspectivas futuras, e as decisões se transferem para os horizontes de curto prazo (Damasio, 1995). Em ambos os casos, mecanismos implícitos não-conscientes parecem exercer um papel mais efetivo do que os mecanismos propriamente conscientes.

A aprendizagem individual das regras sociais incentiva o sistema neural reflexivo a exercer controle sobre o sistema neural impulsivo mediante uma série de mecanismos cerebrais implícitos. No entanto, esse controle não é absoluto: se por alguma razão o sistema neural impulsivo se torna hiperativo, o sistema neural reflexivo perde sua capacidade de exercer controle sobre nossos impulsos (Bechara, 2005, p. 1458). Essa hiperatividade é o que comumente ocorre em usuários de drogas psicotrópicas, sobretudo cocaína, e em indivíduos com lesões na região ventral medial e no setor medial da região orbitofrontal do CPF: em comum, negam ou não são conscientes de que apresentam déficits na relação entre o sistema neural impulsivo e o sistema neural reflexivo. Quando confrontados com uma escolha que proporciona resultados imediatos agradáveis, mostram-se bastante alheios às consequências de suas ações, mesmo que a escolha do imediato gere o risco de futuros resultados negativos, incluindo perda nas finanças, perda de reputação, de emprego e de família (Bechara, 2005, p. 1458). Essa interferência no sistema neural reflexivo pela extrapolação do sistema neural impulsivo é o que engendra déficits na 'força de vontade' e na capacidade refletida de tomar decisão1.

Com o objetivo de compreender os mecanismos neurais que subsidiam esses déficits, Damasio e colaboradores (especialmente Antoine Bechara e Hannah Damasio) elaboraram as bases gerais da hipótese dos marcadores somáticos (doravante HMS). A HMS é o resultado exitoso da investigação de déficits particulares nas operações cognitivas, emocionais e comportamentais de humanos com disfunções específicas em certos setores do CPF (especialmente as regiões orbitofrontal e ventromedial) ou com disfunções derivadas da integração entre estes setores do CPF e a amígdala (Bechara, 2005, 2004; Bechara & Damasio, 2005; Bechara et al., 2000; Bechara, Damasio, Damasio & Lee, 1999; Damasio, 1995, 1994; Roberts & Wallis, 2000; Rolls, 2000).

Qual a razão de depreender a HMS de pesquisas em indivíduos com lesão ou disfunção no CPFVM e em suas relações com a amígdala? Em linhas gerais, trata-se da constatação de que o CPFVM e a amígdala exercem um papel crucial na adaptação dos marcadores somáticos, ou seja, as associações emocionais ou associações entre objetos mentais e os feedbacks das vísceras que são tão importantes nos processos de tomada de decisão2.

 

Assunções da hipótese dos marcadores somáticos

Amplamente falando, um processo de tomada de decisão consiste em escolher uma opção de resposta entre as muitas possíveis, em um determinado momento e em uma específica situação (Damasio, 1994). Para tanto, é suposto os seguintes conhecimentos: (i) a situação que exige tal decisão; (ii) as distintas opções de ação; e, finalmente, (iii) as consequências imediatas ou futuras de cada uma das ações. A sábia biologia dos organismos 'sabe' que a realização destes passos através de uma perspectiva lógica dedutiva levaria muito tempo; essa é a razão pela qual fomos dotados de instrumentos de decisão praticamente imediatos em relação à recepção dos estímulos internos e externos que demandam decisões. É sobre esses instrumentos que a HMS trata.

O grande mérito da HMS decorre de seus esforços em fornecer o framework neuroanatômico e neurocognitivo que demarca a arquitetura neurofuncional na qual se encarnam as emoções e os humores que subsidiam processos de tomada de decisão (Dunn, Dalgleish & Lawrence, 2006). Nessa compreensão, a HMS remete claramente às suas bases teóricas, a saber, a teoria James-Lange (James, 1884, 1894; Lange, 1885) e a teoria de Paul Maclean (1949, 1975): trata-se da ideia de que a experiência emocional surge da integração das sensações do mundo externo com as informações do corpo, especialmente com o feedback das vísceras. Sob a influência dessas ideias gerais, a HMS propõe que os "marcadores somáticos" polarizam sinais do corpo que estão representados e regulados no circuito emocional do cérebro, particularmente no CPFVM, com o fim de ajudar na regulação dos processos de tomada de decisão em situações de complexidade e incerteza (Damasio, 1994; Bechara et al., 2000).

