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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) v.1 n.2 Ribeirão Preto ago. 2005

 

ARTIGO ORIGINAL

 

O consumo de benzodiazepínicos por mulheres idosas

 

El consumo de benzodiazepinas por mujeres adultas mayores

 

The benzodiazepine consumption by elderly women

 

 

Reginaldo Teixeira MendonçaI, Antonio Carlos Duarte de CarvalhoII

I Farmacêutico, Mestre em Saúde na Comunidade - Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP).
II Professor Doutor, Departamento de Medicina Social, FMRP-USP.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os benzodiazepínicos estão entre os medicamentos mais consumidos, principalmente por mulheres idosas. Através de entrevistas semi-estruturadas com dezoito mulheres idosas, pacientes psiquiátricos do Núcleo de Saúde Mental do Centro Saúde Escola da FMRP-USP, objetivou-se mostrar suas concepções sobre benzodiazepínicos e a interação de fatores biológicos, sociais e culturais envolvidos na dependência desses medicamentos. Conclui-se, de acordo com as concepções dadas pelas mulheres idosas entrevistadas, que o consumo e a dependência de benzodiazepínicos são singulares e não se restringem a uma relação biológica de seus efeitos, mas incluem a influência de fatores culturais e sociais.

Palavras-chave: Benzodiazepínicos, Dependência, Mulheres idosas.


RESUMEN

Las benzodiazepinas están entre los medicamentos más consumidos, principalmente por mujeres adultas mayores. A través de entrevistas semiestructuradas a dieciocho (18) mujeres ancianas, pacientes psiquiátricas del Núcleo de Salud Mental del Centro de Salud Escuela de la FMRP-USP, nos propusimos mostrar sus concepciones sobre las benzodiazepinas y la interacción de factores biológicos, sociales y culturales involucrados en la dependencia a estos medicamentos. Concluimos que el consumo y la dependencia a las benzodiazepinas son singulares, de acuerdo con las concepciones dadas por las mujeres ancianas entrevistadas, y no se restringen a una relación biológica de sus efectos, sino incluen la influencia de culturales y sociales factores.

Palabras clave: Benzodiazepinas, Dependencia, Mujeres adultas mayores.


ABSTRACT

Benzodiazepines are some of the most frequently consumed drugs, especially by elderly women. Through semi-structured interviews with 18 elderly women who were psychiatric patients attended at the Mental Health Centre of the FMRP-USP School Health Centre, we aimed to show their concepts on benzodiazepines and show the interaction among biological, social and cultural factors involved in this dependence. We concluded that, according to the participants’ concepts, benzodiazepine consumption and dependence are singular and are not restricted to a biological relation between benzodiazepine effects, but include the influence of cultural and social factors.

Keywords: Benzodiazepines, Dependence, Elderly women.


 

 

INTRODUÇÃO

Os benzodiazepínicos, medicamentos prescritos como sedativos, hipnóticos, ansiolíticos, relaxantes musculares ou anticonvulsivantes(1), surgiram em meados da década de 1950 com o clordiazepóxido, primeiro benzodiazepínico sintetizado e, a partir de 1960, sua comercialização foi efetivada, também com o diazepam. Em poucos anos, os benzodiazepínicos tornaram-se um dos medicamentos mais utilizados no mundo(1-5), estimando-se que a cada cinco anos seu consumo dobra(6). Vários autores mostraram que os benzodiazepínicos estão também no Brasil entre os medicamentos mais consumidos(5,7).

Dentre os fatores que favorecem seu intenso consumo estão sua popularização em conjunto com as drogas ilícitas na década de 1960 e o empenho médico em receitá-los, influenciados pela indústria farmacêutica(8).

O consumo de benzodiazepínicos é controlado no Brasil através de sua comercialização e prescrição, incluído na Portaria SVS/MS 344, de 12 de maio de 1998(9), porém, permanecem sendo vendidos ilegalmente(10) e utilizados incorretamente, a partir de receitas adulteradas, falsificadas, rasuradas e vencidas(5). Além disso, seus efeitos colaterais (como a diminuição da atividade psicomotora), suas interações com outras drogas (como o álcool) e a possibilidade de desenvolver tolerância e dependência nem sempre são esclarecidos pelos médicos(6) e outros profissionais da saúde, como enfermeiros e farmacêuticos.

