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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.17 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2012

 

Artigo Científico

 

Naturalismo e ciência cognitiva: por uma abordagem sistêmica

 

Naturalism and cognitive science: a systematic approach

 

 

Daniel Luporini de FariaI; Cae RodriguesII

IUniversidade Estadual Paulista (UNESP), Marília, São Paulo, Brasil;
IIPrograma de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, São Paulo, Brasil

 

 


Resumo

Ao avaliarmos o papel desempenhado pela filosofia dentro do quadro geral dos saberes constituídos, procuraremos determinar no presente artigo o sentido da idéia de que a ciência cognitiva veio ocupar o papel que sempre coube à epistemologia. Investigando as relações entre a filosofia e a ciência cognitiva, avaliaremos criticamente a proposta do filósofo brasileiro Marcos Barbosa de Oliveira, de que a ciência cognitiva deveria dividir-se entre ciência cognitiva natural e cultural. Ao nos posicionarmos contra essa proposta, argumentaremos que dividir a ciência cognitiva em dois domínios traria mais problemas que soluções aos estudos referentes à mente, pois entendemos que a integração entre os saberes, os esforços para a constituição de um patamar teórico-conceitual comum, bem como o intercâmbio de idéias, uma das principais propostas da ciência cognitiva, não deveriam ser abandonados em virtude do temor de que a ciência cognitiva estaria tratando como naturais aspectos da cognição que seriam culturais. Por fim, procuraremos apontar para a direção de uma perspectiva sistêmica, em que as especificidades entre os saberes não seriam tão nítidas como comumente são compreendidas e investigadas. © Cien. Cogn. 2012; Vol. 17 (1): 120-129.

Palavras-chave: ciência cognitiva; filosofia da mente; naturalismo.


Abstract

Evaluating the role of philosophy within the general framework of constituted knowledge, we seek to determine in this article the meaning of the idea that cognitive science has come to substitute the role that has always been associated with epistemology. Investigating the relationship between philosophy and cognitive science, we critically evaluate the proposal of the Brazilian philosopher Marcos Barbosa de Oliveira, which states that cognitive science should be divided into natural and cultural. As we stand against this proposal, we argue that dividing cognitive science in two areas would bring more problems than solutions to the studies of the mind, because we believe that the integration of knowledge, the efforts to develop a common theoretical -conceptual framework, as well as the exchange of ideas, one of the main proposals of cognitive science, should not be abandoned because of worries that cognitive science would be treating as natural supposedly cultural aspects of cognition. Finally, we seek to point out the direction towards a systemic perspective, in which the specificities among knowledge would not be as apparent as they are commonly understood and investigated. © Cien. Cogn. 2012; Vol. 17 (1): 120-129.

Keywords: cognitive science; philosophy of mind; naturalism.


 

 

Introdução

Observa-se na história da filosofia uma vasta galeria de modelos explicativos que procuram, por diferentes perspectivas, soluções aos problemas referentes à mente. Poderíamos, com certa licenciosidade, ser tentados a afirmar que, desde sempre (ou pelo menos desde o nascimento da filosofia), tais modelos explicativos estiveram intimamente relacionados às noções comuns acerca do funcionamento da mente, bem como aos conhecimentos "científicos" relativos aos fenômenos mentais.

O destaque ao "científico" justifica-se pelas dificuldades em se estabelecer critérios de cientificidade em teorias explicativas dos fenômenos da natureza. Dizer o que pode ou não pode ser classificado como ciência encerraria grandes dificuldades. Para se ter uma idéia da importância e complexidade histórica do problema, basta lembrar que boa parte da agenda de pesquisa dos intelectuais do círculo de Viena era ocupada justamente em tentar estabelecer critérios de demarcação entre ciência e não ciência.

Independentemente do que possa vir a ser ciência1, o fato é que os fenômenos relativos à mente sempre foram investigados (mesmo que de modo estritamente especulativo) levando em consideração os resultados fornecidos pelas ciências, sendo que, pelo menos desde a segunda metade do século XX, observa-se que as atividades investigativas ocupadas em desvendar o estatuto e funcionamento dos fenômenos mentais, tais como a linguística, a psicologia, a filosofia da mente, as neurociências, a inteligência artificial, dentre outras, organizam-se como uma nova disciplina, denominada ciência cognitiva.