A HMS é um modelo cognitivo e de níveis de sistemas neuroanatômicos para verificação de escolhas de longo prazo ou, concebido em outros termos, para análise da influência das emoções em nossos processos de tomada de decisão. A ideia central da HMS é que processos de tomada de decisão dependem significativamente dos substratos neurais que regulam a homeostase, emoções e sentimentos. Compreendida em outros termos, a ideia central da HMS é a de que a tomada de decisão é um processo influenciado por sinais marcadores (signal markers) - mais conhecidos como marcadores somáticos - que surgem de processos biorregulatórios, sobretudo os que se expressam em emoções e sentimentos. A influência desses marcadores somáticos nas tomadas de decisão ocorre a partir de diversos níveis de operação: alguns, conscientes; outros, não-conscientes.

O termo somático faz referência à coleção de respostas relacionadas ao corpo e ao cérebro que marcam as respostas afetivas e emocionais (Damasio, 1994; Bechara, 2005, 2004; Bechara et al., 2000; Bechara et al., 1999). Uma emoção, por sua vez, é definida como a coleção de alterações nos estados corporais e cerebrais desencadeadas por um sistema nervoso específico que responde a conteúdos específicos da percepção - atual ou relembrada - de um objeto ou evento particular (Bechara & Damasio, 2005; Damasio, 1995, 1994). Esse objeto ou evento é chamado de 'estímulo emocionalmente competente', e gera mudanças fisiológicas que podem ser perceptíveis ou imperceptíveis, conscientes ou não conscientes, ao observador externo. Em indivíduos com funcionamento 'normal' de seus mecanismos emocionais, são esses marcadores somáticos (alterações de estados corporais e cerebrais) que costumam fornecer as consequências potenciais de uma determinada ação (Bechara & Damasio, 2005; Bechara, 2005, 2004; Damasio, 1995, 1994).

De acordo com a HMS, indivíduos com déficits ou inabilidades para tomar decisões cotidianas vantajosas e seguras são aqueles que apresentam déficits nesse mecanismo emocional cuja função é a de sinalizar rapidamente as consequências potenciais de uma ação e, em consequência, auxiliar na seleção de uma opção de resposta vantajosa. Quando dotados de um funcionamento considerado normal desses sinais emocionais, os indivíduos podem recorrer a uma fundamentada análise custo-benefício das numerosas e por vezes conflitantes opções envolvendo tanto as consequências das perspectivas imediatas quanto das futuras. Desprovidos desse funcionamento normal, esses indivíduos são acometidos pela (i) degradação da velocidade da deliberação e também pela (ii) degradação na capacidade de escolhas adequadas, passando, assim, a fazer escolhas desvantajosas, seja pelo motivo (i) seja pelo motivo (ii) seja pela associação dos motivos (i) e (ii) (Bechara & Damasio, 2005; Damasio, 1995, 1994).

Um 'estímulo emocionalmente competente' tende a estar unido a um estado somático específico: é este padrão somatosensorial ou marcador somático que qualifica uma situação como boa ou má. É este estado somático que conduz nossa atenção para as possíveis e eventuais consequências negativas de nossas condutas, sem qualquer exigência ou necessidade de uma prévia atividade cognitiva. Danos no CPFVM podem ter profundos efeitos sobre as funções sociais e profissionais do indivíduo, sem que, para tanto, haja quaisquer modificações em seu desempenho intelectual e cognitivo. Uma lesão no CPFVM ocasiona falhas na utilização de sinais somáticos ou emocionais para guiar a conduta, daí resultando uma alienação dos indivíduos em relação às futuras consequências de seus atos, e os levando a agir apenas conforme suas perspectivas imediatas3. Isso quer dizer, de maneira ainda mais simples: são os marcadores somáticos, e não os processos deliberativos, que podem tornar as decisões mais rápidas e efetivas.

