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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) v.2 n.2 Ribeirão Preto ago. 2006

 

ARTIGO ORIGINAL

 

A arte enquanto possível direção do tratamento na clínica da psicose: relato de caso

 

La arte como posible dirección del tratamiento en la clínica de la psicosis: relato de caso

 

Art as a possible treatment direction in a psychosis clinic: a case report

 

 

Melina Del’Arco de Oliveira

Psicóloga do Programa de Ações Integradas para Prevenção e Atenção ao Uso de Álcool e Drogas na Comunidade (PAI-PAD) da Unidade de Álcool e Drogas do Serviço Ambulatorial de Clínica Psiquiátrica do HC-FMRP-USP; colaboradora do Programa de Cuidados Específicos e Redução ao Uso e Abuso de Álcool e Outras Drogas (PROCURA) da EERP-USP.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em um CAPS para usuários de álcool e drogas, um paciente psicótico de 29 anos apresenta importante comorbidade e se endereça a um trabalho terapêutico com a arte. Na oficina de arte, ele reconstrói um personagem do mundo futebolístico e restaura seus projetos e inserção social. À luz da teoria lacaniana, o analista testemunhou essa produção de modo que o próprio sujeito pôde significá-la em busca de sentidos para si. Dessa forma, a arte pode contribuir para a reconstituição de sentidos para o sujeito psicótico e a exposição da obra artística pode expurgar o anonimato do sujeito ao inscrevê-lo no público, desviando o olhar estigmatizante do Outro.

Palavras-chave: Psicose, Abuso de drogas, Psicanálise, Terapia pela arte, Relato de caso.


RESUMEN

En un Centro de Atención Psicosocial para usuarios de alcohol y drogas, un paciente psicótico de 29 años presenta una importante comorbilidad y se dirige a un trabajo terapéutico con la arte. En la oficina de arte, reconstruye un personaje del mundo futbolístico y restaura sus proyectos e inserción social. A la luz de la teoría lacaniana, el analista testificó esta producción de manera que el propio sujeto pudo significarla en búsqueda de sentidos para sí. Así, la arte puede contribuir para la reconstitución de sentidos para el sujeto psicótico y la exposición de la obra artística puede expurgar el anonimato del sujeto, inscribiéndole en el público, desviando la mirada estigmatizante del Otro.

Palabras clave: Psicosis, Trastornos relacionados con sustancias, Psicoanálisis, Terapia con arte, Relato de caso.


ABSTRACT

At a Psychosocial Care Center for alcohol and drugs users, a 29-year old psychotic patient presents an important comorbidity and dedicates himself to a therapeutic work involving art. In the art workshop, he reconstructs a character from the soccer world and restores his projects and social insertion. In the light of Lacan’s theory, the analyst witnessed this production, so that the subject himself could attribute a meaning to it, seeking meanings for himself. Thus, art can contribute to the reconstitution of meanings for the psychotic subject and exposing the artistic work clear the subject’s anonymity by inscribing him in the public, deviating the stigmatizing look of the Other.

Keywords: Psychosis, Substance-related disorders, Psychoanalysis, Art therapy, Case report.


 

 

INTRODUÇÃO

A psicanálise, ao teorizar sobre a clínica da psicose, parte da indagação da relação do sujeito com a realidade. As elaborações psicanalíticas lacanianas fornecem contribuição ímpar a essa teorização e direção do tratamento nessa clínica.

Lacan denomina o mecanismo que está na origem da estrutura psicótica como foraclusão. Esse mecanismo impede a entrada do sujeito no sistema de simbolização e esse permanece à margem do discurso. Isso ocorre devido à elisão do significante Nome-do-Pai, interceptor do desejo ilimitado da mãe. Não há a lei simbólica que interdite o desejo da mãe e o sujeito permanece identificado a esse desejo e é tido como objeto do Outro porque não sofreu a castração simbólica. Ocorre o fracasso da metáfora paterna tão fundamental para a articulação da cadeia de significantes(1-2).

