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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) v.3 n.1 Ribeirão Preto fev. 2007

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Uso de drogas no chile: pesquisa documental e bibliográfica

 

Uso de drogas en chile: investigación documental y bibliográfica

 

Drugs use in chile: documentary and bibliographic research

 

 

Maria Cristina Silva CostaI; Néstor Ortiz RebolledoII; Lívia Mara LopesIII

I Antropóloga, Professora Doutora da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, USP.
II Mestre em Enfermagem, Docente da Universidade de Concepción, Chile.
III Discente da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, USP.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa social, documental e bibliográfica objetiva a análise interpretativa dos significados do uso de drogas no Chile. Arrola as drogas mais consumidas no país, examina ações de políticas públicas e destaca contradições internas da questão. Investiga o consumo de drogas e seu combate na América Latina e remete, ainda, à cultura de massas, visando interpretar os significados da expansão das drogas no cenário internacional contemporâneo. Em suas conclusões, o estudo indica a relevância da ênfase à dimensão simbólica, com destaque aos valores e hábitos que estimulam o consumo de drogas para o delineamento de ações relativas à questão.

Palavras-chave: Saúde, Alcoolismo, Drogas ilícitas.


RESUMEN

Esta investigación social, documental y bibliográfica busca el análisis interpretativo de los significados del uso de drogas en Chile. Arrolla las drogas más consumidas en el país, examina acciones de políticas públicas y destaca contradicciones internas a la cuestión. Investiga el consumo de drogas y su combate en Latinoamérica y remete, también, a la cultura de masas, mirando la interpretación de los significados de la expansión de las drogas en el escenario internacional contemporáneo. En sus conclusiones, el estudio indica el relevo del énfasis a la dimensión simbólica, con destaque a los valores y hábitos que estimulan el consumo de drogas para el delineamiento de acciones relativas a la cuestión.

Palabras clave: Salud, Alcoholismo, Drogas ilícitas.


ABSTRACT

This social, documentary and bibliographic research aims at an interpretative analysis of drugs use in Chile. The study covers the most consumed drugs in that country, analyzes public policy actions and emphasizes contradictions in this question. To integrate the Chilean reality in the international context, the research inquires about drugs consumption and its combat in Latin America and also refers to mass culture, with a view to interpreting the meanings of increased drugs use. In its conclusions, the study shows that it is relevant to consider the symbolic dimension, emphasizing the values and habits that stimulate drugs consumption, with a view to planning actions regarding the question.

Keywords: Health, Alcoholism, Street drugs.


 

 

INTRODUÇÃO

O uso de drogas lícitas e ilícitas é reconhecido por diversos autores como um problema mundial vinculado à globalização, direção tomada pelo desenvolvimento capitalista na segunda metade do século XX. A formação de redes de negócios, tecnologia e poder em escala planetária, disputando em autonomia com os Estados-nações, e a progressiva difusão mundial de hábitos e idéias, favorecida pelos meios de comunicação de massa, caracterizam a globalização(1), contexto internacional em que se concretizou a expansão contemporânea do consumo e tráfico de drogas.

Muitos povos registram o uso ritual tradicional, sem acarretar danos sociais, de substâncias que alteram o funcionamento do sistema nervoso central(2). Nas sociedades contemporâneas, entretanto, o consumo de drogas psicoativas toma a forma de grave problema internacional, jurídico, policial e de saúde pública, que se inicia com a expansão do estilo de vida contracultural, primeiramente nas classes médias, a partir da década de 60(3).

O abuso de drogas atual perpassa várias classes e instâncias sociais, relacionando-se com doenças e delinqüência, entre outros problemas. Reconhecendo a gravidade das repercussões desse abuso na saúde das populações e seu custo social, a comunidade internacional empreende importantes esforços para controlá-lo.

Ações governamentais, visando o controle das drogas, desenvolvem-se em diversas nações e envolvem a cooperação entre países. Incluem financiamento e cooperação técnica que, em alguns casos, demanda deslocamentos de equipamentos e de militares entre países. Na esfera jurídica, verificam-se reformulações legais, revisando o alcance de punições de condutas relacionadas ao consumo, produção e tráfico de drogas. Instituições sanitárias e educacionais investem, por todo o mundo, recursos financeiros e humanos na pesquisa e no controle do fenômeno.

Apesar do exposto, a dependência de drogas diversas aumenta e registra-se, de tempos em tempos, o aparecimento de novos tipos de drogas, além de novas e velhas dependências que transcendem as próprias drogas como a compulsão ao jogo, ao sexo e ao consumo de mercadorias, e se assemelham à drogadição.