Nesses pacientes neurológicos, uma disrupção cognitivo-emocional não-consciente influencia o modo como os marcadores somáticos se vinculam a decisões. Em indivíduos 'normais', as respostas somáticas - que envolvem processos emocionais e processos cognitivos - servem para aumentar a acurácia e a eficiência dos processos decisórios, selecionar certas opções e permitir que o agente tenha possibilidade real e efetiva de escolha. A HMS, por isso mesmo, se fundamenta na consideração de que a tomada de decisão e as deficiências executivas de indivíduos com danos no CPFVM são explicáveis pela mera referência à falta dos marcadores somáticos que poderiam guiá-los diante de alternativas. Sobre as relações entre processos cognitivos e emocionais nas tomadas de decisão, é importante notar que a HMS é baseada nas seguintes assunções (Bechara et al., 2000, p. 297): (i) a razão humana e a tomada de decisão dependem de muitos níveis de operação neural, alguns dos quais são conscientes e manifestamente cognitivos, enquanto que outros não; (ii) as operações cognitivas, a despeito de seu conteúdo, dependem do suporte em processos tais como a atenção, memória de trabalho e emoção; e, finalmente, (iii) tanto o raciocínio quanto as tomadas de decisão são dependentes da disponibilidade de conhecimento sobre situações, atores e resultados.

Os inúmeros e específicos testes laboratoriais neuropsicológicos e as observações clínicas de humanos com danos em diferentes setores do lobo frontal constituíram um sólido alicerce para a fundamentação dessas assunções, especialmente se levarmos em consideração o fato de que tais lesões acabam gerando muitas dificuldades para processar emoções e sentimentos, assim como dificuldades para realizar importantes processos cognitivos, caso consideremos seus componentes mais específicos (Bechara et al., 2000; Damasio et al., 1996).

Como se observa, a despeito do papel que a HMS atribui às emoções nos processos de tomada de decisão, os processos cognitivos não são descartados e tampouco minimizados. Pelo contrário, a complexidade filosófica da discussão advém, em grande parte, do fato de que não podemos entender um processo de tomada de decisão sem que levemos em consideração essas intrínsecas relações funcionais entre aspectos cognitivos e processos emocionais primários.

De fato, essas relações de interação e integração entre estados corporais, aspectos cognitivos e aspectos emocionais constituem a base para a hipótese, que também postula os seguintes princípios (Bechara & Damasio, 2005, p. 337): (i) conhecimento e raciocínio sozinhos não são, em geral, suficientes para tomar decisões apropriadas, e o papel da emoção nas tomadas de decisão tem sido historicamente subestimado; (ii) a emoção é benéfica para a tomada de decisão quanto é parte integrante da natureza, mas pode ser prejudicial quando não está relacionada com a tarefa; (iii) a implementação das decisões sob certeza ou incerteza engendram diferentes circuitos neurais.

No âmbito desta orientação, Damasio se propõe defender que as tendências comportamentais não são necessariamente conscientes. Indivíduos com lesões no CPFVM, que foram testados por ele e por Bechara (Iowa Gambling Task), demonstraram, em geral, escolhas inapropriadas e desvantajosas, antes mesmo de perceber as consequências das ações e mesmo depois, quando tinham plena consciência do que suas escolhas representavam. O conhecimento quanto ao que as escolhas podem representar não é suficiente para assegurar que estes indivíduos apresentem decisões apropriadas no futuro: "embora os pacientes com lesões frontais possam estar completamente conscientes do que se considera certo e do que se considera errado, ele ainda falha para agir apropriadamente" (Bechara et al., 2000, p. 301). Isso significa que esses indivíduos podem "dizer" a "coisa certa" e "fazer" a "coisa errada", no mesmo sentido da noção aristotélica de akrasia. Trata-se, portanto, de um nível de consciência que não se comanda a si mesmo.

 

Indução de estados somáticos: operações não-conscientes

Escolhas inapropriadas e desvantajosas em pacientes com lesões no CPFVM resultam em grande parte de operações não-conscientes induzidas por estados somáticos. Essa é a razão pela qual o conhecimento quanto ao que as escolhas podem representar não é suficiente para que no futuro passem a tomar decisões apropriadas e vantajosas. De acordo com Damasio (1995), os estados somáticos podem ser induzidos por (i) indutores primários e por (ii) indutores secundários. Os indutores primários são estímulos inatos ou aprendidos que causam estados agradáveis ou aversivos. Basta que estejam presentes no ambiente para que provoque - de modo automático e obrigatório - uma resposta somática. Um exemplo de indutor primário ou principal é o encontro de um adicto com a droga (Burns & Bechara, 2007, p. 265). Os indutores secundários são gerados pela recordação de um evento emocional pessoal ou hipotético, ou seja, os pensamentos e as memórias de indutores primários, dos quais os secundários extraem uma resposta somática. Um exemplo de indutor secundário é a recordação que o adicto tem de seu encontro com a droga (Burns & Bechara, 2007, p. 265).

