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Ciências & Cognição

On-line version ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.17 no.2 Rio de Janeiro Sept. 2012

 

Artigo Científico

 

Linguagem e pensamento: as ideias de Steven Pinker e suas implicações para o ensino da matemática no contexto indígena Ticuna

 

Language and thinking: the ideas of Steven Pinker and their implication for mathematics teaching in the Ticuna indigenous context

 

 

Lucélida de Fátima Maia da CostaI; Patrícia Sánchez LizardiII; Evandro GhedinIII, IV

IUniversidade do Estado do Amazonas (UEA), Centro de Estudos Superiores de Parintins (CESP), Parintins, Amazonas, Brasil;
IIPrograma em Educação em Ciências, UEA, Manaus, Amazonas, Brasil;
IIIPrograma de Pós-Graduação em Educação e Ensino de Ciências na Amazônia, UEA, Manaus, Amazonas, Brasil;
IVUniversidade Estadual de Roraima, Boa Vista, Roraima, Brasil

 

 


Resumo

No presente trabalho, discutimos as possíveis implicações para o ensino da matemática, a partir das ideias de Steven Pinker, referentes ao funcionamento da mente e sua principal proposta que afirma ser a linguagem um instinto visto que já nascemos com uma estrutura mental preparada para desenvolvê-la. O objetivo deste trabalho é, a partir das ideias de Pinker, mostrar que os trançados indígenas Ticuna podem ser compreendidos como uma linguagem que expressa uma memória cultural rica em tradição e ideias matemáticas que deve ser considerada ao pensarmos estratégias de ensino nesse contexto. Para tanto, a metodologia utilizada conciliou a pesquisa bibliográfica com dados de cunho etnográfico, permitindo-nos inferir que o processo de confecção dos trançados conserva uma linguagem que direciona o pensamento matemático na construção das formas que o ornamentam indicando possibilidade de sua utilização como mote para o ensino de Matemática na escola indígena Ticuna. © Cien. Cogn. 2012; Vol. 17 (2): 028-039.

Palavras-chave: ensino de matemática; Pinker; linguagem; pensamento; trançados Ticuna.


Abstract

In this paper we discuss the implications of Steven Pinker's ideas about how the mind works and his primary proposal that language is an instinct on mathematics education, considering that we are born with a mental structure for language that is ready to be developed. The purpose of this article is, through Pinker's ideas, show that the Ticuna's weaving can be understood as a language that expresses a cultural memory that is rich in tradition and mathematical ideas and that should be considered when thinking teaching strategies in the Ticuna context. In order to explore this, we used a qualitative research method, with a documentary and ethnographic approach, which allowed us to make some inferences during the weaving process. We suggest that in this process, there is an expression of language that guides mathematical thinking in the designing of ornamental forms, indicating a possibility of its usage in teaching mathematics in the Ticuna indigenous school. © Cien. Cogn. 2012; Vol. 17 (2): 028-039.

Keywords: mathematics teaching; Pinker; language; thinking; Ticuna weaving.


 

 

Introdução

O funcionamento da mente humana, há tempos, intriga e motiva psicólogos, e mais recentemente, neurocientistas, na busca de compreender como o homem capta, organiza e transforma as informações do meio em conhecimento e o expressa por meio da linguagem e comportamentos.

Para o psicólogo evolucionista e linguísta canadense Steven Pinker todo esse conjunto de expressões é produto de um processo evolutivo da mente humana que ao longo dos tempos foi se adaptando para enfrentar e superar condições adversas visando sua própria sobrevivência.

Neste trabalho nos propomos defender, com base nas ideais de Pinker, que existe uma ligação entre pensamento e linguagem nos trançados indígenas Ticuna, os quais possuem elementos relevantes para o processo de ensino e de aprendizagem da matemática no contexto escolar indígena. Basearemos nossa discussão em quatro de suas obras, todas traduzidas para o português: Como a mente funciona (1998), O instinto da linguagem: como a mente cria a linguagem (2002), Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana (2004) e Do que é feito o pensamento: a língua como janela para a natureza humana (2008). Reconhecemos que existem referências além das obras acima citadas, porém o nosso exercício intelectual neste artigo é tecer as ideias apresentadas por Pinker com os nossos dados de campo.

