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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) v.6 n.1 Ribeirão Preto  2010

 

Contando e encantando histórias de vida em um centro de atenção psicossocial

 

Contando y encantando historias de vida en un centro de atención psicosocial

 

Telling and enchanting lifestories in a psychosocial care center

 

 

Tatiane Neme Campos-BrusteloI; Fernanda Feliciano BravoII; Manoel Antônio dos SantosIII

IPsicóloga pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), mestre em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, FFCLRPP-USP, psicóloga do CAPS II do município de Indaiatuba, SP. e-mail tatincb@gmail.com
IITerapeuta Ocupacional pela Universidade de Sorocaba, especialista em Gerontologia pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.3 Psicólogo. Professor Doutor do Departamento de Psicologia e Educação da FFCLRP-USP. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. e-mail masantos@ffclrp.usp.br

 

 


RESUMO

A Reforma Psiquiátrica tem provocado inúmeras mudanças na atenção ao portador de sofrimento mental, ampliando as formas de intervenção junto a essa população. Este trabalho teve por objetivo relatar a experiência de criação de um grupo de contação de histórias em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Nesse grupo, por meio da apropriação de contos milenares, histórias do cotidiano e experiências de vida dos próprios participantes, é criado um espaço no qual cada um pode se aproximar de suas emoções, fantasias, pensamentos e medos de maneira metafórica e lúdica, potencializando possibilidades de compreensão do funcionamento psíquico. O grupo ocorre semanalmente, com 20 usuários de ambos os sexos, com duração de uma hora e vinte minutos. Nesse espaço de escuta, acolhimento, lembranças e ressignificação de sentidos, os participantes podem experimentar a si mesmos em outras possibilidades do existir, escrevendo também mais um capítulo da história de vida do próprio grupo.

Palavras-chave: Transtorno mental, Saúde mental, Reabilitação, Assistência à saúde, Grupos de autoajuda.


RESUMEN

La Reforma Psiquiátrica ha provocado diversos cambios en la atención al portador de sufrimiento mental, ampliando las formas de intervención junto a esta población. Este trabajo tuvo como objetivo relatar la experiencia de creación de un grupo de contadores de historias en un Centro de Atención Psicosocial (CAPS). En este grupo, a través de la apropiación de cuentos milenarios, historias cotidianas y experiencias de vida de los propios participantes, se crea un espacio en el cual ellos pueden aproximarse a sus emociones, fantasías, pensamientos y miedos de una forma metafórica y lúdica, potencializando posibilidades de comprensión del funcionamiento psíquico. El grupo funciona semanalmente, con 20 usuarios de ambos sexos, con duración de una hora y veinte minutos. En ese espacio de escucha, acogida, recuerdos y resignificación de sentidos, los participantes pueden probar a sí mismos en otras posibilidades del existir, escribiendo también más un capítulo de la historia de vida del propio grupo.

Palabras clave: Trastorno mental, Salud mental, Rehabilitación, Asistencia a la salude, Grupos de auto ayuda.


ABSTRACT

The Psychiatric Reform has caused numerous changes in care to patients with mental disorder, widening the forms and scope of treatments. This study aimed to present an experience report of the creation of a storytelling group at a Psychosocial Care Center (CAPS). In this group, through the world of ancient tales and participants' own daily stories and life experiences, patients can approach their emotions, fantasies, thoughts and fears in a metaphoric and ludic way, thus improving their chances of gaining a better understanding of their own psychic performance. The group has 20 participants of both genders, and meets weekly for one hour and twenty minutes. In this environment of listening, embracement, memories and review of meanings, participants are able to experience themselves in other possibilities of being. At the same time they write another chapter of the life story of the group itself.

Keywords: Mental disorders, Mental health, Rehabilitation, Healthy care system, Self-help groups.