O controle do consumo de benzodiazepínicos é, portanto, muitas vezes falho. Alguns pacientes possuem artifícios para usarem indevidamente os benzodiazepínicos, como a adulteração de receitas e a capacidade de induzir o médico a prescrevê-los. Há, ainda, a participação dos profissionais da saúde nesses tipos de uso, através da desatualização sobre os efeitos farmacológicos dos medicamentos e na falta de profissionalismo e ética na relação com o paciente(11).

Analisando dados de 1998, fornecidos pelo IBGE, constatou-se que o uso de serviços de saúde por homens e mulheres é dependente, entre outros fatores, do poder aquisitivo das famílias, do nível de escolaridade, do tamanho da família, do sexo do “chefe” de família. As famílias chefiadas por mulheres consomem menos serviços de saúde do que as chefiadas por homens, o que é contraditório, visto que as mulheres consomem, de maneira geral, mais serviços médicos do que os homens, sendo que, entre elas, prevalecem os preventivos, enquanto os homens tendem a usar os serviços curativos(12).

Supõe-se também que o sexo do “chefe” pode interferir no consumo médico pela possibilidade de estar expressando fatores que capacitam o acesso aos serviços de saúde. Assim, as mulheres chefes de família podem ser influentes em termos de cuidados da saúde, ou gestão dos recursos financeiros e cobertura com planos de saúde, podendo limitar o consumo dessas mulheres em relação às mulheres pertencentes às famílias chefiadas por homens. A posição da própria mulher no mercado de trabalho não afetou a chance de uso das mulheres economicamente ativas. Entretanto, as mulheres sem inserção no mercado de trabalho (aposentadas e donas de casa) apresentaram maiores chances de uso que aquelas economicamente ativas(12).

A dependência dos benzodiazepínicos é intensificada nos idosos, podendo ser estimulada por seu uso contínuo(4), sendo comum entre as mulheres(13), e em pessoas com baixa escolaridade e baixa renda(7). No entanto, a dependência de benzodiazepínicos nem sempre é enfatizada, existindo a não-notificação nos prontuários médicos desse tipo de dependência(14). Em estudo que focalizou as 107 maiores cidades brasileiras, observou-se que, além do uso de benzodiazepínicos estar mais concentrado no sexo feminino, essa é a quarta droga mais utilizada na vida e tem níveis de dependência comparados aos da maconha(15).

Visto a importância dos benzodiazepínicos nas relações de consumo e dependência de medicamentos psicotrópicos, intensificados entre mulheres e idosos, objetivou-se, aqui, mostrar as concepções por mulheres idosas usuárias desses medicamentos, enfatizando sua dependência.

 

METODOLOGIA

Investigou-se, por meio de entrevistas semi-estruturadas, as concepções de 18 mulheres idosas sobre os benzodiazepínicos, consumidoras há mais de um ano, pacientes psiquiátricas do serviço ambulatorial do Núcleo de Saúde Mental do Centro Saúde Escola da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP). Esse serviço atende o público do Distrito Oeste da cidade de Ribeirão Preto-SP (cerca de 126 000 pessoas), oferecendo tratamentos semelhantes ao ambulatorial.

As mulheres eram pertencentes a classes sociais populares, moradoras de região periférica da cidade de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, sendo mulheres em sua maioria aposentadas, donas-de-casa, lavadeiras de roupa, com ensino fundamental incompleto. As queixas mais destacadas em seus prontuários médicos foram depressão, ansiedade, insônia e nervosismo.

Foi realizada uma entrevista para cada usuária de benzodiazepínicos, durante os meses de janeiro a março de 2004, sendo utilizado nas transcrições nomes fictícios. O local das entrevistas foi o próprio Núcleo de Saúde Mental, mediante Consentimento Livre e Esclarecido, redigido segundo as recomendações éticas da Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Os dias das entrevistas foram os mesmos de suas consultas.

Para seleção das entrevistadas, utilizou-se o prontuário médico, através do qual foram verificados a idade, o sexo, quais os medicamentos utilizados e há quanto tempo, assim como seus diagnósticos, portanto, dados que correspondem ao período de seguimento dos pacientes no Núcleo de Saúde Mental, consultados nos últimos três meses anteriores às entrevistas, visto que os pacientes que consomem benzodiazepínicos (calmantes) consultam no máximo a cada dois meses, pois a prescrição desses medicamentos não pode ultrapassar tal período. Assim, supõe-se que todos os pacientes consumidores de benzodiazepínicos estavam incluídos. Além disso, a partir do prontuário, observou-se a possibilidade do paciente ter alguma doença ou estado de saúde que impedisse a entrevista (por exemplo, pacientes psicóticos, esquizofrênicos).

