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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) v.3 n.1 Ribeirão Preto ago. 2007

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Grupo de pais de jovens homossexuais

 

Grupo para los padres de jóvenes homosexuales

 

Support group for parents of homosexual youth

 

 

Manoel Antônio dos SantosI; José Urbano Brochado JúniorII; Murilo dos Santos MoschetaIII

I Professor Doutor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), Universidade de São Paulo, Brasil. Co-coordenador do VIDEVERS0 - Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual - FFCLRP-USP.
II Docente das Faculdades COC, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Psicólogo vinculado ao Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual - VIDEVERSO - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) Universidade de São Paulo e co-coordenador do Grupo de Pais de Pessoas Homossexuais.
III Mestre em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) – Universidade de São Paulo, Brasil. Docente do Instituto Taquaritinguense de Ensino Superior - ITES. Co-coordenador do VIDEVERS0 - Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual – FFCLRP - Universidade de São Paulo.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo desse trabalho é relatar uma experiência de planejamento e implementação de um grupo de apoio para pais de jovens homossexuais. Nos primeiros meses a adesão ao grupo restringiu-se às mães, que relataram haver maior dificuldade por parte de seus maridos em lidar com a homossexualidade do filho. As participantes descrevem o impacto dos encontros na redução do isolamento em que se encontravam anteriormente e na possibilidade de dialogarem sobre questões comuns de seu cotidiano com outras mães que vivem situações semelhantes, em suas famílias. O grupo tem se configurado como contexto fértil para intercambiar informações e experiências de vida.

Palavras-chave: Homossexualidade, Família, Grupos de auto-ajuda.


RESUMEN

La finalidad de este trabajo es describir la experiencia del planeo y de la puesta en práctica de un grupo de ayuda para los padres de jóvenes homosexuales. En los primeros meses de la implantación, la adherencia al grupo fue restricta a las madres, que relataron la mayor dificultad de sus esposos para hacer frente a la homosexualidad de sus hijos. Las madres describen el impacto de la reunión en la reducción de su aislamiento y en la posibilidad para dialogar sobre cuestiones comunes de su realidad diaria con otras madres que viven situaciones similares en sus familias. El grupo se ha configurado como contexto fértil para intercambiar informaciones y experiencias de vida.

Palabras clave: Homosexualidad, Familia, Grupos de autoayuda.


ABSTRACT

This study aimed to present the experience of planning and implementing a support group for parents of homosexual youth. In the first months, the group was restricted to the mothers, who reported the husbands’ great difficulties in dealing with their sons’ homosexuality. The participants described the impact of the meetings in reducing their isolation and in the possibility of dialoguing about common questions of their daily lives with other mothers in similar situations. The group has become a fertile context for the exchange of information and life experiences.

Keywords: Homosexuality, Family, Self-help groups.


 

 

INTRODUÇÃO

As variantes do comportamento sexual, que não se perfilam de acordo com o padrão heterossexual hegemônico, ainda estão culturalmente associadas a representações sociais desqualificadoras. Assim, as variantes do comportamento sexual que se afastam da heteronormatividade, como a homossexualidade e a bissexualidade, freqüentemente se inscrevem no imaginário coletivo como evidência de desvio, doença, perversão ou falha de caráter. Além disso, ainda povoam o imaginário popular representações que associam a diversidade sexual a vivências de solidão, isolamento e segregação social. A desinformação muitas vezes alimenta os preconceitos que são socialmente construídos e que fazem com que a sexualidade dos indivíduos com orientação sexual divergente da heteronormativa seja vivida com culpa, vergonha e constrangimento, desencadeando angústia e sofrimento.

A discriminação e o estigma social que cercam a vivência homossexual atraíram a atenção de inúmeros pesquisadores, que produziram extensa literatura nessa área. Todavia, pouca atenção tem sido dada à questão das famílias de origem, sobretudo pais e mães de homossexuais. Sabe-se que os pais de adolescentes e jovens homossexuais vivenciam uma série de conflitos e questionamentos na medida em que tomam conhecimento da orientação homoafetiva de seus filhos.