Bechara e Damasio (Burns & Bechara, 2007; Bechara & Damasio, 2005; Bechara, 2005, 2004; Damasio, 1995, 1994) têm defendido que a amígdala exerce papel crucial no sistema neural que desencadeia estados somáticos de indutores primários: basta que um estado somático de um indutor primário seja induzido uma vez para que seus sinais sejam retransmitidos ao cérebro e ao prosencéfalo. Em geral, sinais de estados somáticos ativos conduzem ao desenvolvimento de padrões de estados somáticos no núcleo do tronco cerebral ou do córtex. A percepção desses padrões ao nível do núcleo do tronco cerebral é amplamente não-consciente, mas ao nível do córtex essa percepção pode se tornar consciente sob a forma de um sentimento subjetivo (Burns & Bechara, 2007, p. 266).

Os estados somáticos são desencadeados por indutores primários ou secundários durante a ponderação de uma ação: "uma vez induzidos, eles participam em duas funções" (Burns & Bechara, 2007, p. 266). Em uma, "eles fornecem um substrato para sentir um estado induzido". Em outra, "eles fornecem um substrato para influenciar ou induzir decisões" (Burns & Bechara, 2007, p. 266). Não é necessário que a presença desses estados somáticos seja consciente e também não é necessário que sua influência sobre as tomadas de decisão e o comportamento seja consciente.

Com efeito, os resultados da aplicação do Iowa Gambling Task demonstram uma clara operação de estados somáticos encobertos que induzem decisões. Por meio da indagação seletiva ao longo do teste - que consiste em jogos de carta com o objetivo de ganhar a maior quantidade de dinheiro possível - os sujeitos são constantemente indagados sobre o que acontece no jogo, com o fim de distinguir seu desenvolvimento estratégico consciente das estratégias não-conscientes que ocorrem ao longo de todo o jogo. Na aplicação do teste, foram usados métodos de mensuração de respostas elétricas da condutância da pele (skin conductance responses ou SCRs). A SCR é o aumento da condutância elétrica da pele em algumas situações de resposta emocional: situações em que somos tomados pelo estresse, situações em que reconhecemos objetos, pessoas, situações em que temos prazer ou dor, etc. A cada alteração emocional (quase sempre não-consciente), a SCR também se altera. Vale destacar, o método de verificação da SCR é absolutamente confiável em sua tarefa de verificar que um estímulo foi percebido pelo receptor, ainda que (ou quase sempre) de forma não-consciente.

Os sujeitos com intacto funcionamento do sistema neural reflexivo e impulsivo costumam realizar estratégias vantajosas, isto é, optam por baralhos que, embora ofereçam recompensas imediatas menores, também oferecem perdas menores, tendo ao final um ganho global maior. Por sua vez, os sujeitos com alteração no funcionamento do sistema neural impulsivo, tendem a optar pelos baralhos que oferecem recompensas imediatas maiores, mas sujeitos a perdas maiores, o que os leva, ao final, a uma perda global maior e mesmo a uma perda total.

O que ocorre, no entanto, é que os sujeitos considerados normais começam a selecionar vantajosamente antes mesmo de ter desenvolvido qualquer entendimento consciente acerca dos baralhos vantajosos. Mais que isso, esse grupo, antes mesmo de escolher uma carta do baralho desvantajoso, e sem qualquer conceituação consciente, esteve comumente sujeito a uma antecipatória SCR (Burns & Bechara, 2007; Bechara e Damasio, 2005; Bechara, 2005, 2004; Damasio, 1995, 1994).

De acordo com Burns e Bechara (2007, p. 267), as SCRs verificadas podem se dividir em quatro estágios. O primeiro, o (i) estágio pré-punição, diz respeito ao momento anterior ao encontro com as perdas, quando então os indivíduos preferem os baralhos que propiciam imediatos ganhos altos. O segundo, o (ii) estágio 'pré-pressentimento', diz respeito ao momento em que indivíduos começam a gerar SCRs aos baralhos desvantajosos (que geram ganhos imediatos altos), quando tudo indica que não tinham ideia alguma do que estava acontecendo no jogo. Os sujeitos normais tiveram um 'pressentimento' de que havia baralhos arriscados e que, portanto, ofereciam riscos. Esse é o (iii) estágio 'pressentimento'. Alguns indivíduos expressam algum entendimento acerca dos baralhos que eram arriscados no chamado (iv) período conceitual. Curiosamente, mesmo os indivíduos normais que não chegaram ao estágio conceitual foram capazes de fazer escolhas vantajosas no jogo. Eis o ponto-chave: indivíduos normais conseguem fazer escolhas vantajosas mesmo sem ter o conhecimento factual necessário para suportar logicamente suas escolhas. Esse fato traz implicações interessantes para um entendimento acerca dos processos de tomada de decisão de maneira independente em relação às pressuposições de autonomia e de livre-arbítrio (Burns & Bechara, 2007).

