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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

On-line version ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.4 no.1 Ribeirão Preto Feb. 2008

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Uso de álcool e drogas e contextos sociais da violência

 

Usos de alcohol y drogas y situaciones sociales de violencia

 

Drugs and alcohol uses and social contexts of violence

 

 

Rubens de Camargo Ferreira Adorno

Professor Associado da Faculdade de Saúde Pública da USP, líder grupo de pesquisa CNPq, Ciências Sociais, Saúde Pública e Sociedade Contemporânea.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Contextos de violência e de consumo de álcool e drogas são nesse texto tratados a partir dos conceitos de sociedade de risco e reflexividade social, são expostas e discutidas pesquisas empíricas que relacionaram as duas situações, destacando-se a necessidade de não se estabelecer determinações entre esses contextos. Conclui-se que há necessidade de aprofundar a discussão da redução de riscos sociais tanto em relação ao consumo como em relação à violência.

Palavras-chave: Violência, Ciências sociais, Drogas ilícitas, Transtornos relacionados ao uso de substâncias.


RESUMEN

Situaciones de uso de alcohol y drogas y situaciones de violencia son discutidas en este texto bajo los marcos conceptuales de sociedad de riesgo y reflexividad social; son expuestas y discutidas investigaciones empiricas que hicieron relaciones entre las dos situaciones, destacándose la necesidad de no estabelecerse relaciones de determinación entre estos contextos. Se firma la necesidad de profundizar la discusión acerca de la reducción de riesgos sociales tanto en las situaciones de consumo como en las de violencia.

Palabras clave: Violencia, Ciencias sociales, Drogas ilícitas, Trastornos relacionados con sustancias.


ABSTRACT

In this text, contexts of violence and alcohol and drugs consumption are addressed based on risk society and social reflexivity concepts. Empirical research that relates both situations is exposed and discussed, highlighting the need not to establish determinations between these contexts. It is concluded that there is a need for more thorough discussion about the reduction of social risks in terms of consumption as well as violence.

Keywords: Violence, Social sciences, Street drugs, Substance-related disorders.


 

 

INTRODUÇÃO

Nesse texto pretende-se, a partir do ponto de vista das ciências humanas e sociais e sua contribuição metodológica, esboçar algumas notas acerca dos usos e abusos de drogas e seus contextos sociais, especificamente em relação às situações identificadas como de violência. Nesse sentido, estamos tratando de uma situação contemporânea complexa. Complexa tanto do ponto de vista de suas relações como dos instrumentos considerados científicos para sua apreensão e sua compreensão. Uma das características da contemporaneidade é o fato de que qualquer evento ou fenômeno observado está sempre determinado pelo conhecimento que a sociedade tem a respeito desse fenômeno; é a isso que se chama de reflexividade social(1).

Assim também se parte do pressuposto de que o que se compreende como sendo ou não violência é demarcado pelo que uma sociedade estabelece como sendo violência, além de sua esfera jurídico-normativa, bem como pelo conhecimento que se produz a respeito da violência.

 

MATERIAL E MÉTODOS

Estamos diante de duas situações de natureza complexa: o uso de drogas faz parte do contexto e da história da sociedade, utilizadas em rituais, em situações de festas, de lazer, contrapondo-se ou participando de outros aspectos da vida das sociedades. No caso das sociedades ocidentais, a própria presença do vinho como elemento de celebração da religião católica traz esse elemento de extenso significado e uso na história social. Também deve-se lembrar que o uso do álcool fez parte daquilo que o sociólogo francês Alain Ehrenberg(2), chamou de “lubrificante da sociabilidade popular”, nesse sentido mostrando como o uso de álcool fez parte das situações de lazer e recreação, nesse caso, das classes populares; mas lembramos também que de todas as classes sociais. Os usos fazem parte de uma história na qual se inserem rituais ou contextos de uso, a diversificação da oferta de produtos – drogas ilícitas ou lícitas, inclusive os medicamentos que prometem a gestão da vida através de estados de ânimo e exaltação que prometem realizar. Estudos históricos como o do interacionismo simbólico(3) e a investigação do repertório de vida e das situações de uso, são importantes na ampliação e direção das pesquisas com álcool e drogas.

A sociedade contemporânea traz à tona situações complexas que envolvem uso e consumo como expressão de uma lógica capitalista hegemônica que se dá pelo consumo acelerado e por excesso, como no ritmo exigido pelo trabalho dentro desse sistema. Se a produção industrial e o modelo fabril impunham um ordenamento social dividindo consumo/lazer, produção/consumo, a ponto de tornar o uso de álcool como elemento recreativo e presente no momento de término ou de folga do trabalho, o uso de drogas associados quer ao lazer, quer às ações de ocupação profissional tornou-se variada e complexa na sociedade contemporânea, podendo-se inferir ritmos específicos e usos associados a diferentes estilos, ações e significados.

