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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) v.5 n.1 Ribeirão Preto fev. 2009

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Relação de ajuda enfermeiro-paciente pós-tentativa de suicídio*

 

Relación de ayuda enfermero-paciente tras tentativa de suicidio

 

Nurse-patient help relation after suicide attempt

 

 

Rita de Cássia AvanciI; Antonia Regina Ferreira FuregatoII; Maria Cecília Morais ScatenaI; Luiz Jorge PedrãoII

IEnfermeira da Unidade de Emergência do HCRP da FMRP- USP. Mestre em Enfermagem Psiquiátrica
IIProfessores Doutores do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da EERP/USP. e-mail: furegato@eerp.usp.br

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou apresentar a análise de uma relação terapêutica enfermeiro-paciente, após tentativa de suicídio de paciente internada em Unidade de Emergência por ingestão de soda cáustica. A interação de ajuda no modelo humanista foi gravada e transcrita. A análise apresentou quatro etapas: 1) O exame - a enfermeira escutou a paciente, estimulou a expressão, esclarecendo os procedimentos técnicos. Iniciou-se um processo empático, de confiança; 2) Saudade de casa - a paciente expressou sentimentos sobre a casa e familiares; 3) Tentativa de suicídio - verbalizou sua experiência (tentativa de suicídio), percebendo sua participação, realizando uma autoreflexão; 4) O cotidiano - expressou outros sentimentos em suas atividades no cotidiano.

Palavras chave: Enfermagem psiquiátrica, Suicídio, Relações interpessoais, Cuidado.


RESUMEN

La finalidad de este estudio fue presentar el análisis de una relación terapéutica enfermero-paciente, después de tentativa de suicidio. Paciente internada en Unidad de Emergencia por ingestión de soda cáustica. La interacción de ayuda en el modelo humanista fue grabada y transcrita. El análisis presentó cuatro etapas: 1) El examen: La enfermera escuchó a la paciente, estimuló la expresión esclareciendo los procedimientos técnicos. Se inició un proceso empático, de confianza.; 2) Saudade de Casa: La paciente expresó sentimientos sobre la casa y familiares; 3) Tentativa de Suicidio: Verbalizó su experiencia (tentativa de suicidio), percibiendo su participación, realizando una auto-reflexión; 4) El cotidiano: Expresó otros sentimientos y sus actividades en el cotidiano.

Palabras-clave:Enfermería psiquiátrica, Suicidio, Relaciones interpersonales, Cuidado.


ABSTRACT

This study aimed to present an analysis of a therapeutic relation between nurse and patient following suicide attempt. Patient hospitalized in Emergency Unit due to caustic soda ingestion. Care interaction according to the humanist model was taped and transcribed. The analysis presented four stages: 1) The exam: The nurse listened to the patient and stimulated expression, clarifying technical procedures. An empathic process of trust was initiated; 2) Homesickness: Patient expressed feelings regarding home and family; 3) Suicide Attempt: Verbalized her experience (suicide attempt), perceiving her participation and performing self-reflection; 4) The daily routine: Expressed other feelings in her daily routine.

Key Words:Psychiatric nursing, Suicide, Interpersonal relations, Care.


 

 

INTRODUÇÃO

Suicídio é tema complexo e digno de reflexões por parte de profissionais de várias áreas de atuação. Suas causas ainda são motivo de curiosidade e de investigação.

O comportamento suicida pode ser compreendido em três categorias: a) ameaças de suicídio - são as advertências indicando que a pessoa tem a possibilidade de se suicidar; b) tentativas de suicídio - qualquer ação autodirigida, empreendida pela própria pessoa e que poderá culminar em morte, caso não seja interrompida; c) suicídio - é a efetivação da intenção suicida(1).

Segundo a psicanálise, a natureza humana funciona sob duas tendências essenciais: Eros (pulsão que conduz à vida) e Tanatos (pulsão que conduz à morte). São dois extremos de um continuum, onde o primeiro conduz à vida, ao amadurecimento, ao crescimento, enquanto que o segundo se refere ao inerte, à pulsão de morte, culminando na reversão do tudo ao nada. Quando a pulsão da morte se sobrepõe à pulsão da vida, ocorre o suicídio ou as tentativas desse intento(2).