De modo geral, poderíamos dizer que a proposta fundamental da ciência cognitiva seria a de aproximar e promover o diálogo entre todas as disciplinas que se propõem a investigar os fenômenos relativos à cognição. Segundo o filósofo francês Pascal Engel, a ciência cognitiva veio ocupar o papel que historicamente sempre coube à filosofia, qual seja, "(...) a análise dos processos superiores de pensamento, dos juízos, do raciocínio, das inferências, mas também das partes ativas do espírito, como as volições, os motivos, e as propriedades mais íntimas da alma e do Eu, como a consciência e a identidade pessoal" (Engel , 1996, p.10).

Uma questão interessante derivada da precedente citação de Engel seria: em que medida a ciência cognitiva veio ocupar o papel que sempre coube à filosofia, se é que de fato isso ocorre? Ou ainda: qual é a atual função da filosofia dentro do quadro geral dos saberes contemporâneos?

No livro intitulado "A nova ciência da mente", Howard Gardner (1995) defende que, historicamente, parece evidente que as atuais atividades científicas constituíram-se e individualizaram-se a partir de determinadas disciplinas filosóficas, de modo que a impressão que se tem é que, na medida em que a filosofia coloca novos problemas, surgem disciplinas autônomas encarregadas de investigá-los, dispensando a contribuição da filosofia na resolução de tais problemas.

O paradoxo de tal modo de olhar para a história e evolução do pensamento ocidental reside na idéia de que, ao agir nos interstícios das ciências constituídas, colocando novos problemas e, por conseguinte, abrindo espaço para o surgimento de novas ciências autônomas, a filosofia ao mesmo tempo em que se desenvolve, abrindo um leque de novas possibilidades, esgota-se, como se perdesse função à medida que os interstícios entre as ciências estreitam-se.

Nesta perspectiva, ou seja, de acordo com esse modo de se conceber a estrutura e evolução das idéias, o problema que atualmente se coloca diz respeito ao futuro da disciplina central da filosofia, a saber, a epistemologia. Gardner, a rigor, considera que a ciência cognitiva veio ocupar o papel que sempre coube à epistemologia. Nas palavras do autor: "(...) à medida que questões filosóficas são respondidas pelas ciências empíricas, os filósofos podem, no limite, sair de cena - como de fato aconteceu com vastas regiões da física e da biologia" (1995, p.389). Entretanto, essa não parece ser a postura de Gardner, na medida em que ele concebe uma espécie de relação dialética entre a filosofia e os saberes positivos. Segundo o autor,

"Vejo em ação um processo dialético, no qual os filósofos propõem certas indagações, disciplinas empíricas aparecem na tentativa de respondê-las, e então os filósofos cooperam com os cientistas empíricos na interpretação dos resultados e no estabelecimento de novas linhas de trabalho. (...) Em vez de serem os supremos árbitros ou as supremas vítimas do trabalho científico, os filósofos tem sido (e continuarão a ser) importantes auxiliares no estudo científico da cognição." (1995, p. 54)

Em virtude do caráter claro e direto com que Gardner expressa sua posição nas citações precedentes, parece evidente que, para ele, a filosofia, por não ser um "supremo árbitro ou suprema vítima" do trabalho científico, ocupa uma posição respeitável no que tange à produção do conhecimento, interpretando resultados e estabelecendo novas linhas de trabalho. Entretanto, essa não parece ser a impressão que o filósofo brasileiro Marcos Barbosa de Oliveira manifesta a respeito do livro de Gardner.

Na coletânea de textos que compõem o livro "Da ciência cognitiva à dialética", Oliveira (1999), mais precisamente no artigo intitulado "filosofia e ciência cognitiva", referindo-se à mesma passagem da p. 54 do livro de Gardner transcrita acima, argumenta que, ao utilizar a expressão "auxiliar" para referir-se ao papel da filosofia para com as ciências empíricas na produção do conhecimento, Gardner intencionalmente atribui à filosofia uma função de subordinação em relação às ciências. Isso porque "auxiliares", traduzido do inglês handmaidens, denota o equivalente português a serva, criada.