Reconhecendo a necessidade de compreender melhor essa realidade, foi estruturado um grupo de apoio com o intuito de reunir os familiares de pessoas com orientação sexual discordante da normativa. A literatura disponível nesse campo do conhecimento ainda é escassa(1), o que evidencia a necessidade de estudos que explorem essa temática. O presente trabalho propõe-se a abordar a gênese histórica desse grupo, sua finalidade e sua aplicabilidade no contexto dos estudos no campo da diversidade sexual. Será dada ênfase à implementação, desenvolvimento e manejo do grupo. Como via introdutória, discutir-se-á, a seguir, o conceito contemporâneo de família.

A família contemporânea: transições e permanências

Não se conta com definição clara e unívoca do que é família. Apesar de haver algum consenso, não é fácil definir o que atualmente se concebe como família(2). Talvez o caminho mais útil seja descrever, abdicando, contudo, da pretensão de que hoje a família constitui uma unidade monolítica. Um dos pilares do debate contemporâneo coloca em discussão as limitações dos referentes consangüinidade e afinidade que, em geral, tentam resumir os laços familiares, mas que, na verdade, não esgotam a diversidade de composições possíveis que habitam esse campo(3).

A pós-modernidade é marcada pela redefinição dos papéis masculino e feminino, oriunda do conflito masculino, por um lado, e das conquistas femininas, por outro. A conquista do espaço público pelas mulheres acentuou a crise masculina(4). Ao ocuparem posições sociais até então exclusivamente masculinas, as mulheres romperam o modelo hegemônico do poder do “macho”. O homem é impelido então à busca incessante pela redefinição do seu papel viril. As instituições sociais são remodeladas, em especial a família. A família tradicional dá lugar à família moderna. Em outras palavras, a família hierárquica, com papéis bem definidos e atribuições de gênero e geração, é substituída por uma família igualitária, na qual esses papéis e atribuições de gênero e geração estariam com seus contornos cada vez mais diluídos(5).

Do ponto de vista da organização das relações de parentesco, pode-se dizer que a família passou por profundas transformações ao longo da história e, tal como é concebida hoje, só foi consolidada no século XIX, e continua a atravessar período de franca transição. De tal modo que não se pode caracterizar a família contemporânea como unidade conceitual, devendo, antes, considerá-la em suas múltiplas configurações – famílias nucleares, recompostas, matrifocais, homossexuais, entre outros arranjos possíveis na atualidade.

Mas nem só de transformações históricas vive a família brasileira; há aspectos em sua estrutura e funcionamento que permanecem ao longo dos tempos, resistindo às transformações vertiginosas das últimas décadas. Assim, coexistem, lado a lado, mudanças e permanências, transições e tradições. Algo que permanece é o papel que a família desempenha na transmissão e disseminação de valores. É na família que as informações recebidas por meio da educação formal e informal vão sendo gradualmente processadas e remodeladas, permitindo aos indivíduos elaborarem sua visão de mundo e a maneira como vão se inserir na sociedade. O processo de socialização primária ocorre no interior da instituição familiar. Mas a educação sexual ainda hoje dificilmente é realizada dentro da família, ou, quando o é, a família não consegue reconhecer todos os aspectos envolvidos nesse processo.

A família pode ser vista como espaço privado no qual sistemas de valores e crenças são internalizados, juntamente com os papéis e as construções de gênero, o que involucra os preconceitos e tabus que são transmitidos intergeracionalmente, e que são permanentemente construídos, desconstruídos e reconstruídos, refutados ou reafirmados.

No período caracterizado como de transição adolescente, muitas vezes ocorre desacordo entre pais e filhos e a ausência de diálogo franco e aberto acerca de vários assuntos, especialmente aqueles relacionados à sexualidade, gerando conflitos que reforçam as barreiras de incomunicabilidade que separam as gerações. Não é raro ocorrer silenciamento tácito desses conflitos, que vão buscar vazão em outros canais de expressão, como os sintomas neuróticos, fronteiriços e psicóticos.

Freqüentemente, o autoritarismo dos pais e a imposição de valores pré-estabelecidos e sacramentados pela tradição vão se colocar a serviço da repressão sexual. Em que pesem a ampla liberação de costumes, que redesenharam o comportamento sexual nas últimas quatro décadas, os tabus e as inibições que pairam sobre as manifestações da sexualidade humana continuam sendo amplamente disseminados e naturalizados, sobretudo quando se está no plano das assim chamadas “sexualidades alternativas”. Atente-se para o fato de que não há transformações apenas do “masculino” e do “feminino”, mas das sexualidades de um modo geral, incluindo a homossexualidade, como demonstram os trabalhos dos antropólogos Peter Fry(6) e Edward MacRae(7).