Na psiquiatria clínica, o suicídio é considerado ato consciente de aniquilação autoinduzida, encarado como enfermidade multidimensional. O suicídio não é um ato aleatório ou sem finalidade, representa a "melhor" solução para uma situação carregada de muita ansiedade e intenso sofrimento(3-4).

Estudos epidemiológicos sobre suicídio evidenciam que, em países desenvolvidos como a Dinamarca, a tendência ao suicídio é crescente e apresenta aumento significativo entre as mulheres, com maior risco para o grupo de meia-idade. Países em desenvolvimento apresentam taxas baixas, talvez pela subnotificação dos casos(5).

A tentativa de suicídio é uma das causas mais frequentes de atendimento em urgências psiquiátricas(6). O serviço de urgência desempenha papel importante na intervenção e prevenção do suicídio, pois o paciente que tentou é vulnerável a novas tentativas. Assim, é importante o estabelecimento de vínculos interpessoais com o paciente, através da relação profissional de ajuda e de seus vínculos familiares e sociais.

A relação de ajuda é definida, na orientação não diretiva, como situação relacional criada e mantida pelo profissional, através da qual o cliente tem oportunidade de passar pela experiência de uma boa comunicação consigo mesmo para se compreender melhor, entrar no processo de congruência ou melhorá-lo, adquirindo atitudes e comportamentos mais construtivos, adequados e satisfatórios para si mesmo nas suas relações com os outros(7-8).

Segundo a orientação não-diretiva, na relação de ajuda, espera-se que a atenção focalize não o problema da pessoa, mas a própria pessoa, sobre seu crescimento, desenvolvimento, maturidade, melhor funcionamento e maior capacidade para enfrentar a vida. No enfoque não diretivo, a comunicação é uma "conversa" estruturada e tecnicamente reconhecida(7).

A comunicação consigo mesmo é o processo através do qual o indivíduo vai representando adequadamente na consciência tudo o que ele sente e percebe em si. Muitos processos de desajustamento são consequência de falhas de comunicação onde o indivíduo deixou de comunicar-se bem consigo e com os outros(8-9).

A ajuda é um ato de capacitação da parte de quem busca e um ato de doação da parte de quem oferece ajuda. A ajuda terapêutica promove, no outro, o crescimento, o desenvolvimento, a maturidade, melhor funcionamento, maior autonomia e capacidade de enfrentar a vida(10).

O homem é o único ser vivo capaz de tomar consciência de si. Simbolizando corretamente suas experiências, a pessoa pode conhecer os recursos que possui e perceber com acerto as diversas necessidades para seu desenvolvimento, tanto em plano fisiológico, como psicológico e cultural. Na medida da boa comunicação consigo mesmo, o homem busca o seu equilíbrio biopscicossocial, ou seja, ele pode confiar em si, bem como os outros podem confiar nele(8).

Desenvolver uma relação profissional empática significa procurar conhecer os problemas do outro o mais claramente possível, para tentar ajudar a resolvê-los, segundo seu próprio ponto de vista. É preciso ouvi-lo para entrar no mundo dos seus sentimentos e concepções pessoais, aceitá-lo totalmente, tolerar seus desvios de comportamento e estimular suas atitudes positivas. O profissional deve estar atento às suas expressões, pois simples gestos, olhares ou palavras podem ser interpretados pelo outro como ameaçadores. Perceber o outro, no momento presente (aqui e agora), em processo de transformação, é uma forma de respeito e compreensão(7).

A enfermeira, comprometida com o paciente sob seus cuidados, estabelece uma aliança terapêutica, mantendo a capacidade de relacionar-se com o paciente para ajudá-lo a sair amadurecido desse episódio(11).

Dessa forma, em qualquer área de atuação da enfermagem, a relação de ajuda é um instrumento essencial para o planejamento do cuidado e a humanização da assistência.

 

OBJETIVO

Este estudo teve por objetivo analisar a interação de um enfermeiro com um paciente que tentou o suicídio.

 

PERCURSO METODOLÓGICO

É pesquisa descritiva com análise de uma interação enfermeiro-paciente, embasada no referencial teórico compreensivo da relação de ajuda.