Além da suposta ambiguidade semântica intencional presente no texto de Gardner, Oliveira afirma também que é falsa a asserção proferida pelo autor de que a ciência cognitiva ocupa-se da totalidade dos problemas epistemológicos, e apresenta três problemas genuinamente epistemológicos e filosóficos, que poderíamos resumir como sendo: a análise dos fundamentos da ciência, a avaliação das probabilidades prévias dos programas de pesquisa científicos com a contribuição no seu desenvolvimento, e o combate ao irracionalismo2.

Dado o papel da filosofia no contexto de sua articulação com os demais saberes positivos, bem como sua relação com a recente ciência cognitiva, seguiremos com algumas considerações críticas no que diz respeito ao naturalismo subjacente à filosofia da mente contemporânea.

Como adverte Abrantes (2004), a grande dificuldade de se discorrer sobre o naturalismo em filosofia da mente reside na variedade de teses filosóficas englobadas sob essa denominação. Mas, para nossos propósitos, tomemos por naturalismo a vaga noção de que a filosofia deve manter-se estreitamente ligada ao que se produz em ciência, bem como, epistemologicamente, atenta aos procedimentos e métodos das ciências particulares. Nesse sentido, observa-se que o naturalismo constitui-se mais como uma "direção" do que propriamente um conjunto de teses bem definidas. Como ressalta Sellars (citado por Kornblith, 1998, p.148):

"Nós somos (agora) todos naturalistas. Mas, mesmo assim, esse naturalismo comum é de uma espécie muito vaga e geral, capaz de cobrir uma diversidade imensa de opiniões. É muito mais a admissão de uma direção do que uma crença claramente formulada. É menos um sistema filosófico que um reconhecimento das implicações impressionantes das ciências físicas e biológicas. E, para não ficar ultrapassada, a psicologia juntou-se ao coro."

Sendo assim, façamos um breve preâmbulo acerca do que entendemos que sejam as principais críticas dirigidas ao naturalismo subjacente à filosofia da mente, além de propor o esboço de uma proposta que visa manter a postura naturalista, só que redefinida.

 

Popper e o efeito Édipo

O eixo central em torno do qual se articulam, em nosso entender, as críticas mais consistentes à posição naturalista, e, por conseguinte, à ciência cognitiva de modo geral, refere-se à asserção de que ao adotar os métodos e procedimentos característicos das ciências naturais, a ciência cognitiva tenderia a tratar como naturais aspectos da cognição que deveriam ser abordados como sendo culturais, havendo, pois, diferenças essenciais entre as ciências naturais e humanas, de modo que os métodos daquela não seriam adequados a esta.

Um dos principais problemas consequentes da suposta adoção irrefletida da "aparelhagem" metodológico-conceitual das ciências naturais pelas ciências humanas seria o famoso "efeito Édipo", desenvolvido inicialmente por Popper (1980) em sua obra intitulada "A miséria do historicismo"3. Na primeira parte da referida obra, Popper afirma que o efeito Édipo, em linhas gerais, seria o fenômeno em que o anúncio de uma previsão teria um impacto e/ou alteraria a ocorrência do próprio evento previsto. Em suas palavras:

"Notam eles (os historicistas da vertente antinaturalista) que absurdas consequências decorreriam da presunção de que as ciências sociais venham a desenvolver-se até o ponto de permitir antecipações científicas precisas com respeito a todas as espécies de fatos e eventos sociais, e que essa presunção pode, portanto, ser refutada com base em argumentos puramente lógicos (...) suponhamos que fosse previsto, por exemplo, que o valor de certas ações se elevaria durante três dias para, depois, cair. É óbvio que todas as pessoas ligadas ao mercado efetuariam vendas no terceiro dia, levando a uma queda de preço naquele dia e falseando a previsão. Em suma, a idéia de um exato e pormenorizado calendário de eventos sociais é auto contraditória, e predições sociais científicas exatas e pormenorizadas são, consequentemente, impossíveis." (1980, p.14)