A família muitas vezes apresenta dificuldades de aceitar o(a) filho(a) por não atender o ideal masculino ou feminino de nossa cultura. A não aceitação de algum comportamento considerado intolerável, por seu aspecto desviante, cria condições propícias para deixar florescer o preconceito, que, por sua vez, engendra atitudes e atos de discriminação, reforçando o estigma social associado às práticas sexuais não-alinhadas ao padrão hegemônico. O que geralmente se espera é que o rapaz se capacite para se tornar no futuro um marido e pai de família heterossexual, reproduzindo o comportamento legado, de modo a perpetuar o sobrenome da família. O mesmo pode ocorrer com a filha que, ao se revelar lésbica, coloca em cheque os valores transmitidos ao longo da cadeia intergeracional e reproduzidos em seu processo de socialização. Essa filha, que fora educada para ser um “primor de moça”, de repente passa a ser vista como alguém que põe em risco o projeto de preservação da família dentro dos moldes consagrados pela tradição e pelos “bons costumes” e valores morais.

Percebe-se, nessas famílias, estagnação na forma como lidam com a descoberta da homossexualidade de seus filhos. Muitas vezes reagem com estranheza (isso não pode estar acontecendo comigo!), quando não com sentimentos de terem sido “traídos” pelos filhos que escolheram um “caminho errado”. Instala-se uma crise nas relações familiares e é difícil resistirem à tentação de olhar para a situação armados de juízos morais. Sentem-se perplexos, inconformados e não merecedores de tamanho “castigo”. Perguntam-se: que fiz para merecer isso? Ou se sentem profundamente culpados, crendo que a “preferência” sexual de seu filho possa ser resultante do estilo de educação que lhe deram. Nesse caso, costumam interpelar a si mesmos, indagando-se: onde foi que eu errei? Ou saem em busca de um “culpado”: onde foi que o outro genitor errou? A perplexidade e o choque iniciais parecem não dar lugar à postura de enfrentamento mais saudável da questão. Quando não são encontradas alternativas para lidar com os conflitos em um ambiente mais amigável e de respeito à autonomia e às escolhas do outro, tende-se ao isolamento e à segregação do elemento “estranho”. Prevalece, nesse caso, a dificuldade de assimilar o diferente e de reconhecer algo de familiar no que aparenta ser inteiramente estranho e hostil aos valores familiares.

A inexistência de acolhimento e de atitude respeitosa, de aceitação do modo de ser do filho, acaba agudizando problemas de ajustamento e auto-estima no indivíduo, visto que potencializa os danos causados pela discriminação social sofrida nos espaços macrossociais, como a escola e o trabalho.

Um pouco de história: o nascimento do grupo de pais

Para situar o surgimento histórico do grupo é necessário que se volte ao contexto em que ele foi estabelecido. Sua necessidade foi percebida a partir das discussões que uma equipe de pesquisadores em diversidade sexual travava regularmente, em seu trabalho de estudar as questões trazidas por pessoas que integravam outra frente de trabalho, também em grupo, relacionada à conjugalidade homossexual. Percebeu-se que a temática da família de origem era preocupação constante nas falas dos indivíduos que haviam se lançado à tarefa desafiadora de constituir uma família diferente do modelo tradicional, entendida como aquela constituída pelo casal heterossexual, unido pelo casamento, e os filhos resultantes dessa união conjugal.

Essas discussões germinaram, portanto, a partir de outros trabalhos de intervenção e investigação sistemática que estavam em curso, levados a cabo por um grupo que se autodenominou de VIDEVERSO - Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual. O VIDEVERSO é composto por psicólogos, professores, pós-graduandos e estagiários do curso de Psicologia que elegeram como objeto de seu trabalho e estudo as questões da diversidade sexual. Foi criado em janeiro de 2005 e, desde então, está formalmente inserido no Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (NEPPS) do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Além das atividades de extensão universitária – atendimento à comunidade, sob a forma de grupos de apoio, psicoterapia individual, oficinas, seminários e jornadas – o VIDEVERSO se caracteriza pela atenção que tem dispensado à produção de conhecimento no campo da sexualidade humana.

A extensão universitária está atrelada à atividade de pesquisa. Segue-se, assim, tendência contemporânea de associar abordagens do indivíduo, do grupo, da família e da sociedade, compondo uma combinação de estratégias de intervenção, de modo a adaptar o trabalho às demandas e necessidades próprias de nosso tempo.