A ausência de um significante primordial (o Nome-do-Pai) provoca um grande furo na realidade do sujeito psicótico, de modo que ele cria o mundo das fantasias para preenchê-la. Emergem, então, os fenômenos alucinatórios: “o fenômeno alucinatório se dá pelo reaparecimento, no real, daquilo que não pôde ser simbolizado, ou então, recusado pelo sujeito”(3).

Dessa forma, a falha na inscrição da função significante implica barragens ao funcionamento da linguagem e inscrições no corpo(1,4). Há quebra na cadeia dos significantes, frases interrompidas, neologismos, maneirismos, reiteração de letras, palavras, símbolos e, por fim, verborragias(1). Quanto ao corpo, “os sujeitos psicóticos parecem estar muitas vezes alheios de seu próprio corpo. Relacionam-se como se ele fosse um outro, um objeto estranho. Tomam o corpo quase como uma carcaça da qual pudessem prescindir”(4).

Lacan afirma que não existe para o psicótico um ponto de amarração central, em torno da qual se organizam as significações, não há amarração dos três registros: real, simbólico e imaginário(5). Essa fragilidade evidencia as seqüências de digressões e o esfacelamento do corpo em sua falta de unidade. No sujeito psicótico, o inconsciente está a céu aberto, ele é habitado pela linguagem e é o gozo do Outro que retorna para despedaçá-lo(2-3).

Coloca-se uma questão primeira, o que pode desencadear um surto? A frágil estrutura com a qual um sujeito pré-psicótico funcionava até então pode ser colocada em cheque quando o Nome-do-Pai foracluído é chamado, em oposição simbólica ao sujeito, ou seja, quando ocorre um encontro com Um-pai. Isso pode acontecer a partir do “primeiro contato sexual com o outro sexo quando o sujeito é chamado a exercer a função fálica”(2), quando é chamado a significar a diferença entre os sexos, remetendo-o a uma alteridade radical à qual ele não consegue responder(2,5).

Dessa forma, as bengalas imaginárias que sustentavam o sujeito são desfeitas, dado à ausência da metáfora paterna e ele “é obrigado a fazer uma suplência para se manter na realidade”(2). O delírio configura um importante trabalho de elaboração do sujeito para viver no mundo de modo suportável, podendo se apresentar em diferentes sentidos.

Com a metáfora delirante, o sujeito busca reconstituir o sentido que se perdeu quando da dissolução imaginária do mundo. A busca por esse sentido e pela compreensão do mundo é o único meio pelo qual o sujeito pode reencontrar o sentido na vida, tendo acesso a uma significação (não fálica). Essa metáfora viria no lugar do fracasso da metáfora paterna, suprindo a carência do Nome-do-Pai de modo que as coisas readquirissem certa consistência, amenizando ou barrando o gozo do Outro(2).

O sentido do delírio também pode se dar a partir da construção de um Sinthoma. Sinthoma, segundo Lacan - para além do sintoma que está a serviço do gozo, silenciador do desejo e criatividade do sujeito - é um saber-fazer com o sintoma construindo um bordeamento criativo ao furo estrutural do Outro(1). Dessa forma, o Sinthoma vem restituir a falha na amarração dos três registros R, S, I, desarticulados pela foraclusão. Lacan “propõe um nó borromeano de três círculos com o quarto implícito”(1), aquele que restitui o enlace do R,S,I mas permanece foracluído.

A literatura aponta importantes investigações acerca da função da produção artística(2,5), testemunhados por Schereber, Joyce, Aimée, Bispo do Rosário, irmãs Papin, Stela do Patrocínio, Camile Claudel... Esses escritores, pintores, escultores compartilham uma inserção social, a partir da suplência pelo Sinthoma, na qual há destaque para o nome próprio e não mais um nome comum, um anônimo que se dilui na coletividade. Assim, “na psicose... há a passagem do ele, da exterioridade, da invasão do outro, das palavras impostas, ao eu escrito, inscrito no público”(5).