Na área da saúde, as dependências químicas são tratadas sob diversos enfoques, com distintos graus de êxito e reingressos habituais dos clientes nos serviços de saúde, pelo mesmo motivo. Ao verificar as visões sobre o problema, expressadas pelos profissionais de saúde, observamos sérias contradições, tornadas ainda mais intensas quando consideramos as apreciações de outros setores como o judiciário e o legislativo.

Neste estudo, analisamos o uso de drogas e as políticas públicas desenvolvidas no Chile, nas últimas décadas, inserindo-as no contexto latino-americano de combate às drogas. Com o objetivo de interpretar os significados do uso de drogas lícitas e ilícitas, naquela sociedade, buscamos apreender a dimensão histórico-social chilena da expansão do uso de drogas, identificar as drogas mais consumidas, analisar ações de políticas públicas e discutir o contexto sociocultural internacional no qual florescem as drogas.

 

METODOLOGIA

Utilizamos o método documental e bibliográfico, analisando documentos institucionais e pesquisas sobre o fenômeno das drogas no Chile e na América Latina, bem como a literatura sociológica e antropológica. Conduzimos a análise das informações sob a inspiração da hermenêutica dialética, o que exigiu contextualização histórica, social e cultural da expansão da produção e do consumo de drogas nas sociedades contemporâneas.

Interpretamos os significados do fenômeno do uso de drogas pela articulação dialética de partes e todo e mobilizando, em interconexão, a lógica explicativa, que busca as causas do problema e a lógica compreensiva, que se orienta na direção das motivações de condutas, com ênfase nos aspectos culturais. Assim, a análise apoiou-se nos conceitos da hermenêutica dialética: interpretação de significados por meio de contextualização, círculo hermenêutico e dialética de explicar e compreender(4-5).

Para a reconstrução social e histórica do fenômeno das drogas, dirigimos atenção especial aos processos ocorridos no Chile e na América Latina. Para a contextualização sociocultural, destacamos as formas de sociabilidade, valores, padrões de consumo que caracterizam o estilo de vida pós-moderno nas sociedades contemporâneas.

Uso de drogas no Chile

As drogas são definidas como substâncias farmacologicamente ativas sobre o sistema nervoso central, podendo produzir alterações do comportamento(6). Esta definição permite classificar como drogas, no Chile: aquelas que são consideradas ilícitas em sua produção ou comercialização (LSD, maconha, cocaína, pasta base); as lícitas, que podem ser produzidas e comercializadas sob controle (tranqüilizantes, analgésicos, estimulantes); por último, as que, podendo produzir tanto ou mais dano que as anteriores, são consideradas de uso sem restrição (tabaco e álcool).

O consumo tradicional de substâncias psicoativas, no Chile, data da América pré-colombiana, entretanto, é na segunda metade do século XX que o consumo de drogas torna-se problema social, devido às implicações legais e de saúde pública.

Quanto às drogas ilícitas, a avaliação do MEM 2001-2002 nacional, no Chile, mostra os seguintes dados: a) as universidades abordam o tema como problemática menor nos currículos; b) não há normas para o tratamento padronizado do dependente; c) apareceram novas drogas no padrão de consumo; d) não há cultivos ilícitos, quase não há laboratórios de produção; e) há pleno controle do comércio de substâncias precursoras; f) não há tráfico de armas e controla-se a importação e exportação; g) não há condenações por lavagem de dinheiro(7).

Os resultados da avaliação do MEM revelam insuficiente atenção às drogas e estimulam os questionamentos: como ocorre a expansão do consumo e diversificação de drogas ilícitas, se não há cultivo, laboratórios de produção, nem comércio?

Os dados sobre o consumo de drogas no Chile indicam que as taxas de dependência de drogas da população estão em crescimento e se referem, sobretudo, às drogas lícitas. A população chilena mantém altos índices de alcoolismo, repercutindo esse consumo em significativo custo social e de saúde pública, mas há poucos estudos que permitem avaliar seu impacto social. Por outro lado, os comportamentos relativos às drogas ilícitas receberam atenção especial dos poderes e instituições públicas, passaram a ser considerados crimes com punições previstas em lei, enquanto o abuso das drogas lícitas foi apreciado como debilidade moral, enfermidade e problema de saúde individual e pública. Fato é que, além das distinções no enfrentamento do problema das drogas lícitas e ilícitas, não se consideraram as determinações macroeconômicas e socioculturais em sua abordagem.