 

 

Prólogo: para início de conversa

Apresentamos neste trabalho o relato de uma experiência de intervenção realizada junto ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II) de um município do interior do Estado de São Paulo. Esse relato foi estruturado à semelhança de uma narrativa, composta por três partes: Prólogo, Desenvolvimento e Desfecho. A linguagem utilizada é propositalmente coloquial, próxima de uma conversa, uma vez que tentamos nos aproximar, tanto na forma como no conteúdo, do objeto de estudo deste trabalho, que é a narrativa empregada como recurso de cuidado em saúde mental. Para iniciarmos esse relato, julgamos necessário apresentar o contexto da instituição, isto é, o cenário no qual essa história se desenvolveu.

Os CAPS são dispositivos que desempenham função estratégica na rede extra-hospitalar. Tiveram grande expansão após a promulgação da Lei 10.216, em 2001, que redirecionou a assistência em saúde mental no Brasil. Esse instrumento legal foi criado como marco histórico de ampla mobilização social, consolidando movimento que, no Brasil, ficou conhecido como Reforma Psiquiátrica. Esse movimento compreende um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais(1) que busca, entre outras bandeiras, remodelar a assistência em saúde mental.

A expansão dos CAPS e de novas formas de intervenção, implementadas nesses equipamentos, objetivam reduzir a necessidade de internações psiquiátricas e propiciar uma rede de atendimento extra-hospitalar na comunidade de origem para as pessoas com transtorno mental. A missão social dos CAPS é fornecer acolhimento e atenção às pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, procurando preservar e fortalecer os laços sociais do usuário em seu território(1). Visto dessa perspectiva, o CAPS seria o núcleo de uma clínica ampliada, que promove a autonomia e convida o usuário à responsabilização e ao protagonismo nos diferentes estágios de sua trajetória de tratamento(1).

Seguindo esse objetivo de clínica ampliada, no município de Indaiatuba, SP, o serviço de saúde mental é organizado por meio de três instituições norteadoras do atendimento, a saber: Ambulatório de Saúde Mental, CAPS AD - para usuários dependentes de álcool e drogas - e CAPS II - destinado a portadores de transtorno mental.

No CAPS II existem em torno de 1200 pacientes cadastrados, sendo que, mensalmente, são atendidos aproximadamente 50 usuários em procedimento intensivo (mais de quatro atendimentos por semana), 80 em regime semi-intensivo (até três atendimentos por semana) e 200 em regime não intensivo (até três atendimentos ao mês). A equipe de saúde mental é interdisciplinar, composta por psiquiatras, clínicos gerais, enfermeiro, técnico de enfermagem, psicólogos, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais. Além disso, foram firmadas algumas parcerias com a comunidade local e trabalhos voluntários, que proporcionam aos usuários atividades de educação física, yoga, tai chi chuan, biodança, dança do ventre, grupo de leitura e grupo de apoio psicológico.

As atividades oferecidas aos usuários são voltadas para o acolhimento da pessoa em sofrimento mental por meio de atendimentos, que podem ser psicoterapêuticos ou operativos, na modalidade individual ou grupal, domiciliar, institucional ou de intercâmbio comunitário.

É nesse contexto geral que o projeto do grupo de contação de histórias foi delineado e que o grupo foi criado e tem sido aplicado.

Desenvolvimento: o grupo de contação de histórias, uma travessia compartilhada

O leitor do presente estudo talvez se pergunte: por que criar um grupo para contar histórias? Apenas para passar o tempo? Por que a atividade narrativa é priorizada nesse tipo de intervenção em grupo, em vez de outra estratégia qualquer? O que tem de terapêutico nessa modalidade de atendimento? Para responder a esses questionamentos, julgamos necessário compartilhar os pressupostos nos quais se fundamenta o uso que fazemos do contar histórias, a função da narrativa e a relevância do ato de contar histórias como estratégia a ser introduzida no plano terapêutico dos portadores de sofrimento psíquico.