Os dados apresentados foram obtidos numa pesquisa de cunho etnográfico, cuja principal técnica utilizada para a coleta de informação foi a observação participante, na qual convivemos particularmente com duas tecedoras indígenas Ticuna que aceitaram participar da pesquisa, as quais confeccionam cestos e esteiras. Esse povo constitui a maior população indígena da Amazônia brasileira. Habita, principalmente, nas margens dos rios de água branca na fronteira do Brasil com a Colômbia e o Peru, região conhecida como Alto Solimões e suas aldeias, quase cem (informação verbal)1, localizam-se preferivelmente nas margens do grande rio Amazonas. Neste trabalho, sempre que nos referimos aos ticunas estamos falando com base no trabalho de campo realizado na aldeia Ticuna Umariaçu. Nessa etnia, as mulheres são, originalmente, encarregadas da produção dos trançados (cestaria), muito embora mudanças nesse contexto estejam ocorrendo.

A nossa participação no processo criativo dos trançados, na aldeia Umariaçu, teve duração de 18 meses, nos quais a primeira autora do presente artigo teve o desafio da comunicação em língua ticuna, que, uma vez superado deu a oportunidade para se aproximar das tecedoras bem como da realidade por elas vivida. Dessa maneira conseguimos, a partir das descrições por elas feitas, uma narrativa rica em reflexões e significados das relações sociais e culturais estabelecidas e vividas no seio da aldeia e da escola. É ali onde é possível que os saberes tradicionais, científicos e escolares se encontrem, refaçam-se e se reproduzam de forma complementar sem a necessidade que um ignore ou inferiorize o outro. Esse tempo passado no campo da pesquisa nos levou a pensar na relevância do contexto sócio-histórico-cultural durante a elaboração de estratégias para a resolução de problemas matemáticos.

Aqui, entrelaçamos a linguagem, o pensamento e o ensino de matemática no trançado Ticuna para criar um fio condutor e estabelecer uma relação entre as ideais apresentadas por Pinker com os nossos dados de campo.

 

Mente e pensamento matemático nos trançados Ticuna

As ideias Steven Pinker constituem-se alicerces para pensarmos meios eficazes de ensinar e aprender Matemática em contextos diferenciados como o indígena. Os argumentos desse autor permitem pensarmos meios de relacionar os mecanismos da mente com mecanismos de ensino. Mas o que é a mente? E o pensamento? Como a mente guia o comportamento, no caso de ensino e de aprendizagem da matemática num contexto indígena?

Começaremos nossa discussão abordando esses questionamentos. Segundo o próprio Pinker (1998), a mente não é apenas o lugar de registro de processos cognitivos como a percepção, o raciocínio, a memória e as emoções. Ao discorrer sobre nossa mente enfatiza que esta não é fruto de uma obra divina ou porção mágica.

"[...] Qualquer explicação sobre como a mente funciona que faça uma alusão esperançosa a alguma força mestra única ou a um elixir produtor de mente como a "cultura", "aprendizado", ou "auto-organização" começa a parecer vazia, absolutamente incapaz de satisfazer as exigências do impiedoso universo com o qual lidamos tão bem" (Pinker, 1998, p.29-30).

Embora suas ideias causem controvérsia no mundo acadêmico e desagradem aos que atribuem ao Divino, através da alma, o funcionamento da mente humana, Pinker propõe que mente e cérebro estão em direta e constante relação e que a mente não é o cérebro, mas o que o cérebro faz e nem tudo que este faz. O cérebro é o resultado de informações genéticas transmitidas ao longo dos tempos. Seu aumento físico parece ter uma íntima relação com toda a atividade neural desenvolvida no decorrer do processo adaptativo e evolutivo que determina formas de comportamentos atuais. "A mente, afirmo não é um único órgão, mas um sistema de órgãos, que podemos conceber como faculdades psicológicas ou módulos mentais" (Pinker,1998, p.38). Esses módulos mentais seriam sistemas invisíveis a olho nu e se expandiriam por todo o cérebro fazendo suas diversas regiões funcionarem como uma unidade. A mente, certamente, possui uma estrutura heterogênea com muitas partes especializadas oriundas das informações contidas no nosso programa genético (Pinker, 1998).

Assim, nós e nossa mente somos parte do mundo animal e consequentemente nosso comportamento reflete a herança das características que ao longo dos tempos foram sendo modificadas e adaptadas às condições e necessidades com as quais o homem teve que viver e superar, ou seja, foram sendo moldadas e selecionadas de acordo a sua eficiência frente ao contexto em que se vivia. Dessa forma, podemos pensar numa representatividade do grau de interação não necessariamente hierárquico, mas concêntrico, dos elementos determinantes do nosso comportamento: a mente, o cérebro, o corpo e o contexto, os quais desenvolveriam um sistema de retroalimentação espiral a partir do centro (mente), em direção aos elementos mais periféricos, num eterno movimento de ir e vir.