1 - Local

Setor de observação da Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

2 - Sujeito

Paciente com 47 anos, amasiada, manicure, natural de cidade do interior de São Paulo. Hipótese diagnóstica médica de tentativa de suicídio por Distimia ou Transtorno de Personalidade.

3 - Procedimentos de coleta dos dados

Atividade de campo foi proposta durante uma disciplina de pós-graduação. A enfermeira do setor de Observação da Unidade de Emergência do HCFMRP-USP escolheu a paciente de forma aleatória. Para a interação de ajuda, a paciente sentou-se em uma cadeira ao lado do seu leito e a enfermeira sentou-se à sua frente. A interação durou 45 minutos.

4 - Projeto aprovado por Comitê de Ética da EERP-USP (Protocolo nº 0151/01). Previamente foram explicados os objetivos e técnicas da pesquisa na relação de ajuda. A paciente concordou e assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Nome fictício do sujeito na apresentação e análise deste estudo: Ana.

5 - Análise dos resultados

O conteúdo transcrito na íntegra, apresentado e discutido pelos docentes e alunos do curso de pós-graduação, reflete o caráter terapêutico do relacionamento interpessoal enfermeiro-paciente. As análises foram baseadas no referencial bibliográfico sobre não diretividade e no conhecimento das relações interpessoais, enriquecidas pelas experiências interpessoais de cada um, pois, a maior parte dos alunos é composta por profissionais atuantes em áreas assistenciais ou acadêmicas.

 

RESULTADOS

APRESENTAÇÃO DA INTERAÇÃO E ANÁLISE CRÍTICA

A - História clínica da internação

A paciente foi admitida na Unidade de Emergência (UE) por tentativa de suicídio, após ter ingerido soda cáustica. Foi submetida à endoscopia digestiva alta, por apresentar esofagite e úlcera gástrica. Foi passada uma SNE gástrica. Referiu ter ingerido soda cáustica para se matar, devido a problemas conjugais. O diagnóstico médico indicava Distimia ou Transtorno de Personalidade.

LB - Interação enfermeiro-paciente

A interação enfermeiro-paciente foi agrupada em quatro etapas para melhor análise e compreensão (o exame, saudade de casa, a tentativa de suicídio e o cotidiano). Foram extraídos alguns trechos comentados de acordo com sua significância em cada uma das categorias.

1 - O exame

E (ENFERMEIRA) Então, se quiser falar alguma coisa pode ficar à vontade, é uma relação de ajuda.

P (PACIENTE) Pode perguntar.

E - Mas, tem alguma coisa, assim, que eu possa te ajudar ainda? Nesse tempo que você está aqui, alguma coisa está faltando?

P - Não, não.

E - Você acha que não?

Nesse trecho, a enfermeira estimulou a paciente para continuar a se expressar verbalmente.

P - Também eu acho que amanhã depois desse exame, acho que eu vou embora. Não é possível, já faz quatorze dias que eu estou aqui.

E - Mas, você está preocupada com esse exame?

P - Eu estou um pouco com medo, porque no dia que eu cheguei, não sei se eu estava desmaiada, parece que foi de lado que eu fiquei, não sei nem como faz agora esse exame, se é deitada se é...

Nesse momento, a paciente apresentou desconhecimento e medo em relação ao exame e a enfermeira usou a oportunidade para esclarecê-la.

E - Esse exame é o seguinte: eles vão dar um tipo de um anestésico de espirrar; sabe aqueles spray que espirram em garganta?

P - Sei.

E - ... então, tem uma câmara, uma filmadora na pontinha do aparelho. Ele passa devagarzinho, depois que passou o anestésico, vai até o estômago [mostra o estômago na paciente],como se fosse essa sonda nasoentérica que você tem aí. E aí, por uma televisãozinha, por um visor, no momento que ele passa, ele já vê como está.

P - Já mostra o resultado, como que tá??

E - Na hora.

P - Ah é !! Então não precisa ficar esperando?

E - Não, porque a filmadora está filmando tudo.

P - Sei...

P - Entendi.

E - É um exame um pouco desconfortável, mas não é nada além disso.

P - Nem muito demorado?