A opção preferencial do VIDEVERSO pelas intervenções grupais se deve ao foco nas configurações dos vínculos interpessoais. Vislumbrou-se nos grupos a possibilidade de investigar os processos de formação da identidade, com o objetivo de explorar a sua aplicabilidade e as perspectivas de pesquisa e desenvolvimentos futuros; além disso, há a sintonização com a mudança de enfoque em relação à saúde e à doença, introduzida por referenciais da pós-modernidade, para as quais saúde e doença passam a ser atribuídas não mais a um indivíduo, mas a um sistema, uma rede de relações das quais ele participa.

Dentre as estratégias de ação e intervenção psicológica, disponibilizadas à comunidade, uma se volta às necessidades dos familiares que convivem em seu cotidiano doméstico com a questão da orientação sexual divergente do padrão normativo. Considerando que a família é um elo de ligação entre o indivíduo e a sociedade, esse caráter mediador entre o espaço privado e o espaço público faz do grupo familiar uma unidade de abordagem propícia para se lidar com o desenvolvimento individual e social, tanto em nível terapêutico quanto preventivo(8).

Buscando contemplar as especificidades da unidade familiar, foi estruturada uma modalidade de intervenção sob a forma de grupo de apoio, dando origem a uma proposta interventiva que se designou como Grupo de Pais e Mães de Pessoas com Vivência Homossexual. Esse grupo começou a ser planejado no início de 2006 e foi implementado em meados daquele ano como recurso de intervenção e prevenção que proporciona acolhimento aos pais, além da possibilidade de ampliar o conhecimento das repercussões da homossexualidade dentro da família, de modo que se possa explorar a capacidade de aprendizagem de novas estratégias para lidar com a questão da sexualidade dos filhos nos diferentes momentos do ciclo vital.

O modus operandi do grupo

O Grupo de Pais e Mães de Pessoas com Vivência Homossexual se desenvolve por meio de encontros com 1h30 de duração e freqüência semanal. A intervenção é pautada no referencial psicodinâmico(2) e coordenada por psicólogo, que é também professor universitário, e psicóloga, mestranda, ambos integrantes do VIDEVERSO. O objetivo é oferecer um contexto reflexivo capaz de acolher e fomentar discussões acerca da experiência da maternidade e paternidade com filhos jovens homossexuais. Busca-se estabelecer rede de apoio social capaz de oferecer suporte e, sobretudo, estimular a curiosidade, o pensamento crítico e o conhecimento científico, instrumentos indispensáveis para a ampliação dos horizontes pessoais e para promover transformação social. Também se afigura como espaço de sensibilização para as diferenças, que visa desenvolver atitudes de tolerância e de respeito à alteridade e aos direitos de cidadania.

Sob esse prisma da legitimação da diversidade sexual, o grupo tem uma faceta política, no sentido lato do termo. Não se trata de um grupo militante, mas uma estratégia comunitária de convívio com as diferenças, respeitando-se as convicções pessoais de cada participante e suas necessidades de organizar seu conhecimento sobre as questões relacionais.

Não há agendamento prévio de assuntos. Os temas discutidos durante os encontros são abordados conforme o interesse dos participantes. Nessa forma de aprendizagem informal, é importante a seleção de temas pertinentes que despertem o interesse, o engajamento e a informação. Em geral, um tema é colocado em relevo para o encontro seguinte, dentre os assuntos que emergem em cada reunião. Para dinamizar o encontro, os coordenadores geralmente introduzem algum recurso facilitador (música, poema, livro, material didático, texto científico, reportagem, filme entre outros) com o intuito de facilitar a discussão do tema sugerido pelos próprios participantes do grupo.

Preparação do grupo

Inicialmente, partiu-se do contato espontâneo que três mães haviam estabelecido com o VIDEVERSO, a partir de divulgação realizada na mídia local, manifestando seu interesse em participar dos encontros do grupo.