Dessa forma, A Arte, em suas diversas modalidades, entra como uma tentativa de “domesticar o gozo do olhar deste Outro que se encontra à espreita do sujeito”(2). Por exemplo, o pintar é uma depositação do olhar cuja função é descrita como “um dar-a-ver”, trata-se do desejo do outro em que o “dar-a-ver” apazigua algo – no sentido de que há um apetite no olho daquele que olha. Há um deslocamento; a pintura permite desviar o olhar do outro do sujeito-objeto para a obra artística, o objeto. O sujeito “faz a pintura pra tentar aí se depositar. Fixar, desviar de si o olhar mortífero do outro”(2).

O estigma do louco e da loucura cai por terra por meio desse desvio do olhar: “introduzido nos espaços socialmente destinados aos ritos de celebração da arte, o louco ganha uma nova sacralidade: torna-se artista e, aos olhos do espectador, gênio. Mas, se dessa maneira perde o estigma que há séculos o acompanha, sua obra rompe com a loucura. Na moldura de uma exposição legitimada pela cultura, a ‘expressão dos loucos’ ganha o selo da ‘obra de arte’’(6).

No tocante a uma direção possível do tratamento na psicose, o analista age como o “secretário do alienado”(3), dado à ineficácia da interpretação psicanalítica: “interpretar enquanto busca de sentido é exatamente o que faz o sujeito a partir do trabalho delirante”(2). Do analista, espera-se um testemunho, uma sustentação dos significantes do sujeito psicótico que podem dar um contorno ao real.

Na literatura destacam-se os estudos acerca da função das produções artísticas dos pacientes, mas são escassos os estudos sobre a Arte enquanto uma possível direção no tratamento e a posição clínica do analista diante da obra e do sujeito psicótico. O presente trabalho pretende apresentar uma possível articulação entre a Arte, enquanto um recurso terapêutico, bem como apresentar uma óptica diferente sobre a função de nomeação pública do sujeito para o Outro a partir da obra.

 

METODOLOGIA

O material clínico discutido a seguir é fruto de um estágio profissionalizante, vinculado à Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto–USP, realizado no Centro de Apoio Psicossocial a usuários de Álcool e outras Drogas (CAPS-AD), dessa cidade. No âmbito desse espaço, iniciou-se uma oficina terapêutica individual com um dos pacientes do serviço. Cumpre destacar que a oficina foi construída a partir da demanda desse paciente, embora não configure um aporte terapêutico que seja praxe no âmbito do serviço.

O material coletado é fruto das produções do próprio paciente, sobretudo a partir de suas falas. No início do atendimento foi acordado com o paciente a anotação de suas principais produções verbais.

ADF, um homem de 29 anos, apresentou-se ao serviço devido ao uso de múltiplas substâncias psicoativas (maconha, coca e cocaína) e sob encaminhamento de um hospital psiquiátrico, apresentando, assim, importante comorbidade: uso de substâncias e uma estrutura psicótica. Ele iniciou o uso de drogas aos 19 anos e hoje interrompeu o uso.

 

RELATO DE CASO E DISCUSSÃO

O primeiro contato com ADF aconteceu no pátio do serviço. Sua fala era construída de uma forma bastante prolixa e desencadeada, uma presença clara do não ancoramento do sujeito na cadeia significante, a partir de barragens da fala e do pensamento, apontando para uma estrutura psicótica. Já, nesse primeiro momento, o paciente mostra interesse por um livro de Arte(7) que o analista traz consigo, no qual diversas modalidades artísticas são apresentadas. Ao final dessa primeira conversa, ele pergunta se o que acontecera ali havia sido um encontro e se o analista o havia encontrado. Ele mesmo responde: “foi um encontro com dia certo e hora marcada”.