A enfermeira continua esclarecendo as dúvidas apresentadas pela paciente sobre o exame que vai realizar e sobre a possibilidade de alta.

Durante a primeira etapa da interação, observa-se a disposição da enfermeira para escutar a paciente bem como a introdução de estímulos para que a paciente se expressasse verbalmente. Observa-se, também, a "necessidade sentida pela enfermeira" de esclarecer a paciente sobre os procedimentos técnicos do exame. Isso vem de encontro à característica da profissão de enfermagem, que nasce num modelo biomédico, com ênfase numa visão tecnicista(6), autoritária e de quem domina o saber.

Atividades informantes são intervenções que visam o esclarecimento do cliente. Esse utiliza o informe para efetuar, ele mesmo, a atividade estruturante(7). A resposta compreensiva, dada pelo terapeuta não diretivo, ajuda o cliente a descobrir o sentido para a sua experiência e a manter-se na posse dos significados que lhe são apresentados, a fim de explorá-los. Em uma relação de ajuda, se o paciente faz alguma pergunta ao enfermeiro, esse deverá responder, esclarecer e informar. Nessa etapa, após a intervenção da enfermeira ao esclarecer sobre o exame, a paciente realizou várias perguntas sobre o assunto e pôde expressar seus medos e preocupações.

Nesse primeiro contato, estabeleceu-se uma relação de empatia e confiança.

2 - Saudade de casa

P - Já me libera porque olha, já faz tempo que eu estou aqui,estou com saudade da minha casa...

Na sequência, a paciente demonstrando maior confiança na enfermeira, verbalizou sentimentos mais profundos como sentir saudade de casa e de membros da sua família. A enfermeira mostrou-se atenta quanto à verbalização e estimulou a paciente a falar sobre sua casa.

E - Está com saudade? Você mora aonde?

P - Numa cidade aqui perto.

E - Hum.

P - To com saudade dos meus netos, dos meus filhos, né.

E - Você já tem neto?

P - Tenho, tenho um que vai fazer nove anos, o mês que vem.

A enfermeira mostrou-se atenta, escutando a paciente, acompanhando com interesse sua comunicação. A paciente ia falando sobre seus familiares até que a enfermeira perguntou-lhe se vinham visitá-la.

P - Ontem meu marido veio, ficou o dia inteiro, até à noite. No dia das mães, eles vieram. Você não viu a cesta que eles me trouxeram? Que linda!

E - Eu não trabalhei no dia das mães.

P - É uma cesta de flor natural, uma bolsa, um livro. Trouxeram um monte de coisas, mas precisou levar embora, porque [incompreensível] não podia deixar aqui.

E - De flor.

P - De flor natural mesmo, violeta, sabe aquelas begônia? Tanta coisa!

E - Você gosta de flores?

A enfermeira interrompeu o discurso provocando, posteriormente, silêncio prolongado, pois a paciente não queria falar das flores, e sim de seus familiares, do afeto do seu marido em ter-lhe trazido flores. Aí a enfermeira retomou com a seguinte pergunta:

E - Então, tem mais alguma coisa que te preocupa aqui, Ana?

P - Não. Só estou preocupada, porque eu acho que meu caso depende desse exame.

Nesses trechos, a enfermeira retomou o problema inicial. A paciente reafirmou seu desejo de ir para casa, pois esse era o ponto que mais a incomodava no momento. A enfermeira retomou o sentimento já expresso anteriormente pela paciente, saudade de casa.

Nessa etapa, a relação de confiança e empatia continuava sendo construída. A enfermeira mostrou-se disposta a escutar a paciente, sensibilizando-se com o sentimento expresso. Não se preocupou tanto com seu diagnóstico ou com condutas estabelecidas por um modelo, considerando que é importante estar-se sensível aos sentimentos e reações que o outro experimenta no momento da interação e apreendê-las de dentro, tal como ele os vê(6).

A paciente expressava um sentimento importante "saudade de casa", carregando grande expectativa por trás dessas palavras, tendo em vista que retornará para casa após ter tentado o suicídio. Por isso, o enfermeiro precisa estar atento e sensibilizado quando o paciente expressa algum sentimento.