Se o consumo de drogas lícitas e ilícitas representa um extenso domínio econômico em função de produção e consumo, sejam as drogas legais ou ilegais, o hábito do excesso, que é uma característica da sociedade de consumo na contemporaneidade, pode desencadear situações desestruturantes no cotidiano e nas relações sociais, ou pode adequar-se a outros comportamentos esperados no desempenho profissional ou nos círculos de relacionamento. Situamos aqui como situação desestruturante aquela que ultrapassa os mecanismos próprios de controle e autocontrole, em função das redes econômicas e sociais que podem ser utilizadas pelos usuários.

A saúde pública como campo e o que vem sendo chamado de “nova” saúde pública acentua o papel dos percursos e repertórios individuais na gestão do corpo e por conseqüência do que seria a saúde e a doença. Por outro lado, o imperativo do consumo, a compressão do tempo e a aceleração do ritmo de trabalho e de competição trazem para os indivíduos imperativos muitas vezes contraditórios: coloca-se tanto o imperativo de realização pessoal e profissional inserida nos valores e expectativas de vida social, como o imperativo do cuidado de si, através da regulação e do controle do corpo.

A visibilidade da violência na sociedade contemporânea, por sua vez, destaca-se a partir de duas esferas de construção de significados: a violência do estado, a violência política e a violência privada ou no âmbito da família: a primeira remete ao clima pós segunda guerra mundial e a construção dos direitos humanos como valor; a segunda desponta a partir dos movimentos sociais, sobretudo o movimento feminista e os movimentos de valorização e defesa da infância, particularmente a partir da década de 80. Ambas as frentes, por sua vez, situam-se a partir da perspectiva igualitarista e de construção de direitos.

É a partir da segunda metade do século XX que passamos a presenciar o termo “violência urbana”, que passou a identificar as cidades como um território e o modo de vida que aí se desenvolve como predisposto a um estado de insegurança ou de maior exposição a riscos e imprevisibilidades. No final do século XX, esse “modo de vida” se generalizou-se a toda sociedade, possibilitando a noção desenvolvida por cientistas sociais(4), de “sociedade de risco”.

A referência à violência urbana passou a caracterizar a situação de insegurança e medo, em função da possibilidade de ataques às propriedades e às pessoas, homicídios, estupros etc..., mas também remete à própria característica da circulação nas cidades, o trânsito de pessoas e veículos e daí aos acidentes de trânsito.

Tomando essa breve e compacta caracterização de aspectos da sociedade contemporânea, pretendemos demarcar a importância da pesquisa social na compreensão dos contextos e das relações complexas entre esses temas, destacando o fato de que um enfoque de pesquisa que priorize apenas uma perspectiva unidimensional, tomando os sujeitos sociais, decompostos em objetos ou em sistemas exteriores, divididos apenas em características como sexo, idade, etc..., relacionando-os a fatos empíricos pode trazer uma descrição sobre a distribuição de indivíduos e eventos sociais, mas invisibiliza a trama, o enredo ou as circunstâncias que envolvem ou que dão vida aos indivíduos nesses contextos.

Como exemplificação, trazemos aqui algumas referências a pesquisas empíricas realizadas no Brasil, que tomando aspectos descritivos da realidade visibilizam contextos críticos em que se apontam circunstâncias da violência social. Mais do que isso pretendemos destacar como foram tratados e delimitados esses temas para sua utilização na pesquisa empírica apontando para o cuidado em se estabelecer relações entre questões de natureza complexa.

 

RESULTADOS

Investigadores sociais(5) pesquisaram a ocorrência de eventos violentos em emergência hospitalar: para tanto consideraram, no caso da referência ao uso de álcool e drogas questões como: diferenças no contexto de uso; dependência versus uso ocasional ou recreativo; o viés em que incorrem pesquisas que apontam qualquer usuário como um futuro ou um dependente em potencial; a diferença entre as drogas; a distinção entre seu aspecto legal ou ilegal e o fato de que a compreensão do uso de qualquer substância precisa ser considerado como um fato de natureza histórica, social que responde tanto a implicações médicas, políticas, religiosas, econômicas etc. Ou seja, aqui identificamos, no artigo das autoras, o tratamento do fenômeno de maneira a recuperar a teoria clássica do antropólogo Marcel Mauss, sobre o fato social total.