A compreensão do comportamento humano, de modo geral, passa pelo entendimento dos vários processos integrativos entre mente, cérebro, corpo e contexto, sendo o principal articulador das ações a mente, pois não podemos esquecer que existe um mundo coordenado pela mente no qual as ideias, sonhos, desejos, necessidades e valores são gerados (Morin, 2007).

Hoje, praticamos ações aparentemente triviais como manipular objetos com as mãos, selecionar e manusear alimentos, escolher parceiros sexuais, reagir diante do perigo, proteger nossos filhos, construir moradias etc.; ações que, de acordo com Pinker (1998), indicam um roteiro de comportamento inscrito em nossos genes que mediam nossa interação com o mundo. O que nos diferencia é a capacidade mental de, a partir de diferenças minúsculas nos detalhes de nossas conexões neurais, processar informações e programar comportamentos diferentes diante das variações ambientais. Sendo assim, a sinapse é fundamental na cognição (Lent, 2001). Dessa forma entendemos o processo de confecção dos trançados Ticuna como exemplo dessa disposição dos elementos que determinam o comportamento (Figura 1), uma vez que as ações são determinadas a partir da interação e integração de informações armazenadas na mente (memória das tecedoras) e da memória cultural que dita regras de comportamentos.

 

Figura 1 - Disposição dos elementos que determinam o comportamento.

 

Nesse contexto, ao pensarmos no ambiente escolar, acreditamos que quando o professor assume uma posição que exerça a mediação entre o que está sendo ensinado, o que vai ser aprendido e a compreensão das relações que não estão normalmente à disposição no cotidiano dos estudantes, levando em consideração as possibilidades e limites biológicos inerentes ao ser humano, adota uma postura que aproxima as ideias de Pinker a uma atitude docente que valoriza o conhecimento que o estudante já tem.

Ao se mostrar opositor ferrenho à da teoria da Tábula Rasa, Pinker (2004) nos chama atenção para a tendenciosa posição, enquanto docentes, de donos da verdade, aquele ser que está na sala de aula para preencher o vazio que existe na mente dos estudantes. Ele articula e promove uma aproximação crítica entre as ciências naturais e as ciências sociais mostrando historicamente que não é possível compreendermos a mente humana desvinculando-a de sua origem animal, pois estaríamos nos embrenhando num labirinto místico e fantasioso inconcebível na contemporaneidade. Ao mesmo tempo, porém, Pinker (1998) esclarece que o efeito dos genes no comportamento é apenas probabilístico, pois sua evolução afeta nossas emoções, impulsos e pensamentos, mas não interferem diretamente no nosso comportamento. Mesmo que a seleção tenha atuado ao longo de milhares de gerações determinando modos de vida, o comportamento humano pode ser visto como resultado de uma luta interna entre muitos módulos mentais que sofrem influência das restrições impostas pelo convívio com outras pessoas.

Ao falarmos de pensamento matemático nos trançados de cestos e esteiras Ticuna o fazemos com base nas ideias de Pinker em relação a como a mente funciona. Vemos a capacidade das mulheres ticunas de fazer estimativas colocando objetos em relação para contar, medir, localizar, desenhar, determinar quantidade, tamanho, peso e volume como a base do pensamento que direciona o processo de confecção dos trançados Ticuna, o que nos permite inferir sobre a existência de um pensamento matemático implícito na confecção de cestos e esteiras que se explicita por uma linguagem própria.

O pensamento direcionador do processo de confecção dos trançados Ticuna pode ser entendido pelo prisma das ideias de Pinker que destaca duas teorias para construir um quadro explicativo sobre nossos pensamentos: a teoria computacional da mente e a teoria da seleção natural dos replicadores. Devido à nossa temática, iremos nos focar mais na teoria computacional da mente. Segundo Pinker (1998), a capacidade de adequar-nos a padrões e regras, enfrentar obstáculos, definir objetivos, raciocinar e predizer são ações humanas guiadas por atividades do cérebro, ou seja, pela mente, cujas funções se assemelham a um computador no que tange a forma de processar informações. Porém, ele continua, a mente se diferencia do computador artificial por conseguir fazer inferências e predizer resultados desconhecidos por inferência, além de processar diferentes conexões de dados através de uma linguagem própria manipuladora da estrutura conceitual, o que denomina de mentalês.