Com base na citação, devemos destacar dois pontos de suma importância: em primeiro lugar, o impacto das predições pode vir tanto a refutar tal predição (como no exemplo acima), quanto corroborar tal predição (no sentido de que o prognóstico pode fazer com que o evento de fato ocorra)4. Um segundo ponto a ser comentado versa sobre o evidente abalo que Popper, por meio de seu efeito Édipo, provoca em seu próprio construto teórico, minando-o em seus fundamentos. Isso porque Popper, além de adepto do princípio de unidade da ciência, era também empirista (a despeito de suas sérias divergências em relação aos positivistas lógicos), no sentido de que as observações desempenham um papel crucial na seleção de teorias5.

Sendo assim, por que Popper desenvolveria um argumento tão deletério às suas próprias convicções obviamente naturalistas (pelo menos no sentido em que advoga a unidade entre as ciências e na medida em que se considera empirista), sendo que nem mesmo a terceira parte de "A miséria do historicismo", intitulada justamente "crítica das doutrinas antinaturalistas", contém uma resposta ao problema colocado por ele na primeira parte do livro?

Em sua Autobiografia intelectual, Popper (1977) afirma ter julgado, por algum tempo, que a existência do efeito Édipo fosse capaz de servir como critério de distinção entre as ciências naturais e sociais. Porém, com a publicação de um artigo intitulado "Indeterminism in quantum physics and in classical physics" (1950) e de seu "Postscript" (1982), sobretudo o segundo volume, Popper reconsidera, procurando mostrar que, pelo fato do princípio de indeterminação (como o próprio título do artigo de 1950 sugere), característico da física quântica, também estar presente na mecânica clássica, o efeito Édipo não mais serviria para distinguir as ciências naturais das humanas.

A questão é que, embora tal estratégia pudesse preservar o naturalismo (desde que entendido a partir do princípio de que não haveria diferenças essenciais entre as ciências naturais e humanas), consequências desastrosas a outro compromisso fundamental da filosofia popperiana emergiriam, a saber: o princípio empirista. Pois, vigorando o princípio de indeterminação também nas ciências naturais, a capacidade de previsão das teorias fica comprometida. Logo, a própria idéia de que as observações desempenhariam um papel decisivo na seleção de teorias seria gravemente abalada.

Com base na discussão proposta até o momento, nos parece óbvio que, quer o efeito Édipo circunscreva-se apenas ao domínio das ciências humanas, como Popper pensava no momento em que formulava o argumento em "A miséria do historicicmo" (1980), quer se faça presente nas ciências naturais e humanas, como passou a entender no seu "Postscript" (1982), o fato é que ambas as posturas, como já argumentamos, acarretam consequências gravíssimas ao seu corpus teórico.

Porém, o efeito Édipo abarcando tanto as ciências humanas quanto as naturais, ou circunscrevendo-se apenas ao domínio das ciências humanas, o importante é que uma vez colocada a idéia de que nas ciências humanas as previsões teóricas podem alterar os resultados que a própria teoria postula, parece claro que nas ciências sociais e também nas ciências cognitivas (das quais também fazem parte a filosofia da mente e determinadas linhas de pesquisa da antropologia, tal como a antropologia cognitiva), as consequências de tal idéia merecem ser estudadas.

O efeito Édipo, na argumentação de Oliveira (1999), assume o papel de um caso particular que reflete uma hipótese geral, que, em suma, seria a de que, no âmbito das ciências humanas, as teorias tendem a transformar seus objetos. A isto Oliveira denomina de prognoplasia, ou transformação cognitiva. No caso específico das ciências cognitivas, com base na afirmação um tanto provocativa de Dennett (1966) de que seríamos todos robôs, Oliveira teme que, tendo em vista o fenômeno da transformação cognitiva, seria possível que realmente viéssemos a nos transformar em robôs (algo não muito agradável de acordo com a definição de robô que Oliveira descreve), transformando o jeito "robotizado" de ser num hábito difícil de ser suplantado.