É possível pensar em Encontro como um significante, a busca por um encontro consigo mesmo, tendo em vista que ao se apresentar disse: “Meu nome é ADF – A. Dias Furtado, ou melhor, Roubado” e num outro momento se apresenta: “ADF, a dias, furtado”. Pode-se pensar na oposição entre Furtado/Roubado e Encontro; algo que lhe foi roubado e agora poderia ser encontrado.

Na semana seguinte, ADF trouxe um imenso desenho com o contorno de seu próprio corpo, cuja modalidade técnica é denominada “Corpos vazados”(7), na qual as pessoas desenham seus corpos e preenchem-nos com objetos que podem dizer sobre si, denotando uma identidade. É importante destacar que ADF se endereçou a uma modalidade que envolva o corpo (em seu contorno e preenchimentos), e a questão com o corpo será retomada por ele ao longo do trabalho. Destaca-se o endereçamento do sujeito a uma modalidade que “produz forma e toma forma”(5).

ADF disse que o desenho era o Baggio chutando o pênalti que deu a vitória ao Brasil na Copa do Mundo de 1994, ele falava do desabamento da Itália quando perdeu o pênalti. Iniciou-se o trabalho. O analista se propôs a estar com o paciente para que pudessem conversar e desenhar, duas vezes na semana. Destaca-se, então, a importância da transferência analista-paciente a partir de um endereçamento para a questão da arte. Tem-se o livro de arte enquanto um objeto concreto que fez gancho para realizar o trabalho terapêutico. Pode-se dizer que ADF apostou algo na relação com o analista, a partir da possibilidade de que ele poderia “encontrar” alguma coisa.

Num dado momento, ADF cria um significante – um neologismo – que coloca no desenho. Esse nome é Eneralzer. Ele atribui o sentido: “sãos erros, os erros da vida”. Na seqüência diz que com esse desenho vai dar a chance do sonho para Baggio de acertar o pênalti que ele errou: “é um sonho de retomar à Copa que ele perdeu. Eu tô levantando o sonho de querer uma felicidade maior para o Baggio”.

ADF cria Baggio na tentativa de buscar um sentido que pudesse restituir algo a ele. Ao falar de Baggio, estava falando de si mesmo e essa construção entra como uma “reconstituição do sentido lá onde o sujeito se perdeu quando da dissolução imaginária do mundo”(2), ou seja, quando entrou em surto. Ele busca retomar o que perdeu na vida a partir do uso das drogas e relata algumas passagens acerca desse abuso, embora a droga não configure uma questão importante a ele, tendo em vista a interrupção do uso.

Em nenhum momento foi apontado a ele o paralelo entre a história de Baggio e sua própria história e o paciente não foi induzido a fazê-lo, ou seja, não foi interpretado a ele o sentido de seu delírio, visto que interpretar enquanto busca de sentido é o esforço que o próprio sujeito faz com seu trabalho delirante(1-2,5), não cabendo ao analista competir com o trabalho do sujeito psicótico.

ADF realiza, então, uma inscrição no corpo. Ele tinha os cabelos cheios e a barba por fazer há meses. Acaba por fazê-la e cortar o cabelo. Pode-se pensar que algum sentido fez uma amarração pra ele, de modo que a inscrição no corpo apresentasse rastros deixados por algum significante.

O paciente começa a falar de si próprio, pergunta se ainda há tempo pra ele, pergunta inúmeras vezes se há salvação. Não houve nenhuma resposta por parte do analista, mas lhe é pedido que olhe para o que está fazendo, para a obra e pense sobre isso. Então ele diz: “cheguei a pensar que não tinha jeito, salvação, que já tinha me abandonado nas minhas crenças”. Assim, começa a trazer a letra de uma música que insistentemente tenta se lembrar, mas não consegue. Num certo dia, diz que a música fala de uma carta, “mas uma carta de solidão”. O analista se compromete a lhe trazer a letra:

Uma Carta (LSJack)

Coloquei uma carta numa velha garrafa
mais uma carta de solidão
coloquei uma carta, um pedido da alma
salvem meu coração