Na realidade, o poder público, no Chile, só revelou preocupação com o fenômeno das drogas como questão de saúde coletiva a partir da década de 90 do século XX. Desde meados dos anos 70, durante a ditadura militar chilena, o setor de saúde teve importância secundária, ante a prioridade conferida ao crescimento econômico, em detrimento dos investimentos sociais(8). Assim, até os anos 90, o país sequer contava com políticas sanitárias ou de saúde mental que abordassem o fenômeno das drogas; a ênfase das iniciativas recaía somente sobre o controle do tráfico e a repressão do consumo de substâncias ilícitas. Não obstante, na década de 80, o consumo e o tráfico de drogas ilícitas aumentaram de maneira alarmante, como indicam documentos oficiais(9).

Em 1990, após a retomada da democracia chilena, foi criado o Consejo Nacional para el Control de Estupefacientes (CONACE) para programar e dirigir os esforços multissetoriais do controle de drogas no Chile. Devido à sua concepção multissetorial e interministerial, o CONACE impulsionou a criação da Lei 19 366, promulgada em 1995, para controlar “el tráfico ilícito de estupefacientes y sustancias psicoactivas”(9).

A Lei 19 366 tipifica os delitos de lavagem de dinheiro e de manejo ilegal de precursores químicos, propiciando abordagem ampla do problema e assumindo o sempre esquecido aspecto das redes internacionais, que lucram com o tráfico. A lei prevê penas para a fabricação não autorizada de drogas estupefacientes ou psicotrópicas que produzam dependência, excluindo qualquer interferência sobre a fabricação industrial e a comercialização de bebidas alcoólicas, tabaco e medicamentos, que têm efeitos semelhantes. Essa é uma grave incongruência, pois há estudos que mostram o consumo abusivo de tabaco, álcool ou medicamentos como hábito rotineiro da população chilena(10).

O Conselho Nacional para o Controle de Estupefacientes conta, atualmente, com vários programas de prevenção do consumo de drogas em nível nacional, com ênfase no fortalecimento dos laços familiares(11). A entidade tem página da web que veicula informações, links relacionados e bases de dados para a sociedade em geral. Dois aspectos chamam a atenção ao revisar a web e os documentos do CONACE: a totalidade de suas finalidades faz referência ao controle do consumo de drogas ilícitas e exclui, em seus objetivos estratégicos, as drogas lícitas(12).

A Encuesta Nacional de Drogas en Población General de Chile, produzida pelo CONACE, demonstra que o consumo de drogas ilícitas, no ano de 2002, atinge 5,68% da população, dos quais 5,17% correspondem à maconha (computado qualquer consumo por indivíduo no ano), 1,57% de cocaína e 0,51% de pasta base. O informe estima a dependência do álcool em 11,78% e a taxa de consumo em 59,11%; no caso do tabaco, o consumo chega a 42,89%. Entre os estudantes chilenos, 18% se embriagam pelo menos uma vez por mês. As idades de início do consumo de tabaco, álcool, maconha, pasta base, cocaína são, respectivamente, 15, 17, 17, 20 e 21 anos(13).

Ao analisar as tendências do consumo das drogas ilícitas no Chile, de 1994 a 2002, percebemos que os maiores índices estão entre homens, jovens e pobres; o uso de solventes voláteis alcança 0,25% e ocorre, sobretudo, entre menores em situação de abandono. Por outro lado, a taxa de uso de drogas lícitas sem prescrição médica alcança 4,31% da população chilena(13).

Segundo o programa CICAD/OEA (Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas), no consumo mensal de drogas por escolares de 13 a 18 anos, o de álcool oscila entre 50,9% do Uruguai e 15,8% da Guatemala; no Chile, alcança 35,38% dos quais 18,41% apresentam dependência. A prevalência anual das drogas ilícitas na América Latina corresponde a 6%, cifra similar à da realidade chilena(14).

De maneira geral, os esforços econômicos, sanitários e legislativos se orientaram para o controle das drogas ilícitas, entre as quais se encontra a maconha (mais de 90% do consumo de drogas ilícitas), apesar de ser reconhecida, na literatura sobre o tema, a tendência à escalada de drogas desde as menos aditivas às mais aditivas.