Pinker indica que o mentalês é a linguagem utilizada para a computação das informações na mente, teoria segundo a qual, o pensamento seria efetivado numa linguagem universal. Os sujeitos não pensam em uma língua determinada como o português, por exemplo, mas através da língua do pensamento, o mentalês, que possui uma simbologia própria e permite combinações entre os símbolos que a compõe criando possibilidades de pensamentos que indicam uma grande similaridade na forma de pensar, levando a crer que as diferenças entre as línguas faladas reflitam diferenças entre espécies e não diferentes formas de pensar. É esse o conceito no qual nos apoiamos para pensar nos trançados Ticuna com a sua simbologia própria e as suas combinações refletidas em cada objeto criado como uma linguagem que permite a transmissão dos pensamentos entre as pessoas desse grupo indígena e através das gerações.

 

Linguagem e linguagem matemática nos trançado Ticuna

Nas conjecturas de Pinker, a linguagem adquire ênfase. É por ele mostrada como instinto e pensamos ter implicação no ensino da Matemática na escola indígena, de modo especial naquelas inseridas em aldeias Ticuna, principalmente, porque ambas - linguagem e Matemática - necessitam de construções lógicas e de um sistema de regras que lhe dê sentido e tenha significado para os envolvidos na comunicação, afinal, é através da linguagem que expressamos nossos pensamentos.

Para Pinker a linguagem é uma das maravilhas do mundo natural. A capacidade que temos para nos comunicar de forma compreensível com nossos pares demonstra uma característica natural da espécie humana. Uma língua comum é um poderoso instrumento que permite aos membros de um grupo trocar informações e compartilhar experiências que podem beneficiar todo o grupo, pois "por meio de simples ruídos produzidos por nossas bocas, podemos fazer com que combinações de ideias novas e precisas surjam na mente do outro" (Pinker, 2002, p.5). Não dá para negar que a linguagem afeta nossos pensamentos. Porém, o que discutimos aqui, de acordo com Pinker, é como isso acontece e se o pensamento depende e pode ser exposto através da linguagem.

Segundo Pinker (2002) a linguagem é um processo cognitivo vinculado diretamente ao pensamento e aos múltiplos contextos que formam o meio. Tem a função social de mediar a comunicação, é meio fundamental nas situações de ensino e de aprendizagem e é capaz de ativar a estrutura mental que gera o pensamento, ou seja, através da linguagem o sistema neural é ativado respondendo a estímulos do ambiente. Esse cognitivista defende que a linguagem é um "instinto". Tal instinto inerente ao homem reflete uma capacidade de ser humano da mesma forma como as aranhas sabem tecer teias e as abelhas produzir mel, por exemplo. Comparar palavras com teias ou mel é um artifício para pensarmos a linguagem como um fenômeno próprio de uma determinada espécie que sofreu, ao longo dos tempos, adaptação biológica e se tornou capaz de transmitir informações. O primeiro a conceber a linguagem como instinto foi Darwin. Ele afirmava que a linguagem é "uma tendência instintiva a adquirir uma arte" (p.12).

Pinker (2002) admite que a ideia da linguagem como instinto não é própria e sim uma influencia das ideias de Darwin e do linguista Noam Chomsky, que causou grande revolução na ciência cognitiva ao afirmar a existência de uma gramática mental no nosso cérebro, a qual permite a construção de uma infinidade de frases a partir de combinações entre uma quantidade determinada de palavras. No tangente à linguagem, as ideias desses autores podem diferir em alguns aspectos, porem a tese central convergente é a de entender a linguagem como instinto (Chomsky, 1998; Pinker, 2002). Para nos convencer de que a linguagem é um instinto, Pinker inquieta-nos ao questionar: porque devemos acreditar que a linguagem é um instinto? No intuito de colaborar para chegarmos à resposta a tal questionamento, Pinker nos leva a percorrer um trajeto que vai da linguagem pouco inteligível dos povos modernos aos supostos genes da gramática mostrando, a partir de sua especialidade profissional que:

"O ponto central da tese é que a linguagem complexa é universal porque as crianças efetivamente a reinventam, geração após geração - não porque a aprendem, não porque são em geral inteligentes, não porque é útil para elas, mas porque não têm alternativa." (Pinker, 2002, p.28).