Nessas areias que me sujam os pés
esse é o meu chão mais uma vez
há muitas luas nessa ilha tão só

Será que ao menos um navio eu vou ver
e alguma civilização
e a cada dia sobe mais a maré

Alguém aí?
Me devolva o amor que você tirou de mim no fim
Alguém aí ?
Vou queimando no Sol a esperança de ter aqui
Bem aqui

Destaca-se a dimensão do que é pedido nessa letra, é um pedido de salvação da própria alma, na qual o sujeito isolado em uma ilha está em busca de uma civilização, de um contato com o mundo e como a cada dia sobe mais a maré, pode ser que não dê tempo. Essa letra confere um sentido muito grande à questão que configura o apelo do próprio ADF, bem como seu temor: será que vai dar tempo? Ou mesmo, será que o tempo que o analista dispõe será suficiente?

O paciente mostrou-se muito satisfeito com essa letra, uma satisfação que não poderia ser nomeada, nem explicada por outrem, apenas ADF poderia significá-la.

Concomitantemente ao trabalho com essas questões, o paciente manifesta forte desejo em conseguir um emprego, mostra desejo em fazer cursos de torneiro mecânico e computação: “quero ter saúde, emprego. Eu gosto das coisas do mundo, eu tô no mundo, né? Deixo a vida correr no mundo”. É possível perceber um efeito terapêutico a partir da sustentação da posição analítica quando da entrega da letra.

Num dado momento, ainda debruçado sobre o desenho de Baggio, ADF faz uma associação: Vida – Vitória – Projeto – Arte. Fala da arte enquanto uma restauração, fala da sua restauração, da restauração da sua vida. Diz “quero latir, até minha última voz, síntese, quero me salvar nem que seja o último cachorrinho”. Isso ressalta o modo como a Arte enganchou algo da transferência, permitindo que ele se debruçasse sobre seu próprio processo de busca de sentido e amarração. Além disso, pode-se pensar a Vitória como uma contraposição a uma perda; o que havia sido perdido pôde vir a ser vitorioso e nesse ínterim a arte vem possibilitar alguma transmutação. A Arte empresta o simbólico para que ele possa trabalhar na restauração.

Destaca-se uma fala de ADF, “Eu queria ir pra Zelândia, lá não existe lei, é uma cidade pacata, ninguém manda lá. Aqui, cada hora é uma lei, sempre tem gente mandando fazer alguma coisa”. Parece que ADF está se queixando de um lugar de objeto do gozo do Outro, de uso do outro (instaurado na clínica da psicose) e a Zelândia enquanto um lugar em que não haveria essa submissão a um gozo infinito do Outro.

No caso de ADF pode-se pensar na esquizofrenia, entretanto há que questionar. É certo que se está diante de uma estrutura psicótica, mas ainda é possível discutir qual seria a clínica diferencial da psicose. Ele afirma se sentir diferente dos outros, não sabe como. Diz: “a matéria é o lugar do meu escreto...discreto. Pela minoria não sei porque tô falando escreto, descarta, tô sem saber onde quero chegar e a coisa mais importante é saber onde quer chegar. Quero encontrar a definição do meu corpo... vou conseguir com o tempo”. Relata inúmeras dores, doenças no estômago, nos olhos, no sangue. No estômago relata a presença de muitos gases, muito ácido, diz que os remédios não vão adiantar.

Por não ter o recurso do discurso, os significantes do corpo do psicótico não se mantêm juntos. Por não haver o significante mestre, os significantes se espalham em desordem, isolados, sem constituir um corpo unificado(2,4). Assim, destaca-se o momento em que ADF aponta o desejo de encontrar a definição de seu corpo.

Ele também afirma: “tenho uma imaginação da vida a dois, falta saúde para o trabalho, tô lutando, me entreguei nas mãos dos médicos”. Nesse momento, se queixa dos médicos, de que todos fazem as mesmas perguntas, “pra que ficar perguntando isso: só me perguntam se eu ouço vozes. Eu ouço vozes sim, ouço vozes espirituais, momentos de reflexão, se for espiritual vai ser realizado, depende do meu querer”.