Tendo em vista tal argumento, desconfiamos que ele se baseasse numa visão pouco crítica da realidade. Isso porque entendemos que, assim como o já citado exemplo da inflação (nota número 5) parece corroborar tal hipótese, pensamos que existem inúmeros exemplos em que saber de algo parece não alterar a conduta. Como exemplo, podemos citar a relutância de certas regiões da antiga URSS em aceitar a revolução mesmo com a massiva propagação dos ideais marxistas; ou o que dizer de pessoas que fracassam ao se proporem a alterar radicalmente determinados modos de agir, mesmo sabendo da perniciosidade de tais condutas. Um último ponto que gostaríamos de levantar seria o de que, se tomando a sério a argumentação de Oliveira, os pesquisadores em ciências humanas deveriam converter-se em ideólogos de teorias regidas somente por valores, de modo a abandonarem a proposta de descrição minimamente objetiva da realidade.

 

Aspectos naturais e culturais da cognição

A razão de levantarmos toda essa problemática em relação a uma velha questão ainda não resolvida pela filosofia da ciência deve-se ao fato de tomarmos a sério as críticas levantadas por Oliveira (1999) na obra "Da ciência cognitiva à dialética" contra o projeto naturalista no qual a ciência cognitiva se encerra.

A maneira como o autor lida com o problema (efeito Édipo), na verdade faz parte de um argumento mais geral, que visa minar os fundamentos do naturalismo, e que culmina com a proposta de um tratamento epistemológico diferenciado aos fenômenos ligados à cognição, que, segundo ele, deveriam ser divididos em naturais e culturais. Segundo o autor, tomar aspectos culturais da cognição como se fossem naturais seria adotar uma postura que culminaria numa visão acrítica da realidade.

Um dos caminhos traçados pelo autor na tentativa de explicar a pertinência de que de fato haveria fenômenos cognitivos que devessem ser abordados por um viés não naturalizante, logo, não devendo pressupor a noção de universalidade característica das ciências naturais, consiste em mostrar que a inferência dedutiva do silogismo não pode arrogar-se à generalidade. Além disso, apoiado nos trabalhos de campo efetuados por Luria (1990), argumenta que as faculdades mentais de nível superior derivam diretamente de fatores sócio-históricos6.

No livro "O desenvolvimento cognitivo: seus fundamentos sociais e culturais", Luria (1990) realiza importante trabalho de campo nas regiões atrasadas do Uzbequistão e Kirghizia nos anos 1930-32, durante a reestruturação radical ocorrida na URSS, quando a eliminação do analfabetismo aliada à transição para uma economia coletivista efetuava-se, a fim de comprovar (como de fato parece fazer) se certas atividades cognitivas superiores, tais como a generalização e abstração, a dedução e inferência, a resolução de problemas, a imaginação e, por incrível que possa parecer, a percepção e a auto consciência ou sentimento da existência de um Eu, se efetivam somente no seio de certas culturas. Eis uma amostra de como a imersão em determinadas estruturas sócio-culturais são capazes de afetar nossas habilidades lógico-formais:

Sujeito: Abdurakhm, 37 anos, de um vilarejo isolado de Kashgar, analfabeto.
O seguinte silogismo é apresentado: no norte, onde há neve, todos os ursos são brancos.
Novaya Zemlya fica no norte e lá sempre neva. De que cor são os ursos lá?
S: há diferentes tipos de urso.

O silogismo é repetido.
S: eu não sei: eu já vi um urso negro, eu nunca vi outros (...) Cada localidade tem seus próprios animais: se é branco, eles são brancos; se são amarelos, eles serão amarelos.

E: mas que tipos de ursos há em Novaya Zemlya?
S: nós sempre falamos somente sobre o que já vimos, nós não falamos sobre o que não vimos.

E: Mas o que minhas palavras implicam? O silogismo é repetido.
S: bem, é assim: nosso czar não é como o seu e o seu não é como o nosso. Suas palavras somente podem ser respondidas por alguém que esteve lá, e se uma pessoa não esteve lá, ela não pode dizer nada baseada em suas palavras.