As entrevistas foram gravadas em fitas cassete, transcritas e analisadas, e o tratamento dos dados foi qualitativo.

 

RESULTADOS

Dos 1336 pacientes do Núcleo de Saúde Mental, atendidos nos últimos 3 meses precedentes ao período das entrevistas, 847 (63,4%) eram mulheres. As mulheres que mais utilizavam o núcleo tinham idade igual ou superior a 40 anos, correspondendo a 534 (63%) do total de mulheres, o que mostra que, após os 40 anos, o uso de serviços de saúde mental é intensificado entre as mulheres. Dessas, 170 pacientes (20% do total) tinham idade igual ou superior a 60 anos, das quais 72 consumiam benzodiazepínicos (42,3% do total de mulheres acima ou igual a 60 anos). Dessas 72 mulheres, foram entrevistadas 18, ou seja, 25%.

O benzodiazepínico mais utilizado por quatorze das entrevistadas foi o diazepam. Outros benzodiazepínicos utilizados foram: alprazolam, clonazepam, bromazepam e lorazepam. O principal motivo de o diazepam ser mais consumido está em sua distribuição gratuita pelo Centro de Saúde Escola, sendo padronizado. Além dos benzodiazepínicos, as pacientes entrevistadas mostraram que faziam outros tratamentos, utilizando uma variedade de medicamentos.

Encontrou-se nas entrevistadas o fato de acreditarem que os benzodiazepínicos são indicados para tratamento de depressão, e os utilizam quando sentem sintomas como “vontade de chorar”, “barulho na cabeça”. A esse respeito pode-se acrescentar que tal suposição é reforçada pelo fato de que 15 das mulheres entrevistadas tinham em seus prontuários médicos diagnósticos de depressão: “Faz muito tempo, desde que eu entrei, comecei a menopausa, sabe, daí eu entrei em depressão, sabe. (...) Aí num durmo, num como, num faço nada. Só. É, chorando, uma depressão muito forte se eu num tomar meus medicamentos (...)” (Claudete, 61 anos).

Além do uso relacionado à depressão, esses medicamentos são relacionados também a outros sintomas ou concepções de seus efeitos. Assim, os benzodiazepínicos são concebidos como medicamentos que fazem parar de chorar, que engordam, para dor de cabeça, para barulho na cabeça. Essas queixas podem estar relacionadas a alguma doença orgânica: “Engorda né. Eu era magrinha (...). Nem sei. Porque dá fome. (...). É uma fome. Enquanto eu num como eu num consigo trabalhar (...). Ele é bom, né, pro pensamento, essas coisas” (Orinalva, 62 anos). Adicionalmente, eles por vezes são utilizados com bebidas alcoólicas: “Ah, a minha menina deu o meu calmante pro marido dela, porque ele tava bêbado (...). Aí, eu falei ‘num dá, que ele tá cheio de cerveja, porque ele bebeu’. Daí ela tacou calmante no refrigerante, aí ele foi lá tomou, né. Amanheceu dentro do banheiro, aí deu sossego. Tava atentando" (Constância, 60 anos).

São as pacientes que julgam quando e quantos medicamentos devem usar, através de seus sintomas. Porém, isso pode ser adicionado aos efeitos de dependência que os benzodiazepínicos podem provocar. Não é suficiente ter apenas os benzodiazepínicos, mas ter uma quantidade suficiente para dar segurança: “... ele podia substituir por outro, que não causasse dependência. A hora que eu tivesse melhor eu num precisasse usar, o dia que eu não quisesse tomar eu não tomava” (Beatriz, 62 anos).

A iniciação do uso de benzodiazepínico pode ser, inicialmente, marcada por algum acontecimento na vida, porém, esse pode perder significância frente ao uso prolongado do benzodiazepínico. O acontecimento determinante do uso é descartado frente aos efeitos dos benzodiazepínicos, a falta do benzodiazepínico passa a ser um problema.