Frequentar histórias imaginadas pelos outros, por meio da escuta, da leitura ou, ainda, assistindo a filmes no cinema ou televisão, assim como peças de teatro e outras formas de representação artística, possibilita pensar a própria existência sob pontos de vista diferentes(2). Ao dar escuta àquele que fala, o profissional de saúde mental acolhe em seu mundo psíquico as narrativas produzidas pelo outro.

Ao valorizarmos essas narrativas, reconhecemos que o mito é o lugar privilegiado em que se expressa o desejo e o conflito. Quando estimulamos a capacidade de fabulação, exercemos função terapêutica, pois permitimos que o indivíduo integre certas vivências humanas antes experienciadas como paradoxais, díspares ou psiquicamente intoleráveis. Desse modo, as experiências de dor e sofrimento podem ser direcionadas para diferentes vias: catarse, projeção, racionalização ou sublimação(3). Nas narrativas engendradas, são oferecidos modelos exemplares de resistência à dor ou ao sofrimento; também são colocadas em circulação concepções diferentes sobre os problemas humanos, soluções alternativas e desfechos surpreendentes para os conflitos(3).

Ao ouvirmos histórias, nós nos tornamos protagonistas(4), pois quando vivemos a história relatada é a nossa própria história que, de algum modo, está sendo (re)contada. Esse efeito de identificação é facilmente ativado porque os contos milenares, de certo modo, são guardiões de sabedoria que atravessa gerações e culturas, preservando a memória pela via da transmissão oral da tradição herdada. A história narrada invariavelmente parte de uma questão, necessidade, conflito ou busca de personagens exemplares; no relato da saga do herói, por exemplo, tipicamente temos um protagonista que segue sua jornada de iniciação. Passa por inúmeras aventuras e tribulações, sobrevive às mais incríveis peripécias e delineia sua trajetória, que terá como desfecho a transformação e o amadurecimento pessoal. Mas, antes de se transformar, esse herói será submetido a provas e deverá ultrapassar obstáculos. Ao longo do caminho, terá suas virtudes testadas, enfrentará riscos, amargará fracassos e dissolverá seus próprios medos e hesitações. No sinuoso percurso traçado, irá se deparar com sentimentos extremos, como o amor e o ódio; será confrontado com a morte, a desesperança e o desespero, tudo isso para poder se transformar, ao final da história, em um ser diferente e melhor do que era no início do conto. Esse mecanismo, quando habilmente explorado pelo narrador, faz com que leitores e ouvintes possam se identificar com os conteúdos narrados e, assim, passem a se ver com novos olhares(4).

Desse modo, a exposição às narrativas produzidas pelo outro pode ter efeito terapêutico, na medida em que fomenta a possibilidade de nos vermos a partir de outros olhos. Apesar dessa perspectiva transformadora, foi apenas na década de 1980 que as histórias foram percebidas pelos pesquisadores das Ciências Humanas, como parâmetros fundamentais na busca por respostas sobre a natureza e condições da nossa existência, gerando crescente interesse pelo estudo das narrativas(5).

Segundo a Psicologia Narrativa, é por meio dos repertórios narrativos disponíveis na nossa cultura que nos socializamos. E é por meio da narrativa que construímos nosso self, isto é, que damos forma à experiência de si mesmo, pois quem somos depende do tipo de enredo que construímos a nosso respeito e do contexto discursivo específico em que se dá a comunicação desse drama.

Ao produzir sua narrativa, o indivíduo tem que escolher os principais cenários, atores, ações, motivações, metas e obstáculos que fazem parte de sua trajetória de vida, articulando-os de modo que faça sentido para o interlocutor e para si mesmo. Aliado a isso, quem ouve o contador também define a sua própria história, uma vez que é para o ouvinte que se é contado determinado enredo, com aquela determinada intriga, aquela avaliação moral e com aqueles detalhes específicos. Além disso, diante de uma situação que escapa do padrão esperado e transcende as expectativas do senso comum, recorremos novamente às narrativas, isto é, a uma intriga alternativa, em busca de conceber-lhe um sentido(6) e outorgar-lhe inteligibilidade.