Essas implicações são reforçadas por fortes indicações científicas de que, no estriato, os estados somáticos operam implicitamente, usando, para tanto, 'conhecimento sem consciência'. No entanto, sabe-se também que outras regiões cerebrais, como o cingulado anterior e as áreas motores suplementares, induzem decisões pelo uso de 'conhecimento com consciência'. Nesse sentido, essas últimas regiões cerebrais estão de acordo com nossa concepção comum de que processos de tomada de decisão se fundamentam em conhecimentos conscientes e explícitos das consequências das decisões. Por um lado, isso significa que tanto o conhecimento consciente quanto o inconsciente contribuem para o processo de escolha. No entanto, a geração de estados somáticos podem nos guiar rumo a comportamentos benéficos sem qualquer participação de nossas deliberações conscientes, o que indica que muitos de nossos comportamentos, que supostamente parecem ser 'livres', podem ser determinados por operações rotineiras de mecanismos neurais saudáveis (Burns & Bechara, 2007; Bechara & Damasio, 2005; Bechara, 2005, 2004; Damasio, 1995, 1994).

 

Tomada de decisão e força de vontade

Os substratos e mecanismos neurofisiológicos requeridos para a operação dos sistemas neurais envolvidos na 'força de vontade' têm sido muito estudados, sobretudo o sistema límbico e a estrutura neocortical, peças-chave no nosso sistema neural de recompensa e punição. Naturalmente, os proponentes da HMS têm se beneficiado do resultado dessas pesquisas, acrescentando sua particular compreensão de que os mecanismos neurais da força de vontade se fundamentam no modo como específicos sistemas neurais (o impulsivo e o reflexivo) se associam para a indução de nossos estados somáticos.

Com efeito, a força de vontade (assim como sua ausência) remete à interação entre o sistema neural impulsivo, que desencadeia estados somáticos de indutores primários, e o sistema neural reflexivo, que desencadeia estados somáticos de indutores secundários (Burns & Bechara, 2007, p. 267). A emergência da força de vontade (ou de sua falta) depende, pois, da interação entre sistemas cujos mecanismos são contrários e, ao mesmo tempo, complementares. De um lado, o sistema impulsivo, caracteristicamente rápido, automático, implícito e habitual, não demanda esforço e tampouco cognição. De outro lado, o sistema reflexivo, caracteristicamente lento, deliberativo, explícito e governando por regras, demanda esforço e atividades cognitivas. No sistema impulsivo, a exposição a indutores primários desencadeia estados somáticos rápidos, obrigatórios, automáticos, com vida curta e habituação rápida pelo sistema da amígdala. No sistema reflexivo, a exposição a indutores secundários (imagens percebidas ou relembradas) desencadeia estados somáticos pelo sistema do córtex pré-frontal ventromedial. Com efeito, enquanto o sistema da amígdala se relaciona com situações emocionais que demandam respostas rápidas, gerando reações emocionais a partir de processos relativamente automáticos (LeDoux, 1996), o córtex pré-frontal está claramente associado com situações emocionais que suscitam algum nível de atividade reflexiva.

Há algumas décadas se sabe que a reposta emocional inerente ao sistema da amígdala é imediatamente seguida por reações emocionais de 'ordem superior' que surgem de sistemas neurais corticais mais controlados, e envolvidos, de alguma forma, nos processos de pensamento, raciocínio e consciência (Schneider & Shiffrin, 1977). Evidências recentes se acrescentaram a essa pesquisa, demonstrando que ações cognitivas e comportamentais induzidas por estados somáticos são mediadas, pelo menos em parte, por neurotransmissores. Ademais, a produção desse tipo especial de neurotransmissores por parte dos neurônios (especialmente em sua ação final, nos dendritos) é responsável pela condução de sinais de estados somáticos que podem influenciar padrões de liberação de neurotransmissores. Por sua vez, essas mudanças de padrão de liberação de neurotransmissores modulam as próprias atividades sinápticas dos neurônios, constituindo, no sistema neural reflexivo, comportamento e cognição (Burns & Bechara, 2007, p. 268).