No tocante ao acontecimento que desencadeou o delírio de ADF, em seu prontuário consta provável surto induzido pelo uso de drogas, mas ADF relata um importante acontecimento. Ele fala sobre a primeira vez que teve relação sexual com uma menina de quem gostava. Afirma que a doença que tem hoje está em seu sangue e que pegou dessa garota no ato da relação sexual quando viu escorrer em suas pernas um sangue escuro (conseqüência do rompimento do hímen). ADF afirma: “a doença está no sangue, DNA, peguei dela, sangue escuro”. Assim, diz que seu sangue está sujo e que nenhum médico descobre; precisaria fazer muitos exames. Cumpre destacar aqui um possível encontro com Um-pai. Pode-se pensar no caso de ADF que o delírio do sangue sujo oriundo da relação sexual primeira que teve seria fruto da evocação do Nome-do-Pai foracluído para qual não se pode responder.

Ao final de quatro meses de trabalho é possível dizer que ADF continua em busca de significantes que supram a carência do Nome-do-pai, bem como uma possível amarração dos três registros a partir da tentativa de construção de um Sinthoma que venha fazer uma suplência. A construção da obra enquanto uma busca de sentido tem-no ajudado a readquirir certa consistência, de modo que ele tem tido acesso a uma significação, ainda que não fálica, fazendo barra ao gozo do Outro.

Já, ao final do trabalho, ADF diz estar “ansioso para realizar a sua vida, tomar uma decisão na vida”. Quando a obra chegou ao fim foi proposto a ele que a deixasse exposta no serviço, para que pudesse ser contemplada pelos outros pacientes e pela equipe. Um olhar do outro que agora enxerga a obra enquanto objeto e livra o sujeito desse gozo objetal. E surpreendentemente ele afirma: “o quê adianta ter a obra se não tem o artista?”, no sentido de que ele também é a obra.

Em relação ao trabalho artístico ADF mostrou grande noção de perspectiva, estética e criatividade, um trabalho que desvelou para ele próprio seus recursos artísticos e criativos prontos a emergir. A postura do analista foi acolher esses recursos, enquanto emergentes brutos, para que a escuta ética e um saber-fazer pudessem ajudá-lo a lapidá-los.

ADF estava pronto para o encontro com a arte e para o encontro consigo mesmo. Para o analista, esse encontro também ocorreu, um encontro com a possibilidade de trabalhar com a arte enquanto um recurso terapêutico, experiência que até então não havia vivenciado ao longo da formação profissional, embora acreditasse intensamente na riqueza desse tipo de trabalho e tivesse o desejo de poder exercê-lo. Tem-se o desejo do analista fazendo da técnica artística um recurso do real para o tratamento analítico.

Assim, um encontro que parecia ter sido bem ao acaso, na verdade foi mesmo um encontro “com dia certo e hora marcada”.

 

CONCLUSÃO

A Arte, a priori, pode configurar importante direção do tratamento no sentido de permitir a construção de significantes. As produções artísticas de significação, quando amparadas por uma posição clínica que secretaria a produção do sujeito psicótico, pode sustentar a construção de um delírio que o auxilie no encontro ao sentido de sua vida.

A função dessa produção compreende o desvio do olhar da loucura para o admirável no ato de se inscrever no público, no ato de expurgar o anonimato. Cumpre ressaltar a importância do olhar que o sujeito tem para sua própria obra, para além do olhar do Outro: ‘o quê adianta ter a obra se não tem o artista?’, bem como a sua significação para esse tornar público.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2 QUINET, Antonio. Teoria e Clínica da Psicose. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1999.        [ Links ]

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7 KREMER, Nair. Experiências de Arte-Educação na periferia de São Paulo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/ Vitae; 2003.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Melina Del’Arco de Oliveira
E-mail: melinadelarco@gmail.com

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