O percurso da vida pode colocar o indivíduo face a várias adversidades. Para lidar com elas, ele precisará produzir uma narrativa que lhe permita oferecer explicação plausível para o que lhe causa dor e sofrimento. Ao atribuir sentido àquilo que o afeta, o indivíduo pode restaurar o sentido da vida, momentaneamente abalado, ou até mesmo perdido, frente aos grandes desafios existenciais.

Diante dessas premissas, compreendemos que poderíamos elaborar uma intervenção grupal utilizando os contos milenares, as histórias do cotidiano e as histórias de vida dos participantes do grupo como estratégia terapêutica para aproximá-los de suas emoções, fantasias e pensamentos de maneira metafórica e lúdica, potencializando as possibilidades de compreensão de seus funcionamentos psíquicos. Com esse propósito, criamos o Grupo de Contação de Histórias junto aos usuários de um serviço de saúde mental.

O grupo ocorre semanalmente, com 80 minutos de duração e média de 20 participantes de ambos os sexos. É coordenado por uma psicóloga e uma terapeuta ocupacional. A sessão compreende quatro momentos. Inicia-se com: 1) aquecimento inespecífico: utiliza-se a cantoria de uma cantiga popular de origem indígena, objetivando aquecer e preparar o grupo para um trabalho conjunto e integrado. Após, entoarmos a cantiga de roda, passamos à segunda etapa: 2) atividades com objetivo de promover o aprimoramento do contar histórias. Essas atividades compreendem exercícios de expressão corporal, de fala, de compreensão de histórias, de elaboração de narrativas, de integração grupal, de ensaio para apresentação do contar histórias e ações afins, seguidas sempre de reflexão sobre a atividade desenvolvida. Após essa fase, passamos à terceira etapa: 3) momento do contar histórias. Essa etapa também se inicia com uma música, visando demarcar esse momento, seguida do contar da história por um dos coordenadores do grupo. Em seguida, o palco é colocado à disposição de todos, livre para que os integrantes do grupo decidam a forma de contar. A sessão encerra-se com a quarta etapa: 4) cantoria da música inicial, primeiramente entoada em roda e, posteriormente, de forma mais relaxada, enquanto a sala está sendo arrumada por todos, antecedendo o término da atividade e a retirada das pessoas do ambiente terapêutico.

No presente trabalho, focalizamos uma técnica grupal denominada "Encantamento da história de vida". Ela foi utilizada inicialmente em uma sessão grupal, na qual estavam presentes sete usuários do serviço. A atividade consistiu no relato da história de vida de cada participante, abrangendo infância, adolescência, idade adulta, incorporando as memórias de cheiros e sabores, decepções e alegrias vivenciadas ao longo da trajetória de vida. A partir desse aquecimento, foi selecionada uma história real (narrativa autobiográfica) para ser transformada em uma história encantada. Todos os participantes puderam participar da decisão. A história criada por esse processo de transformação foi "O Reino Encantado dos Esquilos". Essa narrativa, que é a história encantada, foi trabalhada em várias sessões até se chegar a um enredo considerado satisfatório por todos os integrantes do grupo. Dessas outras sessões participaram 18 integrantes.

Desfecho: entrando no mundo de Fantasia e vivendo a História Sem Fim

O título acima faz referência ao filme "História sem Fim", baseado no livro homônimo(7). Narra a história de um menino que rouba um livro que conta a história da Terra de Fantasia e que, ao lê-lo, entra como personagem da história que é lida e, assim, tem papel ativo no desfecho da trama.