“Foi quando eu desquitei (...). Eu tinha 29 anos, ia fazer 30 anos. Aí, eu tava desesperada, sabe né, quanto tá, né (...). Eu fiquei desesperada. Aí eu procurei o médico, o medico falou... (...). Aí ele falou: ‘Vou passar um calmante (benzodiazepínico) que você vai bem calminha lá conversar com o juiz’. Aí passou o Lorax. Pronto, dali eu comecei, entende, até vim esse tal de... vim, vim. Todo mês ele me mandava eu ir buscar, passava uma receita pra mim. Até que fiz o desquite, tudo, tudo, tudo, tudo numa calma, tudo certinho e foi... Aí ele falou: “Agora você continua tomando ele pra dormir pra tirar essas coisas ruim, pra tirar essas coisas ruim, tirar esse mal-estar, essas coisas que você tem, essa depressão, essa coisa ruim’. Então, eu tomava aí fica tudo... Ah, eu fico contente... Num tava nem aí pro povão. Mas, quando falta o calmante, já fico ruim de novo. Hoje eu não tô muito boa, mas é falta de calmante, eu acho” (Marli, 61 anos)

A dependência em relação aos benzodiazepínicos é traduzida pelas pacientes como se o corpo tivesse se acostumado com os medicamentos, já não podendo mais ficar sem os mesmos, dentro de um significado de necessidade. Além disso, supõem que, quando o corpo se “acostumar”, é momento de trocar de medicamento, por não fazer mais efeito. Apesar dessa constatação, a análise dos prontuários das pacientes mostra que apenas no prontuário de Marli havia referência clara sobre ser dependente de benzodiazepínicos: “Sabe por que eu tomo há muito tempo? Eu acho que já acostumou, né (...). Eu falo comigo mesma: ‘puxa, eu me sinto tão bem com esses calmantes, os médicos é tão contra, né, eles deviam receitar pra gente sentir bem, né’ (Marli, 61 anos). Além disso, podem parar de tomar por suporem que o corpo deve descansar:“Às vezes eu dou uma parada, penso assim, dá uma parada pra descansar um pouco dos remédios, pra vê se eu consigo ficar sem depender dos remédios” (Claudete, 61 anos).

Dentre outros efeitos colaterais observou-se, através da fala de uma das entrevistadas, a falta de memória: “Eu sou só meio esquecida, às vezes eu vou na geladeira buscar uma coisa, eu fico lá esperando, esperando, pensando o que eu fui buscar e não sei” (Ivone, 71 anos).

Sendo assim, como também encontrado em outro estudo(16), na busca pelo serviço de saúde para a resolução de um problema, sendo muitas vezes social, pode sair com outro, a dependência do diazepam. No entanto, nesta pesquisa, a dependência dos benzodiazepínicos aparece como ameaça e pode-se relacioná-la à idade das entrevistadas. Por estarem há muito tempo consumindo benzodiazepínicos, passam a conhecer os efeitos desses, induzindo à automedicação ou a seu não uso. No entanto, somente uma das pacientes, dentre as dezoito, tinha em seu prontuário médico expresso que era dependente de benzodiazepínico.

O tempo médio de uso dos benzodiazepínicos foi de dezesseis anos (de acordo com as entrevistadas). Quatro mulheres consumiam há menos de quatro anos e três começaram a consumir benzodiazepínicos a partir dos sessenta anos de idade, sendo que duas começaram acima dos setenta anos. A maioria (sete mulheres) começou a tomar benzodiazepínicos com idade entre quarenta e cinqüenta anos, quatro mulheres começaram entre cinqüenta e sessenta anos e três tomaram o primeiro benzodiazepínico por volta dos trinta anos de idade.

O uso dos benzodiazepínicos pode se tornar uma ameaça para as pacientes quando se vêem dependentes, sem completo controle sobre seu uso. Ocorre a perda da autonomia porque não é mais apenas um objeto para servir às pressões da vida cotidiana, aos efeitos imediatos de dormir, esquecer das questões que afligem a vida das entrevistadas. O consumo torna-se então orientado pela necessidade gerada pela própria ação dos benzodiazepínicos, sua dependência.