Isso porque a linguagem se mostra como uma potente engenharia intrínseca ao ser humano, nas mais diversas etapas de sua evolução desde a idade da pedra até os dias atuais, o que para muitos observadores se constitui numa prova inegável de que a linguagem é inata.

Na busca de compreensão da linguagem como instinto surge uma questão central: o pensamento depende ou não das palavras? Ao longo das muitas exemplificações usadas por Pinker, fica evidente que acreditar que as palavras determinam o pensamento é no mínimo um grande equívoco.

"A ideia de que as línguas moldam o pensar parecia plausível quando os cientistas nada sabiam sobre como funciona o pensamento ou como estudá-lo. Agora que os cientistas cognitivos sabem pensar o pensar, é menor a tentação de igualá-lo à linguagem apenas porque as palavras são mais palpáveis que os pensamentos." (Pinker, 2002, p.64).

A maneira como vemos e interpretamos as coisas determina o modo como as denominamos e não o contrário. Porém, é compreensível a sobrestimação da linguagem, pois as palavras podem ser vistas (quando escritas) e ouvidas (quando faladas) e o pensamento só existe na cabeça de quem o pensa e para expressá-lo necessitamos justamente das palavras ou de uma forma de linguagem equivalente.

Como cognitivista, Pinker, afirma que "o pensamento é diferente da linguagem e que o determinismo linguístico é um absurdo convencional" (2002, p.75), pois não são exatamente as palavras que falamos que estruturam e determinam nossos pensamentos, mas a substância dessas palavras e a teia de relações tecida sobre uma base inata para hipotetizar que afetam o nosso pensar. Crer que a língua que falamos controla o modo como pensamos - determinismo linguístico - foi uma ideia muito difundida no século XX entre aqueles que acreditavam que é possível substituir as crenças por palavras. Pinker combate firmemente tal ideia com a teoria da semântica conceitual, segundo a qual "o significado das palavras e das frases que falamos são fórmulas numa língua abstrata do pensamento" (Pinker, 2008, p.151).

Contrapondo-se ao determinismo linguístico Pinker argumenta que se este fosse verdadeiro, certamente, os falantes de uma língua seriam incapazes ou pelo menos teriam muita dificuldade de pensar do mesmo modo como falantes de outras línguas (Pinker, 2008). Além do mais, Pinker defende que um conceito se torna pensável quando existe um fundamento no nosso cérebro para sustentá-lo e, esse fundamento seria como uma língua silenciosa intrínseca a todos os seres humanos.

A lógica de Pinker faz sentido principalmente quando paramos para nos observar e prestar atenção aos nossos próprios pensamentos. Vemos que mesmo nos momentos mais criativos não pensamos com palavras, mas com imagens mentais. Percebemos que a força e velocidade de nossos pensamentos superam em muito nossa capacidade verbal.

No entanto, não podemos esquecer que a linguagem é parte inerente do ser humano e por ser a parte mais acessível da mente, desperta curiosidade e a crença de que ao compreendê-la podemos chegar à compreensão da natureza humana (Pinker, 2002).

Dessa forma, a linguagem passa a desempenhar o duplo papel de internalizar e externalizar o pensamento, transforma-se numa ponte em que ao mesmo tempo liga e retroalimenta a função comunicativa e cognitiva presentes nesses processos. Codifica e decodifica as informações do meio. Na internalização, a linguagem, é mecanismo acionador da estrutura cognitiva, e na externalização pode possibilitar, ou não, o desenvolvimento de pensamentos de sujeitos que formam determinada sociedade, pois mesmo que a construção de conceitos não seja determinada pelas palavras, certamente o pensamento é afetado pela linguagem (Pinker, 2008).

 

Figura 2 - A linguagem como ponte para o pensamento.

 

Assim sendo, é de suma importância considerar as implicações desse instinto em contextos escolares, aqui de modo especial, chamamos atenção para a importância da compreensão das relações que se estabelecem, através da linguagem, em ambientes escolares indígenas, em particular no Ticuna e de modo especial no ensino de Matemática.

Uma vez que para expressar nossos pensamentos usamos a linguagem, no contexto escolar Ticuna, a importância da linguagem é proeminente, pois esse povo possui formas de se expressar que vão além dos códigos de verbalização da língua. Mostram de forma concreta ideias, saberes, tradição e evolução. Essas formas de expressão estão presentes, por exemplo, nas pinturas corporais e nos trançados confeccionados pelas mulheres. Os códigos impressos no trançado e presentes em todo o seu processo de confecção constituem-se numa linguagem rica em tradição e em ideias matemáticas.