Em relação à violência, o recorte utilizado segue a tradição de estudos em saúde pública considerando-se as Causas Externas do Sistema de Classificação Internacional de Doenças (CID 10), tomando-se a ressalva de que esse sistema permite a construção de indicadores, mas em si não dá conta nem substitui a discussão complexa e polissêmica sobre a violência.

Nesse artigo, as autoras oferecem uma breve, mas rica discussão a respeito dos problemas atinentes à investigação sobre os usos das drogas e as violências, introduzindo aspectos como as relações de gênero, destacando-se a ingestão de álcool por homens e não pelas mulheres vítimas de violência, a questão do mercado ilegal de drogas como um contexto de violência, dadas pelas regras desse mercado e não necessariamente pelo uso de drogas. Destacam principalmente problemas de ordem metodológica, quais sejam os problemas interpretativos e o método de investigação.

Nesse aspecto, levantam a discussão: há evidência empírica de associação entre o uso de álcool e o desfecho de homicídios e suicídios, em torno de 50% para o primeiro e 30% para o segundo. Entretanto, isso não pode levar a uma interpretação linear, considerando-se apenas uma outra evidência: o número de pessoas que bebe é muito maior do que aquelas que cometem um homicídio ou suicídio, sendo, portanto temerário estabelecer-se aí uma relação de causa e efeito. No decorrer da discussão, passam a destacar outros riscos interpretativos das pesquisas descritivas, tais como a presença de um número maior número de homicídios entre jovens pobres, ou em determinados bairros, podendo-se encontrar jovens e bairros pobres nos quais os índices são bem menores. Também situam as interpretações que procuram destacar aspectos individuais, como características de personalidade, respostas endócrinas, neuroanatômicas etc... alertando para os diferentes contextos culturais, econômicos que exercem mediações sobre os indivíduos, ou seja o papel das relações grupais, associativas, em relação às ações individuais. Ainda e não referindo aqui uma descrição exaustiva desse artigo, chama a atenção para a própria forma com que os dados são produzidos ou coletados pelas instituições como possibilidade de vieses ou conclusões apressadas em relação aos fatos sociais.

Dando prosseguimento a essa exposição tomamos outra pesquisa empírica de base quantitativa, que se baseando em uma amostra domiciliar vem problematizar também a relação entre esses dois temas complexos. Trata-se da pesquisa(6) apresentada em artigo denominado “Violência domiciliar associada ao consumo de bebidas alcoólicas e de outras drogas: um levantamento no Estado de São Paulo”.

Essa pesquisa toma como base o que a Organização Mundial de Saúde em 2002 definiu como “violência”. Trata-se de uma definição bastante ampla que toma algumas ações ou performances sociais como indicativas da violência. Assim, são consideradas violências ou situações violentas tanto uma reação performática como “escândalo, discussão ou bronca exagerada”, “dano ao patrimônio de moradores de um domicílio”, considerando-se o dano como a quebra ou furto de objetos; agressão física ou ameaça de agressão com soco, tapa, empurrão, com uso de objetos (pedaço de madeira, bituca de cigarro, etc), arma (faca, revólver, etc.. ) e a relação sexual forçada, ou sua tentativa. A amostra foi de 2372 domicílios encontrados em 27 municípios com mais de 200.000 habitantes localizados no Estado de São Paulo.

Esse estudo detectou situações de violência de acordo com a definição da OMS em 31,6% dos domicílios, e nesses 52,7% encontrava-se o relato do uso de álcool e em 9,7% de outras drogas, o que dito de outra forma em cerca de 44% dos domicílios os indivíduos estavam sóbrios. Em relação aos que ingeriram álcool cerca de 91% eram homens, e 83,3% em relação a outras drogas. A faixa de idade dos que fizeram uso de álcool era superior aos que referiram o uso de outras drogas.

O estudo conclui que embora tenha se tornado do senso comum a relação que a imprensa faz entre uso de drogas e violência, a violência, mesmo que tomada em um aspecto amplo como a definida pela OMS, ocorreu em uma quantidade menor de domicílios, relacionou-se com o uso de álcool e com consumidores do sexo masculino, destacando também que o reverso pode ser concluído, nem todas as pessoas que fazem uso do álcool se envolvem em violência.

Uma outra situação que ganha destaque na imprensa é o clichê de se relacionar violência com jovens e uso de drogas, especialmente jovens pobres. Dessa maneira difunde-se a associação entre drogas e violência e a idéia de que os jovens estariam propensos ao uso como um fato irrefreável.