Após contato telefônico com essas mães, os coordenadores do Grupo agendaram conversas pessoais para a seleção dos participantes, o que acabou se viabilizando com apenas uma delas. Com as demais não foi possível ajustarem-se às disponibilidades de horários. O primeiro encontro com a mãe ocorreu em sua residência, por solicitação da mesma. Os coordenadores tinham como propósito conhecer suas expectativas em relação ao trabalho de grupo. Foram acolhidos de forma calorosa na intimidade do lar. A conversa se deu em um clima amistoso e girou em torno da história de vida da própria mãe, a trajetória de constituição de sua família e a descoberta da homossexualidade de seu filho. Na atmosfera de confiança rapidamente criada, a mãe confidenciou como se deu o enfrentamento da revelação na família, o impacto causado e suas preocupações com a vulnerabilidade à violência a que o filho poderia estar sujeito no cotidiano. Essa mãe supunha que o filho poderia involuntariamente se envolver com pessoas de má índole, sujeitando-se a sofrer agressões físicas. Também compartilhou seus temores e apreensões com relação ao futuro do filho.

Os coordenadores constataram intensa necessidade de expressão de sentimentos e emoções, decorrentes da vivência da condição homossexual de um filho, reforçando a convicção que tinham a partir do contato com a literatura e com jovens com orientação homoafetiva. A mãe em questão mostrou-se interessada e bastante motivada para participar de um trabalho em grupo. Desde o início, manifestou o desejo de trazer mais pessoas para o grupo, pais e mães que, no seu entender, ainda não enfrentavam de maneira saudável essa questão.

Em discussões posteriores com os integrantes do VIDEVERSO, decidiu-se ampliar os critérios de seleção dos participantes do grupo. Inicialmente havia sido restringida a participação a pais e mães de adolescentes e jovens homossexuais, na suposição de que isso criaria um contexto de homogeneidade, incluindo temas de interesse em comum, como o impacto da revelação na família, os temores relacionados à possibilidade de exposição a situações de violência física entre outros. Ampliou-se essa faixa etária no sentido de incluir todos os pais que desejassem participar, entendendo que o grupo poderia se beneficiar de certa heterogeneidade das experiências individuais. Por exemplo, a presença de um pai cujo filho já tivesse constituído uma relação homoafetiva estável e conquistado sua independência econômica poderia ter efeito tranqüilizador para um outro pai que acabou de descobrir a preferência homoerótica de um filho adolescente.

Assim, combinou-se com todas as mães interessadas uma data, horário e local para o início das atividades. Nesse momento, já se havia estabelecido contato com mais três mães interessadas, totalizando seis potenciais participantes.

O grupo em funcionamento

O primeiro encontro do Grupo de Pais e Mães ocorreu em 22 de maio de 2006, nas dependências da Universidade, em uma sala especialmente projetada para o trabalho com grupos. Nessa ocasião inaugural, contou-se com a presença de três mães, que rapidamente passaram a interagir e a partilhar suas histórias atravessadas pela questão da homossexualidade dos filhos. Uma das participantes era mãe de uma jovem homossexual e as outras tinham filhos homossexuais. Contaram da dificuldade de inclusão dos pais – seus maridos – nesses assuntos. Dois deles, segundo relataram, “faziam de conta que não sabiam”, silenciando-se sobre a situação para evitarem o contato com sentimentos de desconforto. A imagem que traziam desses maridos era de homens pouco conectados com o mundo privado da família e com baixo investimento afetivo nos relacionamentos intrafamiliares.

As mães também se sentiram à vontade para demonstrarem seus temores e angústias, muitas vezes vinculados ao preconceito e hostilidade que os filhos sofriam por parte de outras pessoas externas à família. Manifestaram abertamente sua apreensão quanto à violência explícita dirigida aos homossexuais em alguns ambientes. Por outro lado, mostraram-se satisfeitas pela existência do grupo, vislumbrando ali um local onde poderiam se encontrar, desabafar, compartilhar experiências e aprender umas com as outras. Pareciam estar contentes com a possibilidade de desfrutar desse contexto colaborativo.

Os coordenadores delinearam os objetivos do trabalho, a saber: (1) favorecer o diálogo entre pais e mães com experiências de vida semelhantes, a fim de diminuir o isolamento social, facilitando o resgate de valores humanos por meio do compartilhar; (2) possibilitar a re-significação das experiências emocionais, para sua melhor integração, de modo a facilitar o relacionamento entre pais e filhos, levando-os a refletirem sobre os projetos e rumos a serem escolhidos pelos filhos; (3) proporcionar espaço de diálogo e reflexão aos pais e/ou mães a fim de auxiliar no acolhimento das necessidades de filhos e filhas; (4) oferecer apoio psicológico aos pais e mães, quando necessário; (5) auxiliar os pais e as mães a buscarem formas de lidar com o preconceito e o estigma social; (6) estimular a busca de práticas de intervenção social transformadoras. Os coordenadores procuraram deixar as mães confortáveis e à vontade para apresentarem suas sugestões quanto ao funcionamento do grupo, de modo que ele realmente pudesse se configurar como espaço de trocas entre as participantes. Também solicitaram que se esforçassem para trazer outras potenciais participantes, de modo a enriquecer e fortalecer o grupo.