E: Mas com base em minhas palavras, digo que no norte, onde há sempre neve, os ursos são brancos. Você pode entender que tipos de ursos existem em Novaya Zemlya?
S: se um homem de 60 ou 80 anos tivesse visto um urso branco e tivesse contado sobre isso, se acreditaria nele, mas eu nunca vi um e, portanto, não posso dizer. Esta é a minha última palavra. Aqueles que viram podem dizer e aqueles que não viram não podem dizer nada!).

Tendo em vista a maneira como Luria (1990) conduz a entrevista (ou seja, de modo direto e utilizando-se de termos familiares ao entrevistado), fica difícil alegar que o entrevistado não entendeu a pergunta e que a inferência silogística possa ser tida por uma universal cognitiva, de modo que somos levados a crer que, de fato, parece haver aspectos da cognição que não podem ser generalizados.

De fato, a julgar pelo modo como Oliveira (1999) coloca as questões acima arroladas, parece óbvio que inconsistências teóricas decorreriam de uma abordagem que não levasse em conta diferenças "essenciais" entre as ciências humanas e as ciências naturais. Entretanto, a sugestão de simplesmente dividir-se as ciências cognitivas entre ciência cognitiva natural e ciência cognitiva cultural, a nosso entender, traria mais problemas que soluções ao seio das ciências cognitivas. Isso porque acreditamos na integração entre os saberes (historicamente já tão fragmentados e ainda em processo de divisão), tendo em mira a compreensão de um objeto comum, a saber: os fenômenos ligados à cognição.

Além disso, e a despeito do temor de cairmos num discurso retórico, entendemos que a própria terminologia essencialista de Oliveira denuncia uma postura que a todo o custo queremos evitar por considerá-la errônea. Isso porque, ao afirmar que haveria diferenças "essenciais" entre as ciências humanas e as naturais, o autor utiliza-se de um termo metafísico largamente utilizado pelos medievais e modernos (essência), dando a entender que fenômenos naturais e fenômenos culturais, por exemplo, referir-se-iam a realidades ontológicas distintas, algo passível de contestação.

 

Considerações finais: por uma abordagem sistêmica

Tendo em vista a sequência de textos da obra "Da ciência cognitiva à dialética", sobretudo o capítulo IV, intitulado "natureza e cultura", parece-nos claro que a intenção do autor não seja a descrita acima (daí destacarmos nosso temor de cair num discurso retórico), de modo que, por diferenças essenciais, o autor talvez queira dizer que os aspectos que ele chama de naturais da cognição deveriam receber uma abordagem metodológica e conceitual distinta dos aspectos culturais da cognição.

Entretanto, o ponto a que gostaríamos de chegar é o de que um dos pressupostos adotados por nós consiste em entender que não haveria uma dicotomia entre natureza e cultura, de modo que, pelo menos a princípio, seria possível procurar desenvolver uma espécie de naturalização da cultura. Pois, no presente momento da história, e a despeito das evidentes especificidades entre os saberes, urge que nos empenhemos em encontrar uma maneira de promover uma espécie de "canal de diálogo" entre as ciências, de modo que o naturalismo que advogamos não se confunda com o naturalismo fisicalista, que consiste em generalizar os conceitos e métodos das ciências naturais às demais ciências, reduzindo estas àquelas. Nesta perspectiva, separar a ciência cognitiva em dois domínios parece-nos em nada contribuir para o progresso de uma disciplina que se propõe interdisciplinar, e está empenhada em isolar características comuns às diversas especialidades científicas7.

Acreditamos, a rigor, que seja possível estabelecer um patamar comum entre as ciências que estudam a mente, e que, no entanto, seja crítica, reconhecendo que diferenças entre objetos da natureza, apesar de existirem, não são inconciliáveis. Nesse sentido, ao nos referirmos ao naturalismo, não estamos tomando o conceito em seu significado usual, mas queremos dizer que todos os fenômenos estudados pelo homem são naturais (no sentido de que nada há de sobrenatural), ou seja, estão circunscritos num círculo mais abrangente (a natureza, no caso) que qualquer uma das ciências particulares.