O modo como a HMS entende o conjunto dessa atividade neurofisiológica traz consigo implicações muito significativas para nossos propósitos. De fato, essa cadeia de mecanismos neurais é o que estrutura um caminho a partir do qual os estados somáticos influenciam a atividade de várias regiões neurais relevantes para as tomadas de decisão. Ora, não importa se os estados somáticos são desencadeados por indução primária (impulsivamente) ou por indução secundária (reflexivamente). O que importa é que, uma vez desencadeados, podem ter acesso aos neurônios corticais e subcorticais, promovendo cognição. Mais que isso, dependendo de sua intensidade e força, os estados somáticos ainda podem ter a capacidade de modificar e influenciar a cognição e, especialmente, a decisão (Burns & Bechara, 2007, p. 268; Bechara & Damasio, 2005; Bechara, 2005, 2004; Damásio, 1995, 1994).

Com efeito, se, por meio do desenvolvimento pessoal, passamos a inibir impulsivos desejos e comportamentos pessoais por meio do aprendizado das regras sociais, também é verdade que, quando estamos desprovidos dos estados somáticos característicos do sistema neural reflexivo, perdemos o autocontrole (self-control). Alterações nesses estados somáticos podem gerar completa ruptura da força de vontade (Burns & Bechara, 2007, p. 268). É o que acontece, por exemplo, quando indivíduos são acometidos por específicas lesões no córtex pré-frontal ventromedial (Bechara & Damasio, 2005; Bechara, 2005, 2004; Damásio, 1995, 1994). No entanto, lesões no córtex pré-frontal ventral medial não respondem por todas as possibilidades de falhas ou comprometimentos nesse sistema complexo. Há outras várias e interrelacionadas formas (Burns & Bechara, 2007, p. 270).

Como sabemos, escolhas envolvendo perspectivas de longo prazo ocorrem quando os estados somáticos são desencadeados primordialmente (e não exclusivamente) pelo sistema reflexivo. Duas condições podem alterar esse funcionamento normal e conduzir alguém à perda de força de vontade: (i) uma disfunção do sistema reflexivo e (ii) uma hiperatividade do sistema reflexivo. Em condições normais, são as regiões neurais do sistema reflexivo que exercem um controle do tipo "de cima para baixo" sobre as decisões, o controle motor impulsivo e o controle perceptual impulsivo, mediante uma influência de sinais somáticos. Como mostraram Bechara e Damasio em diversas ocasiões (Bechara & Damasio, 2005; Bechara, 2005, 2004; Damásio, 1995, 1994), a influência desses sinais somáticos pode ser não-consciente e implícita, ou ainda consciente e explícita.

Dependentes de substâncias químicas e indivíduos com dano bilateral do córtex pré-frontal ventromedial são claros exemplos de como algumas disfunções, sobretudo no sistema de recompensa, podem alterar esses processos. Em comum, indivíduos dos dois grupos tendem a negar ou não ter consciência de que seu sistema reflexivo não os auxilia na tarefa de se manter o mais afastado possível de decisões desvantajosas. Não é de estranhar que tenham um déficit na resposta de condutância da pele (SCR) durante os estágios de "pré-pressentimento" e de "pressentimento". Mais que isso, ambos não conseguem transformar suas escolhas para escolhas com resultados vantajosos nem mesmo quanto era de se esperar, a saber, quando atingem o estágio conceitual e, em consequência, sabem, com clara consciência e capacidade cognitiva, descrever com acurácia a melhor estratégia para ganhar o jogo, isto é, fazer uma escolha vantajosa. No Iowa Gambling Task, dependentes se comportaram exatamente igual aos indivíduos com lesão, assim como não geraram as SCRs que, nos estágios "pré-pressentimento" e "pressentimento", poderiam mantê-los afastados das más decisões. Essa ausência de respostas somáticas é talvez o exemplo mais claro de disfunção nos mecanismos que controlam as decisões. A mesma disfunção do sistema reflexivo pode se estender a falhas e inabilidades em nossos mecanismos de controle motor e perceptual (Burns & Bechara, 2007, p. 271).