As ideias matemáticas estão em todo o processo de confecção, da busca pela matéria prima até a venda dos cestos e esteiras confeccionados. Tornam-se mais evidentes nas formas geométricas presentes na decoração de muitos objetos, mas estão presentes no ato de calcular a quantidade de talos e folhas necessários para confeccionar um determinado cesto, no ato de medir, de comparar, assim como também na disposição e no entrelaçar das fibras para determinar os motivos decorativos. Tudo envolve um pensamento matemático visto aqui como a capacidade de colocar os objetos em relação, para, a partir daí, elaborar conceitos como maior, menor, mais pesado etc.

Nos cestos, esteiras, bolsas e redes, as formas geométricas são sempre abundantes nos motivos que os ornamentam, sejam por sua estética ou por sua função representativa das formas da natureza. Nesse sentido, merece destaque a presença dos quadrados, círculos, circunferências, triângulos, retângulos, pentágonos e octógonos. Estas formas são utilizadas como abstração dos fenômenos ou dos seres do entorno, como por exemplo, um losango ou uma sequência de quadrados pode representar uma borboleta, um peixe comum na região, ou um cardume deles.

 


Figura 3 - Cesto/bolsa decorada com motivos geométricos (A). Início de um cesto de fundo quadrilátero (B).

 

Utilizar com frequência formas geométricas ou o conhecimento geométrico em seus desenhos não é característica exclusiva dos ticunas, muitos povos já o faziam mesmo antes da era cristã e muitos outros povos tradicionais o seguem fazendo. No entanto, o mais interessante é que muitas vezes, estes povos não verbalizam as regras de construção destas formas, como no caso dos Ticuna, mas conhecem o procedimento para sua construção e os utilizam com frequência. São formas de pensar que se expressam numa linguagem própria que foi criada, é ressignificada e interpretada à luz da tradição e da evolução do meio no qual estão inseridos.

A simbologia presente nessa linguagem permite inferir que o método utilizado nos desenhos, de maneira geral, é eficaz, mas provavelmente o é porque quem desenha desenvolve nesse processo noções que legitimam um conhecimento matemático, que pode ser pensado como uma linguagem e, com base na informação da Figura 2, um meio para externalizar o interno e internalizar o externo. Este conhecimento matemático é construído com fins específicos e, que interage com as necessidades de uso e de manuseio de determinados objetos presentes no entorno, sem os quais os sujeitos desse processo não seriam os mesmos.

Então, pensar o ensino da Matemática formal em contexto indígena requer, de acordo com Pinker (2004, p.548), conceber as pessoas como "animais imaginativos que constantemente recombinam eventos no olho da mente", como no caso da confecção dos trançados Ticuna que exprimem eventos e padrões que com o passar do tempo foram sofrendo adaptações, combinações, recombinações em função das transformações das relações estabelecidas com o mundo fora da aldeia.

O resultado desse processo está presente nas características atuais, dos cestos e esteiras produzidos, improváveis em tempos anteriores, e na interpretação das formas e cores que já não representam somente elementos da cultura, mas também a incorporação de subsídios da contemporaneidade. Assim, a habilidade demonstrada pelos ticunas para recombinar eventos culturais demonstra uma reelaboração de pensamentos que deve ser considerada e incorporada aos mecanismos de ensino e de aprendizagem vigentes na escola, em particular no ensino da Matemática. Pois, tal habilidade indica um potencial bio-psico-social para criar estratégias socialmente úteis para solucionar problemas.

No entanto, o que predomina no ensino formal da Matemática no contexto escolar Ticuna, ainda é a linguagem oral, em cuja, as palavras são fundamentais. Assim, os sons usados numa comunicação matemática em sala de aula conformam a base estruturante dos conceitos que estão sendo trabalhados, por isso, temos que ter clareza do que queremos comunicar e quais palavras escolher para que o receptor da mensagem (estudante) consiga elaborar sua base conceitual em consonância com a pensada pelo emissor (professor). Porém, é importante lembrar que mesmo sendo a linguagem um instinto, pois já nascemos com a aparelhagem biológica preparada para essa função (Pinker, 2002), a capacidade de decodificar os significados expressos através dos sons é desenvolvida no convívio sociocultural.