O Ministério do Interior chileno informa, quanto aos aspectos policial-repressivos associados ao tráfico e consumo de drogas, que, durante o ano de 2003, aumentou o confisco de armas de fogo ligadas à droga e registraram-se 39 pessoas afetadas por procedimentos policiais, porém, não existem dados sobre o número de lesões provocadas por disputas entre traficantes(15). As mortes e lesões decorrentes das ações associadas às drogas ilegais somam-se aos danos psicofísicos próprios de seu uso (a cidade do Rio de Janeiro passou a ser o paradigma desse fenômeno de danos devidos à violência vinculada ao tráfico e consumo de drogas(2)). A articulação entre tráfico de drogas e outras atividades criminosas, como sua conexão com a guerrilha colombiana, assassinatos, tráfico de armas, entre outros, é um dos aspectos mais graves da questão.

Outro fato importante a se considerar na discussão sobre o papel das drogas na sociedade é o constante aparecimento de novas substâncias psicoativas, situação que obriga à permanente revisão das estratégias de enfrentamento. No Chile, recentemente, apareceram bebidas energéticas com elevados níveis de cafeína, comercializadas com o incentivo de manter o usuário desperto para estudar, participar de festas ou poder consumir mais álcool (depressor). O mesmo ocorreu com o ecstasy, consumido pelas mesmas razões das bebidas energéticas, com a diferença de que se penaliza seu uso e comércio, por ser ilegal.

De acordo com dados do CONACE, poucas pessoas que apresentam dependência de drogas desejam e recebem o tratamento (4,7% dos usuários de maconha, 23,5% de pasta base e 7,1% de cocaína)(12). Para enfrentar a demanda de tratamento e reabilitação, o Estado, via CONACE, estabeleceu convênio com 96 centros especializados no país.

A avaliação dos programas de tratamento e reabilitação, solicitada pelo CONACE à Escola de Saúde Pública da Universidade do Chile, concluiu que as modalidades de tratamento são extremadamente diferenciadas em estrutura, processo e coleta de informações, e que carecem de financiamento e organização. Segundo o estudo, mudanças são necessárias para que a rede de prestações se torne eficaz: formulação de política clara de financiamento, padronização de critérios de validação de programas, capacitação dos recursos humanos, fortalecimento administrativo para o cumprimento de normas técnicas, geração de estrutura formal de coordenação da rede assistencial e criação das bases de um sistema de avaliação de impacto(11).

A grande diversidade de discursos e representações acerca das drogas, entre os profissionais envolvidos, apresenta-se como contradição articulada com a disparidade curricular na formação dos profissionais de diferentes áreas, assim como com o estigma social que recai sobre os dependentes de drogas, explicitado pela palavra “drogado”, freqüentemente acionada como categoria de acusação(16-17), revelando os preconceitos e a exclusão social dos dependentes. Por outro lado, o modelo biomédico, predominante nas ciências da saúde não só no Chile, resultou no confronto das dependências centrado na doença, definida pelos sintomas, e no indivíduo. Entretanto, o problema das drogas envolve multiplicidade de ângulos, que impõe a consideração das articulações entre micro e macrodeterminantes do problema.

Contexto latino-americano contemporâneo

Na situação internacional do fenômeno das drogas ilícitas, há países fundamentalmente produtores e outros onde o mais importante é o consumo ou o lucro obtido. Sob esse aspecto, existe polaridade hemisférica Norte-Sul, em que o Sul produz droga e o Norte a consome. Como são os países mais ricos ou desenvolvidos aqueles que sofrem maior impacto do abuso de drogas - e devido à sua posição de hegemonia política, econômica e militar - são eles que decidem as estratégias de controle intergovernamental que se traduziram, sobretudo, em intervenções coercitivas.

Em 1998, no II Cumbre de las Américas, no Chile, surgiu a idéia do Mecanismo de Evaluación Multilateral (MEM) para a orientação da luta americana contra o problema da droga. Tal iniciativa substituiu a avaliação unilateral que os Estados Unidos faziam dos demais países da América e que determinava a política de relações exteriores daquele país com seus parceiros.

Os dados da avaliação do MEM 2001-2002(18), no entanto, indicam que: a) os planos internacionais de controle de drogas não consideram a realidade local; b) a maioria dos países não tem estudos epidemiológicos do problema das drogas; c) nem todos os países ratificaram os acordos de cooperação internacional; d) o álcool e o tabaco são as drogas de mais precoce experimentação na vida (12-14 anos) e são fatores de risco para o uso de drogas ilícitas; e) os cultivos de drogas ilícitas diminuem em alguns países (Peru e Bolívia), porém, aumentam em outros (Colômbia) e deslocam-se para nações não produtoras tradicionais; f) cresce o consumo inadequado de fármacos lícitos; g) as condenações por tráfico de droga são em muito menor número do que deveriam ocorrer.