Em alguns trechos, a enfermeira não compreendeu a mensagem, interrompeu o discurso, tornando-se inadequada e provocando o silêncio da paciente. É necessário verificar com o outro o significado de sua mensagem e estar atento à compreensão da mensagem do outro, tanto do conteúdo psicológico das mensagens associado à comunicação verbal como o não-verbal(7,9-10).

Cabe ao enfermeiro, contudo, durante uma relação de ajuda, estar atento e se sensibilizar com a mensagem que a paciente transmite, evitando intervenções precoces e desnecessárias, as quais poderão funcionar como bloqueios para a comunicação.

3 - A tentativa de suicídio

E - Você... e do que aconteceu sobre você, você não lembra?

A paciente foi estimulada a verbalizar sua experiência e perceber sua participação nela.

P - Lembro tudo, tinha feito todo meu serviço e ia fazer sabão. Ao invés de eu fazer sabão, peguei e tomei a soda, só que eu não sei por quê. Até hoje eu não sei por quê eu fiz isso.

E - Você ia fazer sabão! Você se lembra que aquilo era soda?

P - Lembro que era soda, que mata, que é perigoso mas não sei por quê eu tomei. Parece que uma coisa me puxou pela mão, assim, eu não tinha brigado com ninguém.

E - Não?

P - Não. Estava numa boa, meu marido e meu filho já tinham saído pra trabalhar. Essa eu não entendi até agora.

E - Já tinha acontecido com você outras vezes?

P - De eu tentar suicídio?

A paciente afirma que seu ato foi uma tentativa de suicídio.

E - É.

P - Não.

E - Primeira vez?

P - Primeira vez. E o pior é que eles ficam me cobrando. Ontem meu marido perguntava pra mim: bem, porquê você fez isso? Fala pra mim, o que que tá ti... Mas é porque eu tenho depressão. Então eu já senti que eu já não tava muito bem, sabe? Mas, não a ponto de fazer isso.

E - Hum...-Você sentiu que não estava....

P - Senti que eu estava com vontade de chorar, com uma certa angústia, entendeu? A depressão me dá isto, dá vontade de ficar no quarto deitada na minha cama e chorando. Eu sinto uma angústia, uma mágoa, entendeu, no peito... Mas nunca que esperava de eu fazer isto. Me arrependi muito, porque eu tenho dois filhos maravilhosos, Acho que eu dei mau exemplo pros meus filhos, pros meus netos.

E - Você ficou arrependida?

P - Nossa! Eu arrependi demais, todos os dias eu peço perdão a Deus por eu ter feito isso...

Silêncio longo. A paciente, Ana, mostra-se confusa em relação à pergunta da enfermeira sobre arrependimento. Afirma não saber porquê praticou o ato. Realiza uma autoreflexão e julgamento de si própria.

E - Você imaginava que tinha essas consequências?

P - Não.

E - De ficar todo esse tempo no hospital?

P - Não, pra mim eu ia tomar aquilo, ia desmaiar, ia acordar e ia ficar em casa, mesma coisa, né.

E - Mas, não imaginava....

P - Infelizmente, não. Aconteceu.

Silêncio curto.

E - É difícil, né, Ana?

P - É difícil. É difícil porque eu não sei explicar o porquê que eu fiz isso. Não vai adiantar eles ficar me perguntando a vida inteira.

A enfermeira mostrou-se sensível ao conflito que a paciente expressava e procurou não manifestar juízos de valor. Através da comunicação que se seguiu, ajudou a paciente a tomar consciência do acontecido.

P - O por quê, porque eu não sei também. Porque se eu soubesse eu não teria feito né. Se eu soubesse que eu ia sofrer tudo isso, que eu estou sofrendo... Eu devia ter saído e procurado qualquer pessoa pra conversar e tomasse qualquer outra coisa. Engraçado que na minha geladeira tinha de tudo, porque tinha sido o aniversário do meu filho no dia 25 que ele fez 22 anos...

E - Hum.

P - Tinha champagne, tinha skol, tinha vinho branco, tinha Bhrama, tinha de tudo. Ao invés de abrir a geladeira, coca tinha. Invés de abrir a geladeira pra tomar as coisas, fui tomar a soda.

E - Você foi fazer o sabão, também .