“Sabe, eu acho assim, eu acho que eu nunca deveria ter começado tomar(...). Eu acho que eu nunca deveria ter começado, agora eu tô num caminho acho que sem volta porque eu acho que eu não consigo parar. Então eu acho só isso, (...). Eu acho que eu vou ficar muito ruim, muito mal se eu não tomar. Muito mal, desesperada e... eu acho que eu vou ficar mal. Agora, uma coisa que eu queria saber é se eu não ia ficar mesmo mal não, porque eu queria parar... É, mas eu tenho medo de ficar mal, ser preciso internar, sabe? Como pessoas que usam drogas pra poder parar e tem que internar, passam mal. Eu acho que isso que vai acontecer comigo se eu for ter que parar”(Orlinda, 60 anos).

A dependência normalmente é vista como ameaça, sendo um dos motivos de não consumi-los diariamente por muito tempo, transformando, desse modo, a dependência em simples necessidade. Tal concepção é também adquirida através de comparações com outros medicamentos de uso contínuo.

“Aliás, nenhum médico falou pra mim parar, quem tá insistindo pra mim parar é o Dr. Albrando. Nenhum médico mandou eu parar, eu parei por conta própria, diminuí por conta própria (...). Aí fiquei dependente. Depois eu mesmo fui tirando, eu mesmo resolvi tirar, tomava meio comprimido, 1/4 já faz tempo (...). Eu tomei meio porque eu pensei assim: não, gente, eu preciso me libertar de calmante, eu não posso ficar a vida inteira tomando esse calmante (...). Ficar sem como eu já tentei várias vezes eu fico com aquela sensação ruim, parece que eu tirei o óculos e tô andando no ar, assim, sabe. Quando eu fico sem óculos eu fico ruim também assim. Então fico assim, no ar, andando no ar. Assim, eu não tô bem em lugar nenhum, eu vou pegar uma coisa, parece que aquilo que não quero, sabe. Fica assim, uma coisa que não dá pra explicar (...) eu falei com o Dr. Albrando uma vez (...). Se ele podia substituir por outro, que não causasse dependência. A hora que eu tivesse melhor eu num precisasse usar, o dia que eu não quisesse tomar eu não tomava. Assim, hoje eu tô melhor, então eu não vou tomar (...)”(Beatriz, 62 anos).

E como indicativo de dependência, a falta dos benzodiazepínicos é relatada por diversos sintomas como tremor, insônia, mal-estar. Desse modo, os efeitos colaterais podem ganhar mais expressão do que a busca de saúde: “Um dia eu fiquei sem tomar ele, noutro dia eu senti uma coisa muito ruim, sabe, uma tremedeira, uma batedeira, uma coisa ruim, acho que era falta dele. Ah, não eu vou ficar com isso, aí parei com ele” (Verônica, 64 anos).

Observa-se, assim, que o consumo de benzodiazepínicos interage com as questões sociais, pelas exigências de um corpo disciplinado e controlado. Os conhecimentos e concepções sobre os benzodiazepínicos são construídos pela rede de relações envolvidas pelas pessoas próximas aos usuários de benzodiazepínicos. Essa proximidade faz com que o uso de benzodiazepínicos seja difundido de acordo com as concepções dos consumidores.

 

DISCUSSÃO

Entre os idosos, deve-se destacar sua propensão à toxicidade, devido ao envelhecimento (o medicamento fica mais tempo no organismo), pelas co-morbidades, pela polifarmácia (uso de diversos medicamentos, apresentando interações medicamentosas) e pelo uso inadequado de medicamentos. Além disso, os medicamentos podem provocar vários efeitos nos idosos como sedação excessiva, tremores, quedas e eventuais fraturas, lentidão psicomotora, comprometimento cognitivo, como amnésia e diminuição da atenção, e dependência, propiciada pela maior captação dessas drogas no organismo nos idosos(17).

Dentre as prováveis causas do maior consumo de benzodiazepínicos (e outros psicotrópicos) pelas mulheres, tem-se: por viverem mais tempo, pela maior percepção de doença, por usarem mais os serviços de saúde e por fazerem mais exames preventivos(18-19). Assim, a aproximidade com os serviços de saúde faz com que as mulheres recebam mais prescrições de psicotrópicos, o que pode ser intensificado no idoso, assim como a maior chance de seu uso contínuo ou prolongado(20). O conhecimento que as mulheres têm sobre os psicotrópicos pode contribuir para convencer o médico a receitá-los, sendo aumentado com sua maior freqüência aos consultórios médicos. Além disso, os médicos podem estar respondendo às expressões emotivas com um excesso de prescrições, vendo a afetividade feminina como justificativa para a medicalização e, ignorando os sintomas do homem por suporem ser fortes devido a comportamentos como a retração, a irritabilidade, o silêncio, o não chorar(18-19). A esse aspecto deve-se acrescentar que os idosos estão mais susceptíveis a tomarem benzodiazepínicos porque as concepções sobre os idosos como pessoas doentes, frágeis e deprimidos estão relacionadas às prescrições.