Na América Latina, a abordagem do problema da droga evoluiu da tradicional posição do modelo biomédico, em que a dependência de drogas é vista como doença psíquico-biológica, para o de Saúde Pública, que considera o meio social e, por último, para o Geopolítico Estrutural, que acrescenta os fatores judiciais, políticos, econômicos e geográficos. Esse último enfoque objetiva fortalecer as estruturas governamentais, visando a redução da oferta-demanda de drogas e ao estabelecimento de medidas de controle de tráfico e consumo. A mudança das estratégias indica progressiva contextualização social do problema, porém, não resultou em maior impacto social.

A política internacional do combate às drogas é marcada por generalidade e coexiste com o aumento do consumo de drogas existentes e surgimento de novas drogas. Ao promover o combate ao uso abusivo de drogas a partir da perspectiva centrada em interesses econômicos e sem atacar as causas do problema, essa política não se orientou para melhorar a qualidade de vida e de saúde dos grupos humanos, mas visou impedir as perdas econômicas decorrentes desse uso, como constatam pesquisas sobre doenças e custos de serviços de saúde.

A perspectiva generalizante que orienta o enfoque da questão, em nível latino-americano, explica a ausência de critérios para apreciar as diferenças históricas e culturais de cada região envolvida no circuito internacional de produção, distribuição e consumo de drogas. Guiando-se pela perspectiva articulada sob a hegemonia dos países desenvolvidos, que consideram seus problemas de saúde pública como problemas mundiais, as soluções propostas tendem a ser inadequadas às realidades locais e, muitas vezes, com o objetivo explícito de combate às drogas, as ações assumiram o caráter de intromissão militar e política de uns países sobre outros.

A verdade é que a droga, a violência, pobreza e marginalidade têm sido tratadas como causas de problemas sociais, quando deveriam ser consideradas indicadoras de questões maiores que afetam a humanidade. Dada sua magnitude, é necessário encontrar estratégias das quais todos possam participar para controlar o problema da droga, porém, não com visões parciais, e sim com visão de conjunto que inclua todos os atores envolvidos, direta ou indiretamente, com o problema e sua solução.

Cabe indagar, ainda: quais os valores e motivações que impelem para o abuso de quaisquer drogas? Que modelo de sociedade favorece o aparecimento dessas condutas?

Contexto sociocultural do uso de drogas

Para compreendermos o consumo contemporâneo de drogas lícitas e ilícitas, é ncessário contextualizá-lo, entendendo a cultura como esse contexto que, sob muitos aspectos, transcende o âmbito restrito de países considerados isoladamente, o que exige a consideração do consumo de drogas como um fenômeno cultural associado à globalização, com suas inerentes conexões internacionais.

Nas sociedades contemporâneas, o uso de drogas assume caráter dramático por vincular-se a redes nacionais e internacionais legais, ou criminosas (muitas vezes articuladas), transformando o tráfico de drogas em instrumento de poder e numa das atividades mais lucrativas do mundo, o que dificulta o controle da situação.

Quando nos perguntamos a respeito dos valores e idéias que estimulam o uso de drogas por contingente tão grande da população mundial, nossas atenções convergem para a dimensão simbólica da questão e para o estilo de vida no qual essa população se insere, entendendo estilo de vida como conjunto de práticas, símbolos distintivos e propriedades que expressam as condições de existência.

Como demonstram estudos sobre o tema, o uso de drogas representa uma das formas de reconhecimento de semelhanças entre indivíduos, ensejando a formação de grupos que partilham hábitos e, no caso das drogas ilícitas, vocabulário, sistemas de reconhecimento, estigma e a insegurança inerente à prática ilegal, configurando um estilo de vida que congrega classes sociais diversas, expressado por “uma constelação de grupos que têm em comum uma atividade clandestina e ilegal”(19).

O abuso de drogas pode ser compreendido como fenômeno ligado a certa concepção de mundo e a um estilo de vida que exaltam a afirmação da individualidade liberta de compromissos, “liberdade de optar por um estilo de vida, onde o uso eventual ou rotineiro de drogas ‘leves’ ou ‘pesadas’ faz parte de um possível repertório sociocultural”(3) que, por sua vez, associa-se à dimensão lúdica e ao hedonismo, com “a busca do prazer legitimada como um fim em si mesmo”(19). Esses são valores que ressaltam na versão pós-moderna da nossa sociedade para os princípios de liberdade e autonomia individuais, construídos na modernidade, e que estão presentes no processo de socialização das novas gerações.