O método do encantamento de histórias é destacado neste estudo por ter sido um marco no percurso do grupo. Notamos maior envolvimento dos integrantes do grupo nesse tipo de atividade em comparação com os tipos de intervenção propostos anteriormente - atividades com forte apelo verbal e que pareciam estar distanciadas das necessidades psicológicas dos participantes ou não fazer sentido para alguns.

Os participantes do grupo acolheram a proposta de contação de histórias com bastante entusiasmo e naturalidade. Alguns se mostraram francamente empolgados com a possibilidade de contarem suas histórias, ao passo que outros, mais inibidos ou reservados, desde o começo demonstraram ficar mais confortáveis na posição de ouvintes das histórias alheias. As histórias iam se sucedendo umas às outras, de modo que o protagonismo ia trocando de mãos, ou melhor, de voz, alternando-se, de modo a abrir espaço para outros contadores. Os participantes foram construindo e reconstruindo cada história até concordarem que a criação estava fiel aos fatos da história de vida da "dona da história". Ao mesmo tempo, essa narrativa ficava repleta de magia, de fantasias e elaborações, acrescentadas por quem as ouvia e que enriqueciam os conteúdos narrados. Esse envolvimento manteve-se após o término da atividade, mostrando, claramente, que depois dessa intervenção havia mudado o sentido da participação dos integrantes no grupo. Parece que eles puderam experimentar, concretamente, a possibilidade de terem vez e voz, de serem protagonistas de uma história - tanto da história encantada em si, quanto do processo de apropriação e construção conjunta da história.

A história encantada foi publicada no jornal Nova Mente, editado pelos pacientes do CAPS e, posteriormente, foi preparada e adaptada para ser contada em evento promovido pela instituição. Notamos que os participantes entraram no "mundo de Fantasia", como o garoto protagonista de "História sem Fim". Ou seja, puderam viver e compreender sua própria participação no grupo de outros modos, bem como perceber que essa participação pode mudar os rumos de sua história. Assim, passaram a ser, ao mesmo tempo, atores e autores da história do grupo.

Usuários que, até então, não haviam lido ou contado nenhuma história, pois viviam confinados em um território de exclusão e alienação, passaram a se comunicar e a contar. Por exemplo, uma usuária do serviço, portadora de transtorno esquizofrênico, sempre verbalizava: não tenho cabeça para contar porque eu esqueço as coisas. Não consigo guardar. Após as sessões de encantamento da história de vida, ela passou a ler a história de um livro e, posteriormente, a contar histórias do cotidiano que havia vivido. Desse modo, recuperou a capacidade de narrar a si própria. Afinal, uma vida se faz de histórias - as histórias que vivemos, as que contamos e as que nos contam(2).

Acreditamos que, por meio desse método de encantamento, os usuários encontraram espaço para falarem de si, para contarem suas histórias e também para poderem recontá-las, ressignificando-as, incorporando novos significados e ampliando sentidos alternativos, de modo mais lúdico do que o recurso verbal tradicionalmente utilizado nos grupos de psicoterapia. Alguns dos integrantes desse grupo também participam de grupo psicoterapêutico, enquanto outros não, por considerarmos que estão com capacidade de abstração e simbolização bastante prejudicadas. Porém, nota-se que, ao utilizar o contar histórias e o encantamento da história de vida, esses usuários puderam entrar em contato com seus recursos internos, que afloraram e se tornaram mais disponíveis para eventual utilização.

A construção narrativa põe em movimento a fabulação. Quando esse recurso é trabalhado em grupo, mobiliza um entrelaçamento com as vozes e narrativas de outros participantes. O grupo funciona como uma galeria de espelhos(8), que possibilita ao componente se reconhecer no olhar do outro(9). Esse "outro" pode ser um integrante real do grupo ou o personagem imaginário da história encantada. Tal aspecto facilita identificações e diferenciações, vivências e reflexões que levam à maior compreensão de si mesmo, bem como à remoção de modos cristalizados de funcionar e se inter-relacionar. Nesse sentido, a potencialização da capacidade narrativa pode funcionar como instrumento de autonomização do sujeito frente ao mundo e à própria vida.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O envolvimento dos integrantes do grupo com a atividade de contar histórias foi intenso, visto que eles traziam histórias preparadas para contar durante a sessão grupal. Além disso, alguns relataram que estavam contando histórias ouvidas durante a sessão grupal para outros membros de sua família, o que sugere o poder multiplicador desse recurso narrativo, que funciona, assim, como veículo facilitador da comunicação no espaço familiar.