Também pode ocorrer que o sistema impulsivo apresente respostas somáticas 'exageradas' aos estímulos de recompensa. Resulta daí uma grande dificuldade que se impõe ao sistema reflexivo de funcionar corretamente, quase impossibilitando a produção de respostas somáticas que conduzam as pessoas à inibição de ações ou ao seu contrário, executar ações com vontade. Burns e Bechara (2007, p. 271) concebem isso como um 'sequestro' de execução da força de vontade por um sistema impulsivo hiperativo. A vontade, aí, é mais guiada pela amígdala do que pelo córtex pré-frontal, ou seja, há uma vontade apenas em sentido fraco, como resposta de um sistema neural caracteristicamente rápido, automático (não-reflexivo), implícito e habitual (não-consciente). Essa disfunção de hiperatividade do sistema impulsivo é, em outros termos, uma hipersensibilidade 'anormal' do sistema de recompensa. De acordo com Burns e Bechara (2007, p. 271), em dependentes químicos, por exemplo, as respostas de condutância da pele são maiores em magnitude do que as respostas dos indivíduos normais em relação à antecipação de recompensa. No entanto, os mesmos dependentes têm insatisfatórias respostas de condutância da pele quanto se trata de antecipação de punições (Bechara, Damasio & Damasio, 2003; Bechara et al., 2002). Grande parte das decisões de ambos, porém, se refere aos mesmos motivos implícitos e não-conscientes que são mensuráveis pelo método de averiguação das SCRs.

 

Considerações finais

Como era de se esperar, chegamos ao final da discussão sem uma resposta clara para as questões que abriram a presente discussão. Por um lado, é verdade que nossa análise dos processos implícitos não-conscientes que subsidiam nossos processos de tomada de decisão não sustenta uma perspectiva forte do conceito tradicional de autonomia. Por outro lado, porém, a complexidade do cérebro e a existência de incontáveis possibilidades comportamentais não nos autoriza a rejeitar os bons argumentos daqueles que se propõem defender a realidade e significação das decisões autônomas. Podemos perceber, nesse sentido, que não é por acaso que ainda discutimos questões seculares. Talvez seja preciso mais investigações sobre as relações entre o sistema neural impulsivo e o sistema neural reflexivo. Talvez os avanços nessa pesquisa tragam novos dados essenciais às discussões acerca dos mecanismos neurais da tomada de decisão.

Nesse artigo, pretendemos demonstrar que o ônus da defesa cabe àqueles que com mais intensidade defendem a significação e realidade da autonomia. Sabemos que o ônus é árduo: pela via introspectiva, não há como assegurar que nosso sistema neural reflexivo esteja completamente sob nosso controle. Sem a convicção de que exercemos algum domínio sobre nosso sistema neural reflexivo, jamais poderemos estar plenamente convictos de que somos de fato autônomos. Defender nosso domínio sobre o sistema neural reflexivo implica a árdua tarefa de levar às últimas consequências todas as possíveis objeções ao modelo filosófico-científico proposto pela HMS.

Não nos referimos apenas aos pacientes neurológicos. Nem mesmo os homens considerados normais têm domínio consciente sobre as relações entre nossos sistemas neurais reflexivo e impulsivo. A todo momento, homens normais decidem de maneira não-consciente. As respostas de condutância de pele demonstram que algumas das mais cruciais decisões humanas são tomadas nos períodos de "pré-pressentimento" e "pressentimento". Nem mesmo o mais contido dos homens está imune à hiperatividade do sistema impulsivo, sobretudo porque a evolução nos conferiu muitos mecanismos de resposta ao meio ambiente, os mesmos que são responsáveis pela liberação atípica de determinados neurotransmissores capazes de modular padrões de marcadores somáticos.

Será que ainda podemos afirmar que um adulto 'normal' delibera e faz escolhas livres, ou mesmo que nunca delibera e que nunca faz escolhas livres mesmo após conhecermos os mecanismos neurais, e muitas vezes não-conscientes, da escolha e da decisão? De fato, não pretendo trazer respostas efetivas. Ainda há muitas "avenidas de pesquisa que continuarão a nos ensinar algo sobre a Neurociência da força de vontade" e, mesmo com as descobertas no futuro, relutaremos em "declarar que temos ou não temos livre-arbítrio" (Burns & Bechara, 2007, p. 272). É preciso que revisemos nossos atuais conceitos de autonomia. No entanto, estamos ainda longe de oferecer um novo.