A primeira etapa de funcionamento do grupo ocorreu durante os meses de maio e junho de 2006. Os encontros semanais incluíam conversas sobre temas que as próprias participantes elegiam. Tentava-se, estrategicamente, deixar sempre um tema em aberto para ser discutido no próximo encontro. As mães combinaram entre si que levariam matérias recolhidas na mídia impressa sobre diversidade sexual para serem debatidas no grupo. Os coordenadores se incumbiram de selecionar publicações científicas para fomentar as discussões e qualificar o debate. De modo geral, na medida em que o grupo evoluía, pôde-se conhecer melhor a história de vida de cada mãe, o que facilitou a aproximação dos coordenadores e delas entre si.

Decidiu-se fazer uma parada para férias no mês de julho, mesmo considerando os riscos de interrupção nesse momento, devido ao pouco tempo de percurso e à configuração vincular ainda incipiente do grupo, em um momento em que uma das mães havia inclusive manifestado sua impossibilidade de dar continuidade. Oriunda de uma cidade vizinha, essa mãe começou a enfrentar dificuldades em relação ao horário e dia do grupo. Tentou-se negociar um novo dia e horário, aventando outras possibilidades com o grupo, porém, ela preferiu interromper sua participação naquele momento. Entendeu-se que talvez fosse necessário, nesse período de interrupção para férias, angariar novas mães e pais para reforçar os vínculos grupais.

Segundo momento do grupo

O segundo momento do Grupo de Pais e Mães iniciou-se após o período de férias, que acabou se estendendo para além do previsto. Retornou-se ao Grupo no dia 28 de agosto de 2006, dessa feita em outro local. Durante o período em que o grupo esteve desativado, ocorreu evento importante: a II Semana do Orgulho GLBT de Ribeirão Preto, e o VIDEVERSO fora convidado pela organização – encabeçada por duas organizações não-governamentais: Grupo Rosa Vermelha e GAPA – Grupo de Apoio à Prevenção à Aids, ambas de Ribeirão Preto, para contribuir com o planejamento e execução de uma semana de eventos preparatórios à II Parada GLBT de Ribeirão Preto. Foram realizados debates, vídeos temáticos, palestras e oficinas, com o intuito de sensibilizar a população para a temática da diversidade sexual e da homofobia.

Entendeu-se que essa foi uma oportunidade auspiciosa para se expandir o trabalho aqui realizado e divulgar as atividades junto à comunidade local. A partir desse evento, ganhou-se visibilidade e houve estreitamento de laços de parceria com organizações não-governamentais com tradição de militância, em prol dos direitos civis. A repercussão do trabalho na mídia incluiu matéria produzida pela revista G Magazine – publicação comercial voltada para o público GLBT, na edição do mês de agosto, comemorativa ao Dia dos Pais. O assunto abordado era a maternidade e paternidade com filhos homossexuais. Nessa matéria, foram divulgados alguns grupos de todo o país que, a exemplo do VIDEVERSO, trabalham com o acolhimento de pais e mães das pessoas homossexuais.

A mudança do local de encontro do grupo foi sugerida por uma mãe que fizera contato durante a II Semana do Orgulho GLBT, mostrando interesse em integrar-se. Essa mãe ofereceu uma sala em seu local de trabalho, uma associação de caráter privado, para a realização dos encontros. Essa proposta, que contava com o apoio da coordenação da associação, teve boa receptividade junto aos demais membros do VIDEVERSO. Entendeu-se que esse foi um marco histórico na trajetória do grupo, na medida em que indicava a necessidade das participantes de se apropriarem efetivamente do espaço, trazendo-o para mais próximo de seu contexto de vida cotidiana.