Pelo exposto, podemos considerar que esse grupo pode funcionar como recurso facilitador de convivência social e de experimentação de outras possibilidades do existir. No contexto do sofrimento mental crônico, tantas vezes gerador de embotamento afetivo e empobrecimento da capacidade de relacionar-se e de sustentar uma rede social de apoio, a produção de narrativas pode ser uma excelente estratégia de ressocialização - que é uma das missões sociais dos CAPS. Nesse espaço de escuta, acolhimento e reinserção social, valorizam-se as lembranças e a mobilização de esforços que buscam alcançar a ressignificação das experiências de vida. Os participantes são vistos como protagonistas que podem escrever e reescrever continuamente suas concepções sobre o mundo, as pessoas e si mesmos, podendo, inclusive, construir desfechos menos sofridos para sua existência, assim como para a história grupal.

Pacientes com transtorno mental grave e persistente muitas vezes vivem em situação de total isolamento social. Sentem-se diferentes, excluídos e recriminados, o que os leva a evitarem e se distanciarem de qualquer contato social. Os grupos, quando bem aplicados e manejados de forma apropriada, podem se constituir em recurso valioso para evitar o estado de encapsulamento autístico e desistência existencial, minimizando os efeitos deletérios do ensimesmamento, do desamparo e da solidão.

A estratégia de narrar e se perceber narrado no discurso do outro abre a possibilidade de um novo encantamento perante a vida. Atentos a esse mote, pudemos contar aqui a história do grupo de contação de histórias, que é uma maneira de transmitir e fazer perdurar no tempo a experiência revitalizadora, cujos efeitos estamos potencializando.

 

REFERÊNCIAS

1. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. DAPE. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. OPAS. Brasília (DF); novembro 2005.        [ Links ]

2. Corso DL, Corso M. Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed; 2006.        [ Links ]

3. Naves MB. Do mito à psicoterapia. In: Oliveira Jr. JF, organizadores. Grupoterapia: teoria e prática. Campinas (SP): SPAG-Camp; 1997. p.61-78.        [ Links ]

4. Machado R. Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias. São Paulo (SP): DCL; 2004.        [ Links ]

5. Bruschi ME, Guareschi NMF. A narrativa como escrita dos trabalhos em Construcionismo Social. In: Anais Eletrônicos do 14º Encontro Nacional da ABRAPSO, 2007. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro (RJ). [acesso em: 27 setembro 2009]; Disponível em: http://www.abrapso.org.br/siteprincipal/anexos/AnaisXIVENA/conteudo/pdf/trab_ completo_275.pdf        [ Links ]

6. Brandão TO, Germano IMP. Experiência, memória e sofrimento em narrativas autobiográficas de mulheres. Psicol Soc. 2009; 21(1):5-15.        [ Links ]

7. Ende M. A história sem fim. São Paulo (SP): Martins Fontes; 1993.        [ Links ]

8. Zimerman DE. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica. Porto Alegre (RS): Artmed; 1999.        [ Links ]

9. Barros ML, Calmon TF, Santos MA, Rigobello LX. Uma experiência de grupo operativo em um Centro de Atenção Psicossocial: construindo novas possibilidades. In: Santos MA, Simon CP, Melo-Silva LL, organizadores. Formação em Psicologia: processos clínicos. São Paulo (SP): Vetor; 2005. p. 235-53.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 10/2009
Aprovado em: 12/2009

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