A linguagem oral não assume sozinha um lugar de destaque no convivo familiar Ticuna. O arcabouço comunicativo dos Ticuna está conformado pelas linguagens oral, iconográfica2 e mímica. A linguagem mímica merece destaque por se fazer presente em muitas e inusitadas situações, como na indicação de distâncias, onde fazer um bico com a boca equivale a apontar a direção. Já a linguagem iconográfica está muito presente na confecção dos trançados e nas pinturas corporais, onde as imagens se convertem em elementos fundamentais na expressão de ideias e troca informações. Ao caminhar na mata um índio Ticuna, certamente, reconhecerá outro de sua etnia ao vê em suas costas um cesto ou paneiro trançado com as características de seu povo.

Nesse contexto é imprescindível para o trabalho docente o conhecimento da importância que as imagens detêm entre os Ticuna. Ao falarmos em imagens nos atrevemos a incluir, também, as imagens mentais criadas por esses sujeitos no decurso de sua aprendizagem sociocultural, que se traduzem em comportamento em sala de aula e refletem o modo de ser e pensar Ticuna, como por exemplo, o comportamento de ajudar o próximo presente nos ajuris3, muito comuns na época da colheita das roças, e que se reflete na sala de aula no momento em que um estudante não consegue resolver determinadas questões e um amigo seu se propõem a ajudá-lo, independentemente do momento da aula, o que muitas vezes, é mal entendido pelo professor que interpreta esse comportamento como a famosa "cola".

No processo de ensino e de aprendizagem dos trançados, quem ensina pouco verbaliza as orientações e, quem está a aprender dedica total atenção a todos os passos e procedimentos para repeti-los posteriormente. Na hora de verificar se a principiante está executando corretamente o processo, a tecedora não usa instrumentos para isso. Ela realiza detalhada e eficiente observação das imagens que vão sendo formadas no trançado elaborado pela aprendente. São os detalhes, a simetria e a harmonia das imagens que indicam se o trabalho está ou não sendo executado corretamente. Assim, a linguagem oral é coadjuvante, porém associada à linguagem mímica e a iconográfica, que nesse processo ganham ênfase, direcionam o pensamento de quem aprende demonstrando uma estreita relação entre pensamento e linguagem.

As afirmações que fazemos sobre os trançados como forma de linguagem e a linguagem presente na confecção deles se fundamentam nas ideias de Pinker (2002) e Chomsky (1998). Porém não podemos deixar de considerar também as ideias sócio-interacionistas de Vygotsky (1995), isto sem assumir uma posição radical, mas admitindo sua influência. O consenso a que chegamos indica que existe uma uniformidade na configuração da linguagem determinada pela estrutura cerebral que é um produto genético. Porém, para seu desenvolvimento são importantes as interações socioculturais mesmo que sua constituição seja determinada de forma neurobiológica (Mora, 2006; Damásio, 2010). Salvo as exceções, nascemos com o aparelho fonador predisposto para a manifestação da linguagem (a falada neste caso), mas a transmissão racional e intencional de nossos pensamentos pode se manifestar através de distintas formas de linguagens em cada cultura.

Dessa forma, visualizamos na confecção dos trançados Ticuna, uma linguagem matemática, considerada aqui não apenas em termos de vocabulário e simbolismo, mas aquela que implica conjecturas, inferências, medição, comparação, análise e habilidade para resolver problemas, ações indicativas de um pensamento matemático que se estrutura no convívio cultural e pode ser estruturante de uma forma de ensinar matemática na escola indígena Ticuna.

 

Algumas considerações

As leituras e reflexões sobre as ideias de Pinker nos permitem afirmar que apesar da grande complexidade do cérebro humano, já podemos fazer algumas afirmações a respeito da mente, linguagem, pensamento e comportamento. Indicam também, que para o desencadeamento da aprendizagem é necessária uma articulação entre esses processos que se constituem fundamentos básicos e inatos do ser humano.

Os avanços dos estudos sobre o funcionamento da mente apontam à similaridade com sistemas computacionais, ou melhor, afirmam que sistemas artificiais de computação foram criados por analogias ao funcionamento de nossa mente, em cuja, há uma relação de interdependência entre a hereditariedade e o ambiente desempenhando uma multiplicidade de ações simultâneas que se combinam e associam determinando o comportamento do ser humano.