P - É eu queria aproveitar fazer cedo, porque eu não sei se você sabe o segredo desse sabão...É aquele sabão que não vai ao fogo, é 20 minutos, se bate frio. Então, outro dia eu fui fazer à noite, começou chegar muita gente na minha casa, meu sobrinho, minha sobrinha, meus neto... aí zangou o sabão.

E - Ah! tá.

P - Ele endureceu. Aí eu falei: já que todo mundo saiu, já terminei o serviço, acho que vou fazer o sabão porque não vai chegar ninguém. Fui fazer o sabão pus a soda no copo e tomei.

E - Você tava sozinha?

P - Sozinha, eu e Deus.

A paciente retoma e conta com maiores detalhes o dia da tentativa de suicídio, tentando resolver seu conflito interior. A enfermeira mostra-se atenta e respeita o que a paciente expressa.

E - Então, Ana, dessa experiência que você teve, é importante você fazer esse acompanhamento e no momento que você sentir essa angústia, igual você sentiu quando foi fazer sabão, você procura alguém.

P - Sai, né?

E - Procura alguém da sua família ou vai lá no posto, fala: "tô precisando de ajuda!"

P - É minha mãe mora uma rua pra baixo da minha casa, né?

E - É importante a gente saber que a gente precisa de ajuda.

P - E ser ajudado né.

A enfermeira realiza uma intervenção e orienta Ana a procurar ajuda, quando sentir necessidade.

Nessa etapa, fica evidente a relação de confiança. A enfermeira estimula a paciente a verbalizar sua experiência e a perceber sua participação nela. A enfermeira auxiliou na busca de detalhes que ajudaram a paciente a tomar consciência dos fatos, a obter uma visão objetiva sobre seu próprio problema, aprofundando no tema e concretizando a realidade. O paciente precisa ter consciência de que ele é um elemento ativo, que tem sua parcela de responsabilidade, inclusive decidindo pelo melhor caminho da autoajuda(7).

A paciente expôs a vivência de conflitos, pois afirma ter tentado o suicídio, que não sabe explicar e sua família quer uma resposta, uma "explicação" sobre o fato ocorrido. A enfermeira mostrou-se adequada, escutou atentamente a paciente proporcionou espaço para a paciente realizar uma autoreflexão, evitando interferências, juízos de valor, preconceitos ou cobranças, aceitando seus sentimentos e aflições.

Para ajudar a transformação de alguém, o melhor não é pressioná-lo na direção da mudança, nem mesmo ensinar-lhe o caminho a seguir ou guiá-lo pela inteligência, mas, o melhor é aceitar, dando valor aos seus receios, às suas angústias, às resistências e a tudo aquilo que o impede de mudar. "(...) Se alguém tenta agir diretivamente sobre uma pessoa, fazendo julgamento ou dando-lhe conselhos, ela procura reagir à pressão que se exerce, tende a assumir uma atitude oposta à que se desejava"(8).

O ser humano está sempre fazendo avaliações, interpretando o que ocorre consigo e ao seu redor. O centro do julgamento está dentro de nós mesmos(7,9-10). Portanto, numa relação de ajuda deve-se permitir que o paciente encontre a resposta para seus conflitos.

Um dos objetivos do cuidado de enfermagem junto a pacientes com tendência suicida é ajudá-los a exteriorizar sua agressividade, seus sentimentos e a suportar suas experiências. Essa exteriorização da agressividade pode ser um sinal positivo, indicando que a paciente está em processo de melhora(11).

4 - O cotidiano

A paciente relatou sobre sua família, suas atividades, sempre retomando a autoreflexão sobre a tentativa de suicídio.

P - Olha, eu peço prá ninguém nunca fazer isso, porque isso é muito triste. Não sabia que tinha tanta consequência assim. Agora ainda tô bem, mas no começo quando eu cheguei aqui... agora em vista eu tô ótima, aparentemente por fora eu tô ótima.

E - E por dentro?

P - Por dentro? Agora né [(aponta o estômago)... (risos)]

E - E por dentro, na alma?

P - Na alma eu tô assim sabe arrependida, muito arrependida, mas supera né.

E - Supera.