 

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Notas

L.F. Almada
Endereço para correspondência: Rua Manoel dos Santos, 90, apartamento 03, Santa Maria, Uberlândia, MG 38.408-022, Brasil.
E-mail para correspondência: leonardo.f.almada@gmail.com.

(1) Recentemente, é bastante significativa a quantidade de pesquisas dedicadas à compreensão de como ocorre essa associação neuroanatômica e neurofisiológica entre a amígdala e os setores do CPF mais influentes na constituição principais operações cognitivas, emocionais e comportamentais dos homens e de outros primatas superiores. Tais pesquisas têm o mérito primordial de esclarecer o que é requerido para o funcionamento intacto das regiões cerebrais responsáveis pelas funções executivas que subsidiam as tomadas de decisão (Davidson, 1998, 2003, 2008; Gray, Braver & Raichle, 2002; Koenigs et al., 2007; Kringelbach & Rolls, 2004; LeDoux, 1994, 1995, 1996, 2000, 2002; Moll & Oliveira-Souza, 2005, 2006, 2007; Phelps, 2006; Kim, Somerville, Johnstone, Alexander & Whalen, 2003; Somerville, Kim, Johnstone, Alexander & Whalen, 2004; Somerville & Whalen, 2006; Whalen, 1998; Whalen, Shin, McInerney, Fischer, Wright & Rauch, 2001; Whalen, Curran & Rauch, 2001; Whalen & Davis, 2001).

(2) A noção que estabelece relações entre a experiência da emoção e os feedbacks do corpo foi proposta primariamente por Carl Lange (1885) e William James (1884, 1894) e influenciou, de maneira decisiva, as consagradas e influentes teorias da emoção , como a de Paul Maclean (1949). A afinidade entre estes filósofos e fisiologistas gerou a teoria que ficou conhecida como "James-Lange", cuja marca axial é a ênfase exclusiva nas perturbações emocionais que acompanham a ocorrente emoção episódica: James (1894), por exemplo, sustentou que aquilo que realmente exerce uma emoção ocorrente é a causa direta de mudanças corporais, sendo que a emoção em si é nossa própria percepção dessas mudanças, no exato momento em que ocorrem. Consoante James, em What is an emotion?, uma emoção não é propriamente a perturbação corporal e psicológica que surge da apreensão do fato excitante; antes, é a percepção dessas perturbações somáticas por parte da pessoa. Em outras palavras, nós sentimos emoções porque percebemos nossas reações corporais. James reconhece que nossa maneira natural de pensar as emoções primárias consiste em considerar que a percepção mental de alguns fatos excita a afecção mental chamada de emoção, e que este último estado da mente dá origem à expressão corporal. Entretanto, a tese de James sustenta o contrário: "as mudanças corporais se seguem diretamente da percepção do fato excitante, e nosso sentimento dessas mesmas mudanças, do exato jeito como elas ocorrem, é a emoção" (James, 1884, p. 189-190). No âmbito da teoria de James-Lange, há três graus essenciais que justificam a produção e constituição de uma emoção. O primeiro grau se relaciona com as atividades viscerais, vasculares e somáticas. No segundo grau, essas mudanças são detectadas por receptores sensoriais periféricos associados com cada uma dessas atividades e por sinais desses receptores transmitidos de neurônio a neurônio através do cérebro. E finalmente, no terceiro grau, o cérebro gera a atividade que é necessária para sentir uma emoção. É curioso notar, geralmente, essas concepções (Paul Maclean, James e Lange) defendem que a experiência da emoção surge diretamente da percepção de mudanças no corpo. Trata-se, ainda, de considerações que refletirão fortemente no final do século XX, na famosa HMS de Antonio Damasio e colaboradores.

(3) Dunn, Dalgleish e Lawrence (2006, p. 241) compartilham a ideia de que os déficits nos específicos processos de tomada de decisão que podem ser atribuídos ao CPFVM ocorrem, provavelmente, em função de uma inabilidade para responder aos "sinais gerados a partir do corpo (ou dos marcadores somáticos) para processar estados emocionais em face da avaliação de diferentes opções de respostas". Neste caso, o sistema dos marcadores somáticos não pode mais ser ativado de maneira eficiente. De fato, Damasio tende a defender que o CPFVM é a área crucial do cérebro no papel de integrar "as representações de estados biorregulatórios reais ou previstos com opções de resposta potenciais", sendo assim também "crucial para a geração de marcadores somáticos" (Dunn et al., 2006, p. 242).

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