Pinker utilizando-se de uma base estrutural bio-psico-linguística mostra a importância da teoria evolutiva para a explicação e compreensão do comportamento humano e sua forma de expressar seus pensamentos, a linguagem. Ao tratar da linguagem, mostra que esta sofreu processos evolutivos, como qualquer outra característica biológica do homem e, por ser a parte mais acessível da mente, a busca pela compreensão de suas origens desperta enorme interesse nos estudiosos por acreditarem que este conhecimento pode levá-los à compreensão da própria natureza humana, pois a teia que conforma a experiência humana parece ter sido tecida com os fios da linguagem, tornando difícil imaginar a vida humana sem ela.

Conhecer a diversidade de fios presentes na teia da linguagem é ponto fundamental para a compreensão dos processos de ensino e de aprendizagem presentes no contexto cultural e no escolar Ticuna, pois isto pode possibilitar a seleção, por parte do professor, de estratégias mais compatíveis com a forma de pensar de estudantes ticunas permitindo, por exemplo, que o ensino da matemática possa ser contextualizado culturalmente.

Ao falarmos em contexto de aprendizagem cultural e escolar, chamamos atenção para as formas de linguagens usadas para expressar os pensamentos, que por sua vez, se traduzem também, em comportamentos impregnados de tradição cujos necessitam ser considerados ao pensarmos o ensino numa sociedade indígena Ticuna. Tomemos como exemplo a maneira como as mulheres que confeccionam os trançados, de cestos e esteiras, se comportam para avaliar o desempenho da aprendiz e a forma como reagem diante da percepção que sua aprendiz não está desempenhando corretamente o processo de confecção destes.

Cotidianamente quando uma tecedora percebe que a aprendiz cometeu um engano, ela, não lhe reforça o modo errado mostrando-o, ou seja, simplesmente desfaz o que não está correto e lhe mostra qual é a maneira correta de fazê-lo para que a aprendiz veja atentamente e tente fazer novamente. As crianças e jovens ticunas preservam esse comportamento. Por isso, pequeno será o efeito, ou de quase nada servirá se um professor ficar parado frente a uma turma falando sobre os enganos cometidos pelos estudantes ao resolver certas questões numa prova, por exemplo; é necessário lhes fazer perceber no que falharam observando a maneira correta de fazer, permitindo que refaçam até conseguir fazer de maneira adequada as questões nas quais se equivocaram.

Do anterior, pensamos que é precisamente essa característica que faz a diferença nas aulas de matemática em contextos indígenas. É necessário preparar o professor para assumir uma postura parecida com a de uma tecedora na hora de, por exemplo, corrigir os exercícios em sala de aula; é necessário mostrar aos estudantes a maneira correta de realizar as atividades propostas, conduzi-los à percepção da diferença entre o correto e o errado, guiando-os e não caminhando por eles, permitir-lhes perceber os enganos cometidos, descobrir porque os cometeram e permitir que tentem fazer novamente em vez de atribuir-lhes uma nota pelo desempenho nem sempre satisfatório.

Não era nossa pretensão aqui apontar receitas, pois estamos convencidos de que se tratando de ensino e de aprendizagem as estratégias didáticas devem ser diretamente vinculadas à realidade na qual irão ser adotadas. Porém, queremos enfatizar que o pensamento e a linguagem matemática são características da espécie humana sim, mas seus procedimentos são influenciados pelos elementos culturais de cada sociedade e isto, não pode ser desconsiderado numa escola indígena Ticuna.

 

Agradecimento

Este artigo faz parte de um projeto de pesquisa financiado pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Amazonas - FAPEAM.

 

Referências bibliográficas

Chomsky, N. (1998). Linguagem e mente: pensamentos atuais sobre antigos problemas. Tradução de Lúcia Lobato. Brasília: Editora Universidade de Brasília.

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Notas

L.F.M. Costa
Endereço para correspondência: UEA, Centro de Estudos Superiores de Parintins, CESP, Estrada Odovaldo Novo, 4610, Bairro D'Jard Vieira, Parintins, AM 69.152-470, Brasil.
E-mail para correspondêcia: ldfmaiadc@gmail.com.

 

(1) Informação pessoal - Walmir Torres funcionário da Fundação Nacional do índio - FUNAI.
(2) Linguagem através da qual a comunicação de ideias, crenças, filiação social, mitologias tem caráter visual. É usada desde a pré-história.
(3) Ajuri é um trabalho em mutirão, o seja, ajuda mutua/trabalho solidário que não requer pagamento em dinheiro, mas trabalho por trabalho. As mulheres ticunas geralmente convidam suas parentas, suas comadres e estas levam seus familiares para ajudar na colheita da mandioca, na certeza de que quando necessitarem, também receberão ajuda.