Silêncio curto... Nesse trecho, a enfermeira, muito atenta, ajudou a aclarar o que estava sendo comunicado(6), sugerindo que esclarecesse com alguma colocação a dificuldade de compreensão.

P - Tem vez que cê tá ali pra sair é umas 10:30, falo "bem vamo sair, vamo no forró". Aí a gente toma banho pra sair, aí começa filme, pega fita na locadora põe no vídeo, acabou... se acomoda muito no quarto. Por isso também não pode.

E - É isso é uma questão de conversar com seu marido.

P - Tem que sair um pouco dessa rotina porque se não tá perdido.

P - Meus filhos são uns anjos, tadinhos!

E - É?

E - Fora isso o que faz na sua casa?

P - Sou manicure, tenho carrinho de lanche, vendo cachorro-quente, faço cocada, maçã do amor, qualquer tipo de doce, salgado.

E - Nossa, faz bastante coisa.

A enfermeira mostrou-se adequada estimulando as atitudes positivas da paciente.

P - Faço, eu que limpo a casa da minha mãe, eu que olho meu irmão que é doente e minha mãe que é doente. Eu que lavo e passo prá minha menina, eu não tenho tempo de pensar bobeira. Não sei como que eu fui fazer isso. Parece uma coisa mandada viu!

E - Você tava precisando de ajuda e não percebeu...

P - É não percebi.

A paciente retoma a autoreflexão sobre a tentativa de suicídio.

E - Agora você já sabe. Mas você tem bastante atividade.

E - Tem os netinhos... a família cresceu..

P - É, tô com saudades deles, não vejo a hora de ver eles... Meu netinho não sabe que eu tomei soda, eu não deixei, falei prá mãe não falar. Ele pensa que eu tô desmaiada. Porque de vez em quando eu desmaio, né, por causa de uns problema. Então ela disse que domingo ele falô prá ela "ô mamãe a vovó não acordou ainda do desmaio, faz dias heim, que ela tá desmaiada", diz que ela falou prá ele "não filho ela já acordou ela ta recuperando", "mas eu to com saudade da minha avó". Ele estuda e vende as coisas na cantina, né. Então você sabe quem dá dinheiro todo dia, né.

E -... Alguma coisa, algum sentimento, prá eu te ajudar?

P - Não, agora tá tudo bem, só mesmo esse arrependimento deu ter feito isso. Mas agora já foi e espero que Deus me ilumine que tira isso da minha cabeça né.

E - Então obrigada.

P - Obrigado você. Gostei da tua entrevista. Me tranqüilizou mais.

Nessa etapa, a enfermeira escutou com atenção a paciente que falou sobre suas atividades cotidianas e sobre sua família, retomando em alguns trechos a autoreflexão sobre a tentativa de suicídio, monstrando maior confiança e empatia. A enfermeira apoiou e estimulou as atitudes positivas da paciente.

Numa relação de ajuda, deve-se transmitir ao outro que somos merecedores de confiança, que estamos seguros e somos consistentes(7,9). A escuta é muito importante durante uma relação de ajuda porque ouvir alguém não é o mesmo que escutar intelectualmente o que é dito. É muito mais. É ouvir a mensagem emitida através das comunicações verbais e não-verbais, compreender o que o outro expressa, alcançando os significados que ele dá à realidade tal como ele a entende(7).

 

CONCLUSÕES

A interação enfermeiro-paciente foi positiva, considerando-se um primeiro contato. A paciente realizou uma autoreflexão sobre a tentativa de suicídio, o que a ajudou a se compreender melhor, seus limites e as forças que interagem dentro de si.

Na interação apresentada, a manifestação de afeto familiar veio acompanhada pelos questionamentos sobre seu ato, gerando ansiedades em relação à volta ao lar.

Nessa interação, a paciente retomou várias vezes à experiência da tentativa de suicídio, indignando-se e tentando compreender seu próprio ato. Dessa maneira, suas ansiedades puderam ser trabalhadas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em: 05/2008
Aprovado em: 01/2009

 

 

* Trabalho elaborado na disciplina Relacionamento Interpessoal Enfermeiro-Paciente do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem Psiquiátrica. Projeto apoiado pelo CNPq nº 305698/2006-0.

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