Desse modo, pôde-se contar com a participação de três mães ao longo do segundo momento de desenvolvimento do grupo. Como o VIDEVERSO oferece ainda estágio curricular para alunos de graduação em Psicologia, foi incluída a participação de uma estagiária no grupo, estudante do quarto ano, que veio somar esforços e contribuir como observadora das reuniões. Definiu-se como função da estagiária registrar os principais movimentos (falas e condutas dos participantes e coordenadores), de maneira a se constituir, com essas anotações, um diário de campo que, posteriormente, poderia servir como matéria-prima para refletir sobre os encontros durante a supervisão coletiva com a equipe do VIDEVERSO.

Nesse segundo momento, os encontros prosseguiram com regularidade semanal. As estratégias utilizadas para mobilizar as participantes continuaram sendo baseadas em algum tipo de atividade proposta pela coordenação, entendida como disparador temático que pode facilitar o envolvimento das pessoas com a tarefa tais como: audição de músicas, exibição de vídeos sobre as diversidades sexuais, leitura de livros, artigos científicos e reportagens divulgadas pela mídia. Selecionou-se um livro que, embora dirigido ao público infantil, tem como temática a valorização do respeito à diversidade e a tolerância às diferenças. O gato que gostava de cenoura, de Rubem Alves(9), conta a história de Gulliver, um gatinho que não quer saber de caçar peixes, ratos ou passarinhos. Na realidade, ele gosta de cenouras.

No desenrolar do semestre, outra mãe entrou em contato, interessada em se afiliar ao grupo, porém, o horário da reunião se mostrou incompatível com seu trabalho. Combinou-se manter contato com ela, informando-a sobre eventos organizados pelo VIDEVERSO e colocando-a a par de alguma possível mudança de horário das reuniões que pudesse viabilizar sua entrada.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência acumulada até o momento sugere que o grupo tem se constituído em um espaço fecundo de troca de experiências e de materiais de divulgação sobre os temas discutidos. Há atualmente, três mães participando ativamente do grupo, uma outra que se integrou por um tempo e depois se desligou e contato com mais três mães que não participam por enquanto das reuniões por incompatibilidade de horário.

Os pais ainda não demonstraram interesse explícito em conhecer o grupo. Segundo o relato de uma das participantes, seu marido “se dispõe a levá-la e a buscá-la de carro”, porém, recusou seu convite para participar das reuniões, evitando inclusive comentar com ela sobre o conteúdo das discussões. Como se pode observar, a condição homossexual de um filho, mesmo quando conhecida, ainda se afigura como um tema-tabu para muitos pais, o que, em nosso entendimento, apenas reitera a relevância dos grupos de acolhimento para os pais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2 Levisky RB. Família: uma psicoterapia de grupo? In: Fernandes WJ, Svartman B, Fernandes BS, organizadores. Grupos e configurações vinculares. Porto Alegre (RS): ArtMed; 2003. p. 215-24.        [ Links ]

3 Uziel AP. Família e homoparentalidade. In: Uziel AP, Rios LF, Parker RG, organizadores. Construções da sexualidade: gênero, identidade e comportamento em tempos de AIDS. Rio de Janeiro (RJ): Pallas: Programa em Gênero e Sexualidade IMS/UERJ e ABIA; 2004. p. 29-36.        [ Links ]

4 Bosco Filho J. Papai é gay! [consultado em 27 de dezembro de 2006] Disponível em: <http://www.artnet.com.br/~marko/papaigay.htm>        [ Links ]

5 Vaitsman J. Flexíveis e plurais: identidade, casamento e família e circunstâncias pós-modernas. Rio de Janeiro (RJ): Rocco; 1994.        [ Links ]

6 Fry P. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro (RJ): Zahar; 1982.        [ Links ]

7 Macrae E. A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da abertura. Campinas (SP): Ed. UNICAMP; 1990.        [ Links ]

8 Cunha AMTR. Potencialidades do trabalho com os vínculos familiares: novas demandas. In: Fernandes WJ, Svartman B, Fernandes BS, organizadores. Grupos e configurações vinculares. Porto Alegre (RS): ArtMed; 2003. p. 225-8.        [ Links ]

9 Alves R. O gato que gostava de cenoura. São Paulo (SP): Edições Loyola; 1999.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Manoel Antônio dos Santos
E-mail: masantos@ffclrp.usp.br
José Urbano Brochado Júnior
E-mail: joseurbanojr@hotmail.com
Murilo dos Santos Moscheta
E-mail: moscheta2@hotmail.com

Recebido: 26/02/2007
Aprovado: 26/06/2007

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