Havendo um ponto de toque entre os fenômenos biológicos e culturais, esses âmbitos estando sob um guarda chuva comum (a natureza), nos parece evidente que instrumentos epistemológicos possam ser discutidos num esforço conjunto de intercâmbio interdisciplinar.

Uma maneira de ilustrarmos o que queremos dizer seria afirmar que os experimentos de Luria com camponeses da extinta URSS, antes de revelar que universais cognitivos de ordem superior (tais como a inferência silogística, no caso de seu experimento) não existem, nos mostra que o problema que realmente deveria ser colocado e investigado seria: quais os mecanismos subjacentes às relações entre os camponeses da região estudada e o ambiente no qual estão inseridos permitiram que o padrão cultural emergente não soubesse lidar com um tipo de inferência lógica aparentemente tão simples para nós ocidentais, inseridos numa sociedade de capitalismo avançado?

Fazendo um breve parêntese, gostaríamos de explicitar que, na abordagem sistêmica que advogamos, o homem é entendido como indissociável de seu meio natural, de modo que, em tal perspectiva, o que realmente interessa são os processos e relações entre os componentes do sistema, uma abordagem evidentemente distinta do paradigma mecanicista que, grosso modo, propõe uma abordagem fisicalista, atribuindo ao homem o papel de observador destacado do mundo, com estados mentais como que dissociados de seu objeto de estudo, de modo que, por meio do método analítico, tal objeto seria isolado de seu meio natural e dividido em partes para ser "melhor" entendido8.

Entendemos que o temor de Oliveira (1999) a respeito dos possíveis problemas de se tomar por naturais os aspectos da cognição que, de fato, seriam culturais, talvez não se coloque caso se adote uma perspectiva que não enxerga fronteiras tão nítidas entre natureza e cultura. Entretanto, devemos deixar claro que, apesar de não concordarmos com o autor quanto à idéia de se separar a ciência cognitiva em dois domínios, reconhecemos (e nisso estamos de pleno acordo com ele) que confusões referentes aos planos de análise possam ocorrer. Ou seja, confusões no que tange ao recorte epistemológico adequado ao problema que se queira resolver não só podem ocorrer, como, de fato, são frequentes em estudos que se propõem a investigar fenômenos complexos. Mas mesmo reconhecendo esta possibilidade, ainda assim insistimos que a divisão pura e simples da ciência cognitiva em dois domínios, cada qual com seus próprios instrumentos epistemológicos e conceituais, não traria avanços significativos quanto à compreensão integral dos fenômenos cognitivos.

Por fim, parece-nos que o naturalismo que advogamos, por ser mais geral, engloba o naturalismo fisicalista usual, e que, apesar da suscetibilidade de confusão entre planos de análise (que, como vimos, é a principal preocupação de Oliveira), ainda assim acreditamos que seja a melhor alternativa de que dispomos para se pensar nas relações e na caracterização das fronteiras entre os saberes.

 

Referências bibliográficas

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Notas

D.L. de Faria
Rua Manoel Queirós, 77, Jardim S. Pedro, Jaguariúna, SP 13.820-000.
Telefone para contato: +55-19-38672743.
E-mail para correspondência: luporinifaria@yahoo.com.br;

C. Rodrigues
Av. Tancredo de Almeida Neves, 457/344, Parque Santa Mônica, São Carlos, SP 13.561-260.
Telefone para contato: +55-16-34128993 ou +55-16-91637026.
E-mail para correspondência: cae_jah@hotmail.com.