Pesquisas que realizamos nos circuitos de rua, com jovens das classes populares(7-8) demonstraram que o uso de drogas como o crack passavam a fazer parte de um determinado circuíto - o circuíto de rua, no qual passava a funcionar como um símbolo de distinção. Viver nas ruas envolve situações invasivas e a exposição ao olhar dos outros e as investidas de agentes municipais e da polícia e nesse sentido mostrar-se agressivo ou violento torna-se uma estratégia de defesa. Ao mesmo tempo a imprensa, notadamente na cidade de São Paulo, passava a destacar o crack como uma droga que se relacionava à violência. Na etnografia de rua presenciamos crianças e jovens que embora acabassem de acordar de sua dormida embaixo de uma marquise ou próximo ao meio fio, passavam a gritar e se referir como violentos e usuários de crack, usando uma estratégia ao mesmo tempo defensiva, de ataque, para atemorizar as pessoas que passavam e assimilar por efeito reflexivo o que a mídia divulgava a respeito da droga da qual faziam uso.

Estudos realizados em outras cidades globais como o de um antropólogo social(9) em Nova York demonstram essa relação complexa entre exclusão social, tráfico de drogas e a violência. Da mesma forma concluem estudos antropológicos realizados no Rio de Janeiro(10), a violência relaciona-se muito mais a estrutura do tráfico e à repressão policial do que ao uso das drogas. No caso da pesquisa realizada no contexto do tráfico e uso de crack em Nova York, a questão da violência assim como a “inclusão” dos usuários e trabalhadores do tráfico, relaciona-se muito mais à exclusão social e a uma tradição de masculinidade.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em função da caracterização que realizamos da sociedade contemporânea como uma sociedade de riscos, ou na qual aumentam as possibilidades de riscos e situações complexas, temos observado e discutido ações intituladas de redução de danos, as quais chamaríamos de redução de riscos sociais, pois não se trata apenas de uma questão técnica, mas envolvem sempre um contexto e um repertório. Políticas como as de desarmamento, distribuição de preservativos, estímulo à ingestão de água em bares e casas noturnas fazem parte hoje de medidas de saúde pública. Se contemporaneamente a saúde pública têm pregado para os indivíduos a gestão de seu corpo, através do estímulo à prevenção de doenças crônico-degenerativas ou estimulado hábitos ou estilos de vida saudáveis, registramos que essas situações envolvem questões contraditórias e complexas. Considerando que a sociedade de consumo, o ritmo de vida impõem situações de risco na gestão da vida das pessoas, cabe então o provimento de meios que possam reduzir os danos, pois a própria idéia de redução pode tornar-se um meio de reflexão no sentido de ampliar o repertório de vida e de apoio na complexa gestão da vida pessoal no mundo contemporâneo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 Giddens A, Beck U, Lasch S. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP; 1997.        [ Links ]

2 Ehrenberg GA. L´individu incertain. Paris: Calmann-Lévy; 1995.        [ Links ]

3 Becker H.S. Outsiders: studies in the sociology of deviance. New York: Free Press; 1966.        [ Links ]

4 Beck U. Risk society: towards a new modernity. London: Sage Publications; 1996.        [ Links ]

5 Minayo MCS, Deslandes SF. A complexidade das relações entre drogas, álcool e violência. Cad Saúde Pública. 1998; 14(1): 35-42.        [ Links ]

6 Noto AR, Fonseca AM, Silva EAS, Galduróz JCF. Violência domiciliar associada ao consumo de álcool e outras drogas: um levantamento no estado de São Paulo. J Bras Depend. Quím. 2004; 5(1): 9-17.        [ Links ]

7 Adorno RCF. Os imponderáveis circuitos dos vulneráveis cidadãos. In: Lerner J, organizador. Cidadania verso e reverso. São Paulo: Imprensa Oficial; 1998. p. 93-110.        [ Links ]

8 Adorno RCF, Silva SL. Cenas do Mapeamento de Rua: Diários e Discussões dos Educadores. In: Lescher AD, Sarti C, Bedoian G, Adorno RCF, Silva SL, organizadores. Cartografia de uma rede. São Paulo: UNIFESP/FSP/USP/UNDCP/Ministério da Saúde; 1999.        [ Links ]

9 Bourgois P. Search of respect: selling crack in el Barrio. New York: Cambridge University Press; 1995.        [ Links ]

10 Zaluar A. Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas . Rio de Janeiro: Editora FGV; 2004.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rubens de Camargo Ferreira Adorno
E-mail: radorno@usp.br

Recebido: 22/12/2007
Aprovado: 15/01/2008

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