O uso de benzodiazepínicos em idosos se torna relevante devido a: a) mudança fisiológica que acompanha o processo de envelhecimento, modifica o metabolismo e as concentrações de medicamentos, sendo que o aumento da gordura corporal faz com que muitos medicamentos se tornem relativamente mais tóxicos ou potentes por ficarem mais tempo no organismo; b) mau uso de medicamentos, favorecido por erros devido à confusão e à visão e memória ruins; c) o fato de freqüentemente usarem vários medicamentos (polifarmácia), pode provocar interações medicamentosas, o que pode contribuir para intoxicações; d) uso inadequado, os medicamentos utilizados para melhorar o sono são muitas vezes inapropriados, visto que há diminuição normal no tempo de sono com o progredir da idade(17,21). Assim, é comum ao usuário idoso de benzodiazepínicos ter vários efeitos colaterais(17): sedação (que pode ser benéfica à noite, mas pode comprometer a rotina diária do paciente), tremores, quedas e eventuais fraturas, lentidão psicomotora (com conseqüente dificuldade de dirigir automóvel, por exemplo), comprometimento cognitivo, como amnésia e diminuição da atenção, e dependência.

Assim, a prescrição de benzodiazepínicos para idosos deveria ser em menor dose possível, pelo menor tempo, preferencialmente as substâncias que tenham meia-vida curta, em dose única ou em dias alternados. Deveria se evitar prescrever benzodiazepínicos para pacientes confusos ou demenciados, e seria necessária monitorização dos efeitos dos benzodiazepínicos quando prescrito para uso prolongado(17). Benzodiazepínicos de ação ou meias-vidas longas, como o diazepam, deveriam ser evitados nos idosos(22), assim como seu uso contínuo ou prolongado, visto que faltam provas de sua eficácia. No entanto, ocorre freqüentemente em idosos o uso sem supervisão médica e de dois ou mais benzodiazepínicos, por vezes concomitante com bebidas alcoólicas(7). Os pacientes neuróticos melhoram os sintomas de ansiedade após três a seis meses de doença, mesmo não utilizando ansiolíticos benzodiazepínicos e, com o uso prolongado, a droga perde seu efeito terapêutico no organismo(23). Além disso, o uso como antidepressivo é considerado incorreto(24). Assim, deve-se atentar para a toxicidade dos benzodiazepínicos, dissimulando fatores relacionados à saúde mental, silenciando a doença, pois os efeitos colaterais podem ser mais expressivos do que as doenças(25).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se concluir que o consumo de benzodiazepínico é singular de acordo com as concepções dadas pelas mulheres idosas entrevistadas. A classe social e construções sociais como gênero e envelhecimento são relevantes para compreender o consumo de benzodiazepínicos. Observa-se que a maneira como são consumidos se diferencia das prescritas pelos médicos, sendo adaptada à realidade e a concepções envolvendo o processo saúde/doença das pessoas entrevistadas. Nesse sentido, é primordial que se entenda o contexto social em que os pacientes estão inseridos para poder atuar sobre a dependência gerada por esses medicamentos, pois o uso de benzodiazepínicos não se restringe a uma relação biológica de seus efeitos, mas a uma interação com o cultural e o social.

Chama-se a atenção para a importância do acompanhamento dos pacientes, valorizando a dependência de benzodiazepínicos, analisando melhor o tempo de uso, as interações medicamentosas, os efeitos adversos e as reais indicações desses medicamentos, procurando prescrever aqueles com meia-vida mais curta para pacientes idosos.

Os aspectos analisados neste trabalho mostram a necessidade de direcionar ações e implementar políticas públicas de medicamentos, especialmente para o paciente idoso, a fim de minimizar riscos à saúde e melhorar a qualidade de vida no contexto do envelhecimento.

 

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Endereço para correspondência
Reginaldo Teixeira Mendonça
E-mail: reginaldo_mendonca@ig.com.br

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