É possível que o grande consumo de drogas esteja associado à concepção de felicidade característica da cultura de massa(20), por muitos autores compreendida como integrante do estilo de vida pós-moderno(21). Concepção de felicidade que mira, como ideal imaginário, a vida fruída com intensidade, que arrisca tudo, com grande ênfase nos sentimentos e emoções pessoais, no desfrute individual e no hedonismo do presente. “Não há dúvida de que nunca houve, na história da humanidade, um apelo tão maciço e tão intensivo à felicidade, que fosse ao mesmo tempo tão ingênuo e cego”(20).

Essa é uma concepção de felicidade associada ao “presenteísmo” do estilo de vida pós-moderno (exaltação do tempo presente), no qual ocorre a transmutação de valores constitutivos da modernidade, como o trabalho criador de valor econômico e o ativismo político, dando lugar à valorização das experiências emocionais, místicas e de prazer(22). É uma “felicidade consumidora”, que incita o consumo não só de mercadorias, como também da própria vida. Induz o consumo de prazer, roupas, automóveis, objetos esotéricos, drogas euforizantes e, assim, oculta a angústia, o fracasso e a dor(20). As drogas assumem, nesse contexto, o caráter de “elixir da boa vida”(22), propiciando a fuga onírica, fantasiosa, da realidade, com o mesmo caráter da mercadoria na sociedade de massa.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos dados acerca do uso de drogas no Chile indica que entre as drogas mais consumidas no país - e de experimentação mais precoce pela população - estão bebidas alcoólicas e tabaco, seguidos de drogas ilícitas como maconha e cocaína. Os dados revelam, ainda, desacordos e inadequação na lida com o problema.

O fenômeno do uso abusivo de drogas cresce não só no Chile, mas em toda América Latina e no mundo. Sendo assim, juntamente com sua dimensão local, precisamos considerar a dimensão internacional da expansão do tráfico e do consumo de drogas, que se associa ao processo de globalização e à cultura de massa.

A constituição de poderosas redes internacionais de comunicação, informação, comércio e de produção-difusão de mercadorias e hábitos caracteriza o processo de globalização, que influencia a dinâmica cultural dos povos contemporâneos. Configura-se, nesse processo, a cultura de massa, no interior da qual observamos a expansão de formas de consumo cultural e de estilos de vida, assim como o afloramento de situações paradoxais, como a exacerbação das individualidades e, ao mesmo tempo, o avivamento de solidariedades grupais (as “novas tribos”(23)); do apagamento das diversidades culturais e da reivindicação de múltiplas identidades sociais e étnicas(1). Nessa vivência paradoxal, o homem contemporâneo busca se associar aos seus iguais, em grupos fundados sobre preferências, hábitos, sentimentos, visões de mundo; como indivíduo concebe-se como centro do mundo, seus interesses subordinando os coletivos, em sua busca de prazer e da felicidade baseada no consumo e na execução de ações orientadas para a fruição do presente.

Ante essa realidade sociocultural, as dependências não podem ser apreendidas somente no contexto de substâncias, indivíduos, sintomas de doenças ou ações específicas, mas deve orientar-se para processos que permitam compreender as adições em nível coletivo. Estilo de vida, visão de mundo e valores dominantes na sociedade são focos importantes para a compreensão dos significados atribuídos às drogas.

A eficácia de políticas e ações relativas ao fenômeno das drogas exige a consideração de sua dimensão sociocultural, das especificidades de cada país e estratégias para o envolvimento de toda a sociedade. A esperança de uma sociedade livre de dependências demanda maior esclarecimento da população sobre o fenômeno das drogas e deve incluir intervenção no âmbito cultural que privilegie, desde a infância, a educação propiciadora de valores que estimulem a auto-responsabilidade, o compromisso social e hábitos de vida saudáveis.

Em suma, a atuação isolada do setor de saúde foi e será infrutífera; só poderão ter eficácia sobre o problema iniciativas conjuntas de diversos setores, multilaterais e que considerem os aspectos individuais, psíquicos, de saúde e socioculturais.

 

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Endereço para correspondência
Maria Cristina Silva Costa
E-mail: mccosta@eerp.usp.br

Recebido: 05/05/2006
Aprovado: 10/08/2006

 

 

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