(1) Para nossos propósitos, assumimos que o problema da demarcação entre ciência e não ciência dilui-se definitivamente com a publicação da obra A estrutura das revoluções científicas, de T. S. Kuhn (2000). Na introdução da referida obra, com efeito, criticando a postura historiográfica cumulativa de desenvolvimento científico e a favor de uma perspectiva que enxerga "saltos" ou "cortes" na evolução da ciência (aqui as noções kunianas de paradigma e revolução são fundamentais), Kuhn argumenta que se assumirmos que empreendimentos do passado tais como a química flogística, a óptica epicurista ou aristotélica, por exemplo, constituem-se em "mitos" ou algo parecido com um tipo qualquer de não ciência, apenas duas alternativas nos restaria: ou essas "crenças obsoletas" que muitos entendem por mitos podem ser produzidas de modo semelhante e sustentadas pelas mesmas razões que hoje conduzem o conhecimento científico, logo, o que hoje se produz em ciência também poderia ser chamado de mito; ou então, se por outro lado, tais "mitos" devem ser chamados de ciência, infere-se que a ciência atual inclui conjuntos de crenças totalmente incompatíveis com o que hoje mantemos. Sendo assim, dadas essas duas alternativas, o historiador, para Kuhn, se quiser preservar o estatuto de ciência às teorias atuais, deve optar pela última, vendo-se, pois, obrigado a aceitar, conjuntamente, a idéia de que aquilo que antigamente se produzia também deve ser denominado ciência.

(2) Optamos por não explicitar a argumentação de Oliveira pormenorizadamente em virtude de nossa intenção inicial ser apenas a de ilustrar o estágio atual dos debates acerca de uma questão atual decorrente da asserção (no mínimo questionável) de Pascal Engel de que a ciência cognitiva veio ocupar o papel que historicamente sempre coube à filosofia. Além disso, entendemos que uma questão da mais alta relevância como esta demandaria um trabalho à parte, algo que extrapola os limites do presente texto. Para maior aprofundamento sobre a discussão, consultar a obra "OLIVEIRA, M. B. Da ciência cognitiva à dialética. São Paulo: Discurso editorial, 1999".

(3) O efeito Édipo, a título de curiosidade, também é discutido em outras obras de Popper, em determinadas passagens de Conjecturas e refutações (1972, p. 68); A sociedade aberta e seus inimigos (1974, vol. 1, p. 35-36); e na sua Autobiografia intelectual (1977, p. 129-30).

(4) Um exemplo (elaborado por Oliveira, 1999) deste segundo caso seria o de que ao prognosticar-se que a inflação vai subir, tal previsão poderia ocasionar uma reação preventiva dos agentes econômicos estipuladores de preços, de modo que eles, defendendo seus interesses, aumentariam o valor de suas mercadorias, o que faria com que a inflação viesse de fato a subir.

(5) Poderíamos ser tentados a afirmar que dois princípios básicos do naturalismo, que seriam a unidade metodológico-conceitual entre as ciências e o empirismo ou existência de uma pedra de toque entre teorias e dados observacionais, se fizeram presentes em toda a tradição anglo-saxônica da primeira metade do século XX. Já no que tange ao papel desempenhado pelas observações, para Popper, observa-se que elas seriam um tipo mitigado de corroboração, entendida como sendo sempre provisória, no sentido de que as teorias corroboradas por testes empíricos de caráter intersubjetivo sempre estariam sujeitas à revisão.

(6) Na verdade, a idéia de que todas as atividades cognitivas humanas fundamentais constroem-se a partir da história social encontra-se presente nas teses marxista-leninistas, sendo aprofundadas por Vygotsky, de modo que seus trabalhos serviram como base para grande parte dos estudos desenvolvidos pela escola soviética de psicologia na primeira metade do século XX.

(7) No livro "General system theory" (1968), por exemplo, Von Bertalanffy afirma que pensar na unificação entre as ciências seria viável não apenas por ser possível estabelecer uma analogia entre vários aspectos das ciências particulares, mas sim pelo fato de tais isomorfismos suscitarem a possibilidade real de se aplicar certos instrumentos epistemológicos a fenômenos naturais diversos.

(8) Para Dewey (1980), por exemplo, os problemas da filosofia surgiram de seu afastamento do que ele denomina "experiência primária". Quando os filósofos deixam de lado a experiência primária, na qual sujeito e objeto do conhecimento estariam inextricavelmente unidos, ao ser julgada como aparente e entendida como mera impressão ontologicamente inferior a uma realidade última e essencial, acabaram por decretar, para Dewey, a morte da filosofia verdadeiramente séria e eficiente.

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